Igreja Luterana - nº 2 - 2002 ÍNDICE IGREJA LUTERANA VOLUME 61 - NOVEMBRO 2002 - NÚMERO 2 Artigos Que Dizer dos Evangelhos Apócrifos? Vilson Scholz .......................................................................... A Importância da Música Sacra na História da Igreja Evangélica Luterana do Brasil David Karnopp ...................................................................... Movimento G-12 - O que é? Edgar Züge ............................................................................ A Eucaristia nas Origens do Culto Cristão Paulo G. Pietzsch .................................................................. Auxílios Homiléticos ............................................................. Devoções ............................................................................... Recensão ............................................................................... 149 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 ARTIGOS QUE DIZER DOS EVANGELHOS APÓCRIFOS? Vilson Scholz * De uns tempos para cá, houve um renovado interesse nos assim chamados evangelhos apócrifos. Até se publica livros sobre Jesus segundo os Apócrifos. Ainda outro dia a revista Galileu (sucedânea de Globo Ciência) quis uma entrevista sobre o assunto. Diante disto, cabem alguns dados a respeito dessa literatura. 1. A razão do interesse — Fica a pergunta: Por que tal interesse nos evangelhos apócrifos? Teria algo a ver com o famigerado “Jesus Seminar”, que ganhou notoriedade nos Estados Unidos na década passada? Para quem não lembra, o “Jesus Seminar”, além de se posicionar, por voto de maioria, quanto à autenticidade das palavras de Jesus nos Evangelhos, chegou à conclusão que Jesus era muito mais um sábio, um filósofo de tendência cínica ou gnóstica (mais ou menos como se pensava a respeito dele, em círculos acadêmicos europeus, no século XIX), do que propriamente um profeta apocalíptico (como muitos teólogos passaram a vê-lo no início do século XX). Também se pode perguntar se as próprias conclusões do “Jesus Seminar” não são um reflexo dessa releitura de Jesus, feita, em parte, a partir dos apócrifos? Seja como for, é possível traçar uma linha entre o “Jesus Seminar” e esse interesse pelos apócrifos, pois a imagem de Jesus que emerge dos apócrifos é, em síntese, a imagem de um mestre gnóstico. Isto porque muitos desses evangelhos foram produzidos num contexto gnóstico. O exemplo mais evidente é o Evangelho segundo Tomé, uma coletânea de 114 palavras ou sentenças * Dr. Vilson Scholz é professor de Teologia Exegética (Novo Testamento) no Seminário Concórdia e na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). 150 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 atribuídas a Jesus, muitas delas sem paralelo nos evangelhos canônicos.1 2. O termo apócrifo – Pela etimologia, apócrifo é “coisa escondida, oculta”. Na antiguidade, designava livros que se destinavam unicamente para uso particular dos adeptos de uma seita ou membros de uma religião de mistério.2 Entre os cristãos, veio a designar escritos cujo autor era desconhecido ou, então, cujo autor se ocultava sob um nome conhecido e respeitado, para conseguir mais crédito junto ao público.3 3. Apócrifo versus canônico — Os apócrifos são livros que não pertencem ao cânone bíblico. No caso dos evangelhos apócrifos, trata-se do cânone do Novo Testamento (NT). Entende-se que o cânone estava definitivamente fixado por volta do quarto século depois de Cristo,4 embora sua estrutura básica já estivesse definida por volta do ano 200 depois de Cristo. Logo, é a partir da noção de canônico que se define o que é apócrifo. Em outras palavras, apócrifos do NT são livros que desenvolvem temas semelhantes aos dos livros canônicos e que pretendem de forma mais ou menos velada arrogar-se o caráter de livros sagrados e estar em pé de igualdade com aqueles que o cristianismo considera inspirados, sem que tenham conseguido de fato entrar no cânone. 4. Tipos de apócrifos — Existem quatro grupos de apócrifos: evangelhos, atos, epístolas, apocalipse. A maioria se enquadra nos dois primeiros grupos: evangelhos e atos.5 Entre os muitos apócrifos do NT estão o Evangelho segundo os Hebreus, o Proto-Evangelho de Tiago, o Evange- Este evangelho apócrifo começa assim: “Estas são as palavras secretas que o Jesus vivo disse, e Dídimo Judas Tomé escreveu: 1 – E ele disse: Quem descobre o sentido destas palavras não experimentará a morte”. Evangelhos apócrifos. Tradução e introdução de Urbano Zilles. Caxias do Sul e Porto Alegre: Pyr Edições, 1987, p. 59. O dito de número 10 ilustra a semelhança desse material com os evangelhos canônicos: “Disse Jesus: Lancei fogo ao mundo e o conservo até que arda”. Ibid., p. 60. O caráter gnóstico, e herético, transparece na última sentença, a de número 114: “Simão Pedro disse-lhe: Maria afaste-se de nós, pois as mulheres não são dignas de viver. Disse Jesus: Eis que a atrairei para fazê-la masculino, para que também se faça um espírito vivo semelhante a vós homens, pois, toda mulher que se transforma em varão entrará no reino dos céus. Evangelho segundo Tomé”. Ibid., p. 73. 2 OTERO, Aurelio de Santos. Los evangelios apocrifos: colección de textos griegos y latinos, versión crítica, estudios introductorios, comentarios e ilustraciones. 2 ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1963, p. 1. 3 DATTLER, Frederico. Os evangelhos da infância de Jesus segundo Lucas e Mateus. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 102. 4 O primeiro documento que traz a lista dos 27 livros, nem mais nem menos, é uma carta de Atanásio, escrita em 367 depois de Cristo. 5 Convém notar que são poucos os casos de epístolas apócrifas, ou seja, epístolas escritas por uma pessoa e atribuídas a alguém outro. Isto já era assim no período apostólico (primeiro século depois de Cristo), e tem implicações para a discussão das assim chamadas “deuteropaulinas”. 1 151 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 lho de Tomé, os Atos de Paulo e Tecla, etc. De alguns dos apócrifos só se sabe que existiram, e isto a partir de outros documentos. Em outras palavras, o texto desses apócrifos não foi preservado. De grande número dos apócrifos só restam pequenos trechos, alguns preservados em escritos de Pais Eclesiásticos, outros em fragmentos de papiros descobertos recentemente em lugares secos como o Alto Egito. Pode-se afirmar que desapareceram os apócrifos mais antigos, de caráter mais duvidoso ou tendencioso. Sobreviveram os mais recentes, que estavam mais próximos da teologia ortodoxa.6 5. Origem – Há quem diga que uma das influências para a escrita dos evangelhos apócrifos foi a passagem de João 21.25. A isto se deve acrescentar o gosto pelo extraordinário e misterioso, que caracteriza o povo simples de qualquer parte do mundo, em especial também o povo que habitava a parte oriental do mundo mediterrâneo. À ingenuidade do povo crédulo se precisa acrescentar a astúcia dos hereges — docetistas, gnósticos, e outros. Há momentos, ao que parece, em que até os assim chamados ortodoxos recorreram ao gênero apócrifo para defender um dogma. É o caso do Proto-Evangelho de Tiago, que defende a perpétua virgindade de Maria.7 Aliás, parece que os evangelhos apócrifos surgiram, em boa parte, da vontade de conhecer mais detalhes da vida de Jesus, especialmente da natividade e infância (os assim chamados 18 anos de silêncio), bem como acontecimentos ligados à Sexta-feira Santa e Páscoa (aqui entra o Evangelho de Pedro).8 Detalhes da vida de Maria e dos apóstolos também foram assunto de alguns dos apócrifos. O mesmo interesse em complementar o quadro pintado pelo relato canônico se percebe nos atos apócrifos. Afinal, o Atos canônico se 6 7 8 OTERO, op. cit., p. 3. No capítulo 19 deste apócrifo, que em alguns manuscritos recebe o título de “História do nascimento da Santíssima Mãe de Deus e sempre virgem Maria”, uma parteira hebréia afirma a virgindade de Maria. O texto reza assim: “Retirando-se a parteira da caverna, veio-lhe ao encontro Salomé; e disse-lhe: Salomé, Salomé, contar-te-ei um novo prodígio; uma virgem deu à luz, e não se lhe rompeu a ‘natureza’.” DATTLER, op. cit., p. 112. Na seqüência, Salomé “estendeu o seu dedo à ‘natureza’ dela, mas soltou um grito e disse: Ai do meu crime e da minha incredulidade, porque acabo de tentar o Deus vivo, e eis que a minha mão desprendese de mim como fogo!” Idem ibidem. O evangelho de Pedro narra que, na noite que precedia o domingo, dois homens desceram do alto, o sepulcro se abriu e eles entraram no mesmo. O relato segue assim: “Quando os soldados viram isso, acordaram o centurião e os anciãos, pois também esses se encontravam aí para vigiar. E, enquanto narravam o que tinham visto, vêem três homens sair do sepulcro, servindo dois de apoio a um terceiro, e uma cruz os seguia. A cabeça dos dois primeiros tocava até o céu, enquanto a do terceiro ultrapassava-o. Ouviram uma voz do céu a clamar: ‘Pregaste aos que dormem’. [?] A partir da cruz ouvia-se uma resposta: ‘Sim’.” Evangelhos apócrifos, p. 52. 152 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 limita às atividades de Pedro e Paulo. Em resumo, os apócrifos tentam preencher lacunas, com apelo a uma imaginação não raras vezes bastante fértil. 6. Influência — Ao longo dos tempos, os apócrifos exerceram influência na piedade popular, na liturgia, na arte e na literatura. Algumas festas do calendário católico não existiriam, não fossem os apócrifos. Ninguém falaria em São Joaquim e Santa Ana, não fossem os apócrifos.9 Os três reis magos (o dado de que eram reis, em número de três), bem como os seus nomes, Melkon (=Melquior), Baltasar e Gaspar, derivam dos apócrifos.10 7. Valor — Em geral os livros apócrifos são mais recentes do que os canônicos (alguns do segundo século; muitos do quarto século). Quando não são heréticos, têm pouco valor teológico. Na Igreja Antiga, não há nenhum decreto oficial condenando categoricamente os apócrifos, assim como também não houve um concílio ou coisa parecida para fixar o cânone. Mas os teólogos, ou Pais Eclesiásticos, se manifestaram a respeito. Jerônimo achava que nada de bom podia ser encontrado neles. Já Agostinho reconhecia que neles se podia encontrar “alguma verdade” (aliqua veritas).11 Em tempos mais recentes, também há opiniões divergentes. No século XVIII, por exemplo, a escola de Tübingen pensava que os apócrifos serviram de inspiração aos canônicos. O curioso é que ainda hoje muita gente pensa assim! Mais comum é simplesmente ignorar os apócrifos, especialmente no mundo protestante. Os apócrifos interessam ao historiador da igreja e da liturgia, e talvez interessem à história da arte, mas têm pouca ou nenhuma importância para a biografia de Jesus. Em geral, basta ler comparativamente um evangelho canônico e um apócrifo para se notar a diferença. A linguagem dos apócrifos tende a ser pobre, e muitos dos episódios são esquisitos, triviais e de mau Os nomes de Joaquim e Ana aparecem no Proto-Evangelho de Tiago. Lê-se no Evangelho Armênio da Infância, um apócrifo que foi traduzido do siríaco ao armênio no final do sexto século: “E um anjo do Senhor se apressou em ir ao país dos persas para prevenir os reis magos e ordenar-lhes que fossem adorar o menino recém-nascido. E estes, depois de caminhar durante nove meses, tendo a estrela por guia, chegaram ao lugar de destino no mesmo momento em que Maria veio a ser mãe. .... E os reis magos eram três irmãos: Melkon, o primeiro, que reinava sobre os persas; depois Baltasar, que reinava sobre a Índia; e o terceiro, Gaspar, que tinha em sua posse o país dos árabes”. OTERO, op. cit., p. 362 (nossa tradução). Otero lembra que, na tradição latina, os magos são quatro, e não três. Na tradição siríaca posterior, são doze. 11 OTERO, op. cit., p. 7. 9 10 153 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 gosto. No entanto, este é um critério meramente estético. É na visão teológica que se percebe a grande diferença em relação aos canônicos. A própria estrutura de muitos dos evangelhos apócrifos, que, em geral, têm um fundo gnóstico, já indica algo de sua orientação teológica. Falta-lhes uma estrutura narrativa, ou seja, tendem a ser um aglomerado de sentenças atribuídas a Jesus. Além disso, não trazem uma narrativa da paixão de Cristo.12 A morte de Cristo, se não é de todo omitida, é tratada apenas de leve. Na visão cristã gnóstica, a iluminação da mente possibilita que se evite o sofrimento. Assim sendo, a glória de Jesus acaba engolindo seu sofrimento. Em contraposição, os evangelhos canônicos, que também culminam com a ressurreição de Jesus, mantêm esta realidade em tensão com o seu sofrimento e morte. Em nenhum dos quatro evangelhos canônicos o escândalo da cruz é removido pela ênfase na sua glória. Em cada um deles, a rota para a glória passa pelo vale do sofrimento. Nisto os evangelhos canônicos concordam entre si e divergem fundamentalmente dos apócrifos.13 Os evangelhos canônicos são, na clássica frase de Martin Kähler, narrativas da paixão de Cristo com uma longa introdução. 13 Quem acentua esta diferença é Luke Timothy Johnson, em The Real Jesus: The Misguided Quest for the Historical Jesus and the Truth of the Traditional Gospels (San Francisco: HarperCollins, 1997), uma obra escrita para fazer frente aos pontos de vista do “Jesus Seminar”. 12 154 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 AIMPORTÂNCIA DA MÚSICA SACRA NA HISTÓRIA DA IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL David Karnopp* A igreja luterana já foi chamada de “a igreja que canta”. Deve-se isso ao grande impacto que causou a música na vida e obra do Reformador Martinho Lutero. Não me proponho, porém, a entrar no mérito dessa afirmação. Fato é que na história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) a música tem exercido um papel importante. Isso já se pode notar pela 22ª Convenção Nacional de 1934, que elegia uma comissão “para difundir a música e o canto sacros no seio da igreja”.1 No momento em que se está vivendo o espirito do centenário dessa instituição, é saudável resgatar a sua história com relação à música. Neste texto me proponho resgatar, pelo menos em parte, dois aspectos: um pouco da história e da filosofia da música na IELB. 1. UMA VISÃO PANORÂMICA DA MÚSICA 1.1 A IELB E SEUS MÚSICOS Ao rever a história, nada mais justo do que lembrar aqueles que deram valiosas contribuições na área da música. Fazendo assim, sempre se corre o risco de se esquecer nomes importantes. Mas Deus viu a obra de cada um deles, que certamente não foi em vão. Sem menosprezar outros, menciono alguns nomes cuja obra musical foi de grande importância na história da IELB. Um dos que mais se dedicou na área musical foi o pastor e professor do Seminário Concórdia de Porto Alegre, Werner K. Wadewitz. Na sua época, foi um grande incentivador da música na igreja. Foi tradutor e escritor de hinos e regente de corais. Um dos hinos mais queridos na IELB, “Ressurgiu Jesus Senhor” (Hinário Luterano 117), é de sua autoria. Marcou também forte presença outro professor do Seminário Concórdia, Johannes H. Rottmann, como músico e regente de coral. * 1 Rev. David Karnopp é pastor em Panambi, RS. Carlos Warth, Crônicas da Igreja (Porto Alegre: Concórdia, 1979), p. 246. 155 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Uma das atuações mais significativas no campo da música em nossa igreja é de Hans-Gerhardt Rottmann. Hans-Gerhardt foi professor de música e liturgia no Seminário Concórdia, regeu vários corais, editou livros de músicas. Foi também coordenador da última edição do Hinário Luterano e gravou vários discos. Ele “sempre será lembrado como o primeiro grande músico e maestro oriundo da IELB”2. Seu trabalho foi marcado pela preservação da arte sacra luterana. Jamais se pode esquecer de Rodolpho Hasse. Só no Hinário Luterano temos, de sua autoria, 63 hinos e mais 83 de sua tradução, num total de 146 hinos. Em termos de música sacra o Hinário Evangélico Luterano foi a sua grande obra, pois ele encabeçou a sua compilação e revisão. Outro nome é o de Martinho Luthero Hasse. No âmbito da poesia, hinos e melodias, ninguém, talvez, na história da IELB, tem tanta expressividade como ele. Numa carta que enviou para a pesquisa deste trabalho, o pastor Hasse informa o seu acervo poético-musical. O número de hinos, desde composições sobre os mais diversos temas até algumas adaptações e traduções, ultrapassa o número de 400 hinos. Os poemas sacros que escreveu, ultrapassam os 500, dos quais 145 para sua esposa. Além disso, ainda compôs várias melodias para seus hinos e canções e escreveu hinos e poemas em inglês e alemão. Todo seu acervo poético-musical ultrapassa o número de 1000 títulos.3 É interessante notar que Paul Gerhardt, considerado o maior poeta da história do luteranismo, tem um acervo de apenas 123 hinos.4 Além de todo este cabedal, Martinho L. Hasse foi o primeiro a se preocupar em tornar conhecida a história dos hinos. No final da década de 1950 e início de 1960, publicou histórias de alguns hinos, através da revista O Jovem Luterano. Numa destas revistas ele lamenta o “quase completo desconhecimento que as congregações têm da origem destes hinos, do nome dos seus autores e das circunstâncias em que surgiram”. No mesmo artigo ele alimenta um sonho de um dia ter “condições de publicar alguma obra histórica referente aos hinos luteranos e sua origem”.5 A obra musical, a beleza poética, a clareza e profundidade doutrinária dos seus hinos fazem dele quiçá o maior poeta da história da IELB. Além disso, a genialidade da sua poesia não é em nada menor do que a poesia dos grandes poetas da história da igreja cristã. 2 3 4 5 Walter O. Steyer, “O maestro foi transferido”, Mensageiro Luterano (Maio de 1992): 13. Martinho Luthero Hasse. Em carta enviada para este trabalho. Documento não publicado. David Karnopp, Música e Igreja (Passo Fundo: Pe. Berthier, 1999), p. 67. Martinho Luthero Hasse “Conhece os hinos que cantas?”. O Jovem Luterano, Porto Alegre, v. 22 (5,6): 26. Um exemplo de comentário sobre hinos luteranos está na edição de Julho-Agosto de 1956, p. 19. A primeira obra na IELB que trata da história dos hinos foi publicada somente 1999, de autoria nossa (cf. nota anterior). 156 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Ainda é merecedor de lembrança Leonido Krey, que se tornou conhecido como tradutor e escritor de hinos e canções folclóricas, cuja vasta obra lhe possibilitou publicar várias coletâneas de músicas. Notabilizaram-se também por traduzir e compor hinos: Theodor Reuter e Nestor Welzel. 1.2 A IELB E SEUS HINÁRIOS Quando os missionários americanos vieram ao Brasil para iniciar o trabalho da igreja, empregaram a língua alemã. O hinário que trouxeram consigo também era em língua alemã,6 que aqui foi usado por muito tempo. E mesmo o cantar de hinos alemães em muitos lugares ainda persiste. Em 1917, o Brasil, porém, rompeu relações diplomáticas com a Alemanha. Em conseqüência, o uso da língua alemã foi proibido nas igrejas e nas escolas. Como nem todos os pastores e membros sabiam falar ou entender português, várias igrejas permaneceram fechadas. Esta proibição, no entanto, “levou os pastores a traduzirem os primeiros hinos, orações e porções da liturgia para o português”.7 Os primeiros pastores a traduzirem hinos foram Martin F. Frosch e Emil F. Mueller.8 Quando terminou a Primeira Guerra mundial, a língua alemã voltou a ser usada até o período da Segunda Guerra. Mas a base para a nacionalização da nossa linguagem cúltica havia sido lançada. Outro fator relevante a dar impulso no uso da língua nacional foi a abertura da missão Luso-brasileira em Lagoa Vermelha no estado do Rio Grande do Sul.9 Em prol desta missão foi elaborado, em 1920, um hinário em língua portuguesa com 23 hinos e algumas orações chamado Hymnos e Orações. Outras edições seguiram com 25 hinos. Este Hinário basicamente é obra do pastor Rodolpho Hasse, que traduziu hinos da língua alemã e adaptou outros do hinário, Salmos e Hinos.10 Em 1938 o então Sínodo Evangélico Luterano, hoje IELB, dava um passo decisivo no uso da língua nacional, quando editava o Hinário Evangélico Luterano, com 217 hinos, encabeçado pelo pastor Rodolpho Hasse. A convenção nacional da IELB de 1940 reconheceu o trabalho do pastor Hasse e “expressou sinceros votos de agradecimentos pelo seu trabalho na confecção do hinário português”.11 Mas cedo constatou-se que este hinário era insuficiente. Por isso em 1946 ele recebeu um apêndice dos hinos 218 ao 315, sendo este apêndice reeditado em 1947. O estoque deste hinário esgoKirchengesanbuch. Posteriormente foi publicado pela Casa Publicadora Concórdia, com 479 hinos. 7 Paulo Wille Buss, Histórico da nossa Prática Litúrgica. Monografia não publicada. 8 Warth, op. cit., p. 40, 41. No Hinário Luterano não constam hinos destes pastores. 9 Id., p.39-43 . 10 Salmos e Hinos é o primeiro hinário evangélico publicado no Brasil. Sobre sua história veja em Karnopp, op. cit., 96-99. 11 Warth, op. cit. p. 248. 6 157 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 tou e o único hinário que a IELB tinha à disposição era este apêndice. Mas havia uma comissão que estava “em franca atividade”, trabalhando num novo hinário e que pretendia entregá-lo em breve.12 Pois em 1949 foi publicado o novo hinário com 340 hinos e assim permaneceu por 25 anos. Em 1972 a convenção nacional da IELB elegeu uma comissão para revisar este hinário13. O resultado saiu em 1974 quando foi editado um novo apêndice com 112 hinos sob o nome de Hinário Luterano: Segunda Parte. Este apêndice era provisório, pois um hinário em caráter definitivo devia ser publicado. Finalmente no dia 9 de outubro de 1986, depois de 14 anos de trabalho com uma equipe de 20 integrantes,14 o novo hinário foi apresentado à IELB,15 sob o nome Hinário Luterano, com 573 hinos. Sob muitos aspectos, o novo hinário teve boa receptividade. Sua beleza e qualidade poética foram muito elogiadas. Seu conteúdo doutrinário foi visto como “autêntico tesouro teológico”, como “obra monumental” e como “obra missionária de maior peso já lançado pela IELB”.16 No entanto foi bastante criticado.17 Entre as críticas levantadas, ele foi acusado de estar fora da realidade brasileira, principalmente no que se refere à música.18 Foram questionadas algumas melodias, alegando-se que são “difíceis de serem cantadas” e cheias de “floreios”. Questionou-se também a pauta musical que acompanha a primeira estrofe de cada hino com a alegação de que poucas pessoas conheciam notas musicais e, assim, o proveito seria mínimo. Outro aspecto criticado foi seu tamanho, o que é compreensível se o compararmos com o do hinário anterior. O atual consta de 951 páginas, enquanto o antigo hinário tinha 490 páginas. Mais tarde este problema foi resolvido quando foram publicados hinários com o mesmo número de páginas, porém, com letras menores. Vimos assim que o hinário oficial tem uma trajetória de várias edições. Esta é uma forma de se atestar que um hinário não é eterno. O passar dos tempos e o avanço da igreja para novas frentes de missão, requerem a contextualização da música. Id., p. 251. Id., p. 262. 14 Hinário Luterano: Igreja Evangélica Luterana do Brasil. 4. ed. (Porto Alegre: Concórdia, 1991), p. 8 apresenta a listagem dos integrantes da equipe que o elaborou. 15 Mensageiro Luterano, (Novembro 1986): 23. 16 Como mostram cartas publicadas no Mensageiro Luterano (Maio 1987): 2; (Julho 1987): 33; (Outubro 1987): 31. 17 Mensageiro Luterano, (Maio 1987): 2; (Junho 1987): 32; (Julho 1987): 33; (Agosto 1987): 2; (Setembro 1987): 2; (Outubro 1887): 31. 18 O Hinário Luterano compõe-se de 573 hinos. Algumas músicas, porém, aparecem mais de uma vez, o que o reduz a 405 músicas. Destas, apenas 27 são brasileiras, apenas 18 são de composição de autores da IELB. Destas 18 melodias, 16 são do pastor Martinho Luthero Hasse e duas são do pastor Theodor Reuter. 12 13 158 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Não é propósito deste trabalho avaliar as criticas levantadas ao Hinário Luterano. Me proponho, sim, a resgatar o fato histórico do hinário. O Hinário Luterano é uma grande obra. Nas palavras de quem coordenou os seus trabalhos, “a comissão fez sete revisões dos textos originais e traduções para que se chegasse ao melhor texto final possível. Para se chegar à seleção final dos 573 hinos pesou-se muito o conteúdo bíblico-doutrinário, a importância do hino na história do louvor do povo de Deus, a linguagem clara e beleza poética e a melodia”.19 Uma característica marcante na formação da hinódia evangélica brasileira, é o “empréstimo” de hinos de outras igrejas, de forma especial do hinário Salmos e Hinos. A maioria das igrejas evangélicas no Brasil beneficiou-se deste hinário para formar sua hinódia.20 No caso da IELB, este hinário e também outras fontes têm forte presença.21 Para termos uma idéia, basta ver que a sua maior compiladora, Sara Poulton Kaley tem no atual Hinário Luterano, 26 hinos de sua autoria e mais três de sua tradução. O filho adotivo desta autora, João Gomes da Rocha, tem seis hinos de sua autoria e mais cinco de sua tradução no Hinário Luterano. E por que este hinário teve tamanha influência na formação do Hinário Luterano? Ocorre que o hinário Salmos e Hinos nasceu no Rio de Janeiro, onde também viveu por longos anos Rodolpho Hasse, o maior responsável pela formação do Hinário Evangélico Luterano. É compreensível que ele estivesse bastante familiarizado com estes hinos e os tivesse “tomado emprestado” para o hinário da IELB. Além disso, tais hinos já estavam em língua portuguesa. Repentinamente, quando o uso da língua alemã foi proibido, era fácil de “tomá-los emprestados”. É possível que este empréstimo de hinos, de certa forma, nos tenha ajudado a nos aproximar e a nos identificar com as igrejas evangélicas no Brasil. Paralelamente ao Hinário Luterano, a IELB tem, na sua história, vários outros livros musicais. Entre eles constam coletâneas de hinos com músicas e livros para corais e organistas. Na década de 1960, com a expansão missionária, o Departamento de Missão da IELB preocupou-se em oferecer um hinário voltado para as missões. Por isso em 1968 foi editado um hinário com essa visão e que constava de 54 hinos selecionados do Hinário Luterano e do Cantor Cristão. Em 1974 este hinário foi amplia- Hans Gerhard F. Rottmann, “Hinário Luterano”, Igreja Luterana, 47 (1), (1988): 78. Henriqueta Rosa Fernades Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil (Rio de Janeiro: Kosmos, 1961). 21 Por exemplo o hinário Louvai ao Senhor” recebeu vários hinos do hinário batista Cantor Cristão. 19 20 159 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 do para 90 hinos com a edição de 5.000 exemplares.22 Em 1988, catorze anos após, quando já havia sido lançado o novo hinário da IELB, este hinário foi substituído pelo Louvai ao Senhor, com 158 hinos. Como é mencionado na sua página de apresentação, o Louvai ao Senhor não quer atingir um público específico, mas pretende “ser um hinário para fins e usuários diversos”. Uma vez que seu estilo é de “melodias mais leves e andamentos mais fluentes”23 e por nele haver vários hinos de autores brasileiros, preencheu de certa forma aquela lacuna pela qual o Hinário Luterano fora criticado. Um setor onde a IELB não se omitiu em termos de música foi com os seus jovens. Há muito que ela vem procurando oferecer música mais apropriada para o público jovem. Os primeiros livros de canções voltados para jovens foram Hinos e Canções de Rodolfo A. Warth e Lira Juvenil de Leonido Krey.24 Mais tarde a própria Juventude Evangélica Luterana do Brasil (JELB) começou a editar hinos em pequenos livretes fotocopiados. O passo mais decisivo foi dado em 1982 pelo Distrito Porto-Alegrense (DIPA) ao lançar a coletânea Musi Jovem, com 100 hinos e cânticos. Esta coletânea tinha o objetivo de trazer “hinos para a juventude de hoje” e “para reuniões de jovens”25, servindo de base para o hinário Todos os Povos o Louvem, que a JELB editou em 1982. Outro trabalho relevante na IELB, ainda que tarde, foi o lançamento do hinário Cânticos de Louvor, em dois volumes, com músicas próprias para crianças. A primeira edição saiu em 1985. Até então, não havia um hinário oficial da IELB com músicas para crianças. Esta lacuna era, em grande parte, preenchida com os hinários da APEC, Cânticos de salvação.26 Pelos vários hinários, cancioneiros e livros musicais que a IELB produziu na sua história, podemos concluir que ela soube abraçar os desafios que tinha diante de si. Já o lançamento do primeiro hinário em língua portuguesa é prova disso. Desde cedo ela procurou voltar a sua hinódia e música para realidades diferentes e não ignorou o contexto em que viveu e atuou. Assim foi descobrindo que, ao lado do harmônio, era possível usar o violão e outros instrumentos para louvar ao Senhor e propagar a Palavra. Em conseqüência ela também se viu cantando em ritmos diferentes do que o tradicional, com o bater palmas e coreografias. DEPARTAMENTO DE MISSÃO. Mensageiro Luterano (Abril 1974): 6. LOUVAI AO SENHOR, (Porto Alegre: Concórdia, 1988), p. 7. 24 Warth, op. cit., p. 221. 25 Gijsbertus van Hattem, comp.MUSIJOVEM (Porto Alegre: DIPA), 1980. 26 Aliança Pró Evangelização das Crianças – APEC, que através da Imprensa Metodista, São Bernardo do Campo, produziu hinários, com notas musicais, próprio para crianças. 22 23 160 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 1.3 A MÚSICA NAS ESCOLAS PAROQUIAIS Quando missionários americanos se estabeleceram aqui no Brasil, trouxeram consigo uma forte política educacional, firmada no lema “ao lado de cada igreja uma escola”.27 Várias escolas foram criadas, sendo que, no final da década de 1950, a IELB chegou a ter 150 escolas paroquiais.28 Em muitos casos elas foram o único meio de os filhos dos imigrantes terem acesso ao ensino fundamental. Estas escolas não serviram apenas para ensinar seus alunos a ler e escrever. O ensino religioso, por exemplo, ocupava uma boa parte do currículo escolar. E é nesta parte que a música teve um lugar importante e deixou marcas na igreja. As primeiras escolas já tinham aulas de música, canto e memorização de hinos no seu currículo.29 A memorização de hinos foi uma característica forte nas escolas, o que contribuiu para que a IELB aprendesse a cantar muito. Sobre este aspecto diz Carlos Fürstenau que “geralmente era cantado o mesmo hino durante um mês”, com o objetivo de memorizá-lo. Ele diz mais: “antigamente se cantava muito nas escolas”. E, na sua opinião, “muitos dos hinos hoje conhecidos na igreja foram aprendidos nas escolas paroquiais”.30 Henriqueta Rosa Fernandes Braga registra este aspecto, quando fala da vida devocional no Instituto Santíssima Trindade de Moreira e diz que “no orfanato, os hinos sacros acompanham diariamente as crianças”. Ela diz também: Após o café da manhã, antes que se dispersem... reúnem-se em família para o culto doméstico, no qual não faltam os cânticos. O [hino] da abertura é chamado de hino da semana porque se mantém o mesmo pelo espaço de sete dias a fim de que todos possam aprendêlo e decorá-lo, havendo grande preocupação em que seja claramente compreendido o espírito da letra. Desta maneira as crianças adquirem, sem muito esforço, um rico cabedal de textos e melodias.31 Nota-se que havia um grande interesse pelo ensino da música sacra nas nossas escolas, principalmente no aprendizado de hinos. Preocupado com a importância da música na escola foi que Wadewitz escreveu um artigo onde incentiva o cantar de hinos nas escolas porque “a palavra de Cristo opera no coração das crianças através dos hinos” .32 Vê também um aspecto instru- Walter O. Steyer, Imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e o Luteranismo (Porto Alegre: Singulart, 1999), p. 36. 28 Warth, op. cit., 256. 29 Steyer, op. cit., p. 41, 88, 90, 91. 30 Carlos Fürstenau, em Entrevista não publicada. Além de ter recebido sua formação básica em escola da IELB, formou-se professor pelo Seminário Concórdia em 1941. 31 Braga, op. cit., p. 215. 27 161 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 tivo no cantar de hinos: “criança que canta não briga; e, cantando hinos, estará louvando a Deus. O ambiente todo duma escola pode mudar pelo simples canto de um hino”. Nota-se, porém, que ao escrever este artigo, o que Wadewitz mais almejava é que os hinos fossem aprendidos na escola para serem aproveitados nos cultos. Na sua opinião, o canto congregacional deveria começar na escola paroquial. Por isso chama a escola de “vanguarda da música, dos hinos e da liturgia”.33 1.4 A MÚSICA CORAL Na história da música da IELB, o que sempre teve lugar privilegiado foi o coro. A maioria das congregações teve algum tipo de trabalho coral. O grande interesse por eles pode estar vinculado ao germanismo e à própria história do luteranismo, que estão fortemente ligados à música coral. Daí é compreensível que o coral faça parte da nossa história. Um dos primeiros registros de uma apresentação de coral na história da IELB é de 1908 pelo coral da congregação Cristo de Porto Alegre, que “apresentou um belo concerto por ocasião da 4ª Convenção Nacional”.34 A atuação mais significativa de um coral na história da IELB é a do Coral Luterano de Porto Alegre. Ele surgiu em 1956 como “Orfeão Juvenil Luterano” formado por jovens da uniões juvenis da IELB de Porto Alegre, sob a regência do então estudante do Seminário Concórdia, Hans-Gerhard Rottmann. Em 1960 a 36ª Convenção Nacional da IELB o transformou em coro oficial da igreja sob o nome de “Coral Luterano”. O coral gravou vários discos, cuja maior parte eram hinos do Hinário Luterano, que contribuíram para que as congregações aprendessem a cantar os hinos deste hinário. Foram também diversas as excursões pelo sul do Brasil. O coral também participou em diversos festivais nacionais e internacionais de coros, sempre se classificando entre os finalistas. Possuía um vasto e variado repertório, desde músicas simples até obras de grandes compositores, algumas inéditas no país. Merecem destaque os cultos “Cantate” realizados anualmente em Porto Alegre, que era certamente um dos maiores eventos sacros da capital gaúcha. Durante muitos anos, o Coral Luterano foi um dos mais respeitados e prestigiados corais na grande Porto Alegre.35 Outro coral de grande expressão na história da IELB é o coral do Seminário Concórdia. Ele surgiu em 1940, sob a direção de Werner K. Wadewitz, integrado pelos alunos do Seminário. Inicialmente era conhecido como “Coro Werner Karl Wadewitz, “A Importância da Música na Igreja e Na Escola”, Igreja Luterana, Porto Alegre, v. 19, (5) (1958): 195-206. 33 Id., p. 199, 200, 203, 204, 206. 34 Warth, op. cit., p. 237. 35 Hans G. Rottmann, “Vinte e Cinco Anos do Coral Luterano”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre, (Janeiro 1982): 9-13. 32 162 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Radiofônico”, pois “gravava hinos luteranos em discos que eram usados nas diversas irradiações”36 dos programas da Hora Luterana. Wadewitz fala da função do coro na igreja e incentiva as congregações a formarem corais, tendo “em vista o bem da igreja, servindo assim ao Senhor em adoração e louvor”.37 Isso demonstra que o coral tem, desde o início, um lugar assegurado na IELB. Qual é função dele na história e objetivos da igreja? Primeiramente quer se ver o coro inserido no culto. Por isso incentivase uma unidade na linguagem do culto. O coro não pode destoar desta unidade. Pietzsch diz que esta unidade do culto “é salutar para um melhor aproveitamento e retenção da mensagem por parte da congregação”. Diz ainda que “por isso o coral sempre deveria estar inserido nesta unidade e os textos de suas músicas deveriam estar relacionados com a mensagem central”.38 Wadewitz salienta que “o hino do coro deve combinar com o espírito do culto do dia. Não se canta um hino só porque o coro o conhece e o sabe cantar, para servir à congregação meramente um prato musical e artístico”.39 Estando inserido nesta unidade, o principal objetivo do coral na história da IELB é o de ensinar, ensaiar, conduzir e estimular o canto congregacional. Não se quer um coral apenas para fazer apresentações. Esta linha de pensamento transparece em vários escritos. Segundo Rottmann, O coro, sendo parte integrante da comunidade, deve dirigir a mesma no louvor. Deve o coro saber que sua função não é somente de embelezar fazendo com que a congregação seja mera platéia. Não é um concerto que o coro dá no culto. O cantar do coro é dirigido a Deus em primeiro lugar e quer fazer com que toda congregação também participe deste louvor. O coro deve ser o elemento vivo a conduzir todo cantar da comunidade, tanto nos hinos como na liturgia. É o coro que zela pelo cantar correto...40 Rottmann afirma também que “na congregação em que o coro realmente cumpre sua tarefa encontraremos uma comunidade que canta com alegria contagiante”.41 Blum, ao falar da implantação do novo hinário, diz: “Se a congregação tiver um coral, este deverá exercer sua função de líder no Warth, op. cit. p. 226, 228. Werner K. Wadewitz, “O Coro da Igreja”, Igreja Luterana, Porto Alegre, v. 5 (Setembro – Outubro 1944): 149-152. 38 Paulo Gerhard Pietzsch, “A importância da música no culto divino”, Igreja Luterana , São Leopoldo, v. 58, n. 1 (Junho 1999): 55. 39 Wadewitz, “O coro da igreja”, op. cit., p. 150. 40 Hans Gerhardt Rottmann, “O coro da congregação”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Dezembro 1980): 10. 41 Ibid. 36 37 163 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 canto congregacional”.42 Também Wadewitz vê este como objetivo do coral: “Vêm João e Pedro, vêm Alma e Luísa. Forma-se o coro. Verdadeiramente um coro misto para iniciar o trabalho. Que fazer? Primeiro cantar à uma voz hinos do hinário, os hinos do próximo culto, para os membros do coro poderem guiar e orientar o canto, para que não seja necessário o pastor enrouquecer antes do sermão por gritar alto os hinos”.43 De fato, muitos dos hinos hoje cantados na IELB o são porque algum coral os ensaiou antes. Além disso, muitas congregações perderam o medo de cantar porque um grupo coral serviu de apoio e estímulo. Daí a sua importância. Justamente a opinião de que “toda congregação, por menor que seja, deve procurar organizar o seu coro”.44 2. A FILOSOFIA COM RELAÇÃO À MÚSICA SACRA Como se pensou e se compreendeu a música sacra na história da IELB? Qual é o lugar que ela ocupa como meio de propagação do que a IELB ensina? É certo que nunca houve nela uma filosofia de música estabelecida. No entanto, aquilo que se escreve sobre música e hinódia da igreja, evidencia a sua posição. 2.1 A MÚSICA COMO ARTE A música sacra é um lago que não tem um fim em si mesmo; é antes uma vertente de fluxo circular. Ela serve tanto para conduzir a mensagem de Deus ao povo como levar a resposta do povo a Deus. Por isso ela tem servido para embelezar, dar brilho e enriquecer o culto divino. Ela é vista como expressão viva da fé cristã, que responde de forma criativa ao Senhor que ama seu povo. “Quando pensamos em música sacra, podemos dizer que ela é arte que brota da cruz e é levada até a cruz”.45 Ou, então, “é por intermédio da música que se pode melhor expressar o júbilo perante Deus e render-lhe graças. A palavra revestida de música impressiona mais...”46 Pode-se dizer que “o nosso cantar é uma resposta da fé ao amor de Deus. Daí não é possível que os cristãos cantem tristes lamúrias ao Senhor que tanto os amou”.47 Ao se fazer referência à milagrosa travessia do povo de Israel pelo Mar Vermelho e o conseqüente Cântico de Moisés, pode-se afirmar que: Raul Blum, “Implantação do Novo Hinário”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Julho 1987): 30. 43 Wadewitz, “O coro na igreja” op. cit., p. 151. 44 Rottmann, “O coro da congregação”, op. cit., p. 10. 45 Pietzsch, op. cit., p. 43. 46 Wadewitz, “A importância da música na igreja e na escola”, op. cit., p. 200. 47 Karnopp, “Música e adoração”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Junho 1998): 18. 42 164 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 É certo que nós não vemos um mar aberto para passarmos, mas temos diante de nós um milagre maior. Por meio da morte e ressurreição de Cristo, Deus realizou a maior de todas as obras, abrindonos a passagem pela porta do céu, para a bem-aventurada vida eterna. Isso é motivo para cantarmos com fervorosa alegria. A música é umas das formas mais brilhantes e criativas de adorar a Deus por causa do seu grande amor. Por Deus ter feito tão grande benefício por nós, façamos da nossa música uma alegre adoração... Nosso cantar precisa ser um fervoroso testemunho para o mundo, de que estamos certos de que Deus triunfou gloriosamente no meio de nós.48 Por estas opiniões, vemos que a música na IELB é uma arte que enriquece o culto. 2.2. A CONFESSIONALIDADE NA MÚSICA A IELB, desde o seu início, tem uma forte característica confessional. Isso significa que ela adota documentos oficiais como exposição correta da Sagrada Escritura os quais estão reunidos no Livro de Concórdia49. Tais documentos expressam a doutrina que ela confessa e ensina. E a música não foge disso. O próprio regimento da IELB compromete seus pastores e congregações a “usar formas cúlticas, hinos... que estejam de acordo com a Escritura Sagrada e as Confissões Luteranas.”50 A IELB tem registrado na sua história um grande cuidado quanto ao conteúdo doutrinário dos hinos, para que eles sejam uma forma correta de proclamação e defesa da doutrina pura. Em outras palavras, aquilo que se canta, deve estar coerente com o que se prega. Essa preocupação está clara em vários escritos. Blum, ao falar do pastor como responsável pela escolha dos hinos a serem cantados pela congregação, afirma: Quanta asneira doutrinária muitas vezes é dita através de hinos provindos das mais diversas fontes. E nós os consumimos às vezes até dentro do culto. Acha-se um hino fácil e bonito para o coral e por isso ele é cantado, esquecendo-se de olhá-lo em seu conteúdo doutrinário. Encontra-se um hino vibrante para os jovens e engraçadinho para as crianças e não raras vezes menospreza-se o estrago doutrinário que ele vai incutir na mente de crianças e jovens ...51 Id., “O Cântico de Moisés, um exemplo de adoração”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Agosto 1998): 18. 49 LIVRO DE CONCÓRDIA. Arnaldo Schüler, trad. (Porto Alegre/São Leopoldo: Concórdia/Sinodal, 1980). 50 IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL: Estatutos, Regimento e Código de Ética (Porto Alegre: Diretoria Nacional, 2002), p. 48, 56. 51 Raul Blum, “O pastor Como Líder do Canto na Congregação”, Vox Concordiana: Suplemento Teológico, São Paulo (Ano 1, n.º 2, 1985): 9. 48 165 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 A Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da IELB emitiu um parecer oficial da IELB em relação ao hinário Louvai ao Senhor, editado por um Conselho Distrital. O documento alerta: “Verifica-se no cancioneiro a presença de elementos que comprometem a doutrina pura segundo a Bíblia e as confissões luteranas. Tal fato, portanto, impede que congregações luteranas entoem cânticos em desacordo com aquilo que confessam”.52 A responsabilidade com a teologia luterana nos hinos também é preocupação de Pietzsch quando diz: “... não basta o hino ser bonito e agradável ao ouvido... O cuidado com a pureza doutrinária é fundamental, pois através do cantar o Evangelho deve ser anunciado. Cuidado com os famosos hinos de apelo à fé, ou que meramente descrevem experiências particulares, ou ainda, que confundem Lei e Evangelho”.53 Um comentário sobre a música jovem na IELB na década de 80 resume a preocupação da IELB quanto à questão doutrinária dos hinos: Apesar disso, no entanto, ainda são relativamente poucas as músicas encontradas neste hinário jovem citado [Todos os Povos o Louvem]. Isto faz com que algumas uniões juvenis recorram a músicas de outras denominações cristãs, utilizando estas músicas freqüentemente em suas reuniões ou até mesmo publicando seus hinários locais com tais músicas sem terem submetido as tais canções a qualquer supervisão teológica de seus pastores. Isto vem a constituir-se num risco bastante grande para aqueles jovens e cristãos em geral que cantam as músicas sem prestar atenção na teologia envolvida nas mensagens destas músicas.54 Muito antes destas afirmações terem sido emitidas, Hasse já chamava a atenção para uma maior valorização do conteúdo doutrinário dos hinos. Diz ele que, “por nossos hinos serem substancialmente doutrinários”, precisamos nos apegar a eles “com quase o mesmo ardor com que nos apegamos à pureza evangélica”. Mais adiante, ao comentar sobre o sentimentalismo em torno do sermão e dos hinos, declara: “Não é o gosto, mas a necessidade da congregação que deve decidir a escolha tanto do sermão como do hino”. E finaliza: “Não percamos tempo no templo agradando aos sentidos, mas falando à alma com os nossos hinos“.55 COMISSÃO DE TEOLOGIA E RELAÇÕES ECLESIAIS, “Parecer quanto ao hinário Louvai ao Senhor”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Abril 1992): 31. 53 Pietzsch, op. cit. p. 56. 54 COMO VAI A MÚSICA NA IELB, Vox Concordiana, São Paulo (Ano 8, n.2, l989): 3. 55 Hasse, op. cit., (Março Abril (3, 4). 1961): 25. 52 166 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Esta profundidade teológica, doutrinária e confessional o próprio Hinário Luterano a demonstra. Seus hinos são profundos na pregação da Lei de Deus sobre o pecado. Também são muito claros na pregação do Evangelho, da graça e amor de Deus ao pecador. Sua linguagem clara e acessível é também altamente cristocêntrica.56 Assim pode-se ver que o conteúdo da letra está acima do valor da música e dos ritmos. Isso está claro no conceito de música na IELB, como podemos ver no comentário de um grupo musical ao destacar que a música é o condutor da mensagem e o captador da atenção do ouvinte; mas é através da mensagem dela que o Espírito Santo age, porque o ouvinte captou a palavra de Cristo pregada por meio da música.57 2. 3 A BUSCA PELO APERFEIÇOAMENTO Pelas declarações, nota-se que há consciência, na IELB, do quanto seus hinos devem primar pela profundidade teológica e doutrinária. Em função disso, tem havido incentivo no sentido de que as congregações aprendam bem e cantem com alegria os hinos e a liturgia e aprendam conhecer novos hinos e novos ritmos.58 Ou seja, o rico conteúdo teológico dos hinos precisa ser valorizado e não pode ser mal cantado. Pois, “se Deus nos deu forma tão bela e rica para louvá-lo, precisamos lhe oferecer o que temos de melhor em música e de forma abundante”.59 Da mesma forma se pergunta: 56 David Karnopp, “O Índice Remissivo do Hinário Luterano”, Igreja Luterana, São Leopoldo (Nov. 1996): 186-208, revela o quanto o nome de Cristo e sua obra estão presentes no hinário. Destaco dois exemplos que mostram esta clareza e profundidade. O primeiro é a quarta estrofe do hino 535 do Hinário Luterano, que fala em palavras claras da Lei de Deus, que condena o pecado. Mas ai daquele que tiver a Cristo desprezado em vida sempre só houver riquezas ajuntado! Jamais subsistirá em paz, devendo então com Satanás sofrer no inferno horrendo. O segundo exemplo é a primeira estrofe do hino 292 do Hinário Luterano, que mostra com muita clareza o consolo que a graça de Cristo traz ao que crê: Sou cordeiro de Jesus, e a alegria em mim reluz, pois o meu Pastor querido tem-me sempre concedido sua graça e seu favor, e me chama com amor. “Grupo musical Centelhas. Sua música e Cristo caminham juntos?”, Vox Concordiana São Paulo, v. 8 (l989): 5. 58 Veja por exemplo Martinho Krebs, “Música Sacra”, In: Lar Cristão (Porto Porto Alegre: Concórdia Editora, 1986), p. 62-71; Hans Gerhardt Rottmann, “O coro da congregação”, op. cit., p. 10; Raul Blum “O pastor Como Líder do Canto na Congregação”, op. cit., p. 9. 59 David Karnopp “Música e adoração”, op. cit., p. 18. 57 167 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 “Se a IELB possui o conteúdo da Palavra de Deus e se fora dela existem ritmos agradáveis, por que não unir o útil e o agradável?”60 E cantar bem e com alegria não surge do nada. Este é um aspecto que requer treinamento nas congregações. Este treinamento começa por uma boa formação musical dos ministros61, que não são vistos como os únicos músicos, mas como responsáveis por toda parte musical na congregação. Por isso tem havido um grande esforço pelo aperfeiçoamento dos músicos existentes, bem como pela formação de novos. Uma das primeiras tentativas de aperfeiçoamento musical, em nível nacional na IELB, foi o “Curso de Regência e Órgão”, voltado para pastores e leigos, cujo objetivo era “dinamizar e reavivar o canto e a música nas congregações”.62 Mas a prova mais concreta por um aperfeiçoamento musical está no “Mutirão pela música na IELB” e no “Curso de diaconia em música”. O “Mutirão pela música” foi um projeto lançado em 1996 que atingiu 10 regiões do Brasil. Sua meta: “em cada congregação da IELB pelo menos um músico habilitado”.63 O projeto, dirigido por pessoas da própria região, foi executado durante três anos. O crescimento musical que ele trouxe para a IELB foi que despertou novos músicos e aperfeiçoou os que já existiam. O “curso de diaconia em música” é promovido anualmente pelo Instituto Concórdia de São Paulo. No conceito de música sacra da IELB, o aperfeiçoamento musical é uma preocupação constante.64 Nesse sentido, beneficiado é o próprio povo de Deus: O canto da congregação precisa ser treinado e estimulado. Um hino mal cantado pode aborrecer e desestimular as pessoas a participarem do culto, enquanto que um hino e uma liturgia bem cantados são estimulantes e conduzem as pessoas a buscarem, no contato com a palavra e sacramentos, maior comunhão com Deus. Se as congre- Id., “Ainda somos a igreja que canta?”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Fevereiro e Março 1997): 10. 61 A preocupação com a formação musical de qualidade dos futuros pastores da IELB está expresso no documento emitido pela COMISSÃO DE MÚSICA E ARTE SACRA da IELB, “Ensino de música em nossas escolas pré-teológicas” de junho de 1982. Neste documento, a comissão propõe as regras que deveriam reger a formação musical dos pastores. Estas regras estabelecem a carga horária mínima, os tipos e a quantidade de instrumentos a serem ensinados e que os professores contratados tivessem igualmente boa formação musical. 62 Há registros de dois cursos, um em Janeiro de 1981 no Seminário Concórdia de Porto Alegre e outro em Janeiro de 1982 no Instituto Concórdia de São Leopoldo, cada um com uma semana de duração. Cf. Judith D. Thomé, “Cursos de regência e órgão”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Maio 1881): 7. Veja também Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Março/Abril 1982): 23. 63 Raul Blum, “Mutirão pela música na IELB”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Fevereiro/ Março 1996): 6. 64 Id., “O pastor Como Líder do Canto na Congregação”, op. cit., p. 9. 60 168 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 gações forem estimuladas a louvarem a Deus de uma forma alegre e bonita, e se forem ensaiadas desta forma, normalmente, elas cantam muito bem.65 2.4 A DIMENSÃO MISSIONÁRIA NA MÚSICA SACRA No conceito de música sacra na IELB, um aspecto que não aparece com muita freqüência nos escritos é a música como meio da missão de Deus. Como vimos, o aspecto confessional e doutrinário nos hinos aparece com muita clareza. E isso por si só os torna evangelísticos. Fala-se muito do conteúdo da música como meio de pregação e instrução nas congregações e como meio de comunhão com Deus. Mas em se tratando da música como meio de evangelização, temos falado menos e as palavras não têm sido tão claras. O próprio autor deste trabalho publicou uma palestra na revista Vox Concordiana com o título: “O testemunho da fé através da música”66. Este trabalho destaca a relevância da música na igreja, mas não é muito claro ao falar da música como meio de evangelização. Um exemplo mais claro é do Coral Luterano de Porto Alegre. Uma das integrantes do coral diz que um dos objetivos do coral era “anunciar o evangelho através do canto”. Ela relata também de uma excursão do coral pelo sul do Brasil e comenta as oportunidades que o coral teve de testemunhar a fé. E, com muito entusiasmo, comenta a respeito do motorista do ônibus da excursão, que “teve um encontro com Cristo” por causa do testemunho do coral. E conclui: “se a excursão não tivesse dado nenhuma outra satisfação, só este depoimento do novo amigo valeria por todo esforço que a excursão exigiu”.67 O maestro do Coral Luterano, ao falar dos 20 anos de atividade do coral e do lançamento de um novo disco, destaca o evangelismo como um dos objetivos: “difundir cada vez mais o evangelho pela música”68. Outro exemplo é do conjunto musical Centelhas, de São Paulo, que diz que escolheu o evangelismo como objetivo para tornar suas músicas “em veículo para a proclamação da palavra de Deus”. Com este objetivo em mente, o grupo pergunta ao leitor: “por meio daquilo que cantamos estamos realmente tendo em vista a salvação de nosso semelhante pela mensagem de Cristo em nossa música?”69 Este talvez seja o exemplo mais claro e direto sobre o assunto na história da IELB. Erni Walter Seibert, Congregação Cristã: Enfoques Teológicos e Práticos, (São Paulo: EST, 1988), p. 58. 66 David Karnopp, “O Testemunho da fé através da música”, Vox Concordiana: Suplemento Teológico, São Paulo, v. 9, (1993): 63-69. 67 Norma Schoen, “Coral Luterano”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Abril 1979): 6. 68 Hans Gerhard Rottmann, “A Igreja Canta Louvores a Deus”, Mensageiro Luterano, Porto Alegre (Janeiro/ Fevereiro 1980): 72. 69 Grupo musical Centelhas, op. cit., p. 6. 65 169 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Os nossos hinários também não possuem muitos hinos que falem sobre o assunto. No entanto, quando o fazem, falam com muita clareza e convicção. Todos os nossos hinários, sem exceção, mesmo que poucos, têm hinos que nos chamam ao compromisso da evangelização do mundo. Destacamos dois exemplos.70 O primeiro é a primeira estrofe do hino 79 do hinário para as crianças Cânticos de Louvor: Ide já! É ordem de Jesus: Contar a todas as nações que andando vão, sem luz, a Boa Nova de perdão, que traz a paz ao coração. Oh quem quer ir? Oh quem quer ir? O Hinário Luterano também não possui muitos hinos que chamam ao evangelismo. Mas quando fala sobre o assunto, fala com clareza. Talvez o exemplo mais evidente seja a terceira estrofe do hino 330, que faz uma pergunta inquietante: E nós que conhecemos brilhante luz da fé, nas trevas deixaremos aquele que não crê? Sem mais demora vamos falar-lhe do perdão que por Jesus gozamos: a eterna salvação. CONCLUSÃO Conhecer a fundo a função da música na história da IELB ainda é um desafio a ser vencido. Certamente uma pesquisa mais abrangente revelará aspectos ainda não conhecidos desta função. Neste trabalho apenas me propus a resgatar alguns fatos dessa história. Que eles possam nos ajudar a abraçar, com mais firmeza, os desafios que, nesta área, se avizinham. 70 Além destes, outros exemplos podem ser os seguintes: Hinário Luterano: 68.3; 83,3; 304.4; 316; 324-333; 469.3. Louvai ao Senhor 16-18; 21, 146, 153. Todos os Povos o Louvem: 42, 68. 170 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 MOVIMENTO G-12 - O QUE É? Edgar Züge* INTRODUÇÃO Todas as vezes em que nos deparamos com algo novo em termos de teologia vêm-nos à mente alguns questionamentos: Isto vem de Deus ou é fruto da imaginação humana pós-queda? O ser humano tem direito de, em nome de uma liberdade absoluta, produzir sua própria teologia? Perguntamos isto tendo em vista que não há nada mais antidemocrático, nada mais politicamente incorreto – para falar em linguagem atual - do que a revelação de Deus. Sim, esta revelação nos é imposta, vem de fora, não nos pergunta se a queremos ou se concordamos com ela; simplesmente sabemos que ela é a melhor coisa que nos pode suceder. A questão se complica quando vêm a nós outras revelações, não de Deus, mas de um pretenso deus, o pai da mentira, Satanás. Este se vale da mente humana orgulhosa para difundir a sua “teologia”. Todas estas coisas nos vem à mente ao olharmos para uma das mais novas coqueluches do meio evangélico latino-americano, o Movimento G-12, grupos de 12, sonho de alguém. Temos algo a aprender com o movimento? Ou ele nos serve de alerta? A formação de grupos para estudo da Palavra de Deus dentro das igrejas não é nenhuma novidade. Grupos por afinidade surgem ao natural. Formam-se grupos por faixa etária, sexo, profissão, parentesco, etc. Não há nada de errado com eles em princípio. Mas tornam- se danosos quando começam a semear discórdias, difamações, doutrinas falsas, ou quando se tornam igrejinhas dentro da Igreja. Por vezes surgem grupos com características sectárias, como por exemplo, a lei do silêncio. Pessoas são convidadas a participar de um determinado encontro sem poder saber previamente o que vai acontecer, sem poder se comunicar com o mundo exterior durante o encontro e sem poder divulgar posteriormente o que aconteceu. Pode ser apenas uma técnica. Toda técnica é moralmente neutra; mas também pode haver uma preparação psicoló- * Rev. Edgar Züge é pastor da Comunidade Evangélica Luterana São Lucas, em Porto Alegre, RS. 171 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 gica, uma coação mental, para se levar os iniciantes aonde se quiser. Os profetas, apóstolos e o próprio Cristo não agiam assim. Nos últimos anos surgiu um novo movimento nas igrejas evangélicas latino-americanas, o G-12. Este movimento está presente em muitas das igrejas em células. O que caracteriza o G-12, como diz o próprio nome, é que cada grupo ou célula é de 12 pessoas. CONSIDERAÇÕES G-12 A visão dos 12 foi criada em 1991, em Bogotá, na Colômbia, pelo pastor César Castellanos Dominguez, autor de Sonha e Ganharás o Mundo, líder da Missão Carismática Internacional (MCI). Baseado em um método de multiplicação que usa este número por base, o sistema é uma adaptação do antigo modelo de igrejas celulares, inspirado no trabalho desenvolvido há mais de 15 anos pelo pastor David Young Cho, líder da Full Gospel Church, na Coréia do Sul, considerada a maior igreja evangélica do mundo, com mais de 600 mil membros. Diante da quantidade de fiéis, a liderança daquele ministério decidiu que a única maneira viável de promover a comunhão e o discipulado do imenso rebanho era estimular a formação de grupos familiares, onde os crentes pudessem compartilhar suas experiências, estudar a Palavra, orar e evangelizar. Há os que querem separar o G-12 da igreja organizada em células. Mas não há como fazê-lo, visto que o próprio fundador declara: “A colheita só poderá ser alcançada por aquelas igrejas que tenham entrado na visão celular. Não há alternativa: a igreja celular é a igreja do século XXI.”1 No G-12 cada líder de grupo forma um grupo de líderes até chegar em 12. Então acontece o desmembramento. É um sistema exponencial. Grupos nas igrejas sempre houve. A novidade do movimento fica por conta dos encontros que são secretos, não abertos ao público. O comentário que mais se ouve da boca de quem já participou de um é que “o encontro é tremendo”.2 No Brasil os dois maiores líderes são a pastora Valnice Milhomens, autora de Plano Estratégico para a Redenção da Nação, e o pastor Renê Terra Nova, autor de Manual do Encontro. O G-12 tem uma série de práticas antibíblicas relacionadas à quebra de maldições hereditárias, êxtase espiritual, extremo criticismo em relação à igreja tradicional, ênfase demasiada no número 12, que tem função mágica, tentativa de ser o único modelo detentor da verdade, ocultismo, regressão e técnicas de hipnose para a cura da alma. SOBRE O Citado por Larry Stockstill, A Igreja em Células (Belo Horizonte: Editora Betânia, 2000), p. 110. Cf. também Paulo Cesar Lima, O que está por trás do G-12, 5. ed. (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2001), p. 33. 2 Carlos Fernandes e Francisco Beltrão, “Revolução ou Heresia” Eclesia 5 57) (Agosto 2000): 19. 1 172 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Um dos pontos mais importantes é a unção espiritual, chamada de “unção de Toronto”, assim denominada por ter sido difundida pela Comunidade Cristã do Aeroporto de Toronto, no Canadá. Trata-se de uma espécie de êxtase espiritual, cuja manifestação mais visível é a queda no chão após a oração. Outras manifestações são a unção do riso, o milagre do dente de ouro e a imitação de animais. A “visão” dos iniciados também merece destaque. As pessoas têm que ter a visão de que este método dos 12 vem de Deus para a Igreja. O G-12 PASSO A PASSO 1. Pré-encontro: Quatro palestras preparatórias para o encontro de três dias. Os temas são: salvação, cruz, oração e Bíblia. Nesta fase o novo convertido recebe orientação sobre a Igreja, o senhorio de Cristo, mordomia e batismo. Em princípio não vemos nada de errado em estudar estes temas. Pelo contrário. Os cristãos deveriam estudá-los muito mais, também na IELB. 2. Encontro: Uma espécie de retiro espiritual, de três dias, onde a pessoa recebe ministração nas áreas de segurança de salvação, arrependimento, libertação, cura interior, e a “escada do sucesso”, espécie de processo de crescimento espiritual. Geralmente os participantes são novos convertidos oriundos do trabalho nas células e não antigos membros da igreja. Neste ponto vemos vários problemas. Os encontros são meio secretos, com técnicas de manipulação mental e temas que fazem a pessoa duvidar de sua fé anterior, como se só agora ela tivesse recebido a salvação. A ênfase carismática é muito grande. Sabemos que a segurança da salvação não depende de nosso grau de sentimento, mas da objetividade das promessas de Deus. Notem que a “escada do sucesso” também é altamente problemática, levando a pessoa ao farisaísmo ou ao desespero. E por que tal trabalho é mais direcionado aos recém membros e não aos antigos? Obviamente porque os neófitos são presas mais fáceis. 3. Pós-encontro: Quatro palestras para consolidação do que foi aprendido no encontro. Essa ocasião é o momento de sacramentar o que foi “ensinado”. 4. Escolas de líderes: Curso de formação de liderança ministrado nas igrejas, com o objetivo de preparar dirigentes de células e de grupos de 12. 5. Envio: É a execução do ministério. Após a consolidação da célula, o líder começa a formar seu grupo de 12. Uma vez estruturado este grupo, o líder estimula cada um a formar seu próprio grupo de 12. Surge então o líder de 144 e assim por diante. O G-12 O assunto é explosivo mesmo. Conforme um pastor nos relatou, muitas QUE ESTÁ POR TRÁS DO 173 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 igrejas evangélicas já se dividiram no sudeste e nordeste brasileiro, principalmente na Bahia. O material que segue é extraído e adaptado do livro “O que está por trás do G-12”, de Paulo César Lima, editado em 2000 pela CPAD. As pessoas facilmente embarcam em “novas doutrinas” por puro desconhecimento da palavra de Deus, pura ignorância espiritual. Pode-se detectar pelo menos seis grandes problemas nas igrejas que adotaram o G-12 no Brasil. 1. Empirismo. A palavra originalmente significa “experiência”. Dá-se mais valor à experiência do que ao ensino, destronando-se a autoridade final da Bíblia. Concordamos com o autor pois aponto o erro de todos aqueles que defendem uma total liberdade teológica que está mais para “ichtheologie”, teologia do eu, do que para revelação de Deus. 2. Pragmatismo. De “pragma”, que em grego refere-se a assuntos da vida prática. A práxis cristã tende tão-só para o funcional, resultando na quase total ausência de reflexão. Aqui queremos observar que muitas vezes pessoas defendem algo como correto só porque “funciona”. Realmente o caminho da doutrina falsa e da perdição é altamente “funcional”. 3. Ativismo. Solapa-se a verdadeira comunhão cristã, pois a ênfase recai toda sobre a “obra de Deus” a ser feita, tanto é que se esquece do Deus da obra. Muito interessante esta observação do autor. Dá o que pensar. E, quem sabe, até rever nossa agenda. 4. Utilitarismo. Os valores espirituais são tratados como produtos descartáveis. A cada culto devem ser criadas novas receitas de autoajuda para a solução dos problemas das pessoas. Procura-se a paz em vez do Deus da paz. Procura-se um Deus quebra-galho. Deus passa a ser previsível, é manipulado e domesticado por este sistema. 5. Instrumentalismo. Não é mais Deus que rege a vida do homem, mas o homem que rege Deus. Este último fica em posição servil, fazendo tudo que o homem determinar. Há de se notar que isto é teologia da glória em detrimento da teologia da cruz. 6. Consumo do divino. Há uma “gula” por Deus, um convívio com Deus de forma consumista, que cria em pouco tempo pessoas insensíveis e apáticas em relação à sublimidade de Deus, perdendo-se o sabor da sua visitação na sua graça a nós.3 Aqueles que dizem ter uma visão para o futuro da Igreja sempre têm algo em comum: arrogam-se donos de uma visão única para a restauração 3 Lima, op. cit., p. 26-28. 174 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 do mundo. Seu projeto é “O projeto”, a grande solução para a Igreja. Com isto se ignora que cada um tem dons diferentes e vive numa realidade diferente, num mundo diferente. Cada um deve projetar levando isto em conta. O G-12 confere ao número 12 um sentido mágico-espiritual que ele não tem, mesmo que seja um dos números mais ricos em simbolismo na Bíblia; leva as pessoas a confessarem pecados passados, que já foram perdoados, solapando a doutrina da justificação pela graça, diminuindo o valor do sacrifício único de Cristo; faz o crescimento da Igreja depender do método e das forças humanas em detrimento da pessoa e obra do Espírito Santo; atribui ao diabo poderes que ele não tem, uma vez que ele foi derrotado na cruz; mede o sucesso pessoal pelo número de pessoas que entram na Igreja; ensina a “confissão positiva” (o “criar” pelo pronunciar da palavra); advoga a “teologia da prosperidade” (as pessoas mandam em Deus nas orações); e, finalmente, ameaça constantemente as pessoas com o fogo do inferno. ANÁLISE DE ALGUMAS PRÁTICAS DO G-12 1. Mapeamento espiritual. São feitas 52 perguntas sobre o passado da pessoa e familiares. Questão: Por que investigar o passado de alguém que já é “nova criatura”? (2Co 5.17). O objetivo só pede ser o de desestabilizar a pessoa em sua fé e então poder dominá-la com o uso das informações adquiridas. É um verdadeiro “regime de terror espiritual”. 2. Regressão psicológica. A regressão só pode ser feita por profissionais preparados com fins terapêuticos, e isto com muito cuidado. Mas no G-12 é feita por pessoas despreparadas, que fazem as mais absurdas acusações aos candidatos. Pergunta: Se “o sangue de Jesus, o Filho de Deus, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7), por que esta prática? Pessoas despreparadas podem causar os maiores danos psicológicos a alguém, isto sem falar dos danos espirituais. 3. Confissão regressiva e quebra de maldição. Primeiro se ministra ao que se confessou, deitado e aos gritos, sob luzes muito fortes. Depois se diz que há uma maldição hereditária, um vínculo sangüíneo a ser quebrado. Verdade é que existe o pecado original, mas o entendimento do G-12 é no sentido do filho ser castigado pelo pecado do pai ou avô, interpretando muito mal Êxodo 20.5 e 6. Ezequiel 18 deixa muito claro que a responsabilidade é pessoal, que os filhos não serão castigados pelos pais e nem vice-versa. 4. Sopro espiritual. Os participantes são constantemente soprados para cair no chão. É a prática do “cair no poder”, uma queda que é induzida 175 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 pelo que ministra. Em muitas igreja se insiste nesta prática bizarra. Quando as pessoas se arrojavam aos pés de Jesus era por livre vontade, em extrema humildade. 5. Cura interior. O G-12 visa curar o interior da pessoa através do seu sistema. Mas a verdadeira cura é Jesus quem realiza: “Se, pois, o Filho vos libertar, sois verdadeiramente livres.” (Jo 8.36.) CONCLUSÃO Um método é moralmente neutro; em princípio nem melhor e nem pior do que outro. Mas antes de se usar este ou aquele método, esta ou aquela técnica, deve-se ver se não traz em seu bojo pressupostos antibíblicos, doutrinas falsas, ideologias satânicas. É claro que devemos crescer muito mais na fé em Jesus Cristo, no conhecimento da Palavra de Deus e na prática do amor ao próximo. E Deus nos deu inteligência, dons a serem usados e desenvolvidos diligentemente no seu Reino. Tudo isto pode ser feito sem se abdicar da verdade revelada por Deus, centrada na pessoa e obra meritória de Jesus Cristo. O G-12, ou métodos similares, que tendem a fazer a Igreja crescer pelo método em si e não pelo Espírito Santo - que age pela Palavra de Deus e Sacramentos, Batismo e Santa Ceia - , não podem ser usados por nós cristãos evangélico-luteranos, mesmo que temporária e aparentemente “funcionem”. Intensifiquemos nossos estudos bíblicos com os pressupostos confessionais que a Reforma nos legou. Muitas vezes agimos com nossas confissões na base do “não vi e não gostei”. Enquanto isso, o nosso povo pode estar morrendo de inanição espiritual por pura falta de conhecimento. Deus nos ajude. 176 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 A EUCARISTIA NAS ORIGENS DO CULTO CRISTÃO Paulo G. Pietzsch* 1.1 - INTRODUÇÃO Discorrer a respeito da Eucaristia1 e de seu significado para a Igreja Cristã, sem levar em conta as origens do culto cristão, o que influenciou na sua estruturação e os séculos de desenvolvimento do mesmo, seria, no mínimo, como erigir uma construção sem o devido fundamento. Por isso, o primeiro capítulo desta pesquisa estudará o contexto religioso, social e cultural do povo judeu da época em que a Eucaristia foi instituída. Falar das origens do culto cristão implica considerar os elementos e séculos de história do povo judeu que tiveram íntima relação com a estruturação da liturgia cristã. O que os costumes, as refeições, o zelo pelo templo e a sinagoga influenciaram na compreensão da Eucaristia e em toda a liturgia cristã, será assunto para a primeira parte do capítulo um. A relevância e o sentido do evento que marca a origem e instituição da Eucaristia serão apreciados a partir do relato da última ceia de Jesus com seus discípulos. Dar-se-á ênfase às palavras e às ações de Jesus naquela ceia que marca a instituição da Eucaristia. O que é herança do povo judeu e quais os elementos novos na ceia também é assunto a ser estudado. Como os primeiros cristãos celebravam a Eucaristia e qual era a estrutura, compreensão e dimensão de seu culto é assunto a ser abordado na temática “O Partir do Pão na Igreja Primitiva”. Ali serão apreciados os relatos de Atos dos Apóstolos e a experiência de Paulo com os Coríntios, desde a “ceia perfeita”, até a abordagem de problemas sérios relacionados com a Ceia do Senhor. Finalmente, do período que vai do final do primeiro século até boa parte Prof. Paulo Gerhard Pietzsch é professor de Teologia Prática no Seminário Concórdia e na ULBRA. No Seminário ocupa também as funções de Regente do Coral, Coordenador de Estágio e Coordenador de Atividades Cúlticas. Este estudo é uma síntese de sua dissertação de mestrado defendida em agosto de 2002, no Instituto Ecumênico de Pós-graduação, São Leopoldo, RS. 1 Mesmo que no contexto da Igreja Evangélica Luterana do Brasil este termo não seja utilizado com freqüência, seu uso, tanto no título como ao longo deste trabalho, objetiva resgatar exatamente as ações de graças e, mais especificamente, a oração eucarística, ao culto dominical. * 177 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 do terceiro, serão estudados documentos que descrevem como e quando a Eucaristia era celebrada, qual o seu significado, e o registro dos primeiros ordos do culto eucarístico, que, em parte, permanecem até a atualidade. 1.2 - AS INFLUÊNCIAS JUDAICAS 1.2.1 - INTRODUÇÃO Não é de se admirar que o culto cristão tenha sofrido forte influência judaica na sua forma, na sua estrutura e (também) na sua doutrina, pois o cristianismo “nasceu” em meio a um povo que guardava a Lei2 e os Profetas e que mantinha em suas tradições a freqüência ao templo com toda a sua ênfase nos sacrifícios3. Do ofício da sinagoga, além da leitura pública das Escrituras4 e subseqüente explicação (ver exemplo de Jesus em Lucas 4.16-21), as orações de ação de graças judaicas se tornaram padrão para as orações eucarísticas, e eram, ao mesmo tempo, um credo e uma bendição. Também das refeições familiares o culto cristão e, mais especificamente, a Eucaristia, receberam influências consideráveis5. 1.2.2 – A IMPORTÂNCIA DAS REFEIÇÕES Nas religiões antigas, o comer e o beber eram elementos importantes para promover a união das pessoas entre si e a união das pessoas com Deus6. Tal é a sua importância, que no Antigo Testamento há referência a acordos seculares que foram concluídos com refeições, em que os envolvidos comprometiam-se, sob juramento, cumprir com a sua parte do acordo. Alianças entre Deus e seu povo, como é o caso do Sinai, igualmente foram seladas com uma refeição, que foi uma verdadeira festa religiosa7. As refeições eram momentos especiais de comunhão e festa. Através delas, muito se sabe da própria cultura e identidade do povo de Israel8. Nota-se, a partir destes exemplos, que a comida (e a bebida) não era apenas elemento para o sustento corporal, físico, mas, e acima de tudo, elemento de comunhão com Deus e com o semelhante. Justo L. GONZALEZ, A Era dos Mártires, p. 18. James WHITE, Introdução ao Culto Cristão, p. 175-176. 4 Entendia-se nos primórdios “Escrituras” como a Lei de Moisés (Pentateuco) e os Profetas, cf. Lc 16.29,31. 5 WHITE, op. cit., p. 177. 6 B. KLAPPERT , Ceia do Senhor, p. 398. 7 Jürgen ROLOFF, Der Gottesdienst im Urchristentum..., p. 56, cita o exemplo de Êxodo 24.11, em que o acordo com o Senhor foi ratificado com uma refeição. O mesmo é referido por Sissi Georg RIEFF, Diaconia e culto cristão nos primeiros séculos, p. 76 e Romeu Ruben MARTINI, Eucaristia e conflitos comunitários, p. 31-32 acrescenta ainda mais detalhes. 8 Gordon W. LATHROP, La Eucaristia em el Nuevo Testamento y su Marco Cultural, In : Diálogo entre culto y cultura, p. 69, diz que as comidas simbolizam e formam relações sociais, hierarquias, inclusões e exclusões. Para ele, a identidade nacional do povo de Israel é firmada e festejada em refeições comunitárias. 2 3 178 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 O pão, elemento muito comum na vida do povo hebreu, representa o essencial para o corpo9, de modo que o mesmo passou a ser sinônimo de tudo o que era necessário para a preservação da vida10. O pão era visto como fortificante e sustento para as pessoas e símbolo de todas as dádivas de Deus, a ponto de, quando aquele veio a faltar para o povo de Israel no deserto, Deus lhes enviou o Maná, o pão que veio do céu11. Em todas as refeições, o pão figurava como elemento “insubstituível, especialmente para os pobres”12. Assim pode-se entender por que Jesus, fazendo referência à sua missão de salvar a humanidade, diz: “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome...”13, pois sabia que, tal como sem o pão (de trigo) o povo não tinha perspectivas de vida, sem a Sua obra não haveria perspectivas de vida eterna 14. Quase tão comum quanto o pão era o vinho na vida do povo hebreu15. Na Palestina, pão e vinho eram componentes básicos na alimentação dos hebreus que deveriam fazer uma longa viagem ou enfrentar a guerra. O vinho era também utilizado como remédio e alívio nas aflições e importante no serviço de Deus16. John Davis destaca que na Palestina havia carência de carne e vegetais e que o vinho ajudava a suprir estas faltas17. Não causa, portanto, admiração que Jesus tenha consagrado, ou seja, John D. DAVIS, Dicionário da Bíblia, p. 169. Gênesis 3.19 : “No suor do teu rosto comerás o teu pão” ; Mateus 6.11 e Lucas 11.3, Jesus resume as necessidades da vida sob a expressão “o pão nosso de cada dia”. 11 Christian STOCKS, Brot, p. 181, citando Êxodo 16.4 e 8, lembra como Deus supriu a falta de pão e, em seguida menciona a grande bênção que foi para o povo, ao entrar na terra prometida, poder novamente “cultivar” o seu pão. 12 K. BERGER, Manna, Mehl und Sauerteig, p. 15 , Apud: Romeu Rubem MARTINI, “Eucaristia e Conflitos Comunitários”, p. 27-32, além de afirmar que pão [e vinho] é base da existência do povo judeu, destaca que este também é símbolo das dádivas de Deus, fruto do trabalho, meio de comunhão e motivo de conflito entre os povos antigos. 13 João 6.35 ; Oscar CULLMANN, Essays on the Lord’s Supper, p. 8-9; e Gordon LATHROP, La Eucaristía en el Nuevo Testamento y su Marco Cultural, p. 76-78, defendem a idéia de que este texto e outros textos que fazem referência a refeições de Jesus deveriam ser interpretados com os olhos voltados para a Eucaristia. Cullmann, a celebração que a igreja fez de refeições escatológicas têm raízes nas refeições que ocorriam na ocasião dos aparecimentos de Jesus depois da Páscoa. Cullmann atribuía ao partir o pão após a Páscoa influência sobre a emergência da Ceia do Senhor na Igreja Primitiva. Ver também E. LOHSE, Geschichte des Leidens und Sterbens Jesu Christi, p. 57; J. JEREMIAS, The Eucharistic Words of Jesus, p. 106-110. 14 João 6.40. 15 DAVIS, Dicionário da Bíblia, p. 619, o vinho é importante nas refeições judaicas, não sendo, no entanto, elemento indispensável em cada refeição; Christian STOCKS, Sabbath, p. 868-876, em todo o sábado, festa sagrada de grande importância para a família judaica, o marido é responsável pela bênção do vinho e é ele que corta o pão especial do Shabat. 16 MARTINI, op. cit., p. 28-29. 17 DAVIS, op. cit., p. 619, o vinho também era sinal de hospitalidade para com os hóspedes e elemento obrigatório nas festas particulares, cf. Gênesis 14.18 e João 2.3. No entanto, há que se registrar os cuidados que se devia ter para não incorrer na embriagues. Para neutralizar os efeitos perigosos do vinho, adicionava-se água, como se pode observar no modo de celebrar a Páscoa, em que os servos levavam uma vasilha com água usada nessa solenidade, cf. Mishna, Pesachim, 7.13;10.2,4,7. Seguindo este costume, a Igreja Primitiva misturava água com vinho nas celebrações eucarísticas, cf. Justino Mártir, Apol. 1.65. 9 10 179 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 separado do uso comum para Deus, o pão e o vinho utilizados na última ceia, e que a Igreja Cristã tenha seguido a ordem de fazer isto em sua memória18, pois tais elementos, além de familiares ao povo, representavam sustento e fonte de vida, símbolo de hospitalidade e fraternidade, alívio para a dor e motivo de alegria. As refeições do povo judeu eram consideradas momentos sagrados19, um lugar santo20, pois, «toda comida devia ser tomada com ação de graças, e isto criava o sentimento de que toda a comida é tomada na presença [de] Deus» (tradução do autor)21. Diante disso, a ritualização22 se torna importante, com regras detalhadas para a alimentação, e um grupo específico que delas participa: a família ou um grupo de amigos23. Dentre as refeições, destaca-se, primeiramente, o jantar do Shabat24, como refeição semanal de renovação25, que festejava as delícias do dia de Sábado na contemplação das obras do Senhor26. Nesta refeição, como em qualquer outra, as mãos eram lavadas27, a esposa abençoava e acendia as velas na mesa já posta e o marido era responsável pela bênção do vinho e o cortar do pão especial do Shabat28. As orações, como ação de graças, eram Lucas 22.14-20 e 1 Coríntios 11.22-25. WHITE, op. cit., p. 177. 20 LATHROP, Culto: Local y, no Obstante, Universal, p. 35. 21 Id., La Eucaristia en el Nuevo Testamento y su marco cultural, In : Diálogo entre Culto y Cultura, p. 72 : “Por cierto, toda comida debrá tomar-se com acción de gracias, y esto creaba el sentimiento de que toda comida es tomada en presencia [sic] Dios” . 22 LATHROP, Culto: Local y, no obstante, universal, p. 35. 23 WHITE, op. cit., p. 177. 24 Wilhelm GESENIUS, Hebräisches und Aramaisches HandWörterbuch, p.736, traduz o termo como “aufhören” (parar, concluir) ou “Arbeit aufhören” ( concluir o trabalho) e “Ruhen” (descansar). 25 Christian STOCKS, Sabbath, p. 869. 26 John J. Davis, Dicionário da Bíblia, p. 520. 27 LATHROP, La Eucaristia em el Nuevo Testamento, p. 70. Cf. John J. Davis, op. cit. p. 506, os hebreus e os gregos, como os árabes, lavavam as mãos antes de comer porque geralmente havia só um prato na mesa, onde todos metiam a mão. Este costume converteu-se em ritual que era minuciosamente observado pelos fariseus no tempo de Jesus. 28 Alfred J. KOLATCH, O livro judaico dos porquês, p. 181-182: “Nos tempos talmúdicos, as velas eram acesas em cada lar todas as noites da semana, com a finalidade prática de iluminar a casa. Uma residência comum tinha dois quartos e, geralmente, uma vela acesa era transportada de um cômodo para outro, a fim de proporcionar a luz necessária. Mas na sexta-feira à noite, duas velas eram acesas, uma para cada quarto, porque era proibido transportar velas”. (...) “Outra explicação para o costume de acender as velas se baseia no livro de Ester (8.16), que descreve que a vitória de Ester e Mardoqueu sobre Hemán foi celebrada com ‘luz e alegria’. Por isso em todas as ocasiões alegres, tais como Shabat, festas e casamentos, acendem-se velas”. (...) “Vários costumes surgiram ao longo dos séculos e eles diferem de comunidade para comunidade e de família para família. Algumas pessoas acendem sete velas ou um candelabro de sete braços, correspondendo aos sete dias da semana ou à menorá de sete braços, que era a peça central do templo de Jerusalém. Em alguns lares, a mulher acende uma vela para cada membro da família, inclusive aos netos. O Talmud encoraja este costume ao dizer que ‘a multiplicação das velas é uma bênção do Shabat’”. (...) “A obrigação principal, mas não exclusiva, pertence às mulheres.” Ver também Christian STOCKS, Op. cit., pp. 870-872. 18 19 180 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 momento significativo durante esta refeição familiar29, sendo esta uma das formas de santificação do Sábado30. A Habûrah31, segundo Gregory Dix, era uma refeição bastante freqüente, podendo ser semanal (no início do sábado ou outro dia santo), na qual um grupo privado ou sociedades informais reuniam-se para a devoção e a caridade e os seus participantes sempre contribuíam com provisões para a mesma32. Dix é da opinião de que a última ceia de Jesus era uma Habûrah, pelas semelhanças de ambas e pelo fato de Jesus e seus discípulos estarem acostumados a esta refeição33. A Pesah, palavra hebraica que significa “passar por cima”, “saltar por cima”34, lembra que Deus é Redentor35. A festa anual da Páscoa, “instituída no Egito para comemorar o acontecimento culminante da redenção de Israel”36, convidava o adorador a relembrar e reviver de modo muito realista a misericórdia do Senhor para com Seu povo na terra da escravidão. Os elementos desta refeição incluíam, entre outras coisas, alguns cálices de vinho, o pão ázimo e o cordeiro pascal37. Além dos elementos, dois dos quais utilizados na Eucaristia cristã, algumas palavras e gestos também WHITE, op. cit., p. 177. Mário Curtis GIORDANI, História da Antigüidade Oriental, p. 252. 31 G. J. BOTTERWECK, H. RINGGREN (Hg.), Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament, vol. 2, Apud: Romeu Ruben MARTINI, op. cit., p. 34 (notas 27 a 29), o significado de Habûrah pode ser ampliado : “estar unido ou aliado”, “fazer um pacto”, “narrar”, “informar”, além da descrição dos termos derivados do mesmo radical: “colega”, “pacto”, “companheiro”, “camarada”, “feliz reconciliação dos irmãos separados”, “comunhão dos tementes a Deus”, “amigo e companheiro contra o qual não se deve planejar injustiça’; também refere-se a tradução que a Septuaginta dá à palavra: “koinonía” ; Wilhelm GESENIUS, op. cit., p. 190, traduz HABÛRAH como “binden” ou “verbinden” (“ligar”). 32 DIX, op. cit., p. 50-51; ver Romeu Ruben MARTINI, op. cit., p. 35. 33 DIX, op. cit., p. 54. 34 HARRIS et al., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 1223-1224; DAVIS, op. cit., p. 443: Esta festa, também denominada “festa do pão ázimo”, celebrava a pressa com que os judeus saíram do Egito, sem esperar o pão fermentar e crescer. Assim, durante os oito dias da Páscoa, apenas “matsá”, pão sem fermento, podia ser comido. 35 Clyde T. FRANCISCO, Introdução ao Velho Testamento, p. 54. 37 MARTIN, op. cit., p. 133, diz que “não se trata apenas de um relembrar dos acontecimentos do passado, mas revivê-los de forma muito realista, sendo este realismo transformado em esperança de libertação nacional da escravidão (...) assim como as ervas amargas revivem a escravidão sofrida pelos pais no Egito, os cálices são tomados como símbolo da libertação e salvação futuras. A ordem desta refeição era a seguinte: Quando a família senta para fazer a refeição de Passach, uma criança pergunta: ‘Por que esta noite é diferente de todas as noites?’. E o pai então explica como os judeus saíram do Egito e se tornaram um povo. Esta refeição segue um ritual fixo, com pratos tradicionais de significado simbólico. Devem-se mergulhar ramos de salsa numa tigela com água salgada, simbolizando as lágrimas dos judeus no Egito. As ervas amargas lembram a infelicidade da escravidão sob o domínio do faraó. Uma mistura de maçã ralada, nozes, vinho e mel representa o cimento que os judeus utilizavam para fazer tijolos. Um osso de carneiro assado simboliza o sacrifício pascal. Ovos cozidos recordam os sacrifícios feitos no templo. Bebe-se também vinho, o símbolo da alegria”. 36 DAVIS, op. cit., p. 446. 29 30 181 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 merecem destaque, pois serão igualmente “incorporados” na tradição da liturgia cristã, como é o caso da ação de graças pelas misericórdias passadas de Deus38, a anamnese (recordação) no recontar e reviver a história da libertação39 e a esperança escatológica, manifestada na expectativa da restauração futura do Reino de Israel40. As refeições familiares contribuíram com valiosos elementos que mais tarde puderam ser identificados no culto cristão, como por exemplo, as orações de ação de graças41, o costume de comer e beber com um grupo de amigos ou familiares42(a Eucaristia é para pessoas batizadas43) e a refeição experimentada na perspectiva de lembrança e re-atualização (anamnese) e de expectativa de libertação futura (elemento escatológico)44. 1.2.3 - A SINAGOGA E SEUS RITOS Ao se falar das influências judaicas na Eucaristia, é de vital importância verificar até que ponto estas interferiram em toda a liturgia do culto eucarístico45. Verificando as origens do culto cristão, descobre-se que da sinagoga judaica originou-se aquela parte do culto denominada Liturgia da Palavra46, que envolvia a leitura da Torah47 e sua interpretação (ensino e exortação ao povo)48, orações (que além de ação de graças, tinham função MARTIN, op. cit., p. 134. Ibid. 40 Ibid. 41 WHITE, op. cit., p. 177. 42 DIX, op. cit., p. 51. 43 Didaqué X:6 ; “ninguém coma nem beba de vossa Ação de Graças, a não ser os que foram batizados no nome do Senhor...” 44 WHITE, op. cit., p. 177. 45 A. G. MARTIMORT, A Eucaristia, p. 32 : “Embora os cristãos, em seu conjunto, não participassem mais das assembléias judaicas, tiveram como modelo de suas reuniões o próprio esquema das sinagogas”. 46 Christiane SAULNIER e Bernard ROLLAND, A Palestina no tempo de Jesus, p. 44, esse tipo de serviço religioso surgira por necessidade durante o exílio babilônico, uma vez que ali os judeus não tinham um templo onde orar. Ao voltar do exílio, eles continuaram praticando esse serviço (orar e ler e ouvir as Escrituras) nas sinagogas; ver também Johannes EMMINGHAUS, The Eucarist, p. 31-32. 47 SAULNIER e ROLLAND, op. cit., p. 46, no serviço da sinagoga das manhãs de sábado há um grande cerimonial em torno da leitura da Torá; no decurso de um ano se lê o cânone inteiro; o diálogo entre oficiante e comunidade, tão comum na liturgia cristã, também tem exemplo similar na sinagoga; J. J. Von ALLMEN, O Culto Cristão, p. 157-158, diz que a leitura da Escritura é um costume que a Igreja herdou do judaísmo, cuja tradição fixou um sistema de perícopes que deviam ser lidas no correr dos sábados do ano, costume este (de ler as Escrituras) que também integrou o culto comum da Igreja Apostólica; Ver também Johannes ROTTMANN, Atos dos Apóstolos , p. 97-100. 48 Mateus 4.23 e Lucas 4.16 e 21; DAVIS, op. cit., p. 562-563, diz que nas sinagogas “não se ofereciam sacrifícios: liam-se as Escrituras e fazia-se oração” e que no Antigo Testamento não há referência a estes lugares de adoração...”seguia-se uma lição dos profetas que era lida pela mesma pessoa que abria o serviço com oração. Depois da leitura era feita uma exposição sobre ela, pelo leitor ou qualquer outra pessoa presente”. 38 39 182 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 de credo, proclamação, súplica por novos prodígios e intercessões)49, salmos, bênçãos e o “Shemá”50. A liturgia da Palavra e a Eucaristia foram pouco a pouco combinados numa mesma celebração (o que já é testemunhado por Justino Mártir)51. 1.2.4 - O TEMPLO E SUA LINGUAGEM SACRIFICIAL O templo de Jerusalém também teve papel significativo na história do culto cristão, pois, além de ter sido lugar de adoração no tempo de Cristo e no princípio da atividade da Igreja Cristã52, as imagens sacrificiais encontradas no templo podem ser identificadas com as palavras da instituição “sangue da aliança” e “derramado em favor de muitos”53. O cantar de Salmos responsivamente54 e as orações, seguidas dos “améns” da congregação também têm sua origem no culto do templo55. O templo era considerado lugar sagrado56, e sob todos os pontos de vista o centro de Israel57, pois era o lugar da presença do Senhor58. Vale destacar também que Jesus dava valor ao templo como “a casa de meu Pai” (Lc. 2. 49) e “casa de oração para todas as nações” (Mc 11.17), pois este oferecia instalações para a comunhão com Deus e para as orações59. WHITE, op. cit., p. 176-177, “a súplica por novos prodígios é a conseqüência da proclamação do que Deus já fez”. Boa parte, tanto da forma como do conteúdo das orações das sinagogas foram adotadas como modelos para as orações eucarísticas cristãs, “em especial a estrutura da bendição (agradecer) de Deus por meio da oração de credo”. 50 SAULNIER e ROLLAND, A Palestina no tempo de Jesus, p. 45 : o roteiro do culto está centrado na oração e na meditação nas Escrituras. Começa-se pela recitação do Shemá, o credo do povo de Israel, composto de três passagens bíblicas: Deuteronômio 6.4-9; 11.13-21; Números 15.37-41. . 51 EMMINGHAUS, op. cit., p. 35. 52 ROTTMANN, op. cit., p. 106. 53 WHITE, op. cit., p. 176; M. C. GIORDANI, História da Antigüidade Oriental, p. 252: “Os sacrifícios podiam ser cruentos ou incruentos. Os sacrifícios cruentos tinham finalidade expiatória (dar satisfação por algum pecado), eucarística (agradecer algum benefício) ou ainda impetratória (pedir graças). Os sacrifícios incruentos consistiam na oferta de líquidos (como libações com vinho) ou de sólidos (como flor de farinha embebida em azeite, pão sem levedura, etc.)”. 54 WHITE, op. cit., p. 176, cita como exemplos o Salmo 43.4: “Subirei a altar de Deus, a Deus, o doador de juventude e felicidade” e o Salmo 118.26: “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Este último, literalmente utilizado no Sanctus/Benedictus da liturgia eucarística. Ver também Donald P. HUSTAD, A Música na Igreja, p.88-90. 55 MARTIN, op. cit., p. 27; ROTTMANN, op. cit., p. 106; HUSTAD, op. cit., p. 89. 56 MARTIN, op. cit., p. 25. 57 SAULNIER e ROLLAND, A Palestina no Tempo de Jesus, p. 37. 58 Id., p. 39; ALLMEN, op. cit., p. 293-294, o povo de Israel não estava desprovido da presença de Deus quando não tinha templo; na oração de Salomão, quando da dedicação do Templo (1 Reis 8) está explícito que o Senhor habita nos céus e não pode tornar-se prisioneiro do lugar onde se invoca o seu nome. O “lugar sagrado” é para demonstrar que Deus convoca o seu povo para encontrar-se com ele dentro dos limites deste mundo. A teologia do Antigo Testamento mostra que o lugar por excelência da presença do Senhor e conseqüentemente o lugar de culto é o povo que invoca o seu nome. 59 MARTIN, op. cit., p. 27. 49 183 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 O templo e os seus sacrifícios desapareceram, a linguagem dos seus cultos e rituais, porém, permanece: sacrifícios, ofertas, sacerdotes e santuário são termos comuns60. A presença de Cristo, no entanto, é determinada pela sua promessa “eis que estou convosco todos os dias” (Mt 28.20), pela sua Palavra e pela Santa Ceia61. Do templo, portanto, tornam-se significativos para o culto cristão e, especificamente, para a Eucaristia, a linguagem sacrificial e as ofertas (ofertório), o cantar de salmos (salmódia) que passaram para a liturgia cristã, o lugar como manifestação da presença de Deus e os benefícios: certeza da comunhão com Deus e recepção de suas bênçãos, perdão e expectativa pelos seus favores futuros. 1.3 - A ÚLTIMA CEIA 1.3.1 - AS PALAVRAS E AS AÇÕES DE JESUS Os relatos da instituição da Eucaristia apontam para uma série de ações e de palavras de Jesus62 que devem ser consideradas, pois nelas Ele declara a sua presença, identificando o pão e o vinho com seu corpo e sangue63, “dado e derramado em favor de muitos64 para remissão dos pecados”65. Das palavras e ações de Jesus, confrontando os diversos relatos da instituição, destacam-se as ações “tomar pão e cálice”66, “abençoar ou dar graças”67, “quebrar o pão [e apresentar o cálice]”68 e “dar aos seus discípulos”69. Estes são denominados por Gregory Dix como “Esquema de quatro ações”70, que são centrais na celebração71. Id., p. 28. ALLMEN, op. cit., p. 296-297. 62 Dix, op. cit., p. 48, no seu “seven-action scheme” (“esquema de sete ações”) destaca que “nosso Senhor 1- tomou um pão; 2- deu graças sobre este; 3- quebrou-o; 4- distribui-o, dizendo certas palavras. Depois ele 5- pegou o cálice; 6- deu graças sobre este; 7- alcançou-o aos seus discípulos, dizendo certas palavras.” 63 WHITE, op. cit., p. 178. 64 Cf. relatos de Paulo e dos Evangelhos sinóticos , todos relacionam pão com seu corpo e cálice com seu sangue. 65 Cf. Mateus 26.28 : Mateus é o único que acrescenta no relato da instituição esta cláusula “para remissão dos pecados”. 66 DIX, op. cit. p. 48, aqui acontece o que posteriormente é chamado de ofertório, em que os elementos são trazidos e dispostos sobre a mesa. 67 Id. Ibid., p. 48 e 79, o relaciona com a oração eucarística, que Romeu Ruben Martini, Ceia do Senhor : Um Esquema de Quatro Ações, p. 10-11 é o “cerne da comunhão de mesa”. 68 DIX , a fração aponta para o seu corpo sacrificado em amor pela humanidade e a comunidade come do pão partilhado e com isso usufrui do corpo de Cristo, e bebe do cálice comum e com isso usufrui do sangue de Cristo, tornando-se um em Cristo. 69 Id., p. 48, aí está a comunhão. 70 Ibid. 71 WHITE, op. cit., p. 179; Norman E. NAGEL, Holy Communion, p. 301, denomina as quatro ações de Jesus de “verbos principais”: tomou, quebrou, deu e disse. 60 61 184 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Os discípulos, ao verem o Mestre com um pão diante de si sobre a mesa e um cálice de vinho na mão72, ouviram de Jesus as “Palavras da Instituição”73. As palavras e as ações de Jesus naquela ocasião tornaram-se significativas, pois, “o culto principal da igreja foi instituído por nosso Senhor na noite em que foi traído”74 e a “liturgia cristã começou no cenáculo numa reunião privada, durante uma refeição entre amigos”75. “O central na celebração da Igreja da Ceia do Senhor é a Palavra e promessa do Senhor que a instituiu”(tradução do autor)76. Maraschin afirma que “a tradição mais antiga não estabelece nenhuma relação de interpretação com a aceitação das palavras de Jesus, pois nenhum dos discípulos quis saber de que maneira o pão era o corpo e o vinho era o sangue, apenas comeram e beberam, pois a confissão de que ele era o Cristo era o suficiente;”77 (...) “o litúrgico, propriamente dito, era o que se fazia, no caso, a Ceia”78. Mesmo que há quem não considere a última ceia como Eucaristia no sentido que a Igreja Primitiva dá à palavra79, é certo que ali está a sua instituição e as palavras e ações que fazem parte da celebração. 1.3.2 - A NOVA ALIANÇA Jesus Cristo, ao instituir a Ceia do Senhor, fez uso, além do pão, do cálice, dizendo: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue”80. Subentende-se que, se há uma nova aliança81, é porque primeiramente houve uma velha aliança82, feita por Deus com Israel através de Moisés (Êx 24.111), selada com derramamento de sangue sobre um altar e sobre o povo (Êx 24. 6, 8 - o sacrifício de animais seria, a partir de então, repetido constantemente83), baseada na observância dos preceitos da Lei: se Israel permanecesse nos mandamentos do Senhor e ouvisse a sua voz, assim Ele seria um Deus gracioso e Pai84. De acordo com Ralph Martin, o cálice está associaMARTIN, op. cit., p. 135. WHITE, op. cit., p. 178. 74 ALLMEN, op. cit., p. 26. 75 Jaci MARASCHIN, A Beleza da Santidade, p. 148. 76 Charles J. EVANSON, The Divine Service, p. 427 . 77 MARASCHIN, op. cit., p. 148. 78 Id., p. 149. 79 Cf. DIX, op. cit., p. 77, a última ceia não é Eucaristia, porque Eucaristia é entendida como resposta dos redimidos ao seu Redentor e obediência ao mandamento divino. 80 Cf. Lucas 22.20 e 1 Coríntios 11.25. 81 Júlio Paulo Tavares ZABATIERO, Ceia do Senhor, p. 413 : “A Ceia do Senhor é o antítipo da celebração pascal da velha aliança. Esta celebrava o evento da libertação de Israel do Egito...Ao falar do seu corpo e sangue, [Jesus] está aplicando a si mesmo termos de linguagem sacrificial (...) O sacrifício inaugurador da Nova Aliança”. 82 Cf. Christian STOCKS, Abendmahl, p. 185, aliança normalmente era feita mediante meios externos, mútuo juramento, refeições e seladas ou reforçadas com ofertas e sangue. 83 Sobre sacrifícios, veja-se Jonathan F. dos Santos, O Culto no Antigo Testamento, p. 63-110. 84 STOCKS, op. cit., p. 186. 72 73 185 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 do com a aliança feita por Deus com Israel, e, por causa da rebeldia deste85, fala-se de “uma nova aliança que o Senhor fará” (Jr 31.31-34), o que é exatamente referido por Jesus, não mais pensando no sangue de animais (Hb 9.12), “mas, pelo seu próprio sangue, (...) entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção (...) por isso mesmo ele é o Mediador da nova aliança”86. Jesus ofereceu-se a si mesmo, em carne e sangue, para restaurar a relação das pessoas com Deus, “aniquilando o pecado, abrindo assim acesso a Deus”87. Enquanto a velha aliança era restrita e imperfeita, porque dependia em parte das obras humanas, a nova aliança88 é perfeita, porque feita inteiramente por Deus; enquanto que, na velha aliança os sacrifícios deveriam ser constantemente repetidos, na nova aliança o sacrifício de Cristo foi de uma vez por todas; a primeira aliança restringia-se a Israel e dependia do cumprimento da lei para obter perdão e favores de Deus, a nova aliança é para o mundo inteiro, para que todo “o que nele crê” (Jo 3.16), tenha a vida eterna. Esta nova aliança, diante do exposto, é chamada de aliança de paz89, promovendo a paz com Deus e, em conseqüência, a paz com o semelhante 90 . 1.3.4 - O MANDAMENTO SOBRE A REPETIÇÃO “Anamnesis” ou memorial91 é algo muito diferente do que apenas relembrar fatos do passado. No contexto da cultura bíblica92, ela é uma atitude de re-atualização ou reconstrução do passado93,”a possibilidade de participar da história que se recorda”94, de forma a torná-la presente e operante aqui e agora95. “Ao repetir essas ações, a pessoa torna a vivenciar a realidade do próprio Jesus presente”96. Ao relembrar, reviver e comemorar através da Eucaristia o que é central na obra da salvação (que a pessoa MARTIN, op. cit., p. 136, fazendo referência a Êxodo 24.3-11. Hebreus 9.12b e15a.; WHITE, op. cit., p. 178. 87 Leonhard GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, Vol. 2, p. 510. 88 STOCKS, op. cit., p. 187-188. 89 Id., p. 187. 90 MARTIN, op. cit., p. 144. 91 Id., p. 146. 92 Id., p. 137, faz referência a Êxodo 12.14 e 13.9, em que , por meio deste sacramental a nação era levada de volta à ação salvadora de Deus e envolvida por ela; Richard H. FEUCHT, The Church’s Common Meal, p. 44, é importante conhecer o memorial entre os hebreus para entender a Ceia do Senhor. 93 ALLMEN, op. cit., p. 33. 94 Id., Estudo sobre a Ceia do Senhor, p. 29. 95 Id., O Culto Cristão, p. 33; Nelson KIRST, Liturgia parte por parte, p. 59, “ aquilo que aconteceu lá torna-se válido, na Anamnese, para os participantes desta celebração, neste preciso momento”. 96 WHITE, op. cit., p. 178. 85 86 186 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 foi comprada, redimida e reconciliada com Deus97 e “levada de volta ao Cenáculo e ao Monte), o comungante participa daquela obra salvífica que conhece como realidade presente - porque seu Autor é Aquele que vive no meio de seu povo redimido”98. Na Eucaristia atualiza-se não apenas aquilo que aconteceu na última ceia, ou seja, uma refeição entre amigos99, mas recapitula-se a história da salvação100, proclama-se através da Ceia a morte do Senhor (1Co 11.26), faz-se anamnese da cruz101, do Cristo crucificado e ressuscitado102. Cristo, ao dizer “fazei isto em memória de mim”103, aponta para uma dimensão especial do culto, pois, segundo von Allmen, com tais palavras Jesus instituiu o culto cristão104, que inclui a proclamação oral da Palavra juntamente com a celebração da sua Ceia105. Nesse sentido, a Eucaristia é necessária para o culto simplesmente porque Cristo a instituiu e deu à igreja a ordem de celebrá-la106. Brunner reforça esta idéia ao afirmar que pregação da Palavra e celebração da Eucaristia formam uma unidade interdependente no culto, que envolve uma progressão da anamnese da Palavra para a anamnese da Ceia, e direciona o crente batizado para a participação na Eucaristia107. Portanto, “as palavras e os gestos de Cristo na instituição da Eucaristia estão no coração da celebração: a refeição eucarística é o sacramento do corpo e do sangue de Cristo, o sacramento da sua presença (...)”108. A discussão acerca da anamnese poderia estender-se muito mais, porém, optou-se por destacar que houve uma instituição da Eucaristia por Jesus, houve a ordem de celebrá-la, e que, nesta ordem de repeti-la em sua memória, está incluída toda a obra de Cristo para a salvação da humanidade e a garantia de sua presença entre o seu povo redimido através do culto, na Palavra e na Eucaristia. A partir destas afirmações, considera-se a Eucaristia essencial para o culto cristão. FEUCHT, op. cit., p. 45. MARTIN, op. cit. p. 138. 99 DIX, op. cit., p. 50. 100 ALLMEN, O Culto Cristão..., p. 38. 101 Id., Estudo sobre a Ceia do Senhor, p. 31. 102 Ibid., p. 31: “quando no Novo Testamento se fala de comemorar a morte do Senhor, isto inclui a comemoração da sua ressurreição. Não se faz uma sem a outra.” 103 Lucas 22.19 e 1 Coríntios 11.24. 104 ALLMEN, O Culto Cristão..., p. 33. 105 Peter BRUNNER, Worship in the Name of Jesus, p. 283. 106 ALLMEN, O Culto Cristão..., p. 180. 107 BRUNNER, op. cit., p. 284. 108 CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS, Batismo, Eucaristia e Ministério, p. 37. 97 98 187 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 1.4 - O “PARTIR DO PÃO” NO TEMPO DOS APÓSTOLOS 1.4.1 - INTRODUÇÃO O testemunho que temos dos primeiros cristãos a respeito de sua vida de culto é que os mesmos “perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações” (At 2.42). Nas primeiras décadas da Igreja Primitiva, a Eucaristia foi denominada pela expressão “partir do pão”, devido ao fato de Jesus a ter instituído à mesa com seus discípulos109 e porque através deste sinal foi diversas vezes identificado110. Parece “tratar-se de um termo proposital, o qual escondia o alimento típico da Igreja, um alimento para a vida eterna”111. É um termo técnico para a refeição inteira, a parte pelo todo112. Abordar-se-á sob este título o período de Pentecostes até o início da segunda metade do século I. 1.4.2 - A FREQÜÊNCIA, O DIA E A UNANIMIDADE A partir dos relatos bíblicos de Atos dos Apóstolos e 1 Coríntios pode-se deduzir que a reunião dos cristãos para o “partir do pão” era muito freqüente (At 2.42-47; 20.7; 1Co 11.20), podendo acontecer, nos primeiros tempos, diariamente (At 2.46)113. Com base nos textos supracitados, von Allmen diz que na era apostólica “a Ceia era celebrada regularmente”114, “no primeiro dia da semana” (At 20.7; 1Co 16.2), também chamado “dia do Senhor” (Ap 1.10). O texto de Atos 20.7, “parece demonstrar a existência de um vínculo quase automático entre ‘o dia do Senhor’ e o ‘partir do pão’115. “A Ceia é parte integrante da assembléia dominical”116, que celebra a presença de seu Senhor e Salvador117 ressuscitado118. Pode-se concluir, pois, que a Eucaristia não era apenas parte integrante, mas a base e objetivo de cada reunião dos cristãos119, o ponto culminante do ROTTMANN, op. cit., p. 101. LATHROP, La Eucaristía em el Nuevo Testamento, p. 73; WHITE, op. cit., p. 178-179. 111 ALLMEN, Estudo Sobre a Ceia do Senhor, p. 98. 112 MARTIN, op. cit., p. 143. 113 ROTTMANN, op. cit., p. 101,106: é da opinião que “em seus inícios a igreja perseverava na celebração da Santa Ceia: não deixavam passar um único dia sem se reunirem para celebrar a Santa Ceia em culto conjunto”... “Da mesma forma como diariamente oravam no templo... também se reuniam à noite em casas particulares... Nestes cultos celebrava-se a Ceia”. 114 ALLMEN, O Culto Cristão..., p. 175. 115 Ibid. 116 Ibid.; LATHROP, Culto: Local y, no obstante, universal, p. 31. 117 ROTTMANN, op. cit., p. 101; 1 Coríntios 10.16. 118 Julian López MARTÍN, No Espírito e na Verdade, Vol. I, p. 171; Theodor BRANDT, Kirche im Wandel der Zeit, p. 40-41: O dia do Senhor é o começo da semana. Ele carrega a alegria da ressurreição. Este é o dia especial para lembrar os acontecimentos pascais tanto do Antigo Testamento como do Novo Testamento. CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS, Batismo, Eucaristia e Ministério, p. 44 : “Visto a Eucaristia celebrar a Ressurreição de Cristo, seria normal ela ter lugar pelo menos todos os domingos”. 119 Oscar CULLMANN, Early Christian Worship, p. 29. 109 110 188 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 culto cristão, tanto que “em toda a Igreja Primitiva não há o menor indício da celebração do Domingo sem a Ceia do Senhor”120. A unanimidade e a perseverança na palavra, comunhão, partir do pão e orações, demonstra que os primeiros cristãos agiam de comum acordo e prestavam esse culto “como se fosse em coro, em harmonia”121, de tal forma que “da multidão dos que creram era um o coração e a alma” (At 4.32). 1.4.3 - A ESTRUTURA DO CULTO Como ou de que maneira os primeiros cristãos celebravam o seu culto ? A resposta a esta pergunta poderia, quem sabe, ajudar a “moldar a liturgia”122? Seria a doutrina dos apóstolos, a comunhão, o partir do pão e as orações, conforme Atos dos Apóstolos 2.42, uma estrutura do culto da Igreja Primitiva ? Siegmund Wanke aceita esta possibilidade ao descrever as características do culto: a “doutrina dos apóstolos” refere-se à proclamação da Palavra de Deus, a “comunhão” equivale à convivência dos irmãos, o “partir do pão” refere-se à Eucaristia, e as “orações” são as súplicas e ações de graças123. Rottmann, em seu comentário a respeito de Atos 2.42, denominou-o de “quatro pilares da vida espiritual”124 da Igreja Primitiva, e a falta de um deles compromete toda a estrutura da igreja cristã. Essa koinonía na qual perseveravam, não há dúvidas, trata-se de ofertas para ajuda aos pobres, além das exortações, admoestações mútuas e ósculo da paz125. Allmen menciona ainda, como um eco de Atos 2.42, “o Catecismo de Heidelberg [que] ao enumerar os elementos componentes do ALLMEN, O Culto Cristão, p. 176. ROTTMANN, op. cit., p. 106. 122 Karl-Heinrich BIERITZ e Michael ULRICH, Gottesdienstgestaltung, p. 9-10, tal moldagem da liturgia poderá ajudar na busca pela ecumene, para que todos sejam um (Jo 17.21), para que juntos possam cantar e orar, ler as Escrituras e ouvir as boas novas de Jesus, reconhecendo-o e confessando-o como Senhor e sendo abençoados por ele. 123 Cf. Siegmund WANKE, Questões Litúrgicas, p. 9,10, a comunhão pode ser relacionada à linguagem de Paulo ao falar do “Culto Racional”; a Bíblia na Linguagem de Hoje a expressa com a palavra serviço; este serviço do “Culto Racional” também é chamado de liturgia, e para tanto cita-se o exemplo das ofertas arrecadadas para a comunidade empobrecida de Jerusalém (2 Coríntios 15.12 e Romanos 15.27). Cf. Josef KÜRZINGER, Atos dos Apóstolos, Vol. 1, p. 81 : pode-se admitir que no versículo 42 “estão assinaladas as partes essenciais do rito das assembléias comunitárias para celebração do culto divino na Igreja Primitiva... pode-se ver no ‘ensino dos apóstolos’ a leitura e a instrução, portanto, da posterior palavra de Deus. Na ‘comunhão fraterna’ (em grego koinonía) teríamos a coleta de donativos para os pobres (que não consiste em dar as sobras, mas daquilo que também se precisa para viver) e, na ‘fração do pão’, a ceia eucarística, emoldurada pelas ‘orações’.” Ver também Joachim JEREMIAS, Eucharistic Words of Jesus, p. 118; B. KLAPPERT, Ceia do Senhor, p. 406. 124 ROTTMANN, op. cit., p. 100. 125 Cf. Nilo BELOTTO et al., Nós e o Culto , p. 144-145: Ainda sobre a oferta, o autor a situa no culto como sinal efetivo da oferenda dos fiéis ao serviço de Deus, sinal de fraternidade e unidade cristã, atendendo à missão e promovendo a ação social em favor daqueles pouco ou nenhum recurso. 120 121 189 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 culto, fala de uma contribuição cristã para o sustento dos pobres, ao lado da pregação, da Santa Ceia e das orações”126. Todas as evidências supracitadas concordam que Atos 2.42 é a primeira estrutura conhecida do culto cristão. Essa “liturgia”, neste caso, poderia ter a seguinte construção: Liturgia da Palavra, Ofertório127 (= Comunhão), celebração da Eucaristia e Orações. 1.4.4 - OS LOCAIS, O SIGNIFICADO E AS CONSEQÜÊNCIAS DAS CELEBRAÇÕES De acordo com os relatos bíblicos, mesmo que, inicialmente, os convertidos ainda, “unânimes”, freqüentavam o templo (At 2.46) para orar e adorar a Deus128, os locais próprios para as celebrações eucarísticas eram as casas (At 2.40; 20.7-8), pois, segundo Anscar Chupungco: A eucaristia, celebração específica e característica dos cristãos, celebra-se em casa. É evidente que desde os primeiros tempos a liturgia eucarística era considerada uma liturgia doméstica. Os discípulos de Jesus assistiam aos atos cultuais do templo e da sinagoga, mas não partiam o pão, nem lhes era possível fazê-lo nesses lugares. Porque tanto o templo como a sinagoga jamais foram lugar apropriado para uma refeição comunitária. O templo era para sacrifícios, e a sinagoga para a proclamação da Palavra e as orações comunitárias. Refeições em comunidade, tal como a eucaristia, celebravam-se nas casas129 (tradução do autor). Além disso, o cristianismo muito cedo tornou-se religião ilegal no Império Romano, o que impossibilitava aos cristãos primitivos erguer estruturas que fossem especialmente designadas para o culto. Como não podiam professar publicamente a sua fé, não havia possibilidade de grandes aglomerações de pessoas, de modo que lugares mais espaçosos não eram necessários130. O que, no entanto, parece ter acontecido muito cedo, foi a escolha de ALLMEN, O Culto Cristão..., p. 197. Sissi Georg RIEFF, Ofertório, p. 8-9. 128 ROTTMANN, op. cit., p. 106 afirma : “ Havia diversas horas de culto e oração no templo... Não é de estranhar que os discípulos de Jesus nos primeiros meses e anos ainda participassem dos cultos no templo. Eles não mais se juntavam aos judeus que tinham rejeitado a Jesus; ao contrário, ali no templo eles adoravam o Deus verdadeiro, o Deus da Antiga e da Nova Aliança, o Pai de seu Senhor e Salvador Jesus Cristo... Com respeito a este ponto devemos observar que os discípulos não foram ao templo para oferecer sacrifícios, mas sim para orarem. Em nenhuma passagem do Novo Testamento nos é dito que os cristãos ainda tenham oferecido sacrifícios segundo a Lei cerimonial”. Cf. Atos dos Apóstolos 3.1 : “Pedro e João subiam ao templo para a oração da hora nona” (15:00 horas). 129 Anscar J. CHUPUNGCO, La Eucaristia, p. 83. 130 Wayne E. SCHMIDT, The Place of Worship, p. 181-182. 126 127 190 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 uma casa, de um local específico para as reuniões e cultos na Igreja Primitiva131, “uma casa particular ou uma casa adquirida pela comunidade. A casa da igreja, com mais propriedade do que o templo, significa o acolhimento e a hospitalidade que a comunidade eucarística mostra para com os estranhos e pobres, com os quais compartilha a mesma fé em Cristo”132 (tradução do autor). Na verdade, a fé cristã e o culto cristão não estão restritos a locais específicos, poderiam acontecer «em qualquer lugar. O fato de ter começado numa espécie de sala de jantar e, depois, continuado no interior de casas particulares, mostra que o lugar da liturgia é o lugar onde as pessoas se encontram para a liturgia»133. Quanto ao “partir o pão de casa em casa”, há quem interprete esta referência como uma simples alusão à Eucaristia134, que nas origens poderia ser celebrada em qualquer casa, a combinar e diariamente135. De “casa em casa” também poderia demonstrar de forma clara e inconfundível que a atividade dos cristãos não se restringia ao culto público136, mas, como uma extensão deste137, também estendia-se aos ausentes, fossem estes doentes ou pobres138, pessoas que necessitavam da caridade e do amor da comunidade. Quando se pergunta pelas origens do culto cristão, além do conhecimento das raízes judaicas, influência das palavras e ações de Jesus por ocasião da última ceia, estrutura e locais das celebrações, torna-se relevante perguntar: como era a postura e a conduta dos participantes? Qual era o significado das celebrações? Inicialmente, chama-se a atenção ao fato de que “o propósito principal do culto não era chamar os fiéis à penitência, nem fazê-los sentir o peso dos seus pecados, mas celebrar a ressurreição do Senhor e as promessas das quais essa ressurreição era a garantia”139. Este propósito fazia com que o partir do pão acontecesse num clima de “alegria e singeleza de coração” (At 2.46), pois era uma celebração, tendo como tom característico o “gozo Cf. Atos dos Apóstolos 1.4, 6,12-14; 20.7,8; cf. SCHMIDT, op. cit., p. 181; cf. Romanos 16.5, Paulo manda saudações especiais para a “igreja que se reúne na casa de Aqüila e Priscila” e cf. 1 Coríntios 16.19 refere-se a “Áqüila e Priscila, bem assim a igreja que está na casa deles”; cf. também Colossenses 4.15 e Filemom 2. 132 CHUPUNGCO, op. cit., p. 86-87 . 133 MARASCHIN, op. cit., p. 154. 134 ROTTMANN, op. cit., p. 106-107. 135 B. KLAPPERT, Ceia do Senhor, p. 400. 136 SCHMIDT, op. cit., p. 179, 181. 137 P. H. D. LANG, Manual para a Comissão de Altar., p. 27. 138 E. LOHMEYER, Vom Urchristlichen Abendmahl, p. 279, Apud: Romeu R. MARTINI, Eucaristia e Conflitos Comunitários, p. 167; Sissi Georg RIEFF, Diaconia e culto cristão nos primeiros séculos, p. 74 ss, também estuda com profundidade o assunto. 139 GONZALEZ, op. cit., p. 151. 131 191 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 e a gratidão e não a dor ou a compunção”140, tudo isto como fruto de um coração cheio de paz com Deus141. Tais características só poderiam transformar-se em “bênção também para os que conviviam”142 com os convertidos. A Bíblia na Linguagem de Hoje traduz a expressão grega afelóteti kardías por “humildade”143, isto é, o relacionamento entre todos era de igualdade, de comunidade. Era como se os seus pensamentos estivessem “sintonizados numa mesma freqüência”, e formavam um acorde harmonioso, afinado pela mesma fé144, onde “um era o coração e a alma” e “tudo lhes era comum” (At 4.32)145. No “partir do pão” os cristãos estavam unidos a Cristo146, pois os elementos distribuídos efetuavam a participação no seu sangue e corpo147, o que pode ser denominado de comunhão ou união vertical148; no entanto, ela não criava apenas a “comunhão com o Senhor, mas também dos celebrantes entre si”149, a comunhão horizontal150. Daí porque o apóstolo Paulo, ao falar da “comunhão no sangue e no corpo de Cristo” (1Co 10.16), conclui seu pensamento com a afirmação: “Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão”151. Por isso, desprezar alguém a quem o Senhor deu seu corpo e sangue é desprezar o corpo e sangue do Senhor152 e, conseqüentemente, negar que Cristo cria comunhão entre os celebrantes, é receber a ceia para a própria desgraça153. Vale, por isso, dizer que Cristo está presente com o seu próprio corpo e sangue na Eucaristia, e, como conseqüência, os participantes são Ibid. ROTTMANN, op. cit., p. 107; BELOTTO, op. cit., p. 129 : “na Santa Ceia e no culto devese demonstrar alegria porque o Senhor nos recebe. Ele é o dono, o Senhor do banquete que parte o pão”. 142 ROTTMANN, op. cit., p. 107. 143 A BÍBLIA SAGRADA : Edição na Linguagem de Hoje, da Sociedade Bíblica do Brasil, ed. 1988. 144 ROTTMANN, op. cit., p. 144. 145 Id., p. 144-145, era grande o número de pobres e viúvas em Jerusalém, o que motivou da parte de cristãos de outros lugares o envio de ajuda material. 146 MARTIN, op. cit., p. 144. 147 GOPPELT, op. cit., p. 414. 148 MARTIN, op. cit., p. 144. 149 GOPPELT, op. cit., p. 414. 150 MARTIN, op. cit., p. 144. 151 1 Coríntios 10.17; WHITE, op cit., p. 192, fala de confraternização na comunhão, dizendo que “em seu compartilhar a comunidade recebe Cristo e o único pão torna-se um sinal da unidade dos comungantes”. 152 NAGEL, op. cit., p. 305. 153 1 Coríntios 11.27-34; cf. GOPPELT, op. cit., p. 414-415 : “É isso que acontecia em Corinto, pois lá comemoravam a Ceia para satisfazer necessidades religiosas individualistas”, pervertendo a Ceia do Senhor. 140 141 192 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 chamados de “seu corpo”154, sua comunidade155, comprometidos em agir com lealdade e dedicação a Deus e ao próximo156. Finalmente, na celebração da Ceia do Senhor, destaca-se a reunião do passado, presente e futuro, numa só festa sagrada e alegre da mesa do Senhor157, conforme diz Richard H. Feucht: “A Ceia do Senhor também comprime o tempo dentro de um só evento. O passado, presente e futuro são conduzidos para dentro de uma ação – a sentença redentora de Deus para o mundo. Deste modo a Ceia do Senhor é recordação do passado, realidade presente e esperança futura, todos ao mesmo tempo”158. A dimensão que aponta para o passado lembra as palavras “fazei isto em memória de mim”159, e é comemorada com ação de graças160; o presente é atestado pela crença na presença de Cristo na Ceia161, e confronta o participante enquanto está à mesa com tudo quanto a morte do Filho de Deus significava então e significa agora162. Na Ceia do Senhor o cristão participa do seu corpo e sangue163 e, recebendo pão e vinho em resposta à fé, é unido ao sacrifício de Cristo164, tornando-o presente165 pela participação “do amor, da graça e da comunhão com os irmãos”166. A expectativa do futuro167, a dimensão escatológica168, é atestada pela expressão “até que ele venha” (1Co 11.26), pois “o rito simples apontava para além de si mesmo, para uma esperança futura no reino de Deus”169, onde a alegria e a comunhão com o Senhor vivo serão plenamente consumados 170. Por isso a expressão Cf. NAGEL, op. cit., p. 306: “O comer e o beber do corpo e sangue de Cristo não são apenas individuais ‘eu e Jesus’. Quando ele dá seu corpo e sangue para mim, ele dá seu corpo e sangue a mim com todos aqueles para quem ele também dá seu próprio corpo e sangue” (tradução do autor). 155 Cf. ALLMEN, O Culto Cristão, p. 197-198: Oferta e comunhão de bens “não é o único testemunho litúrgico da vida da comunidade. É necessário aditemos as exortações e admoestações mútuas, e tudo o que atesta a unidade da comunidade...” 156 MARTIN, op. cit., p. 147. 157 Id., p. 148. 158 FEUCHT, op. cit., p. 50 . 159 BELOTTO, op. cit., p. 162 e François AMIOT, A Missa e sua História, p. 11-12. 160 WHITE, op. cit., p. 192; MARTIN, op. cit., p. 147 : “À mesa, a história da redenção maior é relatada cada vez que comemos o pão e bebemos o cálice”. 161 AMIOT, op. cit., p. 11-12; Cf. MARTIN, op. cit., p. 147 : “O pão e o vinho são para Paulo portadores da presença de Cristo”; ver também WHITE, op. cit., p. 193. 162 MARTIN, op. cit., p. 144, 147. 163 Id., p. 144. 164 Id., p. 143. 165 AMIOT, op. cit., p. 11-12. 166 BELOTTO, op. cit., p. 162. 167 Id., p. 163. 168 WHITE, op. cit., p. 193. 169 MARTIN, op. cit., p. 143. 170 Id., p. 148. 154 193 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Maranatha171 passou a ocupar naturalmente o seu lugar no culto da Igreja Primitiva.172 Cabe ressaltar que, em todas estas ações dos primeiros cristãos, era o Espírito Santo173 quem os conduzia a viver nesta comunhão174, uma vez que era por intermédio dele que Jesus Cristo agora falava e agia175. A ação do Espírito Santo é aqui enfatizada, pois esta já era prometida por Jesus aos seus discípulos (At 1.8), relacionada com o batismo e a fé176, aos que ouviram a pregação no dia de Pentecostes (At 2.37) e confirmada na conversão de aproximadamente três mil pessoas num único dia177. A Eucaristia é vista “como o local da obra do Espírito Santo”178 onde ele reatualiza o evento salvífico179 e unifica a comunidade180, cria nela e torna eficaz o princípio do amor181 e a “personalidade corporativa”182. A vida comunitária e a mútua assistência fraterna183 demonstram “como o amor de Cristo e a Cristo, quando verdadeiros, criam união e comunhão”184. Todas estas afirmações dão suporte à manutenção da epiclese na oração eucarística. Essas assembléias comunitárias para a celebração do culto185 eram regidas pela alegria (um júbilo intenso que procurava estender-se e comunicar-se186) e pureza de coração (uma atitude que se abre para Deus em absoluta confiança187, e para o próximo na comunhão188). Na refeição comemorativa, a pessoa confessava e participava dos bens espirituais que a Expressão aramaica que significa “Nosso Senhor vem” ou “Nosso Senhor está vindo”, cf. WHITE, op. cit., p. 200-201 : “... a Eucaristia como antecipação, olhando numa direção escatológica para o banquete celestial que marcará a consumação de todas as coisas em Jesus Cristo. .. Um sinal disso é uma aclamação ...: ‘Cristo voltará’”. 172 MARTIN, op. cit., p. 148. 173 WHITE, op. cit., p. 193. 174 GOPPELT, op. cit., p. 415. 175 Atos dos Apóstolos 1.1-2; Cf. Raymond E. BROWN, A Igreja dos Apóstolos, p. 81-82 : “Alguns sugerem que o segundo livro lucano poderia ter sido chamado de Atos do Espírito, em vez de Atos dos Apóstolos”. O termo pnema, “Espírito”, ocorre 70 vezes em Atos dos Apóstolos, um quinto do total de vezes que o termo aparece em todo o Novo Testamento. 176 BROWN, op. cit., p. 87. 177 Atos dos Apóstolos 2.41. Cf. Josef KÜRZINGER, Atos dos Apóstolos, Vol. I, p. 76 : “mediante o Pentecostes e sua revelação do Espírito, entra na história a Igreja de Cristo” 178 WHITE, op. cit., p. 193. 179 ZABATIERO, op. cit., p. 413. 180 Id., p. 414. 181 FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL E IGREJA CATÓLICA , Documento Conjunto sobre a Ceia do Senhor, p. 8. 182 ZABATIERO, op. cit., p. 413. 183 KÜRZINGER, op. cit., p. 78. Cf. Atos dos Apóstolos 2.44 : “todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum” 184 ROTTMANN, op. cit., I , p. 105. 185 KÜRZINGER, op. cit., I , p. 81. 186 Id., p. 82. 187 Id., p. 82-83. 188 GOPPELT, op. cit., p. 414 171 194 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 morte de Cristo e sua ressurreição providenciaram, e também participava da solidariedade que foi dada “à comunidade através da comunicação da vida do Cristo ressurreto”189. Estas características cativavam a simpatia do povo190, e a comunidade cristã, “fazendo sua luz brilhar diante dos homens...” (Mt 5.16), viu como “o Senhor acrescentou-lhes, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At 2.47) e viu “os prodígios e sinais feitos por intermédio dos apóstolos” (At 2.43). Olhando para todos estes resultados, poder-se-ia pensar que a igreja do tempo dos apóstolos era o modelo perfeito de cristianismo. No entanto, nem tudo era tão perfeito. Quando esta unidade foi quebrada191, seja pela idolatria192, seja pela hipocrisia193, ou ainda pelos abusos egoístas e individualistas (na congregação de Corinto havia até quem se embriagasse nesta refeição, enquanto os pobres passavam fome), a comunidade foi afetada e a união destruída194. A indignidade195, da qual Paulo fala aos coríntios (1Co 11.27 ss), foi causada por aqueles que em sua conduta na Santa Comunhão esqueceram de sua unidade com seus parceiros cristãos e com Cristo e deixaram de reconhecer que participar da Ceia do Senhor não é participar meramente de Cristo, mas também de seus irmãos que são um em Cristo196. Ao falar da Ceia do Senhor, o apóstolo queria apontar para as divisões causadas pelo egoísmo e falta de amor, quando “algumas pessoas vinham mais cedo para o local da reunião e comiam e bebiam antes dos outros; quando chegavam estas, que são caracterizadas no v. 22 como as que nada têm, passavam fome. Sobrava para elas a participação na liturgia da Ceia do Senhor, destituída do seu caráter solidário”197. Paulo, em 1 Coríntios 11.24-26, apelou para o próprio relato da instituição da Ceia para tentar ZABATIERO, op. cit., p. 415. KÜRZINGER, op. cit., I , p. 83. 191 ZABATIERO, op. cit., p. 414. 192 MARTIN, op. cit., p. 145. 193 Atos dos Apóstolos 5. 194 GOPPELT, op. cit., p. 415. 195 Cf. Nélio SCHNEIDER, Pecado e sacrifício na Ceia do Senhor : Por isso há entre vós muitos fracos e doentes, e vários já dormiram, p. 122, “comer e beber indignamente no contexto da celebração da ceia do Senhor em Corinto não resulta da falta de um exame criterioso do pecado individual, como se disso dependesse a dignidade da celebração eucarística. A celebração digna é aquela em que cada pessoa envolvida leva em consideração o corpo de Cristo, evitando tudo o que possa dividir ou desfazer a integridade do mesmo. Portanto, a dignidade da celebração provém da presença do Senhor na ceia e não da atitude da pessoa que dela participa. Indigna na comunidade de Corinto é a forma da celebração e não a condição pessoal de cada participante”. 196 ZABATIERO, op. cit., p. 414. 197 Cf. SCHNEIDER, Pecado e sacrifício na Ceia do Senhor: Por isso há entre vós muitos fracos e doentes, e vários já dormiram, p. 120-121, em Corinto estava em jogo a comunhão de mesa, e, com ela, a comunhão como um todo. 189 190 195 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 reunir a comunidade (1Co 11.23-26), pois tinha a ciência de que a união era determinante para a sobrevivência da comunidade, especialmente em meio aos revezes pelos quais passou. É preciso, pois, demonstrar que a primeira preocupação de Paulo quando ao falar da Ceia usa a expressão “indignamente” (1Co 11.27-29), não se refere a pecado individual (sequer é mencionada a palavra pecado no texto), mas ao desvirtuamento de algo essencial na celebração eucarística, o seu sentido comunitário.198 Manter a unidade da comunidade, da Igreja, foi o objetivo do apóstolo Paulo, porque “esta unidade é santa - decretada por Deus - e quebrar essa unidade é cair sob o julgamento de Deus, pecar contra os irmãos e contra o próprio Cristo”199. Segundo Schneider, “para as primeiras comunidades cristãs a comunhão de fé na celebração eucarística implicava necessariamente a comunhão de vida como um todo. Não há comunhão eucarística verdadeira onde as divisões comuns à nossa realidade perduram”200. A questão da unidade e comunidade tornou-se tão importante para o apóstolo, que ele continua o seu discurso sobre a Igreja, vendo nela o corpo de Cristo (1Co 12.12) e habitação ou meio de atuação do Espírito Santo (1Co 12.1-11), e culmina o seu discurso com o grande capítulo acerca do amor, que é o maior de todos os dons (1Co 13.1-13). 1.5 - O TESTEMUNHO DOS PAIS APOSTÓLICOS 1.5.1 - A CENTRALIDADE DA EUCARISTIA É em Inácio, pastor e bispo, de Antioquia201, martirizado por volta de 107 A.D.202, que encontra-se a primeira referência à expressão “Eucaristia “ (ação de graças) para designar a cerimônia203, e Justino testemunha que “este alimento chama-se entre nós Eucaristia”204. A participação na Ceia era decisiva e necessária para demonstrar se alguém era ou não cristão205. SCHNEIDER, op. cit., p. 121, é por isso que não se fala em pecado, mas em divisão. ZABATIERO, op. cit., p. 414. 200 Cf. SCHNEIDER, op. cit., p. 123, a celebração eucarística que não leva em conta a realidade concreta, promovendo as injustiças e divisões, constitui-se num “comer e beber para juízo” , numa comemoração indigna da memória de Cristo. 201 J. Reis PEREIRA, Da Ceia do Senhor à Transubstanciação., p. 34; cf. Inácio de Antioquia, Aos Efésios 20.2: “...vos reunis na mesma fé e em Jesus Cristo... partindo um mesmo pão, que é o remédio da imortalidade, antídoto contra a morte, mas vida em Jesus Cristo para sempre. 202 GONZALEZ, op. cit., p. 66; D. Paulo Evaristo ARNS, Cartas de Santo Inácio, p. 12; Williston WALKER, História da Igreja Cristã, p. 70, situa a morte de Inácio por volta de 117 AD. 203 Cf. Inácio de Antioquia, aos Efésios 13.1 : “Cuidai pois de reunir-vos com mais freqüência, para dar a Deus ação de graças [eucaristia] e louvor”. 204 Cf. Justino, Apologia1. 65 : “... os que chamamos diáconos convidam os presentes a participar do pão e do vinho, e da água eucaristizados... Este alimento se chama entre nós de Eucaristia...” 205 Cf. Inácio de Antioquia, Aos Efésios 5.12 : “Não se iluda ninguém. Se não se encontrar no interior do recinto do altar, ver-se-á privado do pão de Deus”. Cf. D. Paulo E. ARNS, p. 42, nota 25 : “O altar levará a comunidade à união mais profunda. Faltar à celebração eucarística significa excluir-se do pão eucarístico, da verdadeira oração e dos sentimentos fraternais”. 198 199 196 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Eucaristia, portanto, era central na vida da igreja pós-apostólica206 e o ponto culminante do culto207. É também a solene manifestação de fé e o culto perfeito208, “realizado em todos os lugares da terra pelos cristãos”209, de forma tal, que não se conhece qualquer referência em toda a Igreja Primitiva de celebração do domingo sem a Eucaristia210. É importante ressaltar que a falta da Eucaristia comprometeria outro sacramento, o Batismo, pois consideraria os batizados ainda como catecúmenos em fase de preparação, sem o direito de participar do corpo e sangue de Cristo, o que seria um desprezo de um meio da graça211. A crença de que o corpo e sangue de Cristo eram recebidos na Eucaristia, é mais uma das ênfases da Igreja Antiga212. No entanto, acreditava-se que não era apenas no rito que a presença do Senhor se manifestava. “Buscarás a cada dia a presença dos santos”213, recomenda o catequista, pois onde os irmãos estiverem reunidos para ouvir a palavra de Deus, “ali está o Senhor”214. Quanto ao dia da semana escolhido para o culto eucarístico, o testemunho dos pais é que este acontecia no dia do Senhor215. A expressão “dia do Senhor” (Ap 1.10) já era usada no Novo Testamento, ou seja, “o primeiro dia da semana”, data do encontro semanal da comunidade para o “partir do pão”216. Os cristãos do período que vai além do Novo Testamento, do segundo século em diante, mantiveram o mesmo dia para seus encontros eucarísticos. O que se sabe é que “no dia do sol”217, a liturgia é celebrada em memória da ressurreição do Senhor218, pois os cristãos faziam do domingo o seu dia da guarda, e denominavam-no “dia do Senhor”219. Inácio de Antioquia, referindo-se ao dia da celebração, diz que o cristão “não mais observa o sábado, mas vivendo segundo o dia do Senhor, no qual nossa vida se levanCULLMANN, op. cit., p. 29. José Gonçalves SALVADOR, O Didaquê ou Ensino do Senhor Através dos Doze Apóstolos, p. 57. 208 Maucyr GIBIN, Textos Catequético-Litúrgicos de S. Justino, p. 76. 209 Justino, Diálogo com o Judeu Trifão, 117. 210 ALLMEN, O Culto Cristão, p. 176. 211 Id. , p. 182. 212 AMIOT, op. cit., p. 13-14. 213 Didaqué IV:2. 214 Id., IV:1. 215 Id., XIV. 216 Cap. 1.1.4 : “ A freqüência, o dia e a unanimidade”. 217 Justino, Apologia I : Falando da liturgia dominical, Justino diz que “fazemos a reunião todos juntos no dia do sol, por que é o primeiro dia, em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o cosmos, e Jesus Cristo, nosso Salvador no mesmo dia ressuscitou de entre os mortos, pois na véspera do dia de Saturno o crucificaram, e um dia depois do de Saturno, que é o dia do sol, tendo aparecido aos seus Apóstolos e discípulos, ensinou-lhes precisamente o que propusemos também à vossa consideração”. 218 Justino, Apologia I . 219 Didaqué, XIV. 206 207 197 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 tou por Ele e por Sua morte”220. Hipólito ainda acrescenta que a reunião acontecia “no domingo de manhã”221. Os cristãos dessa época viam no domingo o seu dia mais solene, porque era o dia de “partir o pão e dar graças”222. O domingo, portanto, tornou-se para os cristãos dos primeiros séculos o dia de culto e celebração eucarística, lembrava que no primeiro dia da Criação, Deus criou o mundo, e no primeiro dia da semana Cristo ressuscitou (simbolizando a Nova Criação) Ao mesmo tempo, os cristãos acreditavam que através da Ceia e da comunhão fraterna para ouvir o Evangelho, Cristo se fazia presente em meio ao seu povo. 1.5.2 - O ORDO DA EUCARISTIA No primeiro século as referências a um ordo do culto eucarístico restringem-se223 à menção de algumas palavras, como “doutrina dos apóstolos, comunhão, partir do pão e orações”224. Somam-se a estas as palavras de Paulo, “louvando a Deus com salmos, hinos e cânticos espirituais, com gratidão em vossos corações” (Cl 3.16), ou ainda expressões como “Maranatha” (1Co 16.22). A adoração neotestamentária, “regida” pelo Espírito de Deus, garantiu, apesar da diversidade de formas225, a união dos primeiros cristãos226. É somente a partir do segundo século227 que se poderá ver o início de uma padronização do culto cristão228. Optou-se pela abordagem de três documentos que fornecem maior número de informações a este respeito: a Didaqué229, os textos catequético-litúrgicos de Justino230 e a Tradição Apostólica de Hipólito de Roma231. Justo Gonzalez, ao citar depoimentos de Justino Mártir, menciona que (referindo-se à celebração dominical) neles há apenas referência ao culto com a Eucaristia232. Inácio de Antioquia, Aos Magnésios IX.1 . Hipólito, Tradição Apostólica, Parte III : A Comunhão Dominical. 222 Didaqué, XIV:1. 223 ALLMEN, O Culto Cristão, p. 354. 224 Capítulo 1.4.2 : “A Estrutura do Culto”. 225 MARTIN, op. cit., p. 152-153. 226 GOPPELT, op. cit., p. 415. 227 André BENOIT, A Atualidade dos Pais da Igreja, p. 78: “ Os pais também viveram sua fé no culto e nos sacramentos. A sua época foi de considerável formação litúrgica. Praticamente inexistente nos primeiros anos da vida cristã – ou, para ser mais preciso, fundamentando-se apenas em algumas tradições judaicas – a liturgia cristã foi elaborada no correr dos primeiros séculos ... É interessante observar que essa tradição litúrgica não se desenvolveu independentemente da Escritura... está repleta de conteúdo bíblico. A sua atmosfera ressalta notadamente a Escritura. A liturgia não passa de uma adaptação da Escritura às necessidades do culto”. 228 GONZALEZ, op. cit., p. 150-151. 229 MARTIN, op. cit., p. 159, situa este importante documento da Igreja Antiga entre o final do primeiro século e início do segundo século AD. Cf. CULLMANN, op. cit., p. 8, este é o documento que contém a mais antiga coleção de liturgia do período após o Novo Testamento. 230 WALKER, op. cit., p. 65, Justino Mártir escreveu sua Apologia, em Roma, por volta do ano 153 AD. 231 MARTIMORT, op. cit., p. 44, a Tradição Apostólica é situada por volta do ano 225 AD. 232 GONZALEZ, op. cit., p. 151. 220 221 198 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Nas primeiras décadas da Igreja Cristã, a Eucaristía é apresentada, primeiramente, no contexto de uma refeição completa233; depois passou a ser integrada com uma refeição comunitária, denominada ágape 234 e, finalmente, como celebração matutina separada da refeição vespertina (cf. Plínio; Justino: Apologia 1 e Hipólito)235. Dix acrescenta que, por algum tempo o termo Eucaristia foi usado com referência à celebração litúrgica e também à refeição236. A estrutura do culto eucarístico, conforme a Didaqué, pode ser vista através da abordagem dos capítulos IX, X e XIV237, que apontam para uma possível ordem litúrgica, “a primeira etapa na elaboração da liturgia da missa”238. Identificou-se a seguinte estrutura do culto eucarístico: ósculo da paz 239, não especificamente mencionado na Didaqué, mas comum já no tempo dos apóstolos (Rm 16.16; 1Pe 3.14), ação de graças sobre o primeiro cálice 240, oração de graças sobre o pão, oração pedindo pela comunhão cristã, seguida de uma doxologia, alerta para que os não-batizados não participem da Eucaristia e, finalmente, uma oração pós-comunhão de bendição ou agradecimento pela revelação de Cristo, pela bênção da criação e redenção e súplica pela união da igreja. O referido ordo conclui com uma fórmula, que poderia ser responsiva241, e Maranatha242. Finalmente, os profetas ainda podiam bendizer à vontade243. A respeito desta estrutura, algumas considerações. As orações de ação de graças ou bendição ao final das celebrações eram livres, adaptadas às circunstâncias pelos “profetas”244, enquanto que as orações dadas como modelo, com características judaicas245, antes do cálice e antes de quebrar o pão246, já demonstravam alguma preocupação litúrgica247. Quanto ao uso WHITE, op. cit., p. 179-180. MARTIN, op. cit., p.159; DIDAQUÉ X.1: “E depois de satisfeitos”. 235 WHITE, op. cit., p. 179; Urbano ZILLES, Didaqué: Catecismo dos Primeiros Cristãos, p. 6465. 236 DIX, op. cit., p. 99. 237 WHITE, op. cit., p. 180-181. 238 MARTIMORT, op. cit., p. 36. 239 WHITE, op. cit., p. 181 240 Didaqué, IX.2. 241 H. LIETZMANN, Messe und Herrenmahl, p. 237, sugere-se que Didaqué X.6 fosse utilizado na forma de diálogo, assim : Líder: Venha a tua graça e passe este mundo. Comunidade: Hosana ao Filho de Davi. Líder: Se alguém é santo, aproxime-se; se não o é, arrependa-se. Maranatha. Comunidade: Amém. 242 Didaqué, X.6. 243 Id. X.7. 244 CULLMANN, op. cit., p. 12. 245 MARTIMORT, op. cit., p. 43. 246 Didaqué, IX.2-3. 247 J. Reis PEREIRA, Da Ceia do Senhor à Transubstanciação, p. 40. 233 234 199 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 da Oração do Senhor, há fortes indícios de que nesta época já era utilizada no culto eucarístico248, o que é fundamentado pelo uso da doxologia final “pois teu é o poder e a glória pelos séculos”249. Portanto, é provável que no tempo da Didaqué, pelo menos três tipos de oração eram utilizados no culto eucarístico: as orações livres, as orações eucarísticas elaboradas e usadas como modelo, e a Oração do Senhor. Quanto à expressão “Maranatha”, Didaqué refere-se ao uso particular da palavra ao final da Ceia e em conexão com a liturgia eucarística250. O fato de não ter sido traduzida, pois já é mencionada pelo apóstolo Paulo aos Coríntios (1Co 16.22), mas simplesmente utilizada pela comunidade cristã primitiva, reforça ainda mais o seu significado, e aponta para um elemento especificamente cristão da oração litúrgica, elemento que conecta estritamente o dia do culto cristão com a ressurreição de Cristo251. Seriam estas evidências de que Maranatha fizesse parte da oração eucarística da Igreja Primitiva? Cullmann é favorável a esta conclusão ao dizer que “esta antiga oração aponta ao mesmo tempo para trás, para a aparição de Cristo no dia da sua ressurreição, para o seu presente comparecimento à refeição comunitária da comunidade e antecipa a sua aparição no final, o que é representado freqüentemente no quadro da ceia Messiânica. Em todos os três casos uma refeição está envolvida. Por essa razão o Maranatha é acima de tudo uma oração da Eucaristia” (tradução do autor)252. A idéia de união e fraternidade realizada através da presença de Cristo, foi trazida para a liturgia da comunhão e recebeu ênfase na oração registrada pela Didaqué253. Esta fraternidade é ainda reforçada em Didaqué XIV. 1, que ensina a respeito da confissão de pecados, não caracterizada como CULLMANN, op. cit., p. 12. Cf. Didaqué, VIII.2; Didaqué IX. 4, mesmo não mencionando especificamente o Pai Nosso, utiliza a doxologia final “Pois tua é a glória e o poder pelos séculos. Amém”. Cf. CULLMANN, op. cit., p. 12, o uso litúrgico da Oração do Senhor é claramente indicado pela presença da pequena doxologia final em Didaqué VIII, representando o eco litúrgico da comunidade. As palavras “ Pois teu é o reino, etc.” não foram, certamente, ditas por Jesus, mas introduzidas mais tarde por influência da liturgia cristã primitiva. Cf. LOHMEYER, op. cit., p. 173, há uma suspeita de que a Oração do Senhor era originalmente dita na celebração da Ceia e, por esta razão a fórmula de louvor teria sido adicionada. Cullmann ainda argumenta que o uso da expressão Abba-Pai em Gálatas 4.6 e Romanos 8.15, aponta para o uso litúrgico da oração do Pai Nosso. 250 Didaqué, X. 6. 251 CULLMANN, op. cit., p. 13-14, a oração de ação de graças alemã “Komm Herr Jesu, sei unser Gast” ( “Vem, Senhor Jesus, sê nosso hóspede [ou ‘comensal’]”) pode ser considerada como uma tradução fiel de “Maranatha”. 252 Id., p. 14. 253 Didaqué, IX. 4; Cf. ALLMEN, Estudo Sobre a Ceia do Senhor, p. 79 : “Como o pão, que é santificado para o uso comum de todos nós, é feito de vários grãos tão misturados juntos que não se poderia discernir um do outro, assim devemos ser unidos entre nós com uma amizade indissolúvel. Além disso todos recebemos lá o mesmo corpo de Cristo, a fim de sermos membros”. 248 249 200 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 penitência, mas como reconciliação com o próximo, com quem há alguma desavença. Isso é atestado pelas palavras: “Mas todo aquele que vive em discórdia com o outro, não se ajunte a vós antes de ser reconciliado, a fim de que o vosso sacrifício não seja profanado”254. O beijo ou ósculo santo obteve nesse mesmo contexto também o seu uso litúrgico como sinal de amor fraterno e mútua reconciliação255. E, como resultado dessa união (com Deus e com os irmãos), a participação de todos na liturgia era afirmada com o amém dito pela congregação256. Parcialmente contemporâneo ao Didaqué257, Justino Mártir258 faz a primeira descrição mais completa sobre a reunião dominical da comunidade259. O culto eucarístico continua sendo uma reunião exclusiva de pessoas batizadas260, onde o ósculo santo marca seu início (depois da leitura da palavra, admoestações, exortações e orações)261. Na seqüência, são apresentados o pão e um cálice de vinho misturado com água262; é o momento do ofertório263. Ao receber das mãos do povo o pão e o vinho misturado com água, o que preside, “na medida de seu poder, eleva orações e igualmente ações de graças”264. Justino, “ao invés de fornecer um texto formulado para a anáfora, nos dá indicações de um esquema que aponta para o conteúdo essencial de toda a oração eucarística”265. Didaqué, XIV. 2; cf. CULLMANN, op cit., p. 22-23, fórmulas de confissão eram recitadas no culto da Igreja Primitiva: assim “omologein e exomologeistai” (confissão), (Romanos 10.10 e Filipenses 2.11) em conexão com a confissão de que Cristo é o Senhor; na mesma direção aponta a primitiva oração litúrgica Maranatha, relacionada com o segundo advento. Todas essas fórmulas de confissão têm em comum o aspecto cristocêntrico, o que testemunha a força do Senhorio de Cristo (O Cristo ressurreto e elevado ao céu está no centro). Em Didaqué XIV. 1, encontra-se o conceito “confissão” relacionado à confissão de pecados, e esta, como nos primeiros tempos, ao lado da confissão de fé e em conexão com a Ceia do Senhor.” 255 CULLMANN, op. cit., p. 20; cf. ALLMENN, Estudo Sobre a Ceia do Senhor, p. 79-80: “A outra antiga atestação litúrgica dessa mesma comunhão fraternal é o beijo da paz. Ele precede a comunhão. De prática apostólica, esse beijo quer provar que os que vão comungar aceitam alcançar sua situação batismal e portanto estar acima de tudo o que neste mundo é ocasião de oposição ou divisão, que eles aceitem em particular serem reconciliados entre si como e porque eles o são de fato com Deus”. 256 CULLMANN, op. cit., p. 25. 257 AMIOT, op. cit., p. 12. 258 CULLMANN, op-. cit., p. 27, suas obras foram escritas em torno do ano 150 AD. 259 Id., p. 27-28: Cullmann demonstrou que os dois supostos cultos da época, referidos por Plínio ( sendo um da palavra e outro com a Ceia do Senhor), na verdade estavam unidos em um só. 260 Cf. WHITE, op. cit., p. 181; Cf. Justino, Apologia 1. 65: “Nós, porém, depois de assim lavado, conduzimos o que creu e se agregou a nós, para junto dos que se chamam irmãos...”. 261 Justino, Apologia 1. 65.; Maucyr GIBIN, Textos Catequético-Litúrgicos de São Justino, p. 76. 262 Justino, Apologia 1. 65; MARTIMORT, op. cit., p. 35-36. 263 RIEFF, Ofertório, p. 8-9: No ofertório, além dos elementos da ceia, eram trazidos alimentos para suprir as necessidades dos que tinham menos recursos. 264 Justino, Apologia 1. 67 e 1.65 : “ Recebendo-os [o pão e o cálice de vinho misturado com água], ele [o que preside] eleva um hino de louvor e glória ao Pai de todas as coisas, pelo nome do Filho e do Espírito Santo, pronuncia uma longa eucaristia por ele se ter dignado de conceder-nos estas coisas”. 265 GIBIN, op. cit., p. 76. 254 201 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 O povo responde com a aclamação “amém”266 e manifesta desta forma a sua participação267. Ao término da oração eucarística, os diáconos são encarregados de dar “a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água eucaristizados”268, que também eram levados para os ausentes269, provando que o serviço do domingo não estava restrito à liturgia eucarística, mas que a reunião da comunidade também acontecia para uma troca de bens e conseqüente distribuição aos menos favorecidos ou que tinham impedimento de estar no culto270. Nota-se que Justino traz alguns elementos a mais e mais precisos na ordem do culto eucarístico. O ósculo é claramente mencionado e, especialmente, o esquema da oração eucarística com suas ênfases, a menção de vinho misturado com água e, finalmente, a reunião dos bens doados pelas pessoas batizadas, com o fim de socorrer os necessitados. Com o passar dos anos, pouco a pouco, serão encontradas fórmulas mais elaboradas da celebração eucarística. É em Hipólito271 que se encontrará a primeira oração eucarística muito semelhante às que hoje são conhecidas272. O documento em questão, situado na Tradição Apostólica de Hipólito, é possivelmente, em parte composição do próprio Hipólito e, em parte, compilação de outras liturgias utilizadas na sua época273. Hipólito descreve detalhadamente duas situações em que a Eucaristia era celebrada: a primeira trata da Ordenação e Consagração do Bispo274, e a segunda acontece no contexto do batismo275. A oração eucarística, também conhecida como anáfora276, é proferida pelo celebrante277. Esta, de Hipólito, que aqui será apreciada, encontra-se numa ordem para eleição e consagração dos bispos278. Não é mencionada a liturgia da palavra que, segundo White, em ocasião especial ainda era separável quando outra celebração precedia a eucaristia279. Após o rito de consagração do bispo, menciona-se o ósculo da paz280. Segue, então, a liturgia Justino, Apologia 1. 65: “Pois o amém, na língua hebraica, significa: assim seja”. MARTIMORT, op. cit., p. 35. 268 Justino, Apologia I. 65. 269 Id., 67.; cf. MARTIN, op. cit., p. 160, nessa época a “distribuição dos elementos ao povo pelos diáconos e a coleta para os necessitados, é bem conhecida e ficou padronizada”. 270 GIBIN, op. cit., p. 76. 271 Bengt HÄGGLUND, História da Teologia, p. 47 : Hipólito foi bispo em Roma e adversário do Papa Calixto, foi banido para Sardenha durante uma perseguição (ca. 235), e morreu no exílio. 272 MARTIMORT, op. cit., p. 44. 273 H. BETTENSON, Documentos da Igreja Cristã, p. 135. 274 Hipólito, Tradição Apostólica: Eleição e Consagração dos Bispos. 275 Id., Os que se aproximam da fé. 276 Cf. AMIOT, op. cit., p. 14 : é formada por duas palavras gregas que significam elevar, oferecer. 277 WHITE, op. cit., p. 114. 278 Hipólito, Parte I : Eleição e Consagração dos Bispos. 279 WHITE, op. cit., p. 114. 280 Hipólito, Parte I : Eleição e Consagração dos Bispos. 266 267 202 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 eucarística281. Nesta ordem, encontram-se os seguintes elementos: a) Diálogo inicial do prefácio282, seguindo um velho costume judaico (Rt 2.4); b) inicia-se uma ação de graças pela encarnação do Filho de Deus e sua paixão e morte; c) são mencionados os frutos da paixão; d) o relato da última ceia, com as palavras da instituição; e) a afirmação de que a igreja age de acordo com o mandamento do Senhor, fazendo isto em memória de sua morte e ressurreição; f) oferece o pão e o vinho consagrados e, finalmente, g) pede pelo envio do Espírito Santo a fim de que todos os participantes sejam fortalecidos na fé e, por Jesus, louvem sem fim a Trindade283. Falando sobre as características gerais da anáfora de Hipólito, e de orações semelhantes a esta, Martimort faz as seguintes considerações: tratase de uma oração coletiva e universal, e não individual; não é meramente emotiva, mas racionalmente elaborada; o povo participa em pé e em silêncio, confirmando com o amém; é trinitária em seu todo e, especialmente, na doxologia284. Na celebração eucarística no contexto do Batismo285, a liturgia da pala- Id., Eucaristia : “Logo que se tenha tornado bispo, ofereçam-lhe todos o ósculo da paz, saudando-o por se ter tornado digno. Apresentem-lhe os diáconos a oblação e ele, impondo a mão sobre ela, dando graças com todo o presbyterium, diga: - O Senhor esteja convosco. Respondam todos: E com o teu espírito. – Corações ao alto! - Já os oferecemos ao Senhor. – Demos graças ao Senhor. – É digno e justo. E prossiga, a seguir: Graças te damos, Deus, pelo teu Filho querido, Jesus Cristo, que nos últimos tempos nos enviaste, Salvador e Redentor, mensageiro da tua vontade, que é o teu Verbo inseparável, por meio do qual fizeste todas as coisas e que, porque foi do teu agrado, enviaste do Céu ao seio de uma Virgem; que aí encerrado, tomou um corpo e revelou-se teu Filho, nascido do Espírito Santo e da Virgem. Que cumprindo a tua vontade – e obtendo para ti um povo santo – ergueu as mãos enquanto sofria para salvar do sofrimento os que confiaram em ti. Que, enquanto era entregue à voluntária Paixão para destruir a morte, fazer em pedaços as cadeias do demônio, esmagar os poderes do mal, iluminar os justos, estabelecer a Lei e dar a conhecer a Ressurreição, tomou o pão e deu graças a ti, dizendo: Tomai, comei, isto é o meu corpo que por vós será destruído; tomou, igualmente, o cálice, dizendo: Este é o meu sangue, que por vós será derramado. Quando fizerdes isto, fá-lo-eis em minha memória. Por isso, nós que nos lembramos de sua morte e ressurreição, oferecemos-te o pão e o cálice, dando-te graças porque nos consideraste dignos de estar diante de ti e de servir-te. E te pedimos que envies o teu Espírito Santo à Oblação da santa Igreja: reunindo em um só rebanho todos os fiéis que recebemos a Eucaristia na plenitude do Espírito Santo para fortalecimento de nossa fé na Verdade, concede que te louvemos e te glorifiquemos, pelo teu Filho Jesus Cristo, pelo qual a ti a glória e a honra – ao Pai e ao Filho, com o Espírito Santo na tua santa Igreja, agora e pelos séculos dos séculos. Amém”. 282 AMIOT, op. cit., p. 15. 283 Ibid. MARTIMORT, op. cit., p. 45-46 : Martimort esquematiza de forma mais simples o que é descrito na anáfora de Hipólito, vendo nela seis partes distintas: 1- Expressão de ação de graças logo após o diálogo entre o bispo e a assembléia; 2- o relato da instituição; 3- a anamnese, que não é mera referência ao passado; 4- a invocação dos frutos do sacrifício de Cristo sobre os que vão comungar ( também chamada de epiclese ou invocação do Espírito Santo); 5- a doxologia e 6- o amém da comunidade. 284 MARTIMORT, Princípios da Liturgia, p. 146. BECKHÄUSER, Celebrar a Vida Cristã., p. 91-95. 285 Hipólito, A Primeira Eucaristia. 281 203 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 vra estava incluída nas exortações aos catecúmenos286 (“E permanecerão vigilantes durante toda a noite, e se lerá para eles, e serão instruídos”287), na renúncia e na profissão de fé e nas orações. O que foi batizado é, agora, “digno, deve participar, na mesma hora da oblação”. O ofertório também é mencionado, quando é dito que “os batizandi” não deviam ter “nada em seu poder, a não ser o que trazem para a Eucaristia”288. Após a confirmação com óleo e sinal da cruz em nome do Trino Deus, menciona-se o ósculo santo289, então inicia-se o diálogo290. Na seqüência é mencionado o uso de pão abençoado, vinho (imagem do sangue), leite e mel misturados, para recordar a promessa da terra que mana leite e mel, e que em Cristo essa promessa foi cumprida.291 O bispo dará graças sobre a água como representação do batismo e, então, conduzirá a distribuição da Eucaristia292. Segue imediatamente a ordem para que todos, após a Ceia, apressem-se em fazer o bem293. Não é mencionado todo o texto da oração eucarística, pois não se trata de uma ordem de culto, mas de uma “concisa instrução sobre o batismo e sobre a oblação294. Pode-se concluir, pois, que em Hipólito, a liturgia eucarística corresponde à “oração dos fiéis, beijo da paz, ofertório, oração de consagração (apesar de haver um texto, permite-se alguma liberdade, com regras para a improvisação, para que seja correta e de acordo com a ortodoxia), - há menção de bênçãos sobre a oferta para os necessitados -, a comunhão celebrada com orações próprias, o rito e a despedida295. Quanto às regras para os ágapes296, bem como as ceias das viúvas297 e a comunhão diária298, estão todos relacionados com os batizados, na certeza da presença de Cristo, com profundo espírito de oração299, e marcadas pela preocupação com os pobres, viúvas, Hipólito, Os que se aproximam da fé. Hipólito., A Tradição do Santo Batismo. 288 Hipólito, A Tradição do Santo Batismo.. 289 Hipólito, A Confirmação. 290 Ibid.: “O Senhor esteja contigo”; Responda o que foi marcado: “E com o teu espírito” 291 Hipólito, A Primeira Eucaristia. 292 Ibid.: “Partindo o pão, diga, distribuindo os pedaços: O pão celestial em Jesus Cristo. E o que recebe responda: Amém. Se os presbíteros não forem suficientes, peguem os cálices os diáconos e, com dignidade, coloquem-se em ordem: primeiro o que segura a água, em segundo lugar o que segura o leite, em terceiro, o que segura o vinho. Provem de cada cálice os que recebem, dizendo três vezes aquele que dá; Em Deus Pai Onipotente. Responda o que recebe. Amém. E em nosso Senhor Jesus Cristo. – Amém. – E no Espírito Santo e na Santa Igreja. – E responda: Amém. Assim proceda com cada um. 293 Ibid. 294 Ibid. 295 GIBIN, Tradição Apostólica de Hipólito de Roma , Introdução, p. 26. 296 Hipólito, O Ágape. 297 Hipólito, A Ceia das Viúvas. 298 Hipólito, A Comunhão Diária. 299 Id. 82, 84, 85. 286 287 204 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 doentes, coveiros, enfim, os ausentes. Mesmo marcada por certo moralismo ou legalismo300, são preciosas as informações sobre a vida cristã encontradas em Hipólito, especialmente sobre a estrutura do culto, em parte ainda utilizada nos tempos presentes. 1.5.4 - OS TEMAS CENTRAIS DA EUCARISTIA Os cinco temas identificados por Yngve Brilioth (ex-arcebispo luterano da Suécia) na Eucaristia no Novo Testamento301, podem também ser identificados nos três documentos dos pais apostólicos, seja na sua totalidade, ou em parte ao menos. “São eles: eucaristia ou ação de graças, confraternização na comunhão, comemoração ou elemento histórico, sacrifício, e mistério ou presença”302, além de outros dois temas mencionados por autores mais recentes: “Obra do Espírito Santo e evento escatológico”303. A ação de graças está presente nas diversas bendições na Didaqué, sobre o cálice, sobre o pão e após a celebração304. Justino também o confirma “na longa eucaristia [que] é pronunciada”305 e declara que “este alimento se chama entre nós de eucaristia”306. Em Hipólito, toda a temática da oração eucarística gira em torno desse tema, desde a expressão inicial “Demos graças ao Senhor”307. A temática da confraternização fica evidente no “ósculo santo” (mencionado especificamente em Justino308 e Hipólito309, e subentendido em Didaqué310), e também no amém comunitário311, no pão único e cálice comum312, além do mútuo acolhimento e ajuda material313. A comemoração ou elemento histórico é comprovado no uso da anamnese (em memória da criação e redenção)314 e nas palavras da instituição315, além do uso de aleluias e salmos, repetidos por todos316. O tema do sacrifício também aparece na narrativa da instituição, nas palavras “meu corpo que por vós será destruído e sangue por vós derrama300 301 302 303 304 305 306 307 308 309 310 311 312 313 314 315 316 HÄGGLUND, op. cit., p. 14. WHITE, op. cit., p. 192-194. Id., p. 192. Ibid.. Didaqué IX. 1-3; X. 1-4; XIV. 1. Justino, Apologia 1. 65. Id., 66. Hipólito, Eleição e Consagração dos Bispos: Eucaristia. Justino, Apologia 1. 65 Hipólito, Tradição Apostólica 54. Didaqué XIV. 2. Justino, Apologia 1. 65; Hipólito, Tradição Apostólica 16.25; Didaqué IX. 4 e X. 5. WHITE, op. cit., p. 192.; ver também Didaqué IX. 4; X. 5; Apologia 65.3. Justino, Apologia 1. 65 e 67.; Hipólito, Tradição Apostólica 58.; ver também Didaqué 11 e 12. Justino, op, cit., 67; Hipólito, Tradição Apostólica 12 a 16; Didaqué IX. 2 e 3; X. 2 e 3. Hipólito, op. cit., 14 -a 16; Justino, Diálogo com Trifão. Hipólito, Tradição Apostólica 66. 205 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 do”317, no uso de expressões como oblação318, sacrifício319, oferenda320 e raça sacerdotal321. O tema da presença322 pode ser identificado na relação do pão e do vinho com o corpo e sangue de Cristo na Eucaristia323 (fala inclusive do pão como a carne de Jesus324) e no uso do domingo como dia de culto, recordando que o Salvador vive325. A idéia de que a Eucaristia também é local da atuação do Espírito Santo aparece especialmente na epiclese326, ou seja, na invocação dos frutos do sacrifício sobre os que vão comungar, pedindo que sejam repletos do Espírito Santo327. Finalmente, a dimensão escatológica328 é atestada na esperança de ser “dignos de obter a salvação eterna”329, nas doxologias330 e (na Didaqué) na expressão maranatha331. Ainda pode-se destacar que se tratava da reunião dos irmãos332, san333 tos , batizados334, reconciliados entre si335 e em plena conexão com a Igreja336. Destaca-se, pois, que a “Eucaristia é fonte de amor dos irmãos. Ela leva à prática da caridade desinteressada e constitui o fundamento da unidade da Igreja”337. 1.6 - CONCLUSÃO Ao estudar as origens do culto cristão e especialmente da Eucaristia, conclui-se que há uma série de elementos da cultura, culto e costumes judaicos que influenciaram na sua composição. E não poderia ser diferente, pois o culto cristão originou-se no meio desse povo. Destaca-se primeiramente que muitos acordos e alianças eram firmados e selados em meio a 317 318 319 320 321 322 323 324 325 326 327 328 329 330 331 332 333 334 335 336 337 Id., 14-16; Justino: Diálogo com Trifão 41. Hipólito, Tradição Apostólica 11. Justino: Diálogo com Trifão. Hipólito, Tradição Apostólica 16. Justino: Diálogo com Trifão. Didaqué IV. 1. AMIOT, op. cit., p. 13-14. GIBIN, Textos Catequético-Litúrgicos de São Justino, p. 78. Justino, Apologia 1. 67. Hipólito, Tradição Apostólica 16. MARTIMORT, A Eucaristia, p. 46. WHITE, op. cit., p. 193. Justino, Apologia 1. 65; 67. Hipólito, Tradição Apostólica 16. Didaqué X. 6. MARTIMORT, A Eucaristia, p. 35. Didaqué IV. 2. Didaqué X. 6. Didaqué XIV. 2. SALVADOR, op. cit., p. 57-58. GIBIN, Introdução aos Textos Catequético-Litúrgicos de Sâo Justino, p. 75. 206 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 uma refeição; festas religiosas incluíam refeições, que eram importantes como sinal de comunhão com Deus e com o semelhante. As refeições familiares também tiveram sua parcela de contribuição para futuras concepções da Eucaristia. O pão como elemento imprescindível na vida do povo judeu e o vinho como bebida que normalmente acompanhava as refeições, eram símbolos do que é essencial para a vida. Estes foram os elementos usados quando da instituição da Eucaristia, que se tornou pão para a vida eterna. As diversas refeições familiares, tanto as anuais, quanto as semanais, eram marcadas por ações de graça e recordações dos grandes feitos de Deus desde a criação e, em especial, na redenção de seu povo, e ardente expectativa por uma libertação plena no futuro. Estes elementos foram importantes na moldagem das orações eucarísticas, da anamnese e das expressões escatológicas na liturgia. Além disto, destaca-se que normalmente tais refeições aconteciam com um grupo específico, família ou círculo de amigos. Foi o que aconteceu por ocasião da última ceia, e também teve influências na restrição aos não batizados nos tempos da Igreja Primitiva. A sinagoga também contribuiu para a estruturação do culto eucarístico. Aquela parte que é conhecida como liturgia da Palavra, ou seja, a leitura das Escrituras e sua exposição através de uma homilia e as orações de intercessão, são herança da sinagoga. Do templo originou-se toda a linguagem sacrificial, presente nas palavras da instituição (Nova Aliança e sangue), além do uso de salmos responsivos e amém da comunidade. A última ceia de Jesus com seus discípulos, que aconteceu em meio a um refeição, estava envolvida por uma série de elementos característicos das refeições judaicas. A novidade está na presença de Cristo e na identificação do pão e do vinho com seu corpo e sangue. Destacam-se, além das palavras de Jesus, as ações “tomar”, “abençoar”, “quebrar o pão” e “dar pão e vinho” aos discípulos, que tornaram-se importantes na moldagem futura da liturgia eucarística. A expressão “Nova Aliança” aponta para outro elemento inédito no culto: é permanente e, referindo-se ao sacrifício único e perfeito de Cristo, não precisa ser repetida mediante abate de animais, como na “Velha Aliança”. O mandamento acerca da repetição tornou-se significativo na instituição desse “novo culto”, o culto cristão (marcado pela ação remidora de Cristo, sua morte e ressurreição) e evidenciou nele a centralidade da Eucaristia. No tempo dos apóstolos destaca-se a expressão “partir do pão” que faz lembrar das ações do próprio Cristo e, também, do espírito de fraternidade e comunhão. Para celebrar a presença do Ressurreto e assegurar a ação do Espírito Santo, o “partir do pão” tornou-se freqüente, possivelmente diário por algum tempo e, especialmente, dominical. A estrutura desse culto con207 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 tava com a proclamação da Palavra, a comunhão fraterna (parte essencial), a Eucaristia e as orações. As casas dos “irmãos” tornaram-se pouco a pouco o local de encontro dos cristãos, pois o templo e a sinagoga não se prestavam para as refeições comunitárias. Tais celebrações eram marcadas por alegria e simplicidade, e tinham como motivo principal a união com Cristo e com os irmãos. Os cristãos no tempo dos apóstolos olhavam para o passado, recordavam os grandes feitos de Deus para a salvação da humanidade e reviviam o que aconteceu na última ceia; no presente celebravam a união com Cristo e com os irmãos e, vislumbrando o futuro, manifestavam a expectativa do reino eterno, marcado pela expressão maranatha. Sendo o local da atuação do Espírito Santo, a participação na Eucaristia trouxe como conseqüência muito amor fraternal e ajuda mútua (a diaconia tinha um papel essencial), conquistou a simpatia do povo e promoveu um crescimento fora do normal da Igreja. Como nem tudo era perfeito, por envolver pessoas, muito cedo problemas tiveram que ser atacados. O apóstolo Paulo chama a atenção de que o que torna alguém indigno de participar da Eucaristia é a falta de amor a Deus e ao semelhante, manifestada no egoísmo e descaso para com os menos favorecidos. O seu discurso ataca o problema social da comunidade de Corinto, e enfatiza que a falta de ajuda aos “que nada têm” quebra a unidade da igreja e torna a celebração eucarística indigna. Por isso também enfoca a questão da unidade em “um só pão, um só corpo”. O testemunho dos Pais Apostólicos dos séculos II e III também leva a conclusões importantes, pois não há qualquer evidência de culto dominical sem a Eucaristia nesse período. Eucaristia é elemento central e, até certo ponto, motivo da reunião da comunidade. Os anos passam, porém a certeza da presença de Cristo é evidenciada em expressões como corpo e sangue e carne e sangue de Jesus. O primeiro dia da semana é confirmado como dia de culto e símbolo da “nova criação”. Os três documentos (Didaqué, Apologia de Justino e Tradição Apostólica de Hipólito) apreciados para identificar uma ordem da liturgia eucarística, apontam para uma gradativa padronização do culto cristão. O próprio uso da expressão Eucaristia, a partir do final do primeiro século ou início do segundo, denota essa padronização. Enquanto que nas origens da Igreja Cristã a Eucaristia era celebrada no contexto de uma refeição completa, pouco a pouco e, especialmente no segundo século, ceia e refeição foram separados, até o quase completo desaparecimento desta. O que fica claro, no entanto, é que a ação concreta de ajuda aos necessitados continuava sendo elemento essencial da Eucaristia, caracterizada pela ênfase na ajuda ao próximo e socorro aos ausentes. A estrutura básica do culto, ao final desse período, é composta basicamente pelo que segue: Leitura das Escrituras, Exortações (homilia) e ora208 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 ções, reconciliação dos irmãos que culminava com o ósculo santo, o Ofertório ou apresentação do pão e vinho (além da oferta para os necessitados), Diálogo do Prefácio, Oração Eucarística, possivelmente o uso da Oração do Senhor (não se pode identificar o momento exato desta oração), Distribuição, Ação de graças pós-comunhão e a exortação a que levassem também para os ausentes e se apressassem em fazer o bem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLMEN, Jean Jacques von. O Culto Cristão: Teologia e prática. São Paulo: ASTE, 1968. ______. Estudo sobre a Ceia do Senhor. Trad. Equipe de prof. e alunos da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1968. AMIOT, François. A Missa e sua História. São Paulo: Flamboyant, 1958. BELOTTO, Nilo et all. Nós e o culto. 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Antes de entrar no texto, algumas observações sobre a forma da perícope e o contexto em que está inserida. A perícope começa em Is 63.16b, com as palavras: “Tu, ó SENHOR, és nosso Pai; nosso Redentor é o teu nome desde a antiguidade”. A isto se acrescenta o v. 17, e os primeiros oito versículos do capítulo 64. O que se consegue com este recorte é uma moldura em que a expressão “nosso Pai” abre (63.16) e fecha (64.8) a perícope. Além disto, identifica a quem se dirige a oração, “Oh! Se fendesses os céus e descesses!” Ela se dirige ao SENHOR, nosso Pai, nosso Redentor (63.16). O contexto imediato (63.7-64.12) pode ser descrito como “A última oração do profeta” (ver Almeida Revista e Atualizada). Esta oração é semelhante a um lamento nacional, e lembra alguns dos Salmos, como, por exemplo, o Sl 44. É feita de duas partes: a) louvor, em que se lembra os feitos de Deus no passado (63.7-14); b) súplica, em que se pede a Deus que realize a redenção prometida (63.15-64.12). No meio da súplica, há uma confissão de pecado (64.5b-7). A oração de Isaías deriva, não de amargura ou dúvida, mas da confiança absoluta de que Deus não abandona seu povo (Is 64.8-12). TEXTO Um texto tão rico não pode aqui ser explicado em seus detalhes. Seguem algumas anotações. 2.1: “Nosso Pai” (63.16) – Em todo o AT, só aqui a expressão “nosso 213 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Pai” (no hebraico, uma só palavra - Wnyba, “abinu”) é aplicada a Deus. É claro que Israel sabe que Deus é seu Pai. Além disso, há passagens em que Deus chama Israel de “seu filho” (ver Êx 4.22; Dt 32.6; Jr 3.4; 31.9; Ml 2.10; ver também Jo 8.41). Detalhando isto, pode-se dizer que o SENHOR é o pai de Israel porque foi ele quem formou a nação (Is 64.8). Agora, essa paternidade tem a ver, acima de tudo, com a aliança de salvação. Deus amou Israel (Os 11.1; Jr 31.20), comprou o povo, ao redimi-lo do Egito (Dt 32.6), e continuou a guiar o seu primogênito (Êx 4.22; Jr 31.9-10). Em Is 63.16a existe um interessante contraste entre os “pais” de Israel, Abraão e Jacó (“Israel”), e o verdadeiro Pai, que é Deus. Aqueles podem esquecer-se de seu povo, mas o SENHOR não o faria. 2.2: “Nosso Redentor” (63.16) - O termo hebraico para “redentor” (laeGO, “goel”) lembra a pessoa encarregada de proteger a família (veja-se a história de Rute). O intérprete é tentado a sugerir que o SENHOR é visto como “protetor familiar de Israel”. Em outras palavras, Israel é a família de Deus, da qual ele é o “goel” ou Redentor. 2.3: “Oh! Se fendesses os céus e descesses!” (64.1) — Fender ou rasgar o céu é uma impressionante imagem, em que o céu é comparado à lona de uma tenda. Na memória do povo de Deus está aquela impressionante manifestação no Sinai (Êx 19.16-19; cf. Sl 18.7-9). A vinda de Deus em juízo e redenção traz consigo efeitos cósmicos. Deus rompe a barreira e se manifesta em nosso mundo. Por isso, o profeta pede uma manifestação de Deus semelhante àquela do Sinai. Por que esta súplica agora? Porque há problemas que afligem a nação, por culpa do povo. Nessa situação sem saída, só resta clamar e pedir ao Deus vivo que volte a agir, por mais indigno que seja o povo. Registre-se que durante todo o período intertestamentário Israel viveu com essa noção de que os céus estavam selados. Tanto mais nos impressiona o evento do batismo de Jesus, em que temos um cumprimento desta petição: os céus se rasgaram e o Espírito desceu sobre Jesus e o Pai falou (Mc 1.10-11). 2.4: “Nem com os olhos se viu Deus além de ti” (v.4) – Parte deste versículo aparece no NT em 1 Co 2.9. Notar que se nega, não apenas que existe um Deus igual ao SENHOR, mas que exista um Deus além dele. É a ênfase no monoteísmo, tão característica de Isaías. 2.5: “Te iraste” (v.5) — Esta ira culminou no exílio babilônico. O motivo da ira é o pecado do povo. 214 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 2.6: “Somos como o imundo” (v.6) – Mais um símile, em meio a tantos outros. O povo (notar o “todos nós”, aqui e nos vv. 8,9) é como pessoa com lepra (Lv 13.45; cf. Is 6.5). Agora, a imagem mais forte é a que segue: “todas as nossas justiças (!), como trapo da imundícia” (v.6). Não é trapo de imundícia, mas da imundícia. Parece que se pensa em algo bem específico, como os panos que a mulher usa durante o período menstrual, um tempo em que ela é imunda (ver Lv 15.19-24; Ez 36.17). A Bíblia da CNBB ousa traduzir: “nossa justiça toda é como sangue menstrual”. 2.7: “Nós somos o barro, e tu, o nosso oleiro” (v.8) – Um imagem que ecoa outros textos de Isaías (Is 29.16; 45.9) e que reverbera mais adiante em Rm 9.20-21. Isto é verdade tanto em termos de juízo (lei), quanto em termos de salvação (evangelho). APLICAÇÃO HOMILÉTICA Sugere-se desenvolver o tema: “Oh! Se fendesses os céus e descesses!”, com as seguintes partes: 1. Quem pede (todos nós, imundos, etc.); 2. A quem pede (ao Pai, Redentor, Deus único, Deus irado que esconde o rosto, “oleiro”, etc.); 3. O que pede (uma súplica de advento; as implicações do pedido: com que coragem pode um povo iníquo pedir a presença desse Deus à cuja presença os montes tremem?; o cumprimento da prece). Vilson Scholz São Leopoldo, RS 215 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEGUNDO DOMINGO DE ADVENTO 8 de dezembro de 2002 Isaías 40. 1-11 CONTEXTO Neste texto temos a chave para toda a segunda parte do livro de Isaías. É a introdução, o prólogo do que é chamado o “primeiro discurso”, anunciando ao mesmo tempo toda a parte profética de 40.12 a 66.24. A fala retrata Javé como o verdadeiro consolador, cuja palavra permanece em meio ao sofrimento, o pastor que guia seu povo, correspondendo esta fala à representação que vem em seguida, na segunda parte: Javé é o Deus infinito e incomparável, que restaura o seu povo. Isaías, o evangelista do Antigo Testamento, se destaca por suas belas imagens do Senhor compassivo com a nação quebrantada de Israel. No capítulo 40 está particularmente presente a palavra de consolação. A palavra consolo é um presente de Deus para um povo no meio de suas calamidades e desgraças. O caminho do arrependimento está preparado, eles podem esperar o advento da salvação de Deus. TEXTO: CONSIDERAÇÕES EXEGÉTICO-HOMILÉTICAS O texto contém três chamamentos, três anúncios vívidos, três clamores, que vão se intensificando, e que contêm uma tríplice especificação do anúncio geral da salvação nos vv. 1 e 2: no primeiro (vv.3-5), a “voz” chama o povo a dar meia volta (pois Deus enviará salvação ao mundo inteiro, cf. a antecipação: “a glória do Senhor se manifestará”, v.5). É o convite para se eliminar todo obstáculo externo e interno que pudesse obstruir esta salvação. A segunda “voz” (vv.6-8) lembra a realidade da vida humana que é limitada pela finitude: toda flor seca, todos e todas morrerão. A realização de um homem, o sucesso de uma mulher, tudo acabará, e o profeta não esconde este fato brutal de nossa existência. Nenhuma experiência humana escapa deste veredito. No entanto, esta finitude realça o valor para nós da estabilidade e perenidade do consolador: “a palavra de nosso Deus permanece eternamente”, v. 8. Um convite a finitos e frágeis seres como nós nos apegarmos às promessas de Deus, que são como uma rocha no meio da efemeridade da vida humana. Como povo de Deus, ajoelhando-nos em arrependimento, confessamos nossas mais profundas necessidades, e afirma216 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 mos o poder e a disposição de Deus para ouvir e atender as nossas orações. Finalmente, a terceira “voz” (vv.9-11) anuncia as boas novas de que Deus está presente para salvar o seu povo. Ela conclama Israel, em exílio, a confiar no Senhor, que vem como redentor, e a submeter-se à sua orientação fiel e paterna. “Consolai [...] sua iniqüidade está perdoada” (v.1-2). Embora julgada e em exílio, Israel deve saber que ainda é povo escolhido de Deus. Esta voz profética não se refere somente ao profeta, para quem seria impossível lidar pastoralmente com cada israelita. Assim, estas palavras divinas são uma missão dada a cada um, que leve a palavra de consolação ao seu semelhante, que cada um ajude a consolar e reconfortar. “Falar ao coração” significa falar calorosamente, cobrir com palavras, aquietar. Que se clame alto (consolai!) ou que se fale suavemente ao coração, agora é chegado o tempo, para Israel, de saber que o tempo da graça está aí. “É findo o tempo de sua milícia”, é tomado mais no sentido figurado designando as vicissitudes e dificuldades na vida, que podem ser vividos como conflitos (cf. Ef 6.11ss; 1 Tm 6.12; 2 Tm 2.3ss; 6.7), sendo que neste caso a expressão é ampliada para caracterizar as aflições e sofrimentos de Israel neste período difícil: um tempo de conflito. Vv. 3ss: “João Batista foi o primeiro daqueles mensageiros e arautos de nossa redenção, da qual a redenção da Babilônia fora apenas um tipo. Mas este compreende todos os outros ministros da Palavra, que Deus enviou e que enviará até o fim do mundo para conduzir almas desafortunadas para fora deste deserto miserável, e para fora desta prisão da lei, para a cidade celeste de Deus. O caminho está preparado para o Senhor quando lançamos fora as grandes pedras e ídolos, como o orgulho, confiança nas próprias obras, e quando reconhecemos nossos pecados. Pois eles literalmente barram a entrada da graça” (Heim e Hoffmann, cf. Lange). “Quando nós observamos atentamente o movimento quieto, poderoso do Senhor através da história do mundo, nós vemos como, diante do seu caminhar, os vales se elevam sozinhos, e as montanhas afundam, como encostas íngremes tornam-se planície, e paredões se tornam planos. Não tenhamos medo de atravessar os desertos da vida se Deus está conosco! É uma caminhada por belas sendas planas.” (Umbreit, cf. Lange). V. 8b: “A palavra de nosso Deus permanece eternamente”. Esta palavra cria o mundo (Gn 1; Jo 1; Sl 33.6) e também o sustenta por meio do seu poder (Hb 1.3). Céus e terra são preservados para o último Dia (2 Pe 3.7), quando passarão, mas sua palavra não passará (Is 51.6; Sl 102.27; Mt 5.18; Lc 21.33). Sua palavra não sairá vazia, como diz Isaías, mas cumprirá o seu desígnio e produzirá seus frutos (55.11). “E quando 217 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 todas as formas terrestres, nas quais a palavra do Senhor se investe, ficarem velhas e passarem como a relva que seca, ainda assim a verdade eterna, escondida nestas formas, aparecerá tanto mais gloriosamente de suas configurações demolidas, e todos os que terão vivido na palavra de Deus e que terão confiado nele ressurgirão com ele para uma nova vida” (Lange). ILUSTRAÇÃO Um grupo de meninos na praça discutia sobre quanto dinheiro cada um tinha, sendo que a conversa transformou-se em “medição de forças”: “Eu tenho 75 centavos”, dizia um, mostrando as moedas de 50 e 25. Imediatamente outro dizia: “Eu tenho uma nota de um real”, dizia outro todo orgulhoso, exibindo a “verdinha”, ao que emenda um terceiro dizendo que tinha dois reais, puxando as notas do bolso. Foi quando o quarto arrematou: “Pois eu tenho cinco reais!” Só que não mostrava o dinheiro. Quando os outros o intimaram a provar sua pretensão, ele responde: “Meu pai me disse que hoje à noite vai me dar cinco reais, então já são meus, porque meu pai disse.” (adaptado, CPR). DISPOSIÇÕES HOMILÉTICAS “Por que o advento de Jesus ainda é hoje um consolo e alegria?” 1. Através dele o tempo de servidão termina (v.2) 2. A maldição do pecado é removida (v. 2-3) 3. A prometida nova criação é introduzida (v.4) 4. A palavra do Senhor revelou a sua glória “A preciosa missão do Senhor para os ministros da palavra: consolai o meu povo!” Perguntamos: 1. A quem, segundo a palavra de Deus, o consolo deve ser levado? 2. Que tipo de consolo, segundo esta palavra, deveria ser levado? “Que preparação Deus pede de nós para compartilharmos do consolo em Cristo?” 1. Preparem o caminho do Senhor 2. Aprendam a conhecer sua pequenez Fontes: GAULKE, Stephen. A Christmas Confort. CPR, 9/1997, 17ss. LANGE, John P. Commentary on the Holy Scriptures: Isaiah. Schaff, Ph., trad. Grand Rapids: Zondervan, 1878. Manfred Zeuch Canoas, RS 218 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 TERCEIRO DOMINGO DE ADVENTO Isaías 61.1-3, 10-11 15 de dezembro de 2002 CONTEXTO O presente texto encontra-se no coração da unidade literária que engloba os capítulos 56-66, considerada pela crítica moderna como obra do TritoIsaías, um profeta do início do período persa que teria pregado o futuro glorioso de Sião (59.15b–62) a um povo que lamenta seu estado presente (58–59.15a; 63–64), apesar da idolatria e do abandono do culto verdadeiro pela nação (56–57; 65–66). Esta estrutura literária é preferível à que divide Is 40-66 em três seções, demarcadas pelo refrão em 48.22 e 57.21. Após o chamado ao louvor no capítulo 54, que evidencia o ápice atingido em 53, Is 55 marca um reinício semelhante a Is 40 em conteúdo (40.1-2/55.1; 40.6-8/55.10-11) e função (pregação de consolo e esperança). A voz que aqui se apresenta, porém, não é a de um indivíduo do período do AT, mas sem dúvida a do Servo do Senhor, já introduzido em Is 42, 49, 50 e 53, e personificado séculos mais tarde em Jesus Cristo (Lc 4.16-21). O Servo do Senhor atinge aqui o ápice de sua revelação na profecia de Isaías e no AT como um todo, identificando-se como o Messias que vem restaurar a justiça e o juízo em favor dos oprimidos (cf. 56.1; 5.8). Como conseqüência da obra redentora do Messias, o tradicional paralelo justiça/ juízo típico dos escritos proféticos é substituído, em 60-62, pelo par justiça/ salvação (59.17; 61.10; 62.1), apontando para o efetivo cumprimento da promessa feita em 56.1 na obra do Servo do Senhor. TEXTO O Espírito do Senhor Javé [está] sobre mim, porque Javé me ungiu (v. 1). O Servo apresenta-se como o ungido de Javé. Esta não é, porém, uma unção comum: ao invés da referência ao óleo da unção, tem-se a referência ao Espírito de Javé sobre o Servo (note-se a ausência de verbo ou partícula circunstancial, sugerindo uma relação perene e incondicional entre o Servo e o Espírito de Javé – como já 11.2-5 anunciara). Aqueles que pretendem usar a tradução na linguagem de hoje devem ter especial cuida219 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 do neste aspecto. Ainda, a unção não é para determinada posição, como rei, profeta ou sacerdote, mas sim para uma missão que engloba toda a série de ações descritas até o final do v. 3. Essa missão detalha o que já havia sido antecipado em 59.15b-20 como obra do próprio Javé: trazer justiça e salvação, vingança e zelo. Para trazer boas novas aos pobres (v.1). As boas novas aqui são restritas àqueles a quem a justiça que Deus espera de seu povo (cf. 5.7; 56.1) fora negada: os empobrecidos, escravizados e oprimidos pela ganância das lideranças do povo. Tanto a referência ao jubileu como os capítulos iniciais do livro de Isaías (1.12-17, 21-23; 3.14-15; 5.7-8) e a voz dos profetas contemporâneos (Am 8.4-6; Mq 2.1-2) revelam a indignação de Deus com aqueles que pervertem o direito e a justiça movidos pela ganância. A injustiça jamais deveria deixar a igreja insensível, pois o grito dos excluídos não encontra ouvidos surdos no Senhor que os criou e remiu. Para proclamar aos cativos libertação (v.1). A expressão é a mesma usada em Lv 25.10 na instituição do ano do jubileu, celebrado a cada 50 anos, quando todo escravo deveria ser libertado e toda propriedade voltar ao seu proprietário original. A lei visava proteger as famílias em Israel da escravidão e do empobrecimento, evitar a concentração de terras e renda e lembrar que a terra era dádiva de Deus, seu real proprietário. É improvável que o jubileu tenha algum dia sido observado, fato que os profetas denunciaram (Jr 34). Ano aceitável / Dia da vingança (v.2). A vinda do Messias é evangelho, salvação e libertação para aqueles que o aguardam, mas juízo e condenação para os que o desprezam. Não há esquecimento dos que provocaram a ira de Javé, nem anistia aos que “não sabiam” que estavam errados. Evangelho e Lei são anunciados para produzir consolo e arrependimento, e finalmente salvação e juízo. Carvalhos de justiça (v.3). O carvalho é uma árvore majestosa, de raízes firmes que não podem ser arrancadas facilmente. Em imagem que lembra o Sl 1, a glória dos antes oprimidos será firmada através da justiça conferida por Javé para a sua glória. Me cobriu de vestes de salvação e me envolveu com o manto de justiça (v.10). O que o v. 3 promete para os oprimidos de seu povo é conferido primeiro para o Servo: Javé cobre-o com justiça e salvação, como um noivo ou noiva adornam-se em preparação para as núpcias. Aqui já não se fala da vinda em juízo, mas da união do Servo com os que antes choravam. O Servo de Javé compartilha com eles os mesmos atributos que a ele são conferidos. Ele lhes traz justiça e salvação, de modo que o seu júbilo possa também provocar o júbilo e a alegria do seu povo. Como a terra . . . assim o Senhor Javé (v.11). O que aqui é anunciado é uma certeza, não uma esperança utópica. O próprio ungido de Javé o 220 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 proclama e nos conclama ao louvor devido à salvação que vem de Deus. Quanto mais devemos nós louvar o seu nome e fazer ecoar a sua voz, sabendo que o Messias já veio, já nos cobriu com sua salvação, e pela repetição destas mesmas palavras na sinagoga em Nazaré reafirmou nossa esperança? Javé fará brotar a justiça e o louvor pela obra redentora de seu Servo perante todas as nações da terra. E a Igreja, através da pregação do Evangelho, tem o desafio e o privilégio de fazer parte desta missão de Deus. PROPOSTA HOMILÉTICA I. Em Cristo – Deus enviou a salvação II. Em Cristo – Deus proclama a salvação – e o juízo III. Em Cristo – Deus fará brotar consolo, justiça e louvor Gerson L. Flor Windsor, ON, Canadá 221 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUARTO DOMINGO DE ADVENTO 2 Samuel 7.1-7 (8-11, 16) 22 de dezembro de 2002 CONTEXTO Dois temas distintos em textos subseqüentes da Bíblia têm neste capítulo seu ponto de partida. Primeiro, a linhagem davídica recebe o direito de governar para sempre, e o Senhor dá a sua palavra de que não irá retirar dos filhos de Davi a sua misericórdia. Assim o Senhor há de edificar a casa de Davi, isto é, Davi encontrará uma dinastia (o reinado desta dinastia durou quatro séculos inteiros sobre Judá). O segundo tema aponta para uma interpretação escatológica: “seu tabernáculo será restaurado” (Am 9.11); “um filho da casa de Davi estabelecerá seu trono com justiça e retidão” (Is 9.67); “um renovo do tronco de Jessé criará um reino ideal” (Is 11.1-9; Jr 23.5; Zc 3.8). Este capítulo tornou-se fonte de esperança messiânica, e esta foi amplamente desenvolvida na mensagem dos profetas e salmistas. TEXTO Vv. 1-3: O rei Davi, vendo que as promessas de Deus com respeito à vitória sobre os seus inimigos estavam sendo cumpridas, quer demonstrar sua gratidão e glorificar a Deus. O meio de fazê-lo é providenciar um lugar mais adequado e permanente para a arca da aliança (que era símbolo da habitação de Deus no meio do seu povo). Era costume naquela época que reis piedosos construíssem templos para as suas divindades. Davi também quer construir um templo ao Deus Altíssimo. Nestes versículos pela primeira vez aparece o nome de Natã como conselheiro e confidente do rei. Natã vê a iniciativa do rei Davi como positiva. Vv. 4-7: Deus agora toma a iniciativa e manda uma mensagem por meio de Natã. Deus questiona a necessidade de um templo fixo e aponta para o tempo que “habitou” com o povo numa tenda. A propósito, uma tenda desmontável poderia ser símbolo mais significativo de sua morada no meio do povo. 222 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Vv. 8-9a: “Meus servo Davi” é um título de honra e, ao mesmo tempo, um lembrete para que Davi não esqueça que, mesmo sendo rei e cercado por serviçais, ele também precisa viver como um autêntico servo na relação com Deus. A grandeza do reinado de Davi devia começar com submissão a Deus. Deus faz lembrar a Davi que na época em que ainda cuidava de ovelhas, Ele o escolheu para ser rei e colocou os seus inimigos debaixo dos seus pés. Vv. 9b-11: Porque Deus está com Davi, seu futuro será brilhante, seu nome será perpetuado. Um lugar para meu povo ...Israel, aponta para a esperança e consolo em dias atribulados (Jr 32.37), segurança e descanso (cf. 2 Sm 7.1) e dimensão escatológica (Sl 89.22-24). “Casa” – Não é Davi quem constrói uma casa para Deus, mas é Deus quem constrói uma casa para Davi: a) referência à dinastia davídica; b) referência à promessa messiânica. V. 16: O oráculo entregue a Davi por meio de Natã termina com a reafirmação da promessa da aliança: “A tua casa e o teu reino ... firmados para sempre; ... teu trono ... para sempre”. Davi teve a intenção de honrar ao Senhor e recebeu muito mais do que poderia ter esperado: bênçãos para o presente e futuro, promessa de que sua dinastia seria reconhecida e, mais importante, a promessa messiânica. DESTAQUES DO EVANGELHO DO DIA: LC 1.26-38 Destacam-se os versículos 27,32-33 e 37-38, por terem íntima relação com o texto do Antigo Testamento e apontarem para o cumprimento das promessas de Deus. V. 27: A expressão “casa de Davi” é tema-chave na narrativa do nascimento e infância de Jesus (Lc 1.32, 69; 2.4, 11); é afirmado na genealogia (Lc 3.11); é declarado publicamente pelo homem cego de Jericó (Lc 18.38-39) e é tema de controvérsia durante os ensinamentos de Jesus em Jerusalém (Lc 20.41-44). Vv. 32-33: A grandeza do Reino de Jesus não está no fato de pertencer à descendência de Davi, mas de ser chamado Filho do Altíssimo, que fez e cumpriu as promessas . O reinado terreno de Davi era passageiro, limitado e com falhas; o Reino de Cristo não é deste mundo, é eterno e perfeito. Vv. 37-38: “Para Deus não haverá impossível” - relaciona-se não só com a concepção de João Batista ( apesar da esterilidade de sua mãe), mas 223 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 com o cumprimento de todas as promessas de Deus, que faz “grandes coisas”. “Serva do Senhor” – como alguém que confia inteiramente no Senhor e submete-se à sua vontade. A expressão Servo do senhor já era atribuída a Davi, e o próprio Cristo também seria assim chamado. PROPOSTA HOMILÉTICA Introdução: Muito se fala a respeito do déficit habitacional no Brasil e no mundo inteiro. O provérbio popular “quem casa, quer casa” demonstra a importância desse imóvel na vida das pessoas. Casa significa abrigo, proteção, segurança, conforto e descanso. A preocupação de quem vive em uma comunidade religiosa também relaciona-se com casa (templo): a) para ser símbolo da habitação de Deus em meio ao seu povo; b) para abrigo da própria comunidade cultuante. TEMA O SENHOR EDIFICA A CASA PARTES I- A intenção de Davi II- A resposta de Deus através do profeta III- A promessa de Deus para o presente e para o futuro CONCLUSÃO Deus não precisa de palácios para ser adorado e glorificado. Em Cristo, cumprimento das promessas de Deus, e através dos meios da graça, Ele quer fazer morada em nosso meio e em nosso coração. A promessa aos que nEle confiam é de que habitarão na casa do Senhor para sempre. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALDWIN, Joyce G. I e II Samuel: Introdução e comentário. São Paulo : Vida Nova, 1996. GEHRKE, Ralph David. Concordia Commentary: 1 and 2 Samuel. Saint Louis : Concordia Publishing House, 1968. JUST, Arthur A. Jr. Concordia Commentary: Luke : 1.1-9.50. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1996. MESQUITA, Antônio Neves de. Estudo nos livros de Samuel. Rio de Janeiro : Juerp, 1979. Paulo Gerhard Pietzsch São Leopoldo, RS 224 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 DIA DE NATAL Isaías 62.10-12 25 de dezembro de 2002 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS O Salmo 98 é um convite para a festa. E Natal é festa! Mas é mais que um convite: já é a festa sendo experimentada. Ao ler o Salmo 98 e a narrativa natalina de Lucas, e refletir sobre as duas leituras, parece inevitável que surja o seguinte questionamento: será que tudo o que está no Salmo aparece contemplado em Lucas? Parece que sim e que não! Explico. Se passamos os Domingos do Advento dizendo que o “Senhor veio, vem e virá”, quer-me parecer que igual ensino é verdadeiro também para o Domingo de Natal! Afinal, na narrativa de Lucas a salvação se fez notória a um pequeno grupo de pessoas: Maria e José, os pastores, os magos, e mais uma meia-dúzia de pessoas que viviam no templo, em Jerusalém. No entanto, a salvação ganhou em notoriedade, seguiu ganhando notoriedade, venceu impérios, imperadores, forças inimigas, e um dia, “todo joelho se dobrará e toda a língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor” (Fp 2), e assim “todas as extremidades da terra [verão] a salvação do nosso Deus (Sl 98.3). O evangelho de Natal (Lc 2.1-20) é algo do que existe de mais singular e surpreendente. Singelo. Humilde. Simples. Nada sofisticado. A cena se dá na atmosfera de Belém, uma humilde vila do interior. O dia é mesmo de festa: cumpre-se a Promessa milenar do SENHOR! É dia de comemorar. INTRODUÇÃO AO TEXTO O mesmo material é encontrado nos capítulos 30 a 33 de Jeremias, conhecido como o “Livro da Consolação”, ou “Livro da Esperança”. As palavras são de restauração. Trata-se do anúncio do retorno dos exilados. O Reino do Norte havia sido levado cativo no ano de 722, e o Reino do Sul em 597. A realidade presente no país, visível aos olhos de quem quisesse ver, é de abandono, de devastação. É o retorno de ambos que está sendo anunciado. Desta forma, Sião não será mais chamada “a desamparada”, a “abandonada”, mas a “procurada, a habitada” (v. 12). 225 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Quando Isaías diz que o “Salvador vem”, ele está, antes de mais nada, anunciando o retorno dos exilados (ou dos exílios!). Mas isso não é tudo. A história não acaba no retorno dos exilados. A restauração territorial e geográfica de Israel e de Judá é um prenúncio de uma restauração maior: a Salvação em Cristo, o Messias que estava por vir. Em Isaías o “teu Salvador” tem nome: “Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz (Is 9. 6). No Evangelho, o anjo revela o nome aos pastores, depois do Seu nascimento: “É que hoje vos nasceu na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2.11). TEXTO V. 10: O imperativo “passai” é dito ao povo. Talvez o mais interessante aqui é o fato de que é o povo quem deve caminhar. Em outros contextos é o Senhor quem caminha (Sl 24; Is 40). “O Povo” aqui é tradução para ~[h. Trata-se do povo do SENHOR, o povo escolhido. Desde Abrão até a Igreja Cristã do início do século XXI. Se a pergunta em torno de quem seja este povo persiste, a resposta está no próprio texto, no versículo 12: “povo santo, remidos do Senhor”. V. 11: “Eis que!” - Poucas expressões hebraicas têm o peso de hNEh. Essa interjeição aparece centenas de vezes (519) ao longo de todo o Antigo Testamento. A interjeição “Eis que” por vezes vem seguida de lei e por vezes de evangelho. Em Isaías a tônica está no evangelho, como é o caso em nosso texto. Em Lucas o anjo diz: “não temais: eis que vos trago evangelho” (Lc 2.10). “Às extremidades da terra” - No Salmo 98.3 a expressão é #r,a’-ysep.a;lk. Em nosso texto a expressão é outra - #r,a’h’ hceq.-la, mas o sentido parece ser o mesmo, denotando universalidade, totalidade. No Salmo temos literalmente “todas as extremidades da terra”, enquanto que, em Isaías 62.11, uma tradução literal seria “para as extremidades da terra”. Nunca é demais lembrar o óbvio. “O SENHOR fez ouvir”. A forma verbal hebraica hifil não deixa que essa importante lição evangélica nos passe despercebida. Se ouvimos e escutamos é porque o SENHOR nos abriu os ouvidos, que antes não podiam ouvir. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS A situação do povo de Deus, Israel, no tempo de Isaías, era complicada. Tristeza era a tônica do dia a dia desse povo. Sofrimento. Tudo isso tinha uma causa. O pecado era a causa. Também a igreja hoje sofre. Sofre com e por diversas crises. Não está exilada. Mas sofre. Por vezes o cenário 226 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 também é muito triste. Questões pairam no ar e nas mentes das pessoas: O que será de nossa igreja neste novo ano? E do país? Em suma: os quadros de hoje e de então se parecem muito. Deus não apenas se parece. O SENHOR é o mesmo: então e agora. Se o pecado também faz sofrer e colher conseqüências duras na vida, é bom manter próxima a seguinte certeza: “eis que o Salvador veio!” Parece ser esta a certeza do Natal: o “teu Salvador veio”, movido pelo grande amor de Deus, para mudar a realidade humana, de perdida e esquecida, para remida e amada; de triste para alegre; de infeliz para feliz; de condenada para salva. SUGESTÃO DE TEMA Eis que o dia chegou! Eis que o Salvador chegou! Nestor Duemes Goiatuba, GO 227 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 DIA DE EPIFANIA Isaías 60.1-6 5 de janeiro 2003 CONTEXTO Isaías 60.1-6 é texto importante no ciclo de Natal e Epifania. Uma, porque está repleto de luz. Outra, porque os reis (v.3) e os camelos (v.6) da cena dos magos do Oriente foram tirados deste texto. No contexto, Is 60.1-6, uma proclamação incondicional de salvação contrasta com os capítulos precedentes (Is 56-59). É doce evangelho após a proclamação da lei. É resposta ao clamor de Is 59.9-11. TEXTO O texto é altamente poético, com imagens vívidas e linguagem dramática. Alguns destaques: 1. O texto abre com dois imperativos: “dispõe-te”, “resplandece” (v.1). Não se diz a quem são dirigidos os imperativos, embora o leitor do texto hebraico saiba que os imperativos são femininos e estão no singular. A tradução de Almeida preserva esta vagueza. A Septuaginta deixou claro o que fica implícito, a saber, que a endereçada é Jerusalém. A Tradução na Linguagem de Hoje faz o mesmo: “Levante-se, Jerusalém!” 2. Jerusalém pode resplandecer porque a glória do SENHOR nasce sobre ela (v.1). Resplandecer é “brilhar de alegria” (ver NTLH). 3. A luz vem (v.1) para iluminar as trevas que cobrem a terra (v.2). Esta luz é o próprio SENHOR (v.2). Epifania no mais alto grau! 4. As trevas (v.2) são símbolo de opressão e pecado (ver Is 8.22; 9.2; 59.9). 5. O caráter poético do texto é evidente, podendo ser visto claramente no paralelismo sinônimo do v. 3. 6. As nações se encaminham para a luz de Jerusalém: este tema foi anunciado pela primeira vez, em Isaías, no capítulo 2 (vv. 2-5). 7. Os filhos e filhas (v.4) são membros do povo de Deus. Aqui a cidade, que é figura do povo de Deus, é apresentada como mãe. 8. Alguns dos elementos deste capítulo ajudam a compor o quadro da Jerusalém celeste, no livro do Apocalipse. É o caso das riquezas das nações que são trazidas a Jerusalém (v.5; ver Ap 21.26). Confira também Is 60.18,19. 228 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 9. Jerusalém chama a atenção de todo o mundo. O “mar” (v.5) fica no ocidente, Midiã (v.6), no oriente, e Sabá (v.6), no sul. 10. As nações publicarão os louvores do SENHOR (v.6). “Publicar” é, a rigor, divulgar boas novas. Tanto assim que a Septuaginta traduziu por “proclamar boas novas” (evu aggeln/uoi tai). O que seriam os “louvores do SENHOR” (v. 6)? A Septuaginta traduziu por “a salvação do SENHOR”. Já a Linguagem de Hoje prefere “as grandes coisas que o SENHOR fez”. Um exemplo dessa proclamação, no passado de Israel, é a rainha de Sabá (ver 1 Rs 10.9). Agora Isaías antevê todos vindo de Sabá (v. 6). APLICAÇÕES HOMILÉTICAS Ao se pregar este texto, é preciso, antes de mais nada, atentar para o caráter profético-poético do mesmo. Poesia não deve ser levada ao pé da letra. E profecia não é história escrita antecipadamente. Isto significa que esse texto não pode ser usado para “provar” que os magos do Oriente eram reis e que vieram montados em camelos, por mais acostumados que estejamos com tal cena natalina. Por outro, o texto encerra uma grande mensagem de epifania. A glória que brilha é o próprio SENHOR no meio do seu povo. Isto se cumpre, parcialmente, na volta do exílio, no Natal (ver Jo 8.12), na visita dos magos, no Pentecostes, a cada proclamação do evangelho, e só encontrará seu cumprimento pleno e final na Jerusalém celeste. Cada cumprimento histórico é mais do que história: é sombra e promessa de coisas vindouras. O movimento aqui ainda é centrípeto, ou seja, em consonância com a orientação missionária básica (embora não única) do Antigo Testamento, as nações se encaminham a Jerusalém. No Novo Testamento, a orientação básica (embora não única) passa a ser centrífuga, ou seja, de Jerusalém aos confins da terra. A epifania é ação de Deus. Jerusalém é, em grande parte, passiva. A luz do SENHOR vem sobre ela, as nações se põem em marcha porque vêem essa luz, os filhos chegam de longe, e os que publicam os louvores do SENHOR são os que vêm de longe. Jerusalém resplandece (v.1) ou “brilha de alegria”, vê e fica radiante de alegria (v.5). O texto tem, pelo menos, três ênfases de epifania: a) a glória do SENHOR vem e Jerusalém (“o povo de Deus”) brilha; b) a volta dos exilados (v.4); c) a marcha das nações e dos reis que vêm de toda parte. SUGESTÃO DE TEMA Epifania: Haja luz para tanta treva! Vilson Scholz São Leopoldo, RS 229 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 PRIMEIRO DOMINGO APÓS EPIFANIA Isaías 42.1-7 12 de janeiro 2003 O texto é uma das mais belas e expressivas profecias messiânicas do Antigo Testamento. Como em todas as demais profecias messiânicas, também este texto nos mostra que a salvação do homem é um ato exclusivo do próprio Deus. A particularidade do texto é a apresentação do agente desta obra redentora. E quem o apresenta é o próprio Deus Triúno (v.1). Chama-o de “meu Servo”. Quem é este “meu Servo”? Como se trata de uma profecia, buscamos a resposta no Novo Testamento. Assim lemos em Mateus 12.17-21, onde esta profecia de Isaías é repetida, que este “meu Servo” refere-se à obra redentora de Jesus Cristo. Também Pedro no seu sermão proferido no templo de Jerusalém (At 3.11-26) explica ao povo que este Jesus que a poucos dias fora crucificado, é o Servo de Deus (v.12 e 26). Uma alusão clara ao nosso texto. “Eis aqui o meu Servo ...” Estranho! O Redentor da humanidade, Jesus, o Messias, a segunda pessoa da SS. Trindade, um servo? Isto não contradiz a onipotência de Deus? Sua glória e majestade ... sua própria onisciência e onipresença? Aparentemente sim, tanto que para alguns, o fato de Jesus assumir a figura de um servo foi motivo de escândalo (Mt 11.6; Mt 13.55; Mc 6.3). Mas justamente nesta realidade de o Redentor da humanidade ter sido um servo, está a grandeza de Deus. Sua justiça e seu amor. Justiça pelo fato de o homem ter caído em pecado, tendo como conseqüência a sua morte física e morte espiritual (eterna condenação), ou seja, o completo desligamento do Criador. Assim a justiça de Deus exigia que o próprio homem providenciasse a sua religação, uma vez que ele não atendeu à advertência de Deus (Gn 2.16,17) e se deixou ludibriar por Satanás(Gn 3. 16), caindo em pecado. Mas esta religação era impossível ao próprio homem (Rm 3.22,23). Deus, no entanto, levado pelo seu amor, entrou em ação e planejou a salvação para o homem. Qual a solução encontrada? A segunda pessoa da SS. Trindade – o Filho – prontificou-se a assumir a natureza humana – e como servo obediente e fiel – cumprir a justiça de Deus. Como verdadeiro homem – em lugar do homem – “cumprir a Lei, padecer e mor230 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 rer” – e como verdadeiro Deus “expiar a ira de Deus e vencer o pecado, a morte e o diabo”. Assim a justiça de Deus foi cumprida. O homem está reconciliado com o seu Criador, graças à prontidão do “seu Servo” em humanar-se. Daí a alegria de Deus (v.1 cf. Lc 2.10-14). Este ato de justiça e amor de Deus através do “seu Servo” deverá agora ser promulgado, divulgado, também entre os gentios. Eles têm direito a esta salvação, uma vez que a salvação do “meu Servo” abrangeu a toda a humanidade, de todos os tempos e épocas. E cabe ao próprio “meu Servo” dar início a esta pregação (v.2). Ele se distinguirá de todos que o precederam (profetas e mesmo em relação ao seu precursor João Batista, cf. Mt 3.110). Sua mensagem será pacífica, tranqüila, suave, cheia de paz e esperança, pois anunciará a sua obra de reconciliação entre Deus e o homem. Inaugurará a era do amor, resumida nas palavras de Jo 3.16, l Jo 4.9. Como Servo vitorioso – reassumirá a plenitude da sua divindade e imporá na terra o direito. Direito que garante a salvação a todos os povos, raças, tribos e nações. Uma vez que o Evangelho – a boa nova da salvação - será levado até aos confins da terra (v.4). E como para não deixar dúvidas a respeito da veracidade deste plano da salvação através do “meu Servo”, Deus Pai faz um solene juramento. Invoca sua divina Criação do Universo (v.5). Assim como o Universo é uma realidade (Sl 19.1), a obra redentora do “meu Servo” está consumada integralmente pela sua obediência (v.6). Assim ele, “o meu Servo”, é o mediador da nova aliança (l Tm 2.5; Hb 8.6; 9.15; 12.24). Ele é a Luz para todos os povos, luz que lhes ensina o caminho da salvação. Pela fé neste seu sacrifício os gentios verão a salvação (Evangelho), e serão libertos das crenças supersticiosas, dos falsos credos (Jo 8.12). A profecia messiânica encerra assim com a “Ordem da Grande Comissão” do AT, levar a luz para os gentios (v.6), renovada depois no dia da Ascensão de Jesus (Mt 28.19,20), pelo “Ide”, isto é, levar o evangelho até aos confins da terra. Resumindo: primeiramente a missão do “meu Servo” era como substituto de todos os homens, salvar pela sua morte e ressurreição a humanidade pecadora, e segundo levar esta mensagem da salvação e “abrir os olhos aos cegos, tirar da prisão o cativo e do cárcere aos que jazem em trevas” (v.7) . Uma clara alusão ao objetivo de Deus: a conversão dos gentios, de todas as raças, tribos e nações (Lc 2.32; Gl 3.14; Ef 3.6). O Deus Triúno apresenta o Messias profetizado: “Eis aqui o meu Servo”: 1. Como promulgador do direito 2. Como mediador da nova aliança 3. Como luz para os gentios Walter O. Steyer São Leopoldo, RS 231 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEGUNDO DOMINGO APÓS EPIFANIA 1 Samuel 3.1-10 19 de janeiro de 2003 CONTEXTO Samuel, dentre todos os profetas, foi o primeiro (Atos 3.24). De certa forma, a comunicação entre Deus e seu povo estava mudando de jeito, de método. Sonhos, visões, presença no Santo dos Santos, etc., davam lugar a que a palavra de Deus surgisse da boca dos profetas. Todos e em todos os lugares poderiam agora ouvir o juízo e salvação da parte de Deus. Pode-se dizer, portanto, que com Samuel, como novo mediador, reabre-se a comunicação entre Deus e seu povo, dificultada pela idolatria, desobediência, incredulidade, indignidade generalizada, inclusive na casa do sumo-sacerdote Eli. Samuel, com biografia muito especial (l Samuel 1), foi pedido ardentemente em oração por sua mãe Ana, que era estéril. O sumo-sacerdote Eli pensou até que Ana estava embriagada enquanto orava, tal era sua concentração e fervor. TEXTO V.1: o jovem Samuel servia... Samuel era como que um “servo especial” no templo, sob a orientação e supervisão direta do sumo-sacerdote Eli. a palavra do Senhor era mui rara; as visões não eram freqüentes. Divinas revelações pressupõem prontidão da parte do ser humano para aceitar a verdade. A infidelidade e a desobediência fizeram com que a privação ou a pouca freqüência da palavra e as visões ficassem como uma punição pela idolatria do povo. V.2: olhos (de Eli) já começavam a escurecer-se... Isto explica o comportamento de Samuel em logo atender o suposto chamado do sumosacerdote Eli. V.3: a lâmpada de Deus... era um grande candelabro com sete lâmpadas (lamparinas), cujo reservatório de óleo combustível era reposto todas as manhãs, uma vez que, em geral, elas amanheciam apagadas. V. 4: o Senhor chamou o menino: Samuel, Samuel! Este respondeu: 232 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Eis-me aqui! Samuel dormia em um dos quartos do Tabernáculo, para uso dos sacerdotes e levitas que deveriam estar prontos para o cumprimento do dever, no início das manhãs. Vv. 5,6: Correu... torna a deitar-te. Ele se foi e se deitou. Sem dúvida, um bonito exemplo para todos, especialmente para os jovens, de estarem prontos para servir a seus superiores quando chamados. Nas duas vezes, Eli deve ter pensado que Samuel meramente havia sonhado ou delirado que fora chamado. V.7: Samuel ainda não conhecia o Senhor... quer dizer, Samuel ainda não possuía o especial, o completo conhecimento de Deus, porque isso fora dado unicamente por revelações extraordinárias de Jeová através de sonhos e visões. Essa forma de manifestação era até aquela data praticamente desconhecida em Israel. Por essa razão, a ignorância de Samuel. Vv. 8,9: e foi a Eli, e disse: Eis-me aqui... Mesmo sendo a terceira vez, Samuel prontamente atende ao chamado de seu superior, sem a mínima irritação ou contrariedade, a quem queria servir de dia ou de noite. ... por isso... disse... Vai deitar-te; e se alguém te chamar, dirás: Fala, Senhor, porque o teu servo ouve. E foi Samuel... sempre obediente, mesmo estando maravilhado, estupefato diante da estranha voz de comando. V.10: Então, veio o Senhor, que havia se manifestado primeiramente só pela voz, veio e esteve, numa visão que deve ter sido plenamente visível a Samuel, nessas alturas, bem acordado: Samuel, Samuel! Este respondeu: Fala, porque o teu servo ouve. Samuel não é somente um exemplo de obediência, mas também de prontidão em ouvir e obedecer à voz do Senhor. A mesma prontidão em ouvir, seguir e obedecer à voz do Mestre, encontramos da parte de Felipe (Segueme, v. 43), que depois convida Natanael (Vem e vê, v. 46) no evangelho do domingo de hoje (João 1. 43-51). Sendo assim, todos os fiéis devem abrir seus ouvidos e seus corações a Deus dando atenção e obedecendo a Sua voz que chega até nós através da Palavra. PROPOSTA HOMILÉTICA A exemplo de Samuel, nós também somos chamados: 1) Que saibamos ouvir e obedecer à voz de Deus, mesmo em condições surpreendentes; 233 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 2) É Ele mesmo que prepara perfeitamente o cenário, as circunstâncias; 3) Com prontidão e alegria, nos coloquemos, nos dediquemos para o serviço, dizendo também: “Fala, Senhor, porque o teu servo ouve”. Norberto Ernesto Heine São Leopoldo, RS 234 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 TERCEIRO DOMINGO APÓS EPIFANIA Jonas 3.1-5,10 26 de janeiro de 2003 V. 1: “Pela segunda vez”. Jonas não atendera o primeiro comando de Deus. Lutero aproveita para dizer que Jonas fez bem em ficar parado depois de ter fugido ao primeiro comando. Pois mais importante do que anunciar a palavra de Deus é que aquele que anuncia esteja absolutamente seguro de que realmente é um enviado de Deus. É possível pressupor que Jonas, uma vez vomitado à beira do mar, tivesse reconsiderado a sua recusa inicial concretizada na fuga. Também é possível supor que agora ele próprio se declarasse inapto para o ministério. E então espera. Lutero vê nessa atitude a coerência no arrependimento. Jonas não apresenta as suas “novas” boas intenções para compensar-se diante de Deus. Ele espera. Até que Deus o chame novamente. E, acrescenta Lutero, somente o chamado que Deus decide dar permite alguém ser anunciador mensageiro de Deus. V.2: “Dispõe-te, vai”. A palavra de Deus ainda é a mesma. A fuga de Jonas não modifica o tratamento que Deus lhe dá. Nenhuma palavra extra de advertência. Nenhuma repreensão ou menção ao episódio da fuga. Jonas orou a Deus (2.29), deixando expressa a consciência do seu erro, equiparando-se aos idólatras que nada têm a pedir de Deus. Parece uma virada de página e o início de um capítulo sem ligação com o anterior. Dispõe-te, vai. Jonas agora é um mensageiro de Deus com uma missão porque Deus lhe estende um chamado. É de refletir como Jonas terá se sentido em relação ao seu primeiro chamado. A título de comparação podemos lembrar o episódio ocorrido entre Paulo e Marcos. Paulo se recusa a aceitar a companhia de Marcos na 2ª viagem porque Marcos literalmente fugira da responsabilidade como Jonas o faz nesse episódio. O que pode ter significado para Jonas esse “esperar” pelo chamado? Será que Paulo teve dúvida quanto à disposição íntima de Marcos em sua decisão de voltar a acompanhá-los na viagem? 235 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 V.2: “A mensagem que eu te digo” Mais importante do que a vontade e disposição do mensageiro, mais importante do que a missão que recebe é a origem da mensagem: “Eu te digo”. Talvez Jonas não tivesse se dado conta até aí nas implicações dessa palavra: “Eu te digo”. A palavra será “de Jonas”. Ele será o anunciador. Talvez na primeira convocação esse “Eu Jonas” tinha sido o termômetro e a medida da sua disposição. E certamente foi por aí que começou a sua fuga do ministério que lhe fora conferido por Deus. Não há dúvida que essa é a grande cruz que ainda hoje limita o ministério da igreja. Nem sempre está claro qual o Eu que está por trás da mensagem. Mesmo Jonas, após ter sido vomitado à praia e devolvido ao ministério, ainda revela traços da confusão quanto ao Eu que está por trás da mensagem. Pois fica a pergunta: Que arrependimento Jonas está anunciando a Nínive? Deus tem a intenção de salvar Nínive. Jonas percorre Nínive com uma mensagem que, em resumo, presume destruição iminente. A atitude de consternação e de decepção posterior de Jonas ao constatar que Nínive não tinha sido destruída bem permite supor que Jonas anunciou juízo e condenação. Nada mais esperava Jonas como resultado da sua pregação. Simplesmente a concretização das suas ameaças. Jonas parece não ter recolhido nenhuma indicação a respeito das intenções de Deus ao se ver vomitado à beira da praia. Também parece nada ter ajudado a ele o fato de Deus o ter enviado uma segunda vez. Jonas parece não ter visto que o perdão em Deus não é uma exceção, mas a regra. Jonas não vira mas não entendera que Deus o estava salvando de si próprio. Porque se Deus fosse como Jonas, Jonas não tinha sido vomitado à praia, nem enviado uma segunda vez. Mas Jonas é profeta e mensageiro de um Deus que se arrepende para salvar sempre de novo. Um Deus que envia mensageiros com mensagem de salvação e não de destruição. Esse Deus é o intérprete da sua mensagem nos corações. E mesmo que o seu mensageiro, como Jonas, esteja confuso quanto à natureza da mensagem que tem para transmitir; mesmo que Jonas tenha apresentado mensagem de salvação como se fosse de destruição, Deus não permite que a sua mensagem volte vazia. E Nínive se converte do seu mau caminho porque Deus efetua a conversão e aceita o coração contrito. Tema: Mensageiros de Deus são escolhidos de Deus Segundo a vontade de Deus Segundo o coração de Deus Para os propósitos de Deus. Paulo P. Weirich São Leopoldo, RS 236 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUARTO DOMINGO APÓS EPIFANIA Deuteronômio 18.15-20 02 de fevereiro de 2003 CONTEXTO No capítulo 18 de Deuteronômio, Deus está preocupado com os líderes espirituais do povo de Deus. A preocupação do SENHOR é com aqueles que vão liderar o povo, tanto com seus direitos como com os perigos que vão enfrentar. A princípio, parece que não tem nada a ver falar sobre herança e direitos dos levitas e, em seguida, falar dos prognosticadores, adivinhos, etc. Deus está preocupado com que os líderes espirituais estejam tranqüilos principalmente quanto a seu sustento físico (18.1-8), pois vão enfrentar batalhas espirituais bem difíceis na terra em que o povo vai viver. Assim, estando bem estabelecidos os direitos dos sacerdotes, eles podem concentrar esforços em combater o mal que certamente enfrentarão na terra prometida (9-14). Após alertar contra os perigos para a fé e mostrar quem são os falsos profetas, Deus mostra quem é O Profeta, aquele que trará a mensagem verdadeira, a mensagem vinda do próprio Deus - o próprio Filho de Deus! Uma bela antecipação da figura de Cristo como Profeta, que traz a Palavra que sempre se cumpre. TEXTO – ÊNFASE NO VERSÍCULO 15 No v. 15, a ênfase é clara: “a Ele ouvirás”. Aqueles que consultam os mortos, adivinham, agouram, fazem feitiçarias, estes falam muito. Estes falarão muito aos ouvidos do povo. Serão vozes muito tentadoras, procurando atrair a atenção dos israelitas para sua mensagem. Entretanto, Deus antecipa já através de Moisés que o verdadeiro Profeta é aquele que Ele envia. Deus não enviará um ser criado, um anjo ou algo de outro planeta. Este profeta será levantado do meio do próprio povo. Será carne e sangue, como diz o texto, “semelhante a mim”, isto é, semelhante a Moisés. Profecia confirmada em Mateus 1 e 2. Quanto à semelhança com Moisés, no ofício profético, Lutero escreve: “...é necessário que este profeta que é como Moisés seja superior a Moisés e ensine coisas maiores...” E diz ainda: “... pelo que não pode 237 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 haver outra palavra além da que já disse a Moisés, a não ser que seja o Evangelho, porque tudo o que corresponde ao ensinamento da Lei já foi comunicado ampla e perfeitamente por Moisés, assim que nada mais pode ser agregado... Portanto, é necessário que Ele seja um mestre (profeta) e vida, graça e justiça, do mesmo modo que Moisés foi mestre do pecado, da ira e da morte...” (LW IX, 176-8). Ele é o Profeta que está em oposição frontal aos “profetas” deste mundo, que dizem possuir poderes e capacidades especiais. Mas estas, somente Cristo traz. E o Evangelho do Dia traz este Profeta exercendo seu poder sobre um espírito imundo. Mostra o Profeta libertando um homem do domínio deste espírito, com o fim de salvá-lo. Enquanto os outros profetas trazem apenas engano, medo, destruição e morte, o Profeta – Cristo – traz libertação, justiça, vida, amor e paz – e, principalmente, perdão e salvação eterna! A Ele, sim, vale a pena ouvir! ASPECTOS HOMILÉTICOS - O Evangelho do Dia demonstra a autoridade e poder do Profeta Jesus, bem como a vida e graça. Ele expulsa o demônio, com vistas à salvação daquele homem. Condena o pecado, salvando o pecador. - O Salmo do Dia, Salmo 1, vem bem como um complemento ao capítulo 18 de Deuteronômio. O ímpio se detém no caminho dos feiticeiros, adivinhadores... enquanto o justo ouve o Grande Profeta. - O período litúrgico, Epifania, é uma lembrança da manifestação deste Profeta anunciado no AT, do cumprimento de mais uma profecia. Quando a profecia se cumpre, ela é divina. - Na “terra prometida” em que vivemos, existem muitos “feiticeiros”, que, com sua “gritaria” e seus “milagres e feitiços” encantam muitas pessoas. E não são poucos os que dão ouvidos a estes profetas, enquanto se fecham à Palavra do Grande Profeta. - O texto possui uma forte carga de Lei, que pode ser bem explorada. A “ponte” evangélica pode ser construída para o Evangelho do dia, onde Jesus mostra que Ele sempre está pronto para nos libertar do diabo e seus “colaboradores”, que buscam incessantemente dominar o homem moderno. Jesus é o Evangelho encarnado, que realmente LIBERTA. “A Ele ouvirás”. TEMA: A ELE OUVIRÁS Sugestão de condução da mensagem O pastor senta-se atrás de uma mesa (diante de cartas e ou revistas) e diz que vai ler o futuro dos presentes. Diz que recebeu poderes de Deus para tanto, e garante que terá resultado (Poderá, ou não, fazer algumas ‘previsões’ absurdas, tipo “amanhã vai dar sol, se não chover”, ou 238 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 “tal time será o campeão, se não perder e se jogar bem e com vontade...”) A partir daí, mostra o interesse que este tipo de proposta desperta no homem moderno (jornais e revistas ajudarão bastante na ilustração. Eventualmente até cenas em vídeo) LEI E O EVANGELHO O Profeta em contraste com os profetas do mundo. O castigo para quem segue falsos profetas. Jesus como aquele que liberta dos falsos profetas e do próprio diabo e condenação eterna. Jesus, que faz com que revistas, jornais – pensamentos humanos – fiquem seriamente em “xeque-mate”. CONCLUSÃO Da mesa, o pastor retira a Bíblia (até então oculta aos presentes) e lê Profecias – que já se cumpriram e que vão se cumprir - mostrando quem realmente é o Profeta que traz vida e salvação. “A ELE OUVIRÁS!” Lucas André Albrecht Campo Bom, RS 239 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUINTO DOMINGO APÓS EPIFANIA Jó 7.1-7 9 de fevereiro de 2003 CONTEXTO (LITERÁRIO E LITÚRGICO) Introduzindo o livro de Jó, utilizamo-nos das observações de Horace D. Hummel: “Poucos iriam discordar do comentário de Lutero, ao dizer que Jó é ‘magnífico e sublime como nenhum outro livro da Escritura.’ Da mesma forma, não haveria muitos que discordariam da opinião que ele é também um dos mais difíceis, um dos mais comentados, mas sobre o qual menos concordância há [entre os estudiosos]. ... Tanto aquele que esquece que a obra faz parte dos escritos de sabedoria [do Antigo Testamento], como aquele que tenta ler o livro fora de seu contexto canônico perde chaves fundamentais para sua compreensão.” (The Word Becoming Flesh, CPH, p. 457,8) Parece-nos que as “chaves” a que Hummel se refere são particularmente importantes na reflexão sobre o texto que temos diante de nós. O texto faz parte da primeira “resposta” de Jó, após Elifaz fazer sua intervenção. Na verdade, mais do que diálogos, as falas de Jó aos três amigos muitas vezes parecem ter vida própria, dirigindo-se mais a Deus (e ao leitor do livro!) do que aos três. No capítulo 7 Jó continua refletindo sobre seu sofrimento. É sempre bom lembrar que, ao contrário do leitor do livro, Jó desconhece o diálogo inicial entre Deus e Satanás (1.6-12), assim como também desconhece o desfecho feliz (42.1-17). Seu lamento, por isso, é bem compreensível! É um retrato claro do ser humano em sua situação miserável, da qual não tem como sair sem que Deus mesmo venha e aja em Sua graça. O contexto litúrgico é significativo. É o 5o Domingo após Epifania - tempo de refletir sobre a graça de Deus manifesta a todos os povos, em Jesus Cristo. As leituras do dia têm a contribuir para o sermão sobre o texto de Jó. O Salmo (147.1-12) é um cântico de louvor a Deus, que celebra seus feitos. Especialmente significativos para o sermão são os versículos 3, 6 e 11. O Evangelho do dia (Mc 1.29-39) mostra muitas pessoas em necessidade, tanto de ordem material como espiritual e aponta para o ministério de Jesus, em que se enfatiza sua ação em favor daquelas pessoas. O mesmo Deus que agia de forma aparentemente contraditória com seu filho Jó e mais 240 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 tarde manifestou-lhe sua bondade, é aquele que em Cristo vem atender as pessoas em suas necessidades, de forma proléptica nas curas (que apontam para a perfeição na nova criação) e de maneira plena na obra da cruz e ressurreição. TEXTO A NTLH menciona “serviço militar” (v. 1), que traduz bem a expressão hebraica, que também lembra extrema fadiga. O paralelo é feito para mostrar o quão dura é a vida humana. “Desengano” (v. 2) refere-se a um desapontamento (“desilusões” - NTLH) próprio do enfermo que mês após mês vê suas esperanças de cura serem frustradas. As dores físicas fazem as noites parecerem intermináveis e os dias passam rápido sem trazerem esperança (vv. 4-6). O v. 7 mostra Jó colocando diante de Deus sua situação; de uma certa forma, apelando à piedade de Deus. No entanto, pode ser exagerado ver aí um exemplo de fé e esperança do crente, em meio às aflições. Por outro lado, não se pode afastar por completo a referência ao fato de que Jó ainda vê em Deus o único a quem pode suplicar. Teologicamente, o texto retrata o ser humano em sofrimento, do qual não tem como se livrar por suas forças. Deus parece estar agindo de uma forma contrária ao que se poderia esperar dele. De fato, Jó vem mostrar uma realidade que a teologia da prosperidade não consegue explicar. O próprio Jó não compreende toda a situação na qual está, e por isso também chega a dizer coisas das quais depois irá se arrepender (40.3-5). No entanto, sob a luz do Novo Testamento, o texto bíblico retrata a realidade, ou seja, que não se pode considerar a vida cristã como uma garantia de tempos de fartura, desde que haja fé e fidelidade a Deus. A teologia da cruz trata de forma honesta a situação da vida humana. O sofrimento é real, assim como o pecado, também na vida do crente. Para o pecador só há uma palavra de esperança, e esta não vem da sua própria fidelidade. Ela está na obra de Jesus, que pelo sofrimento e morte suportou a dor do abandono eterno em lugar de toda a humanidade. Deus se manifesta de uma forma diferente (e até contrária) daquela que naturalmente se esperaria. Ao invés de em poder e glória, Cristo vem se manifestar em fraqueza e dor, e nisto revela o amor e graça de Deus pelo pecador. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS Os clamores de Jó não são muito diferentes daqueles feitos por quem reflete sobre o sofrimento que há no mundo. Temos diante de nós um texto em que a lei está manifesta na vida do homem. Como pregar este texto, especialmente tendo em vista que somos, sobretudo, proclamadores do 241 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 evangelho? É preciso cuidar para não cair no moralismo, do tipo: “Mas Jó era um bom homem e Deus fez tudo se tornar em bem, no final da história!” O fato é que na vida de muitos crentes a cruz pesada segue até o fim da vida (exemplos podem ser vistos no Salmo 73 e no caso dos cristãos perseguidos até a morte). A resposta do evangelho é escatológica, ou seja, está na ação de Deus, que em Cristo coloca as coisas no seu devido lugar (assim, veja-se no Sl 73, os vv. 17, 23,24,28). Cristo veio trazer consolo aos sofredores. No Evangelho do dia isso fica evidente na Sua ação concreta em favor daqueles que lhe eram trazidos. Mas sua missão vai além, tanto geograficamente (como o Evangelho mostra), como também na abrangência - “as nossas dores levou sobre si” (Is 53.4). Não há como pregar sobre o texto do dia, de forma cristã, sem levar em conta o contexto canônico, em que a obra de Cristo é o centro. SUGESTÃO DE TEMA E/OU PROPOSTA HOMILÉTICA SUCINTA Que esperança pode haver para o sofrimento humano, senão em Cristo?! Gerson Luis Linden São Leopoldo, RS 242 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEXTO DOMINGO APÓS EPIFANIA 2 Reis 5.1-14 16 de fevereiro de 2003 LEITURAS DO DIA Como muitas vezes acontece com a série trienal de leituras, também aqui temos uma correspondência direta entre o evangelho do dia e a leitura do Antigo Testamento. O evangelho, Mc 1.40-45, relata a cura de um leproso. Detalhe muito importante é a advertência de Jesus ao homem recém curado: “Olha, não digas nada a ninguém” (v.44). É que Jesus não queria ser reconhecido apenas como milagreiro. Seus atos deveriam apontar para sua obra messiânica. A leitura do Antigo Testamento, 2 Rs 5.1-14, o texto sugerido para a mensagem, também relata a cura de um leproso. Trata-se de Naamã, general dos sírios. Também na sua cura, através do profeta Eliseu, vemos que Deus não enfatiza o espetáculo, mas visa à salvação total da pessoa. No Salmo 32, especialmente no versículo 2, vemos que Deus sempre quer curar as pessoas de todos os seus males, sobretudo os da alma. E em 1 Co 9.24-27, Paulo retrata a vida de gratidão dos curados como uma vida de combate da carne, do velho homem, ao dizer: “Esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão”; e aponta para o lado positivo da vida cristã, do novo homem, com as palavras: “Corro também eu”. CONTEXTO a) Contexto litúrgico. Estamos no 6º Domingo após a Epifania, revelação de Jesus Cristo aos gentios. Assim como a menina escrava revela o Deus verdadeiro a sua senhora, esposa de Naamã, assim Cristo é revelado a todos os gentios. b) Contexto histórico. O reino de Israel está dividido entre norte e sul, por volta de 850-800 a.C.. A Síria é inimiga número um do reino do norte. Eliseu, sucessor de Elias, é profeta em Israel. Na Bíblia de Estudo de Almeida, página 412, temos um resumo de dados importantes da vida de Eliseu, com as respectivas referências bíblicas. 243 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 TEXTO O texto bíblico pode ser dividido em duas partes. 1º) O testemunho da menina escrava (2 Rs 5.1-7). 2º) A cura de Naamã (2 Rs 5.8-14). Vejamos rapidamente alguns detalhes do texto, extraídos do Popular Commentary of the Bible, Old Testament, Vol 1, de Paul Kretzmann, pp 611-612. V. 1: Naamã, general sírio, goza de grande prestígio junto a seu senhor, pois os sírios haviam vencido Israel, matando seu rei Acabe (1 Rs 22.34-35). Naamã era leproso. V. 2: Os sírios haviam feito escravos. Levaram também uma menina que se tornou escrava da esposa de Naamã. V. 3: A menina diz à sua senhora que Eliseu poderia curar Naamã. V. 4: Sabendo disso, Naamã conta o caso a seu senhor. V. 5: Naamã parte, com belos presentes, para encontrar o rei de Israel. V. 6: O rei sírio acha que o rei de Israel é o responsável pelo poder do profeta. V. 7: O rei de Israel rasga suas vestes pensando que os sírios o estavam provocando à guerra. V. 8: Diante disso, Eliseu pede que Naamã venha a ele, para saber que há profeta em Israel. (Note: Deus está por detrás de tudo, querendo a salvação de todos). V. 9: Naamã vem e pára diante da porta de Eliseu, achando a residência muito humilde para entrar. V. 10: Mas Eliseu não se impressiona com isso, mandando que um mensageiro diga a Naamã que este se lave sete vezes (número da totalidade) no rio Jordão. V. 11: Naamã, o grande comandante, não viera em estado de espírito de suplicante. Acha que Eliseu deveria ter feito algo espetacular, vistoso, ali mesmo. Pensa que o cerimonial e ato mágico é importante. V. 12: Naamã cita o rio Abana, que desce do monte Hermom e o rio Farfar, que nasce no antilíbano, como rios que banham Damasco. Diz que tais rios são bem melhores que o Jordão, numa demonstração de que para ele o exterior era o mais importante. Então faz menção de ir embora. V. 13: Mas os seus oficiais, que em respeito o tratam de pai, o convencem a banhar-se no Jordão. V. 14: Ele vai e fica limpo da lepra. Observação: A lepra no Antigo Testamento tem sempre uma conotação espiritual de impureza. Os leprosos são impuros cerimonialmente. É uma impureza cultual ou legal (Lv 13), não necessariamente motivada por atos reprováveis. Estavam impuros para o culto. No Novo Testamento vemos 244 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 como estas pessoas eram segregadas pela sociedade. Ser curado era ficar limpo e capacitado para o culto (veja o evangelho de hoje, Mc 1.40-45). Quem tocasse um leproso era considerado impuro (Lv 5.3). Mesmo assim, Jesus “estendeu a mão e o tocou.” (Mt 8.3). APLICAÇÕES HOMILÉTICAS - Há uma evidente correspondência entre o evangelho de hoje e o texto do Antigo Testamento. A exemplo de outros lugares, aqui também fica muito claro que o Antigo Testamento pode (e deve) ser lido à luz do Novo Testamento. - No evangelho de hoje Jesus não queria ser reconhecido como milagreiro qualquer, tanto é que proíbe a divulgação da cura (Mc 1.44). Seus atos apontam sempre para o fato de ele ser o filho de Deus e Salvador. - A cura do homem tira sua dor, vergonha, motivo de segregação, restaurando-o totalmente, tornando-o limpo para adorar. - A missão de Jesus, antes de entrar na glória, passa pela cruz. Na cruz estão cravadas todas as nossas enfermidades (Is 53). Temos que carregar a nossa cruz. - Naamã exemplifica o homem natural: necessitado, mas orgulhoso. Necessitado física e espiritualmente, mas seu orgulho o impede de reconhecer e adorar o Deus verdadeiro. Adora a criatura em lugar do criador. - Eliseu, profeta de Deus, é apenas servo do Senhor, está a seu serviço. O fim último de Deus sempre é a salvação do homem total. Deus quer salvar Naamã, os sírios, Israel, todos. - A menina escrava, ao testemunhar sobre onde achar socorro, é belo exemplo de fé e testemunho para nós. LEMBRETES HOMILÉTICOS Procure recontar a história bíblica de uma forma viva, usando também o evangelho do dia. Lembre-se de distinguir entre lei e evangelho. Lembre também os três artigos do Credo, enfatizando Deus Pai como criador e, principalmente na mensagem de hoje, mantenedor da vida; Deus Filho como Redentor e Bom Pastor e Deus Espírito Santo como santificador. Lembre, ainda, que o dano físico sempre aponta para o dano maior, o pecado; e que a cura física, por sua vez, aponta para a cura maior, total, a doação da vida eterna. E finalmente lembre que, enquanto não chegamos lá, devemos viver a nova vida, como sugerido na epístola de hoje. Edgar Züge Porto Alegre, RS 245 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SÉTIMO DOMINGO APÓS EPIFANIA Isaías 43.18-25 23 de fevereiro de 2003 CONTEXTO (LITÚRGICO E LITERÁRIO) Iniciamos nossa reflexão pelo contexto litúrgico. Ele é particularmente significativo para este dia. As leituras do Salmo, do Evangelho (principalmente) e do Antigo Testamento abordam, sob diferentes ângulos, o tema do perdão. Estamos na Epifania - é tempo de glorificar a Deus pela sua graciosa manifestação, em Jesus, ao mundo. Neste dia temos a oportunidade de celebrar a obra de Deus, que redime as pessoas através do perdão dos pecados. O Salmo 130, como diz seu título, é Salmo de romagem. Parece ter sido usado quando os peregrinos vinham a Jerusalém para as festas. Seu cântico lembra a necessidade humana (“Das profundezas ...”) e se regozija no perdão (“Contigo está o perdão” ... “É Ele quem redime a Israel de todas as suas iniqüidades”). No Evangelho (Mc 2.1-12), Jesus se manifesta como aquele que vem restaurar a criação, que foi maculada pelo pecado. Jesus o faz através de um milagre, aliás, dois milagres. Um deles é a cura do paralítico. Sem desconsiderar o aspecto da misericórdia de Jesus pelo sofredor, este evento também aponta para a futura restauração plena do homem e da natureza, quando da volta de Cristo. O outro milagre é o perdão, que é anunciado gratuitamente ao sofredor e pecador! As pessoas são levadas a dizer: “Jamais vimos coisa assim.” De fato, o perdão gracioso de Deus é coisa nova - é renovador, restaurador, vivificador. O texto do Antigo Testamento do dia oferece uma abordagem muito rica para o tema do perdão. Por certo, todo o culto deste dia será uma oportunidade de lembrar e celebrar, por leituras, hinos, orações e sermão, o perdão que temos graciosamente em Cristo. O texto em estudo (Is 43.18-25) faz parte da assim chamada segunda parte de Isaías - o “Livro do Consolo” (capítulos 40 a 66). Seu contexto mais próximo (43.1 a 44.5) foi caracterizado como “A reunião e renovação de Israel - evento profético a respeito do Israel da nova aliança” (Concórdia Self-Study Bible, Concórdia Publishing House, p. 1019). O contexto mostra a promessa de Deus de trazer de volta seu povo do exílio babilônico. A linguagem, porém, lembra a criação do mundo e o êxodo, bem como a 246 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 nova criação. Horace Hummel chama a atenção para o fato de que teologicamente o contexto tem como “motivo principal a escatologia do livro ... celebrando a restauração de Sião ao longo de todo o texto. O retorno histórico a Jerusalém após o Edito de Ciro (538 a.C.) não é apenas relatado com colorido escatológico e cosmológico, mas os dois estão totalmente unidos: o evento histórico é um tipo, ‘sacramento’, antecipação e realização proléptica da ‘restauração de todas as coisas’.” (The Word Becoming Flesh, CPH, p. 215) TEXTO (E APLICAÇÕES HOMILÉTICAS) As palavras do v. 18 e seguintes estão ligadas ao v. 16 - “Assim diz o Senhor”. Elas iniciam por um chamamento a olhar para a frente. O que passou é digno de lembrança (o próprio profeta o faz), mas não se deve ficar na história passada - vêm vindo coisas ainda mais especiais pela frente. Deus tem preparado maravilhas para seu povo. A primeira referência é a volta do exílio (vv. 19b-21). No entanto, à luz do Novo Testamento, o texto é, como Hummel observa (ver acima), tipológico, a respeito dos acontecimentos em que Deus age graciosamente para formar e redimir um povo que se estende por todo o mundo, a sua Igreja. Digno de nota nos vv. 19, 20 é a referência à criação. Note-se que este é um tema freqüente na Escritura, ao se tratar da redenção do povo de Deus. O mesmo Deus Criador é aquele que redime a humanidade, cria novos céus e nova terra (Is 65.17ss), obra que está vinculada, em Isaías e no todo da Escritura, à obra do Espírito Santo (44.3). Deus “pinta” o relato a respeito da salvação com cores vivas, nada que se refira meramente a um mundo de idéias. A redenção é concreta - a estrebaria, a cruz, o túmulo aberto e vazio são fatos que apontam para a obra concreta de Jesus em favor da humanidade. Assim também o perdão - tema deste dia - não é coisa no campo das idéias, mas é real e concretamente distribuído também no culto do dia - na palavra da absolvição, na mensagem, no corpo e sangue, com o pão e o vinho. Os vv. 22-24 são pregação de lei. Retratam a realidade do povo de Deus durante o exílio na Babilônia. Duas realidades são mostradas, com peso diferente. Invertendo a ordem, a segunda mencionada é a interrupção dos sacrifícios. Sobre esta questão Deus não levanta juízo contra seu povo “não te dei trabalho com ofertas de manjares” (“Eu não os obriguei a me apresentarem ofertas de cereais” - NTLH). A primeira menção traz consigo palavra de juízo - “não me tens invocado, ó Jacó, mas de mim te cansaste, ó Israel” - é uma referência à pecaminosidade do povo. Cedo esqueceram de Deus. Um retrato bem fiel do que somos, em nossa natureza! A História da Igreja cristã mostra o quanto isto é realidade para o povo de Deus em todas as épocas. “Me deste trabalho ... me cansaste ...”. O curioso destas palavras é que parecem ser, no contexto, palavras de lei. No 247 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 entanto, tais palavras foram literalmente cumpridas no Servo Sofredor (Is 53.4,5). Em Cristo, o trabalho que lhe demos com nosso pecado não nos é devolvido na forma de juízo, mas de remissão dos pecados. - esta é a grande novidade da mensagem do evangelho. É a surpresa da graça! Ela é manifesta em um contexto de pecado do povo. É exatamente em uma situação como esta que Deus se revela gracioso e a salvação é apresentada como presente imerecido. O v. 25 é uma explícita celebração do sola gratia - o perdão dos pecados é ação própria de Deus (“Eu, eu mesmo”), tem em Deus mesmo o motivo (“por amor de mim”) e é completo e sério (“apago as tuas transgressões ... dos teus pecados não me lembro”). No entanto, isto não acontece sem o derramamento de sangue. Não há graça barata - seu preço é a morte do Filho de Deus! SUGESTÃO HOMILÉTICA O pregador poderá observar um aspecto curioso do texto para o sermão - ele inicia e conclui com uma menção a não lembrar do que passou. (Talvez esteja aí uma dica de ilustração para Introdução e Conclusão - as coisas que lembramos, mas gostaríamos - ou deveríamos - esquecer.) Sem dúvida, as duas situações são diferentes. No entanto, há este ponto de contato, que pode ser utilizado. Deus “não olha para trás”, isto é, para os nossos pecados. Ele faz questão de esquecê-los. Por isso, somos chamados a olhar para a frente, para as promessas graciosas de Deus. Sim, lembramos os feitos de Deus no passado - eles estão na base de nossa fé. E fundamentam o perdão, que é uma realidade presente, pela fé em Cristo. Este perdão mostrará toda o seu alcance, toda a sua bênção, por ocasião do juízo final. Aquele evento, caracterizado normalmente como um ajuste de contas, uma lembrança dos pecados passados, será, para os que estão em Cristo, o evento em que os pecados não serão lembrados! Viver o perdão de Deus é algo tão grandioso e digno de ser celebrado pela Igreja sempre. Hoje é uma ocasião especial para isto. É tempo de Epifania - Deus vem se manifestar graciosamente na palavra anunciada, no batismo e na santa ceia. Mostra-nos sua face de amor e convida-nos a viver a nossa vida com genuína alegria. Somos peregrinos (como os que cantavam o Salmo do dia), em meio a muitas situações conflitantes, de perigo e de tentação. No entanto, temos esta promessa de Deus, que nos sustenta e dá ânimo para a jornada - nossos pecados estão perdoados. Isso é algo para lembrar sempre! Temos paz com Deus. Pode haver bênção maior? Gerson Luis Linden São Leopoldo, RS 248 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 ÚLTIMO DOMINGO APÓS EPIFANIA 2 Reis 2.1-12 2 de março de 2003 CONTEXTO Assim como temos o livro de Atos no Novo Testamento, os livros de Samuel e Reis nos mostram a história do povo de Deus. Por um lado, temos uma história com muitos fracassos, pecados e infidelidades a Deus; por outro, vemos como Deus agiu em meio a este povo com graça e juízo. Uma das maneiras de Deus agir em meio ao povo foi indiretamente, por meio do ministério dos profetas que colocou em meio ao povo. O texto em destaque mostra o final do ministério de Elias. Elias foi profeta no Reino do Norte, durante os reinados de Acabe e Acazias, entre os anos de 874 a 852 a.C. O relato de seu ministério tem início em 1 Rs 17 estendo-se até a leitura do texto em destaque. Sugiro uma leitura atenta do texto em que se destaca o ministério de Elias sob a perspectiva de lei e evangelho para uma compreensão mais acurada do texto para a reflexão deste culto. TEXTO E NOTAÇÕES HOMILÉTICAS Vv. 1,2: “redemoinho” literalmente “uma tempestade” ou “tormenta”, própria para caracterizar a revelação de Deus (Jó 38.1; Ez 1.4; Zc 9.4). Gilgal e Betel são as cidades dos profetas, nas quais Elias fundou os “seminários” de formação de profetas. O v.2 nos sugere os planos de Deus para os dois profetas. Deus está falando através dos dois. A intenção de Elias e o acompanhamento de Eliseu são os planos de Deus. V. 3: Os personagens, os alunos dos profetas, também sabiam do que estava por acontecer. Precisamos ter em mente a teofania que está crescendo, até culminar no final da história. Deus está no controle da situação e prepara o ambiente para o seu ponto culminante. Vv. 4-7: O número de testemunhas aumenta mais. Agora em Jericó os discípulos (alunos) também testemunham do que irá acontecer. V.8: O milagre mostra quem está por trás de Elias. Assim como Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho (Êx 14.16,21), aqui também temos o testemunho de que os homens de Deus sabem o que estão fazendo. O 249 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 “manto” usado representa a presença do Espírito de Deus, que depois irá repousar sobre Eliseu (v.15). Vv. 9-10: O importante aqui é destacar o pedido de Eliseu: a continuidade do ministério de Elias. À luz de Dt 21.17, o pedido pela porção dobrada do espírito é típica de quem se vê como o herdeiro espiritual de alguém, como é o caso de Eliseu em relação a Elias. Vv. 11-12: A teofania, ou revelação de Deus, está presente na forma como as coisas acontecem neste momento crucial. Por um lado, temos Deus revelando sua glória no contexto de “carros e cavaleiros de Israel” e “em meio ao redemoinho” – Deus está no controle da situação. Por outro, temos Eliseu assumindo a atitude de humildade diante das circunstâncias da revelação. Aproveitando o contexto de uma das outras leituras para o dia de hoje, Mc 9.2-9, interessante observar o contraste entre Elias e Moisés. Enquanto Moisés perece por causa do pecado (Dt 32.49s), Elias foi recebido nos céus sem passar pela morte (1 Co 15.51,52; 1 Ts 4.15s). Dois aspectos importantes precisam ser levados em conta quando se prepara a homilia com base neste texto e contexto. Tipologicamente, os incidentes que Deus proporciona a Moisés e Elias nos remetem à revelação que ocorreu em Cristo. Já escatologicamente, nós somos envolvidos, com a perspectiva de glória eterna. Mas, não podemos esquecer que estes dois aspectos têm seu centro na pessoa de Cristo (conforme Mc), porque passado e futuro estão ligados pelo presente (já). TEMA HOMILÉTICO Quando cantamos, “caminhando alegres, vamos para os céus”, estamos reproduzindo o pensamento do texto em destaque. Sugiro o uso do hino aplicado ao texto caracterizando o “já” e o “ainda não”, a graça de Deus necessária enquanto caminhamos e a certeza da glória dos céus como evento a ser realidade no futuro de Deus. Clóvis Jair Prunzel São Leopoldo, RS 250 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 PRIMEIRO DOMINGO NA QUARESMA Gênesis 22.1-18 9 de março de 2003 O CONTEXTO Abraão já havia sido provado em sua confiança em Deus: sair de sua terra e aguardar a promessa do nascimento de um filho. Também já havia utilizado sua amizade com Deus para interceder por Sodoma e Gomorra. Poderíamos esperar que Deus já estivesse satisfeito com as provas de fé e comunhão que Abraão já demonstrara. Mas eis que surge um fato novo, completamente fora e acima dos padrões de testes que Deus já fizera com alguém de seu povo. O TEXTO V.1: “Eis-me aqui”. Abraão, mais uma vez, pronto para responder. Outros exemplos de prontidão: Samuel (1 Sm 3.9); Isaías (Is 6.8); Maria (Lc 1.38). V.2: “teu único filho, a quem amas”. Deus sempre especifica sua vontade. Não há dúvidas quanto ao seu querer. “Toma teu filho” poderia gerar dúvidas: Isaque ou Ismael? Mesmo sendo um “herói da fé”, Abraão poderia querer interpretar à sua maneira. Mas Deus é específico: “teu único filho, a quem amas”. Sem sombra de dúvida, deveria ser Isaque. V.3: “de madrugada”. Por que esperar? Por que dar chance ao velho homem de querer convencer-me ao desestímulo? “Sirva esse exemplo para ensinar-nos que na obediência imediata está a prova da maior sabedoria” (Henry Law. O Evangelho em Gênesis. São Paulo: Editora Leitor Cristão, 1969, p.154). Se Deus espera algo de mim, não há justificativa que convença a deixar para depois. V.4: “ao terceiro dia”. Se Abraão está decidido e resoluto, parece que Deus não apenas quer provar a fé, mas também a persistência. Não poderia ter Deus escolhido um lugar mais perto? São muito estranhos alguns métodos de Deus. Três dias é um tempo demasiado longo de espera para alguém que precisa fazer algo muito dolorido. Em outras oportunidades, Deus também propiciou a queda da resistência, mas seus servos permaneceram firmes. José teve a chance de ouro para cometer adultério (Gn 39) e também, mais tarde, de se vingar de seus irmãos 251 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 (Gn 52). Por duas vezes (1 Sm 24 e 26), Davi tem a chance de matar Saul. Inclusive com a “ajuda” de Deus: “Tomou, pois Davi, a lança e a bilha da água, da cabeceira de Saul, e foram-se; ninguém o viu, nem o soube, nem se despertou, pois todos dormiam, porquanto da parte do Senhor lhes havia caído profundo sono” (l Sm 26.12). Abraão também teve tempo de desistir. Mas, acima de seu filho, está Deus. “Voltase para o filho, e seu pé vacila. Volta-se para Deus, e os seus passos se firmam, na resolução inabalável”(H.Law). V.5: “eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós”; v.8: “Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto”. Simplesmente “mentiras consoladoras” ou uma certeza acima da razão humana? “Porque considerou que Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde, figuradamente, o recobrou” (Hb 11.19) A confiança em Deus parece loucura e desvario aos descrentes: “Nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios” (l Co 1.23). V.10: “e, estendendo a mão, tomou o cutelo para imolar o filho.” Deus é mesmo incompreensível em algumas de suas atitudes. Permite que seu servo chegue ao limite. Jó também teve que experimentar o seu limite, bem como Jeremias. V.13: “tendo Abarão erguido os olhos... viu um carneiro... e o ofereceu em holocausto em lugar de seu filho.” Este é verdadeiro clímax evangélico desta passagem. O sacrifício que antecipa a morte de Jesus em lugar, em substituição, em cumprimento a uma ordem de Deus. ÊNFASE PARA A MENSAGEM Mesmo tendo à disposição tantos tópicos para uma reflexão, um detalhe merece ser destacado. Um ponto que a narrativa bíblica deixa subentendido e uma leitura apressada omite facilmente: a reação de Isaque quando seu pai revelou quem seria o “cordeiro para o holocausto”. O v.9 diz o seguinte: “Chegaram ao lugar que Deus havia designado; ali edificou Abraão um altar, sobre ele dispôs a lenha, amarrou Isaque, seu filho, e o deitou no altar, em cima da lenha.” Como Isaque reagiu a tudo isso? Tudo parece tão simples e automático. O ponto a ser enfatizado é a educação dada a Isaque. Abraão é considerado herói na fé por sua fidelidade a Deus também no quesito “educação cristã no lar”. Entramos na quaresma e a juventude de hoje pouco sabe do objetivo, da preparação, do significado. Precisamos voltar ao Antigo Testamento, quando Deus ordenava erguer um memorial e dizia: “Quando algum dia seus filhos perguntarem...” Isaque, com certeza, não reagiu contrariamente, porque em seu coração havia uma temor e um amor a Deus transmitido por seu pai durante longas horas de meditação, oração e diálogo sobre vontade de Deus. 252 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 CONSIDERAÇÕES HOMILÉTICAS 1. Objetivo “Como flechas na mão do guerreiro, assim os filhos da mocidade” (Sl 127.4); “Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te e ao levantar-te” (Dt 6.6-7). Deus nos deu filhos para que os devolvamos a Deus, como fez Ana, ou melhor, para que os preparemos para Deus. Nossos lares precisam ser transformados em oficinas, em escolas, em locais de cursos intensivos de preparação. Para quê? O evangelho do primeiro domingo da quaresma sempre se reporta à tentação de Jesus. Nossos filhos estão expostos às tentações dia após dia. Especialmente, os adolescentes e jovens. Deus quer que os preparemos para os momentos de decisão, para as horas de provação. Eles precisam, desde pequenos, como Isaque, conhecer a vontade de Deus, “compreender seus caminhos incompreensíveis”, acatar e obedecer o seu querer, “renovar a sua mente para saber qual seja a santa vontade de Deus” (Rm 12). 2. Moléstia Mas como preparar o jovem, se o pai ainda não está preparado. Por isso, em Dt, Deus ordena que as palavras estejam primeiramente no “seu coração” (dos pais). Preguiça, comodismo, “falta de tempo” levam os pais a não crescerem na fé e não darem bons exemplos para os filhos. Com isso, a transmissão da mensagem, da boa nova, para os filhos já está falha antes de iniciar. E o que dizer da transmissão da mensagem, da educação propriamente dita? Cada vez mais, o mundo está conseguindo tirar nossos filhos da mesa de refeições, dos momentos de estudo e devoção familiar, das reuniões dos jovens, dos cultos. Como estamos lutando contra isso? Afinal, estamos lutando? Nossos filhos ouvem de nós a vontade de Deus? Deus nos colocou, como pais, para servirmos de representantes dele junto a nossos filhos? Nossos filhos conhecem a vontade de Deus de nossos lábios? De nosso exemplo? Eles sabem o que é “quaresma”? Conhecem o significado de “quarta-feira de cinzas”? Sabem por que os paramentos da igreja têm uma cor diferente (lilás/roxa)? Eles sabem o motivo de seu conselho para que não participassem das festas de carnaval? Ou você nem sabe onde seus filhos passam algumas noites? Muito menos com quem? 3. Evangelho O primeiro passo para uma reconstrução e re-direcionamento é o pedido de perdão. Pedir perdão a Deus por termos falhado em nossa missão de pais. Pedir perdão aos filhos por não termos mostrado de forma eficiente a 253 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 vontade de Deus. Este segundo pedido de perdão talvez seja o mais difícil porque, em geral, é o menos feito. Nossos filhos precisam saber que não somos perfeitos e todo-poderosos. Eles necessitam saber que seus pais também falham e procuram seguir a vontade de Deus em suas vidas. Feito este restabelecimento de comunicações, estamos prontos para aceitar a ajuda de Deus. “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Co 12.10) é uma verdade na vida dos pais porque nestes momentos é que Deus tem condições de colocar sua vontade e sua força em nós. Suas promessas de presença, ajuda e bênçãos foram constantes na vida de Abraão. Ele se firmou nestas promessas e, ao passar as informações para o filho Isaque, confiou de que, no momento certo, os efeitos iriam aparecer. O evangelho deste domingo, que fala da tentação de Jesus, traz o consolo que o autor da carta aos hebreus expressa da seguinte forma: “Pois naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). PROPOSTA HOMILÉTICA TEMA: Filhos: presentes que Deus nos deu para... I – Conservar (sustento, cuidados pessoais) II – Aperfeiçoar (educar, canalizar dons, orientar) III – Preparar para devolvê-los a Deus (educação espiritual) Sérgio R. Flor Ponta Grossa, PR 254 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEGUNDO DOMINGO NA QUARESMA Gênesis 28.10-17 16 de março de 2003 CONTEXTO A perícope relata a visão de uma escada que atingia o céu. É um evento único, extraordinário e decisivo na história do povo de Deus do Antigo Testamento (AT). A personagem central deste acontecimento espetacular é o patriarca Jacó. Olhando um pouco para trás, Jacó vê Deus chamando e abençoando seu avô Abraão (12. 1-8); vê a destruição de Sodoma e Gomorra (19. 23-29); vê seu pai Isaque nascer na velhice de Abraão e Sara, como promessa especial (18. 10-14; 21. 1-5); vê seu irmão-gêmeo, Esaú, o amor distorcido de sua mãe Rebeca, a compra da progenitura e da bênção por um prato de lentilha, o ódio e as ameaças de morte do irmão (25. 25-33; 27. 33-43). Que passado de erros humanos e de bênçãos de Deus! Olhando um pouco para frente, Jacó trabalha 14 anos para casar com Lia e Raquel; Deus mudou seu nome de Jacó para Israel (32. 28) e ele torna-se o patriarca dos “filhos de Israel”, pai das “12 tribos de Israel” e vive o encontro de reconciliação com o irmão Esaú (33. 1-11). É com Jacó que Deus fecha o trio para se identificar, no AT e NT (Novo Testamento), como o Deus único, verdadeiro e salvador, o “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. Dentro desta significativa, colorida e emocionante moldura histórica, encontra-se a fascinante e rica visão de Jacó sobre a escada que toca os céus, repleta de detalhes marcantes, de promessas messiânicas e lições de conforto e esperança. TEXTO Alguns destaques, visando o anúncio da mensagem sobre a fidelidade, a presença e as promessas de Deus. Jacó – Pela importância do patriarca na história das 12 tribos de Israel e do povo de Deus de todos os tempos, é aconselhável sublinhar alguns fatos da rica biografia de Jacó. Partir – Jacó saiu de Berseba e foi para Harã, na Mesopotâmia (próxi255 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 mo dos rios Tigre e Eufrates, no Iraque de hoje, berço da civilização e das cidades mais antigas do mundo), por duas razões principais: fugir da ira e das ameaças de morte do irmão-gêmeo Esaú; encontrar uma esposa dentre os filhos de Deus. Dormir – Anoiteceu e Jacó está cansado. Improvisa uma cama à beira da estrada, no deserto. Uma pedra – que depois serve como monumento da “casa de Deus” (v.22) – serve como travesseiro. Está longe de tudo e de todos. É fugitivo e peregrino. Está com medo e angústia. Sente-se só e abandonado. Quer dormir e descansar. Sonhar - Repentinamente, Deus transforma tudo ao redor do solitário Jacó. Ao longo da história, o “Deus de Abraão, Isaque e Jacó” se comunicou com seus filhos através de sonhos, visões e manifestações especiais (Hb 1.1; Sl 16.7). Através deste sonho-visão, Deus se revelou e falou com Jacó para ensinar, orientar e transmitir suas grandes promessas a Jacó. É um processo de ensino e aprendizagem. Há lições de Deus nos sonhos de Deus. O quadro da visão é fantástico: uma escada que liga terra e céus; anjos de Deus – “que são espíritos ministradores enviados para serviço, a favor dos que hão de herdar a salvação” – Hb 1.14 – caminham na escadaria; no alto está o Senhor Deus. E, agora, o mais importante: esse Deus fala e faz promessas a Jacó. Bênçãos – Deus garante quatro grandes verdades ao patriarca Jacó: 1) Estar com ele e perto dele em todos os momentos de sua vida; 2) promete guardá-lo, protegê-lo e defendê-lo “por onde quer que fores”; 3) promete não desampará-lo ou desviar-se dele (v.15), (Conferir a promessa idêntica em 1Cr 28.20); 4) e a extraordinária promessa messiânica, nas palavras muitas vezes repetidas na Escritura: “Em ti e na tua descendência serão abençoadas todas as famílias da terra” (cf 12.3; 13.16; 26.4; At 3.25; Gl 3.14-16) – promessa do Salvador Jesus. Deus promete ao patriarca Jacó sua presença contínua com seus cuidados, sua proteção, seu amparo, seu estímulo – e o Salvador que viria “salvar e abençoar todas as famílias da terra”. Acordar – Então Jacó despertou do sono. Perplexo, atônito, maravilhado e muito feliz, “caiu em si” (Lc 15.17), tomou consciência da realidade, reconheceu a presença de Deus, aprendeu a lição do sonho-visão, então exclama: - O Senhor está neste lugar! - É a casa de Deus! - É a porta dos céus! É preciso dormir, descansar e sonhar - sonhar grande na presença de Deus. Aprender a lição e saber que até “durante a noite, em sonho, o Senhor me ensina” (Sl 16.7). É preciso acordar do sono, cair em si, tomar consciência da situação, reconhecer o ensino de Deus e então falar ao mun256 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 do sobre a presença, a promessa e a salvação de Deus. Porta – No v.14, Deus fala a Jacó, ainda dormindo, sobre a salvação com a vinda do Messias. Aqui no v.17, Jacó, já acordado, fala sobre a salvação no Messias, “a porta dos céus” (cf. Jo 10.7: “Eu sou a porta”). DISPOSIÇÃO O propósito ou objetivo ou finalidade ou lição desta perícope de Gn 28. 10-17, para o período da Quaresma, está claro: mostrar a fidelidade de Deus, a presença de Deus, os cuidados de Deus e a promessa da salvação em Cristo. Os fiéis têm no “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”, o Deus que salva aqui e abre “a porta dos céus”. Deus “falou muitas vezes e de muitas maneiras” (Hb 1.1), também através de sinais, sonhos e visões. É preciso ver e ouvir a voz de Deus – e aprender as lições. “Até durante a noite o Senhor nos ensina”. (Sl 16). Deus quer comunicar-se conosco e ter um relacionamento harmonioso, orientador, salvador – de Pai para filho. Por isso, o texto nos ajuda na sugestão do tema e partes: “EU ESTOU CONTIGO” (Vv. 13, 15, 16) Para quê? Com que finalidade, intenção ou propósito? I – Para te abençoar (v. 14) II – Para te guardar (v. 15) III – Para te salvar (v. 17 e 14) - De onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor (Sl 121) - Ainda lá me haverá de guiar a tua mão e a tua destra me sustentará (Sl 139.10) - Perto está o Senhor de todos os que o invocam (Sl 145. 18) - Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século (Mt 28.20) - Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida (Ap 2.10). Leopoldo Heimann São Leopoldo, RS 257 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 TERCEIRO DOMINGO NA QUARESMA Êxodo 20.1-17 23 de março de 2003 NOTAS INTRODUTÓRIAS O livro de Hebreus descreve o acontecimento da entrega dos Mandamentos por Deus como um fato assustador (Hb 12.19-21). E o susto não foi apenas pelo volume da voz de Deus (Êx 19.19; Sl 29.3-5), mas principalmente pelas exigências da lei e a maldição resultante para quem não a cumprir (Dt 11.26-28). Havia uma tradição de que Deus teria oferecido sua lei no Sinai a todas as nações na terra em sua respectiva língua. Os moabitas queriam saber a lei, mas quando Deus chegou ao Sexto Mandamento eles disseram: “Obrigado, nossa origem foi de adultério”. Aos descendentes de Esaú foi feita a oferta e Deus teve que parar no Quinto Mandamento. Só Israel teria tido coragem de ouvir todos os Mandamentos.1 CONTEXTO Mas será que os Dez Mandamentos2 são tão complicados assim? Depende da maneira como os enxergamos. Não que isso vá mudar o rigor das exigências, pois eles continuarão a denunciar os dez pecados capitais do ser humano, mas com um pressuposto mais soft, eles poderão ter um outro impacto na hora da nossa pregação. Observando o contexto histórico, vamos perceber que ele é mais evangélico do que se pensa. Deus acaba de eleger seu povo como povo especial e santo (Êx 19.5-6). Suas palavras iniciais apontam para sua obra de libertação da escravidão egípcia (Êx 20.1-2). O começo nem exigência é, mas afirmação da bondade de Deus. E se essas palavras tivessem sido originalmente pronunciadas no Novo Testamento? “Eu sou o Senhor teu Deus, que 1 2 Martin H. Scharlemann, Proclaiming the Parables, Concordia Publishing House, p. 60. Segundo Horace Hummel, “Dez Mandamentos” é um rótulo humano, pois o título mais adequado deveria ser “As Dez Palavras” ou “Decálogo” (Horace Hummel, How to Preach the Old Testament, Concordia Pulpit, 1986, p.6). 258 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 enviei meu Filho Unigênito para vos salvar, não terás outros deuses diante de mim”. A questão parece ser mais funcional do que tratar o Decálogo meramente como lei que só acusa. A MULTIFUNCIONALIDADE DA LEI Quando se fala em Mandamentos, quase sempre se alude aos três controversos usos da lei. Estou convencido de que eles são antes multifuncionais, à medida que o impacto que eles causam pode diferenciar de pessoa para pessoa. Tudo depende do “espírito” do pecador.3 Isto não significa meramente subjetivizar a questão, mas considerar que tipo de pessoa os está ouvindo e absorvendo. A lei de Deus vai funcionar apenas como imperativo negativo naqueles que não estão em relação saudável com o Deus da Graça. A famosa frase “A Lei sempre acusa” é dirigida aos pecadores distantes de Deus. Quando o pecador está numa relação positiva com Deus, a função primordial da lei também pode ser positiva.4 Só os afastados de Deus é que perceberão a lei unicamente como cruéis e abomináveis exigências de Deus. Acredito que para o velho homem a lei sempre acusará e condenará, mas não para o novo homem em Cristo. Nesse caso a lei vai até o coração devidamente filtrada e a maldição retida no sangue de Jesus Cristo (Gl 3.10-13). Para o homem sem Cristo a lei é só proibição e condenação, para o homem com Cristo a lei também é atividade do Deus Redentor. Além disso, há um outro aspecto que julgo relevante na abordagem funcional do Decálogo. Em Cristo, o pecador poderá visualizar a bondosa e positiva preocupação de Deus também para o seu próprio bem-estar. Se Deus diz na primeira tábua que ele quer o homem todo confiando Nele, orando, invocando e dedicando-lhe tempo, é porque ele não quer que seus filhos vivam perdidos assim como ovelhas que não têm pastor. Se na segunda tábua ele pede para respeitar pais e superiores, não matar, não adulterar, não roubar, não testemunhar falsamente, não cobiçar nem o que tem vida nem coisas materiais, é porque ele quer que nossa autoridade seja respeitada, nossa vida preservada, nossa família mantida, nossos bens conservados, nossa fama e nome prestigiados e tudo que é nosso não esteja exposto aos Até certo ponto esse conceito concorda com o de David P. Scaer, que escreve isto num artigo sobre Santificação (David P. Scaer, Sanctification in Lutheran Theology, CTQ, April-July, 1985 4 Para Arand, a solução está no conceito de que de fato “a lei sempre acusa”, mas não somente acusa, ela pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo, acusar e agradar ao pecador ( Charles P. Arand, Law and Gospel in the Church and World. Concordia Seminary Publications, Symposium Papers, numbers 5 and 6, 1996, p.29). 3 259 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 olhos alheios. Em outras palavras, o que é negativo sem Cristo, tornam-se também positivas prescrições para viver com Cristo. A motivação à obediência não é a lei, mas Cristo. O LUGAR DOS DEZ MANDAMENTOS NO CATECISMO DE LUTERO5 Um dos motivos6 que causou o aparecimento do Catecismo Menor de Lutero foi o deplorável estado espiritual dos luteranos logo após o rompimento com a Igreja Católica. As ofertas eram escassas, não havia oração, não tinha estudo bíblico e nem à Santa Ceia se ia. Lutero e Melanchton ficaram decepcionados, pois o povo da igreja preferia festas a participar nos cultos e atividades da igreja. Na visitação feita às paróquias, Lutero e Melanchton descobriram uma paróquia composta de 110 famílias, mas que muitas vezes não tinha mais de três pessoas presentes aos cultos. Esse estado de ignorância não estava presente só nos leigos. Também há informações que um pastor em Elsnig mal e mal sabia orar o Pai Nosso e recitar o Credo. O evangelho havia sido restaurado, mas as pessoas se tornaram mestres em abusar da liberdade. Qualquer semelhança com algumas de nossas congregações hoje não é mera coincidência. Lutero então lançou o Catecismo e começou com os Dez Mandamentos. Ele deu um novo arranjo às doutrinas fundamentais no catecismo.7 Ele começou com O Decálogo, pois sua função primária é diagnosticar a doença e dizer quem sou eu. Seu papel é fazer as pessoas reconhecerem sua enfermidade, o que se pode fazer e o que não se pode fazer, o que se deve fazer e o que não se deve fazer. Mas logo em seguida vem o remédio no Credo, o qual mostra a Graça medicinal que torna alguém justo diante de Deus.8 Na verdade, o plano de Lutero era despertar seu povo para o fato de que a vida cristã sob a graça de Deus não nos isenta do Decálogo, mas nos remete de volta a ele, para cumprir seus conselhos na vida cristã. Lutero vê o Decálogo no horizonte da criação, pois seu papel é instruir o uso correto de tudo o que somos e temos na criação de Deus.9 SUGESTÃO PARA PREGAR O DECÁLOGO Acredito que essa é uma oportunidade mais para conversar do que para discursar. Penso que é fundamental zipar os Dez Mandamentos numa conCharles P. Arand, That I May Be His Own, An Overview of Luther’s Catechisms. Concordia Academic Press, CPH, 2000, pp.72-73 6 O outro foi a controvérsia Antinomista com João Agrícola. 7 Em Agostinho, por exemplo, a ordem era o Credo, O Pai Nosso e então os Dez Mandamentos (Arand, p. 124). 8 Arand, p. 130 9 Arand, p. 137 5 260 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 versa só e relembrá-los com quem já os memorizou, ensiná-los para quem os está ouvindo a primeira vez e então perceber o impacto que eles exercem na vida das pessoas que estão sentadas nos bancos da igreja. Ao invés do pregador determinar o impacto, eu sugiro apenas guiar a conversa para que os ouvintes assimilem os Mandamentos de acordo com seu estado de “espírito”. Para umas pode ser apenas condenação, mas outras poderão ir correndo ao corredor da Graça divina revelada em Cristo, lá receber graça sobre graça, ou seja, graça que não tem limites nem interrupções (Jo 1.1617) e fazer as pazes com Deus e assim estar apto a olhar sem susto para os Mandamentos de Deus. Deus vai velar por sua Palavra. Anselmo Ernesto Graff Barra do Garças, MT 261 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUARTO DOMINGO NA QUARESMA Números 21.4-9 30 de março de 2003 Uma sombra de descontentamento surgiu entre os israelitas com respeito a Deus e seu servo Moisés (Nm 21.5). Os israelitas tinham viajado já havia quase 40 anos depois de sua saída do Egito. Apesar de todo o cuidado que Deus lhes dispensara, o povo ficou impaciente. Eles reclamaram contra Deus e contra Moisés: Por que tu nos tiraste do Egito para morrer neste deserto? Não há pão! Não há água! E nós detestamos este alimento que nos dás (maná). Conseqüentemente, a maravilhosa proteção de Deus dos perigos do deserto foi retirada. A necessidade de proteção que os israelitas tinham de Deus só foi percebida depois que várias pessoas se viram picadas pelas serpentes venenosas que Deus enviara e estavam morrendo. Após este episódio os israelitas clamaram a Moisés: Nós pecamos, porque falamos contra o Senhor e contra você; ore ao Senhor para que Ele afaste as serpentes de nós. E Moisés orou em favor do povo (Nm 21.7). Os israelitas mereciam morrer por causa de sua rebeldia, mas, quando confessaram seu pecado, o Senhor disse a Moisés: Faça uma serpente e coloque num tronco; qualquer que for mordido e olhar para ela viverá. Assim, Moisés fez uma serpente de bronze e colocou num tronco. Então quando alguém era mordido por uma serpente olhava para a serpente de bronze e ficava curado. E nós ficamos nos perguntado: Por que uma serpente? Por que pendurar num tronco? Por que pedir para as pessoas olharem para a serpente no tronco para viverem? O que será que Deus tinha em mente? A leitura do Evangelho para este domingo (Jo 3.14-21) dá a maior e mais importante indicação para a compreensão desta ordem estranha. A mensagem do amor de Deus está lindamente presente neste episódio. A leitura do NT fala deste incidente em conexão com o madeiro onde Cristo foi erguido. Jesus mesmo diz a Nicodemos que a serpente no tronco era uma figura ou tipo dEle e de sua morte em favor da humanidade perdida. Na conversa particular que teve com Nicodemos, Jesus fez referência a este acontecimento do AT e disse: Se alguém não nascer de novo da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus. Aquele que é nascido da carne é carne e quem é nascido do Espírito é espírito... e, assim como Moisés ergueu a serpente no 262 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 deserto, assim o Filho do Homem será erguido. Aquele que nele crer não perecerá, mas terá a vida eterna (Jo 3.1-5, 14,15). Esta serpente de bronze representava Aquele que haveria de vir para salvar a humanidade. O fato da serpente de bronze ter sido feita do mesmo tipo de material usado para o altar de bronze onde eram oferecidos os sacrifícios nos lembra o local simbólico do julgamento de Deus contra o pecado. Os israelitas eram de difícil trato. Eles dificultaram a liderança de Moisés, a quem Deus indicou como seu profeta e juiz. Eles dificultaram as coisas também para o próprio Deus que os tinha libertado da escravidão do Egito. De algum modo, a partir da descendência de Abraão, Deus iria cumprir a sua parte na aliança que fizera com os patriarcas, estabelecê-los na terra prometida e, assim, trazer ao mundo o Salvador de todas as nações. Os israelitas, porém, se encheram de uma atitude negativa, desconfiada e ingrata, que os levou a esquecer por completo as maravilhosas bênçãos que Deus havia lhes concedido. Mas o pior de tudo é que se esqueceram completamente do seu objetivo: a terra prometida e a promessa de serem, naquele lugar, uma bênção para todas as nações através da vinda do Salvador. Não podemos negar que os israelitas tinham atitude, mas uma atitude má. Nós, provavelmente, sabemos como isto funciona. Assim como se pode olhar para o mundo com óculos multicoloridos, pode-se olhá-lo de modo acinzentado. Mas tal posição ingrata e pessimista é pecaminosa. Paulo escreveu que tinha aprendido a viver contente em toda e qualquer situação e isto só podia acontecer através da confiança em Cristo. A fé no Cristo prometido, porém, não podia ser encontrada entre o povo. A falta de fé causou a sua reclamação e os separou das bênçãos que Deus amorosamente queria lhes conceder. Não pensemos que estamos livres de tal atitude, mesmo não estando peregrinando pelo deserto árido. A mesma descrença pode se apresentar em nossa vida. Não que não tenhamos o que precisamos, mas porque sempre queremos “mais”. Mas, apesar disto tudo, Deus ainda manteve sua graça em relação aos israelitas. Ele queria amá-los, perdoá-los e curá-los. Em vez de “riscá-los do caderno” e, simplesmente, começar tudo de novo com outro povo, Deus criou uma situação para chamá-los ao arrependimento, de tal modo que pudesse perdoá-los e renová-los: Então o Senhor enviou serpentes venenosas... Uma rebelião tão séria exigia providências sérias e foi isto que Deus fez. O fato de se sentirem abandonados por Deus e verem a morte tão de perto fez os israelitas cair em arrependimento. Chegaram para Moisés e disseram: Pecamos... Então Moisés orou ao Senhor em favor do povo. Muitas vezes Deus também precisa nos disciplinar. Ele precisa nos fazer passar por maus bocados para nos ensinar a deixar de confiar em nós e aprender a confiar mais nEle. Mas quando Deus nos disciplina, o seu obje263 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 tivo é sempre nos conduzir para mais perto dEle através de contrição e arrependimento. Ele deseja nos lembrar que dependemos dEle para tudo. E isto nos leva ao maior objetivo de Deus, que nos regozijemos na revelação de sua misericórdia e perdão que nos concede para a vida eterna. A solução de Deus tinha como objetivo despertar fé nos seus filhos recalcitrantes. E que solução estranha e “louca” foi aquela! Isto nos lembra as palavras do apóstolo Paulo: A loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria dos homens. Para serem curados, os israelitas tinham que confiar plenamente naquele de quem tinham desconfiado tão veementemente. De um modo totalmente igual Deus trata conosco. Ele nos diz que através da simples água do batismo, unida com sua Palavra e promessa, somos purificados de nossos pecados e nos tornamos Seus filhos. Para recebermos suas bênçãos precisamos também esquecer nossas atitudes céticas e arrogantes e simplesmente confiar na Sua Palavra e promessa e, quando assim o fazemos, somos curados. Igualmente, Deus nos diz que, comendo pão e bebendo vinho, consagrados pela Sua Palavra, recebemos, de modo invisível e sobrenatural, Seu próprio corpo e sangue para perdão dos pecados. A nossa razão não nos explica como tais coisas são possíveis. Através destas “loucuras” somos levados a confiar, “infantilmente”, unicamente, nas Suas palavras e obtemos a cura do mal que assedia a nossa alma, o pecado. Assim como com a serpente, o poder da cura reside nas palavras de promessa. Sem a ordem e promessa de Deus, olhar para a serpente de bronze seria idolatria. Mas não vemos nenhuma hesitação por parte de Moisés no fato de ter de fazer uma semelhança de algo que rastejava pela terra, porque da promessa de Deus é que viria o livramento. Que símbolo estranho, mas maravilhoso, Deus escolheu para ensinar a verdade de seus futuros planos através de Seu Filho. A humanidade foi envenenada pelo pecado, que foi introduzido pela velha serpente, chamada Diabo (Ap 12.9), e a mordida dolorida do pecado atormenta suas vítimas até a morte espiritual. A salvação está ao alcance de todos que olham para Jesus, Aquele que foi erguido por nossos pecados. Pois, se quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho, muito mais agora, sendo reconciliados, seremos salvos por Sua vida (Rm 5.10). Comparemos a doença dos israelitas e a nossa. O pecado fere como uma serpente. Compare o uso do remédio dos israelitas ao nosso. Eles olharam e viveram, e nós, se cremos, somos salvos. É pela fé que olhamos para Jesus (Hb 12.2). O Senhor nos livra de uma maneira que a natureza humana nunca imaginaria. Então, que ninguém feche seus olhos para Cristo, ou lhe vire o rosto. Luiz Alberto S. dos Santos Porto Alegre, RS 264 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUINTO DOMINGO NA QUARESMA Jeremias 31.31-34 06 de maio de 2003 O profeta Jeremias foi um profeta muito sofrido. No seu primeiro período aconselhou o jovem rei Josias, que promoveu uma grande reforma. Mas este rei morreu cedo, aos 39 anos, na batalha contra o rei do Egito. Os reis que se seguiram foram maus. O povo voltou-se para a idolatria. Isto trouxe a ira de Deus sobre Israel, que desabou no ano 586, com a destruição do templo e o cativeiro babilônico. Diante da catástrofe, em seu grande amor e sua misericórdia para com o povo de Israel e a humanidade, Deus anunciou ao povo de Israel a nova aliança. No Monte Sinai, Deus havia feito uma aliança com o povo de Israel, chamada aqui de a “antiga aliança”. A lei de Deus gravada em duas tábuas de pedra, guardadas na arca da aliança, no templo, no Santo dos Santos. Esta aliança requeria o diário sacrifício de animais, “pois sem derramamento de sangue não havia remissão de pecados” (Hb 9.22). Esses sacrifícios, no entanto, eram figura do grande sacrifício que Jesus, “o Cordeiro de Deus” (Jo 1.29), traria. Mas o povo de Israel, em vez de olhar para esses sacrifícios como o anúncio do amor de Deus, olhou mais os sacrifícios como sua ação meritória diante de Deus. Eles não compreenderam a profundidade desta aliança. Resvalavam sempre de novo a olharem mais para suas ações humanas nesta aliança do que para a ação de Deus. Deus teve que dizer-lhes: “Misericórdia quero e não holocaustos”! (Mt 9.13). Além disso, o povo constantemente se desviava para toda a sorte de pecados e a idolatria. Agora Deus estava prestes a derramar seu severo juízo sobre Israel. Mas para que não desesperassem no cativeiro sob o peso do juízo de Deus, Deus lhes promete uma nova aliança. Algo bem novo, para que, quando reconhecerem seus erros e o mal que fizeram em abandonar a Deus, quando estiverem no cativeiro em terra estranha, vendo o templo destruído, sem poderem trazer seus sacrifícios, não desesperassem, Deus lhes concedeu esta boa notícia: ainda há esperança. Deus não os abandonou. Ele fará nova aliança. Tudo será novo. Nova aliança! Será que Deus mudou? Não! Deus não muda. Ele é o mesmo, ontem, hoje e sempre. Ele está por cumprir sua promessa. O Filho 265 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 de Deus, o Cordeiro de Deus, virá ao mundo para reconciliar a humanidade definitivamente com Deus, por seu sacrifício na cruz. Então verão o cumprimento de todas as leis e o cumprimento das profecias. Então terão uma visão mais plena do grande amor de Deus, anunciado a Adão e Eva, aos patriarcas, e pelos profetas. Jubilarão como apóstolo o descreve: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus!” (Rm 11.33). “E assim habite Cristo nos vossos corações, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual a largura, e o cumprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo que excede todo o entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus” (Ef 3.17-19). “Na mente lhes imprimirei as minhas leis... (v.33,34). Esta nova aliança trará uma nova força ao coração. Jesus disse a seus discípulos: “Recebereis o Espírito Santo” (Jo 20.22; At 2.17-23). O Espírito será dado em sua plenitude. Este conhecimento da graça de Deus em Cristo será uma forte luz que iluminará os corações. O sentido não é de que um irmão não ajudará ao outro na compreensão, ou de que não precisaremos mais de estudos bíblicos, devoções e cultos. Não. Mas no sentido de reconhecimento da graça de Cristo. Reconhecer a Jesus como Salvador e Senhor, como o confessam as crianças no Credo Apostólico. Lutero afirma: “Graças a Deus, hoje toda a criança de sete anos sabe o que é a igreja: as ovelhas que ouvem a voz do seu Pastor.” “Todos me conhecerão, grandes e pequenos”. Quando o pai abraçou o filho pródigo e o beijou (Lc 15.20), selando o completo perdão, o filho reconheceu o profundo amor do Pai. Este amor renova tudo. “E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas (2 Co 5.13). Confere: Hb 8.8-12; 10.16,17, que retrata o texto. INTRODUÇÃO A aliança, da qual fala o profeta Jeremias, se cumpriu em Cristo. É uma aliança mui sublime, diferente das demais. Aliança é um contrato entre duas partes, na qual os dois têm responsabilidades. Aqui temos uma aliança de paz, na qual Deus nos dá tudo, sem requerer nada de nós. Nenhum condicional, nenhum mas ou se. Uma vez chamado a esta aliança queremos lhe pertencer e viver voluntariamente submissos a ele. 1 – Aliança Antiga – Feita no Monte Sinai – Ordenanças e sacrifícios que eram sombra. – Erros: Israel se apegou ao externo. “Misericórdia quero e não sacrifícios” (Mt 9.13). – Desviaram-se muitas vezes, Deus os castigou para que se arrependessem. Mas ele nunca os abandonou. 2 - Aliança Nova – Jesus cumpriu a lei. Ele reconciliou a humanidade com Deus. – O Espírito Santo nos chama, ilumina e congrega. – Vemos em plenitude. – Perigo de seguirmos a Israel, tornando-nos indiferentes. – Muitos distanciados. – Quando voltamos arrependidos, ele nos aceita. 266 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 CONCLUSÃO Queremos viver esta aliança, pois nela temos o consolo do perdão, a paz com Deus e a esperança da vida eterna. E, enquanto aqui na terra, queremos louvar a Deus e servi-lo em nosso próximo, dizendo com o apóstolo Paulo: “O meu viver é Cristo” (Fp 1.21). Horst Kuchenbecker Porto Alegre, RS 267 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 DOMINGO DE RAMOS Zacarias 9.9-10 13 de abril de 2003 CONTEXTO Esta tradicional leitura do Antigo Testamento para o Domingo de Ramos surpreende por ser tão breve e, ao mesmo tempo, tão densa quanto ao conteúdo. São apenas dois versículos, muito ricos, que são ainda mais marcantes quando lidos e analisados em seu contexto. E este contexto, Zc 9.1-11.17, fala do futuro do reino de Deus e anuncia sua universalidade. NOTAS TEXTUAIS V. 9: “Alegra-te muito, ó filha de Sião” - “Filha de Sião” é uma personificação de Jerusalém e de seus habitantes. A NTLH traduz por “povo de Sião”. A segunda linha, “filha de Jerusalém”, explica que Sião é sinônimo de Jerusalém. V. 9: “te vem o teu Rei” – Depois da conclamação à alegria, o motivo para tanto: “te vem o teu Rei”. É o rei de Jerusalém. É o filho de Davi prometido desde 2 Sm 7.12-14. V. 9: “justo e salvador (ou: vitorioso)” - O Rei que vem será “justo” (qyDIc, tsadiq;). Será também [v’n (noshá’). Esta é uma forma nifal do verbo [v;y (iasha’, “salvar”). Um nifal é, em geral, entendido como voz passiva. Assim sendo, a tradução deveria ser algo como “salvo” ou “sendo salvo”. Theodore Laetsch (The Minor Prophets, p. 454-455) argumenta que esta é a única tradução possível. Agora, como isto se aplica ao Messias? Laetsch explica que Jesus Cristo, segundo sua natureza humana, “foi salvo das profundezas do inferno, sendo coroado de honra e glória”. Ele foi salvo no sentido de que Deus o “ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela” (At 2.24). O Messias deve este reino não à sua força ou à força do seu exército, mas ao poder de Deus, que o “salva”. Diante disto, faz mais sentido a tradução por “vitorioso”, que aparece na NTLH. V. 9: “humilde, montado em jumento” - Isto é o que mais se destaca neste Rei. Ele é “humilde” (ynI[‘, ani) ou “manso” (prau>j, prays), como traduz a Septuaginta. A maioria dos soberanos e líderes deste mundo não prima pela humildade, mansidão e bondade. Pessoas como Nabucodonosor, 268 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Herodes, Stalin, Sadam Hussein são conhecidas pela sua arrogância e prepotência. O Rei prometido no texto de Zc 9 será bondoso, manso e humilde. O fato de vir montado em jumento aponta para sua humildade. O jumento contrasta com os cavalos mencionados no v. 10, que são cavalos de guerra (“cavalaria”, segundo a NTLH). Ao mesmo tempo, no entanto, vir montado em jumento também é uma forma de dizer que ele é rei. Ao ser ungido rei, Salomão montou “a mula que era do rei Davi” (1 Rs 1.38). Aqui, em Zc 9.9, se fundem, por assim dizer, a imagem do Messias real da linhagem de Davi (2 Sm 7) e o Servo sofredor anunciado em Is 53. V. 10: “anunciará paz às nações” – Ele é o Príncipe da paz (ver Is 2.4; 9.5-7; 11.1-10; Jo 14.27; Jo 20.19,20,26; Ef 2.14-18). Sua única arma é a Palavra de Deus, que anuncia paz a toda a humanidade. A paz messiânica é implantada no mundo pelo cumprimento da “grande comissão” (Mt 28.18-20). V. 10: “seu domínio se estenderá de mar a mar” - O reino de Deus é um reino universal, muito maior do que o reino de Davi e Salomão (Sl 22.2728; Sl 72.8-11; Is 45.22; 52.10). APLICAÇÃO O Novo Testamento mostra que a profecia de Zc 9.9-10 se cumpriu na entrada de Jesus em Jerusalém (Mt 21.4-5; Jo 12.14-16). Jesus se aproxima de Jerusalém, sem exército e montado num jumento, o animal messiânico da paz, para manifestar-se como o rei de Jerusalém. Existe, aqui, uma concentração ou cristalização da humildade e mansidão que caracterizaram todo o seu ministério: na decisão de viver de toda palavra que procede da boca de Deus (Mt 4.4); na bem-aventurança sobre os pobres e humildes (Mt 5.3,5); em sua mansidão e humildade de coração (Mt 11.29); em sua recusa em deixar que seus seguidores lutassem por ele ou em apelar para legiões de anjos (Mt 26.51-53; Jo 18.36); na confiança inabalável de que seu Pai faria de seus inimigos o escabelo de seus pés e o colocaria à direita de seu trono celeste (Mt 22.41-45; 26.64). Assim, ele criou e deu uma paz que o mundo não pode dar. (Martin H. Franzmann, Concordia Self-Study Commentary, p. 653). Na Semana Santa, a atenção dos cristãos está voltada para o sofrimento, a crucificação e morte do Deus-homem Jesus Cristo. Há uma ênfase natural na humanidade e humildade do Senhor. O texto de Zc 9 ajuda a lembrar que Jesus Cristo não deixou de ser rei. Mas é um rei humilde que, com sua morte e ressurreição, trouxe a paz que o mundo não pode dar e que é anunciada de mar a mar, até às extremidades da terra. Vilson Scholz São Leopoldo, RS 269 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO Isaías 53.4-12 18 de abril de 2003 Esta é a tradicional leitura do AT na Sexta-feira da Paixão. Um texto citado e aludido muitas vezes no NT, do qual já se disse que “parece ter sido escrito à sombra da cruz”. É, com razão, conhecido como “o evangelho no AT”. É o quarto dos “cânticos do Servo”. Causa estranheza a edição da perícope, que começa no v.4. Por certo, procurou-se abreviar uma leitura que, na íntegra (52.13-53.12), fica bastante longa. Fica a sugestão de, se possível, ler o texto todo, mesmo que na pregação se dê destaque à parte selecionada. O presente estudo leva em conta o cântico como um todo. TEXTO A estrutura deste cântico do Servo é feita de cinco estrofes, com três versículos cada: a) a futura exaltação do Servo (52.13-15); b) o homem de dores (53.1-3); c) seu sofrimento é vicário, ou seja, ele sofre pelos outros (53.4-6); d) a morte vergonhosa (53.7-9); e) reabilitação e recompensa (53.10-12). O texto também pode ser dividido em duas partes: a) o que se diz do sofrimento (53.2-9) e da restauração do Servo (53.10-11a); b) o veredicto de Deus (52.13-15 e 53.11b-12). Percebe-se nitidamente que o sofrimento do Servo vem emoldurado pelo anúncio de sua exaltação. O Servo vai per crucem ad lucem (“pela cruz em direção à luz”), mas a ênfase recai sobre a exaltação. (O contraponto disto, nos Evangelhos, é a moldura de Transfiguração e Páscoa ao redor do sofrimento do Filho do Homem.). Além disso, o sofrimento é apresentado no pretérito (“ele tomou sobre si”, v.4), mas a moldura, que dá o tom, aponta para o futuro (“justificará a muitos”, v.11). Pode-se analisar este texto em termos de relacionamentos entre os personagens, que são quatro: eu (o Senhor), ele (o servo), nós (o profeta, que fala pelo povo), eles (muitas nações, reis, os poderosos, muitos). Existem três tipos de relacionamento: a) o relacionamento “eu” (Senhor) – “ele”; b) o relacionamento “nós” – “ele”; c) o relacionamento “eles” – “ele”. a) O relacionamento “eu” (Senhor) — “ele”: O personagem principal é 270 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 apresentado como “meu Servo” (v.11). O Servo não tem nome. Basta saber que ele é servo. Sua verdadeira natureza é pertencer a alguém outro, a saber, ao Senhor. Ele foi considerado (de forma equivocada) ferido de Deus (v.4). O Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de todos nós (6b; cf. v.10). A iniciativa é de Deus. Seu sofrimento foi tencionado por Deus. Não se trata apenas de algo que é aceito depois do evento. Este relacionamento tem seu ponto alto quando o “eu” (o Senhor) lhe dá muitos como a sua parte (v.12). Deus é a ponte que leva do sofrimento à exaltação. b) O relacionamento “nós” — “ele”: Quem somos “nós”? Tudo indica que se trata de Israel e/ou do profeta. A rigor, é o profeta falando em nome de todos. De hostilidade e desprezo (v.3), os “nós” passam a consideração e confissão. c) O relacionamento “eles” – “ele”: Além de “eu” e de “nós”, também “eles” se relacionam com o Servo. Quem são “eles”? São muitas nações e reis” (52.15), os poderosos (12), os muitos (v.12). Este “muitos” aparece três vezes em 53.11,12 (mais duas vezes em 52.14,15). Tem sentido inclusivo (muitos em oposição a um), não exclusivo (muitos em oposição a poucos). Os “muitos” são o grande grupo, a multidão, todos. (cf. palavras da instituição). De não-envolvimento passa-se a envolvimento; do não-reconhecimento ao apreço. O “ele” está no centro dos relacionamentos. Ele é a ponte, não havendo conexão entre “eu” - “eles” ou “nós” - “eles”. Ele, o Servo, age ou sofre ação. Não fala. É profeta, sacerdote e rei, mas acima de tudo sacerdote. Ele dá a sua alma como oferta pelo pecado (v.10), derrama a sua alma na morte (v.12). Ele é ao mesmo tempo o sacerdote (“intercede pelos transgressores”, v.12) e vítima sacrificial (“a sua alma como oferta pelo pecado”, v.10). APLICAÇÃO A narrativa do texto corresponde, em termos gerais, à seqüência do Credo: sofreu, morreu, foi sepultado, ressuscitou. No entanto, o pregador que proclama este texto à luz de seu cumprimento precisa lembrar que profecia não é história escrita antecipadamente. Por exemplo, “ver a posteridade” e “prolongar os seus dias” (v.10) apontam para a ressurreição, sem falar dela em termos bem inequívocos. Aliás, a “recompensa” do Servo é apresentada em terminologia típica do AT: ver a posteridade (v.10), prolongar os dias (v.10), repartir o despojo (v.12). O que não tem precedente, sendo totalmente singular no AT, é o anúncio de que alguém vai dar sua alma como oferta pelo pecado. De resto, no AT, animais são sacrificados como oferta pelo pecado. O Servo é único e, 271 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 num certo sentido, Is 53 é a única passagem do AT que ajuda a entender o sacrifício de Cristo. O Servo é anônimo, isto é, no âmbito da profecia sua identidade é um mistério. (O NT revela sua identidade!) Agora, o mesmo não se aplica à sua missão. Aqui não há nenhum mistério. Trata-se de missão salvadora, que consiste em sofrer. O sofrimento não é apenas conseqüência de sua missão, mas é a missão em si. Ele sofre de forma voluntária (v.10 e v.12), não merecida (“nunca fez injustiça”, v.9), em obediência ao Senhor (vv.6,10). Sua morte é vicária, constituindo-se na “feliz troca” de que fala Lutero: o Servo que merece bênção é amaldiçoado, e os pecadores que merecem a maldição de Deus recebem a bênção do Servo. Esse caráter substitutivo aparece mais de 10 vezes, especialmente nos vv. 4-6,8,10-12: nossas enfermidades (v.4), nossas dores (v.4), traspassado pelas nossas transgressões (v.5), etc. O pregador cristão por certo vai expor o texto profético à luz de seu cumprimento. Segue uma lista de referências que indicam o cumprimento no NT: v.5 - Rm 4.25; 1 Pe 2.24-25; v.6 - 2 Co 5.21; v.7- Mc 14.65; Jo 1.29; v.9 - 1 Pe 2.22; 1 Jo 3.5; v.10b - Mt 20.28; Gl 1.4; 1 Jo 2.2; v.12 - Mc 15.28; Lc 22.37; 23.34. Vilson Scholz São Leopoldo, RS 272 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 DOMINGO DE PÁSCOA Isaias 25.6-9 20 de abril de 2003 CONTEXTO O texto está inserido no bloco de Isaías geralmente chamado de “primeiro volume de juízo e promessas gerais”, que compreende os versículos de 24.1 até 27.13. O bloco possui quatro sermões: a) O juízo universal de Deus contra o pecado, que também é universal (24.1-23); b) Louvor a Deus como libertador, vitorioso e consolador (25.1-12); c) Cântico de alegria e consolação de Judá (26.1-26); d) Punição aos opressores e a preservação do povo de Deus (27.1-13). Mas, especificamente, o texto está inserido no “cântico de louvor pela misericórdia divina”, que compreende os versículos 1 a 12 do capítulo 25. TEXTO V. 6: “neste monte” – O monte é o de Sião, situado em Jerusalém (veja Isaías 2.2-4). É neste monte que o Senhor “mora”. V. 6: “banquete” – A figura é utilizada na Bíblia para se indicar refeição que celebra um evento importante. No caso do texto, o tipo de banquete é considerado messiânico, com um tom escatológico (banquete celestial). Observe que o banquete é servido “a todos os povos”. V. 7: “coberta” – Literalmente, em hebraico, esta “coberta” é o véu de luto para cobrir o rosto. Simbolicamente, pode significar qualquer coisa que impeça alguém a enxergar adequadamente uma outra realidade, inclusive espiritual. Em 2 Coríntios 3.16 é dito que, quando alguém se converte ao Senhor, “o véu lhe é retirado”. Também é preciso lembrar quando Jesus, ao executar sua obra redentora, o véu do santuário foi rasgado (cf. Mateus 27.51). V. 8 – Este versículo é o central da perícope. Aqui, especialmente, está situada a conexão com as demais leituras do Domingo de Páscoa, cujo tema é a vitória sobre a morte. Aqui está antecipado o que Paulo disse em 1 Coríntios 15.26. A narrativa do Evangelho do dia – a ressurreição de Jesus Cristo - narra esta vitória. 273 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 PROPOSTA HOMILÉTICA Sendo este o Domingo de Páscoa, o assunto está colocado: a ressurreição de Jesus é a vitória definitiva sobre a morte. A questão é: como localizar este assunto em Isaías e fazer a ponte até a ressurreição, até o evangelho – sem que isto soe artificial e, até, arbitrário? Antes de verificarmos uma possibilidade, é necessário lembrar que o texto de Isaías trabalha em dois níveis, o histórico e o espiritual. As mensagens messiânica e escatológica têm como base a destruição de Moabe e a libertação e o consolo operados por Deus. A sugestão é que a mensagem se fundamente na expressão “tragará a morte para sempre” (v. 8). De acordo com a epístola (2 Coríntios 15.26), ela tem seu cumprimento na ressurreição de Jesus. As imagens “morte” e “vida” são conhecidas, mas não perdem sua atualidade. Todavia, sugiro que a mensagem não fique apenas no plano salvífico, mas que também aborde situações de “morte” no dia-a-dia (casamento, família, sociedade, política, economia) e mostre que os caminhos de vida são possíveis através da ação de cada crente que foi tocado pela ressurreição de Jesus. Uma abordagem evangélica criativa seria um estudo da situação indicada pelo termo “opróbrio” (vergonha). Aquele (Jesus) que se tornou opróbrio em seu sofrimento vicário (cf. Isaías 53.1-12) é quem acabou sendo quem pode tirar o opróbrio dos seres humanos (v. 8). Também convém incluir o banquete escatológico, pois é o resultado final da vitória sobre a morte. Dieter Joel Jagnow Porto Alegre, RS 274 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEGUNDO DOMINGO DE PÁSCOA Atos 3.13-15,17-26 27 de abril de 2003 CONTEXTO Com exceção de algumas festas maiores, como Ascensão e Pentecostes, e algumas festas menores, como a conversão de Paulo (25 de janeiro) e o dia de Estêvão (26 de dezembro), entre outras, o único momento em que o livro de Atos dos Apóstolos tem vez na Série Trienal é no período dos sete domingos de Páscoa. Figura aí como primeira leitura, em lugar da leitura do Antigo Testamento. Pode parecer uma perda, mas, como se verá mais adiante neste auxílio homilético, o Antigo Testamento não foi de todo esquecido. O texto de Atos 3 faz parte do discurso de Pedro no Templo, depois da cura de um coxo. Ao final do sermão, como se lê em At 4.3, o pregador e seu colega (João) são presos. O v. 16, que faz esta conexão histórica, é omitido, e disto resulta uma perícope mais “universal”. A leitura começa de chofre com “O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó ... glorificou a seu Servo Jesus”. Sugere-se, ao menos na leitura, providenciar um texto-ponte à guisa de introdução: “Depois da cura de um paralítico no Templo, Pedro se dirigiu ao povo, dizendo: ...” TEXTO 1. O texto se destaca por referências diretas e alusões ao AT. (Neste sentido, a falta de uma “leitura do AT” neste domingo não vai ser tão sentida quanto poderia ser.) O v. 13 é um eco ou quase citação de Êx 3.6,15. A referência ao Servo Jesus (vv.13 e 26) remete a Is 53. No v. 18, Pedro anuncia que o sofrimento do Cristo cumpriu o que Deus anunciara por boca de todos os profetas. Os vv. 22-23 são citação de Dt 18.15,18-19. No final (v.25), Pedro lembra que seus ouvintes são “filhos dos profetas e da aliança” e, na seqüência, cita Gn 22.18. 2. O texto tem muito a dizer de Jesus Cristo. Ele é o Servo do Deus de Abraão, Isaque e Jacó (vv. 13 e 26); o Santo e Justo que foi negado perante Pilatos (v.14); o Autor da vida (v.15), morto pelos israelitas (v.12) e irmãos de Pedro (v.17), a quem Deus ressuscitou dentre os mortos (v.15); o Cristo (= Messias) de Deus (v.18), que sofreu e voltará 275 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 para a restauração de todas as coisas (v.21). 3. O texto anuncia com clareza a morte e ressurreição de Jesus, com ênfase na última. Deus “glorificou a seu Servo Jesus” (v.13), “ressuscitou dentre os mortos” o Autor da vida (v.15), ressuscitou o seu Servo e “enviou-o primeiramente a vós outros para vos abençoar” (v.26). 4. O sermão de Pedro aponta o pecado (vv.13,14). É claro, reconhece que os israelitas agiram por ignorância (v.17) e vê o propósito de Deus por trás dos eventos da Sexta-feira santa (v.18). Mas nem por isso afirma que está tudo OK. Ao contrário, há um claro apelo ao arrependimento (v.19), seguido de algumas das implicações disto: cancelamento de pecados (v.19), tempos de refrigério (v.20), bênção (“para vos abençoar”, v.26). A palavra final é outro convite ao arrependimento: “cada um se aparte de suas perversidades” (v.26). 5. O evangelho aparece numa versão modificada da “feliz troca”, da qual falava Lutero. É uma “feliz troca” em dose dupla: a) O homicida é solto e o Justo é morto: “negastes o Santo e Justo e pedistes que vos concedessem um homicida” (v.14); b) Escolheram o homicida e Deus lhes devolveu o Autor da vida: “matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos” (v.15). 6. O grande destaque do texto é o v. 15. Duas expressões merecem um pequeno comentário. A primeira é a “magnífica antítese” de que fala J. A. Bengel: “matastes o Autor da vida”. Cristo é o Autor da vida (Jo 1, Cl 1, Hb 1). Agora, como é possível matar o Autor da vida? A explicação luterana é aquela da comunicação dos atributos na pessoa de Cristo. Pela união pessoal das duas naturezas em Cristo, “coisas humanas são atribuídas à pessoa toda de Cristo segundo a natureza humana” (Sumário da Doutrina Cristã, 2 ed., p. 75-76 – Gênero Idiomático). Coisas peculiares à natureza humana – por exemplo, morrer – são verdadeira e realmente atribuídas à pessoa toda de Cristo. A segunda expressão é: Deus o ressuscitou “dentre os mortos”. Esta expressão “dentre os mortos”, que ocorre 44 vezes no NT, é uma enfática declaração de que Cristo realmente morreu e uma maneira bem plástica de descrever sua ressurreição: Deus o levantou do meio dos mortos. Ele ressuscitou da morte, sim; mas o NT gosta de dizer que ele ressuscitou “dentre os mortos”. Morte é abstrato; mortos, concreto. APLICAÇÃO Por mais breve que seja, o sermão de Pedro é modelar. Pedro desvia a atenção dos apóstolos (v.12) para aquele que os comissionou, a saber, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó (v.13). Pedro não faz nenhum manifesto em nome do Messias rejeitado, muito menos anuncia um plano de oposição ao judaísmo. Ao contrário, a exemplo do próprio Senhor (ver o 276 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 paralelo com João 20.21, o evangelho do dia: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”), os apóstolos vão em busca das ovelhas perdidas da casa de Israel ali onde elas estão. Para tanto, fala a linguagem bíblica que o povo conhecia, como foi indicado acima (2.1). Na peroração (v.25-26), Pedro se dirige a eles como “filhos dos profetas e da aliança”, isto é, os herdeiros da promessa feita pelos profetas e da bênção ligada à aliança. A eles o Servo de Deus foi enviado em primeiro lugar, para os abençoar. Mas, acima de tudo, o sermão de Pedro é modelar no anúncio de lei e evangelho. Mostra o pecado e anuncia o perdão (ver o paralelo com João 20.23: “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados”). O v. 15, o anúncio da ressurreição de Cristo, é o centro e clímax da mensagem. O centro da mensagem não é o Pentecostes ou o poder do Espírito Santo, nem a cura ou o poder de curar, mas a Páscoa e a ressurreição de Cristo. Vilson Scholz São Lepoldo, RS 277 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 TERCEIRO DOMINGO DE PÁSCOA Atos 4.8-12 04 de maio de 2003 CONTEXTO Este texto precisa ser analisado dentro do seu contexto, caso contrário é impossível entendê-lo. Seu contexto imediato tem seu começo no capítulo 3, versículo 1. Sugiro, pois, que em primeiro lugar se leia atentamente todo este contexto, ou seja, os capítulos 3 e 4. TEXTO O trecho é um discurso. Surgiu a partir da cura (obra diaconal). Pedro, cheio do Espírito Santo, desmascara o sistema religioso que descartou a Cristo, pedra angular. Importa que Cristo seja nosso mediador para que tenhamos vida. Algumas coisas merecem destaque especial neste texto: a) O que levou Pedro a proferir esta mensagem (o contexto dos capítulos 3 e 4); b) A quem Pedro está proferindo esta mensagem (diante das autoridades e líderes do povo: o Sinédrio); c) A coragem de Pedro. É preciso lembrar que há poucos meses atrás, este mesmo Pedro nega Jesus a uma simples empregada do palácio real, e agora “rasga” o verbo, como o homem mais corajoso do mundo diante das maiores autoridades, as mesmas que condenaram a Cristo e que poderiam também condenar Pedro. No entanto, Pedro não demonstra medo nenhum, mesmo após a proibição de continuar falando a respeito de Cristo. No final ele é solto. d) O centro da mensagem de Pedro. Pedro está sendo interrogado sobre como é que eles realizaram a cura daquele que tinha nascido coxo. E Pedro “desvia” (aproveitando a oportunidade) seu discurso para Cristo Jesus. Cita o texto que encontramos no Salmo 118, versículo 22: “A pedra que os construtores rejeitaram veio a ser a mais importante”. E ainda faz uma aplicação, afirmando que “a salvação só pode ser conseguida através dele. É por meio do nome dele e de ninguém mais 278 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 no mundo que podemos ser salvos”. E ainda acrescenta que “Deus tem colocado este nome ao alcance de todos”. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS A situação em que Pedro e João se encontram é parecida com um depoimento numa CPI, onde reina o clima de julgamento e suspeitas. Pedro não havia planejado estar lá diante das autoridades político-religiosas. Pelo contrário, tinha saído de casa a fim de orar no Templo. Talvez nem imaginava que iria conhecer o famoso Sinédrio de perto. Aquele mesmo tribunal com que Jesus se defrontara dois meses antes. A oportunidade de falar em nome do Cristo ressuscitado, aquele espaço de comunicação, não foi previamente pensado. Também não foi comprado, nem requisitado pelos discípulos. Eles foram trazidos à força para explicar uma boa ação: um serviço prestado a um paralítico. Só que por trás se cumpria o propósito do Alto. A cura do coxo que vivia às portas do templo em Jerusalém foi o estopim dos fatos e o ponto de partida da fala de Pedro, que agora nos interessa. Ao reconstruir a cena, temos de lembrar que aquele momento fazia parte da história, refletia conflitos, disputas pelo poder, e especialmente que ainda repercutiam os últimos acontecimentos envolvendo a condenação e morte do Nazareno Jesus, e o recente “boato” de que ele havia ressuscitado. Se este fosse confirmado, aquelas autoridades perderiam sua credibilidade, pois teriam incorrido num erro lamentável. Em meio a esta ameaça, com o receio de perder o domínio sobre o povo, é que aquela elite prende e chama os dois discípulos para depor. A primeira pergunta colocada à mesa, anotada pelo escrivão, é: “Com que poder vocês estão fazendo isso? Quem está por trás?” Estas palavras evidenciam o medo e como eles se julgavam os únicos que podiam ensinar, dizer como se faz o bem, orientar e guiar o povo. Pedro estava cheio do Espírito Santo. E não diz que Pedro ficou cheio só naquele instante. Podemos deduzir que ele estava abastecido do Espírito, com o “tanque cheio”, desde o Domingo de Pentecostes, tanto assim que pôde operar o milagre na porta do Templo. Pedro estava absorvido por Deus. A sua convicção no Cristo Ressuscitado lhe invadira a alma, transformara-o num homem de coragem. E ali, diante do mais temido tribunal judaico, ele coloca os “pingos nos ‘is’.” Isso vale para nossos projetos pessoais, nossas construções! Até que ponto montamos esquemas de vida e rejeitamos o amor, a misericórdia de Cristo a nós revelada com o propósito de repassar a outros? Ampliando um pouco, chegamos às instituições a que pertencemos. Sobre que objetivos planejamos, trabalhamos e nos organizamos com estatutos e regimentos? Será que nossos esquemas, projetos, arranjos institucionais tam279 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 bém não acabam tendo, por vezes, um fim em si e buscam apenas autoreproduzir um ideal terreno em detrimento da graça oferecida aos pecadores? O mundo precisa perceber e ouvir que, em Cristo, estamos comprometidos com a vida, com o amor e a justiça e que sempre há tempo para o recomeço bem fundamentado. Tomando a sério esta viva esperança, seremos transformados e teremos oportunidades para sermos vistos e ouvidos em momentos inesperados e não planejados, mas que o propósito de Deus de antemão já nos reservara (Ef 2.10). A exemplo de Pedro e João, ao vivermos de fato o amor de Deus, espaços de testemunho vão surgir, sem precisarmos requisitar ou pagar por eles. E estes momentos precisam ser usados para pregarmos a Cristo como sendo o centro da nossa fé. Não podemos nos perder em detalhes, nem em disputas de menor importância, e muito menos em assuntos que não edificam. Toda oportunidade precisa ser usada para nosso testemunho de Cristo, seja ele planejado, ou surja de forma totalmente imprevisível. SUGESTÃO DE TEMA Ao meu ver este é um texto sobre o qual podemos refletir de diversas maneiras, dependendo o que se quer enfatizar, ou o lugar onde a mensagem será proferida. No entanto, não tenho dúvidas que o centro deste texto, e, logicamente, a primeira opção para se refletir sobre ele é: a salvação só pode ser conseguida por meio de Cristo Jesus. E as partes desta mensagem poderão ser: 1º) Não existe nome dado entre os homens pelo qual possamos ser salvos. Nesta parte pode-se falar sobre as muitas tentativas inventadas pelos seres humanos para alcançar alguma graça, entre elas a autojustificação, o sinergismo de muitos “crentes” de hoje em dia, os ídolos, os santos e suas obras supererrogatórias, Maria como co-redentora, as simpatias, os despachos, etc. 2º) Só Cristo salva. Nesta parte pode-se falar sobre como Cristo veio a ser a pedra angular (sua vida, obra, morte e ressurreição – a exemplo do que Pedro faz); o efeito da fé nesta verdade observado na vida de Pedro (na quinta-feira santa nega a Jesus diante de uma simples empregada, e agora, dois meses depois, dá um testemunho impecável diante do Sinédrio – as autoridades da época); o efeito que a fé em Cristo quer e pode efetuar na vida das pessoas de hoje. Milton Buss Leitzke Alta Floresta, MT 280 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUARTO DOMINGO DE PÁSCOA Atos 4.23-33 11 de maio de 2003 CONTEXTO O texto nos remete às primeiras semanas depois do Pentecostes. Estamos não tão distantes da ressurreição e mais perto ainda da ascensão do Senhor. Os primeiros crentes estavam ainda sob o regozijo da festa que foi a vinda do Espírito Santo e os quase 3.000 convertidos e batizados. Os primeiros crentes e os apóstolos gozavam da simpatia de todo o povo. A igreja estava feliz e crescendo. Enquanto isso, os apóstolos já estavam pregando e testemunhando que Jesus Cristo de fato ressuscitara dos mortos e era o Salvador prometido. Num desses dias, quando iam ao templo, se depararam com um homem doente desde sua nascença. Ele estava à entrada do templo. É o capítulo três de Atos. E pelo poder de Jesus o homem foi curado. Por mais que os apóstolos dissessem que foi Jesus quem curou o homem, mesmo assim foram presos. E foi na presença das autoridades que Pedro proferiu aquele versículo que muitos citam de cor: “E não há salvação em nenhum outro, porque abaixo do céu...” – At 4.12. As autoridades haviam explicado claramente, sob ameaças, que não queriam que os apóstolos falassem em o nome de Jesus. Mais claramente ainda os apóstolos já disseram que não obedeceriam a esta proibição: “Porque não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos”. Aí foram soltos. E aí começa o nosso texto. TEXTO V. 23: “... procuraram os irmãos ...”. No original: sua própria companhia. Os crentes, por serem da mesma fé e do mesmo espírito, querem estar juntos. Ainda mais, quando há dor. E contaram tudo o que tinham ouvido e pelo que tinham passado. V. 24: A providência foi logo tomada. Os apóstolos e os crentes conheciam bem a fonte do recurso e a forma de buscá-lo: é Deus e a forma, a oração. 281 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Sua oração começa com a adoração: “Tu, Soberano Senhor...”. Este Soberano é o que conhecemos e confessamos no início de nosso Credo: “... Criador dos céus e da terra”. Poderia haver um Senhor maior? Vv. 25,26: Da adoração partem para a promessa. É o valor da Palavra. E na Palavra, a promessa. Quanto os apóstolos e os primeiros crentes conheciam a Palavra, o AT! Aqui, era o Salmo 2. Vv 27,28: Da promessa para o cumprimento. Cumpriu-se o que Deus prometera no Sl 2. Herodes e Pilatos e as autoridades da igreja judaica eram os personagens de ponta. Quando Lucas cita o Sl 2, a palavra Ungido é o nome Cristo. Cristo quer dizer Ungido. V. 29: “... concede aos teus servos que anunciam com toda a intrepidez a tua Palavra”. Surpreendente e impressionante a petição. Eles não pedem livramento, mas coragem, ousadia e intrepidez. Livramento da perseguição ainda não era garantia da pregação, mas coragem, ousadia e intrepidez, sim. Porque são virtudes do Espírito Santo. V. 30: “... para fazeres curas, sinais e prodígios ... por intermédio do teu santo servo Jesus”. Eles pediram que a verdade do seu testemunho fosse demonstrado por milagres operados por Jesus. Deus está perto dos seus servos que oram a Ele e está pronto a suprir a plenitude do Espírito aos que o buscam, habilitando-os a dar testemunho e sofrer por Ele. Ouçamos bem: Deus faz curas, sinais e prodígios. Deus faz. Não é para autopromoção humana. Nossa tarefa é testemunhar; a de Deus, confirmar. E tudo o que Deus faz, só faz por intermédio do seu santo servo Jesus. V. 31: Deve ter sido uma experiência impressionante: “Tremeu o lugar ... e todos ficaram cheios do Espírito Santo”. Era o cumprimento de At 1.8. Vv. 32,33: O que segue nestes dois versículos era agora uma felicidade e bênção que a igreja experimentava entre os cristãos. “... um o coração e a alma”. Aristóteles, quando perguntado o que é um amigo, disse: “uma alma habitando em dois corpos”. O que teria dito ao ver que “uma alma” habitava em cinco mil corpos dos crentes? A sua comunhão era espécie de “comunismo” cristão. E este jeito de os cristãos viverem é uma prova da ressurreição de Jesus. SUGESTÕES HOMILÉTICAS O que diz a igreja ao seu senhor quando ora 282 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 1 – Apresenta adoração; 2 – lembra a promessa; 3 – olha para o cumprimento; 4 – pede ousadia para a pregação da Palavra. A igreja segue o caminho de seu Senhor 1 – sob a cruz, pregando; 2 – na glória, se regozijando. Benjamim Jandt Cachoeira do Sul, RS 283 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUINTO DOMINGO DE PÁSCOA Atos 8.26-40 18 de maio de 2003 CONTEXTO O nosso texto faz parte da narrativa de Lucas sobre a primeira expansão da igreja além das fronteiras de Jerusalém. Depois do apedrejamento de Estêvão, relatado em Atos 7, levantou-se uma grande perseguição da igreja em Jerusalém, encabeçada por Saulo, dispersando seus membros através da Judéia e Samaria. Entre eles se destaca o evangelista Filipe que, na Samaria, foi o instrumento de Deus para evangelizar multidões. Um pouco mais tarde, talvez ainda em meio a seu trabalho extraordinário, é impelido pela direção do Espírito Santo a evangelizar o eunuco da rainha Candace dos etíopes a fim de que o evangelho se expandisse além das frontreiras da Palestina e penetrasse fundo nas regiões da África até a Etiópia, ao Sul do Egito. Segue então a narrativa sobre a conversão de Saulo através de quem a igreja se expandiria até o continente europeu. AS LEITURAS DO DIA O Salmo 22.25-31 fala da expansão da igreja dizendo que ao Senhor se converterão os confins da terra (v. 27). A epístola de 1 Jo 3.18-24 fala do Espírito Santo, que é um sinal da fé em Jesus nos crentes, impelindo-os a amar uns aos outros e, com certeza, não apenas os irmãos mas também os de fora da igreja, levando-lhes a mensagem da salvação. A leitura do evangelho, em Jo 15.1-8, nos lembra que só podemos produzir muito fruto no trabalho da igreja e na missão se somos ramos da videira, que é Jesus. TEXTO E APLICAÇÕES HOMILÉTICAS V. 26: O evangelista Filipe era o segundo na lista entre os sete diáconos escolhidos em At 6.3, que eram homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria. Logo no início da grande perseguição em Jerusalém escapou para Samaria onde seu trabalho evangelístico teve um estrondoso sucesso com a conversão de multidões. Inesperadamente, Deus lhe deu a ordem através de um anjo para descer o caminho de Jerusalém a Gaza. 284 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Mesmo sem compreender a estranha ordem, Filipe prontamente obedeceu. Isso comprovam as duas formas verbais no aoristo, avnasta,j e evporeu,qh – levantando-se, foi. Vv. 27-28: A estrada estava deserta, mas de repente surgiu nela uma carruagem em que viajava um eunuco etíope, uma espécie de ministro das finanças da rainha Candace, que era apenas seu título dinástico e não seu nome próprio. A Etiópia daquele tempo compreendia a Núbia de hoje e o Norte da Abissínia. O eunuco, portanto, era gentio e, segundo o historiador Eusébio, o primeiro gentio que abraçou o cristianismo. Mas era com certeza um simpatizante da religião judaica, talvez até um prosélito do portão ou um temente a Deus. Isso concluímos da informação de Lucas de que viera adorar em Jerusalém e que estava lendo, durante a viagem, o profeta Isaías. Vv. 29-31: Mais uma vez Filipe sofre uma intervenção divina. Dessa vez é o próprio Espírito Santo que o orienta, dando-lhe a ordem de acompanhar o carro, que Filipe fez correndo e ao mesmo tempo ouvindo-o ler o profeta Isaías, pois o africano estava lendo em voz alta, seguindo uma orientação dos rabinos judeus que a Torá deveria ser lida em voz alta, durante uma viagem. Podemos aprender aqui uma lição importante com o eunuco: a sua fome e sede da palavra de Deus e a sua procura da verdade. Aproveitou bem o tempo da viagem para nela se aprofundar. Quantos cristãos, hoje em dia, procedem da mesma maneira? Quem ainda lê a palavra de Deus em particular ou a ouve freqëntemente em cultos públicos ou em estudos bíblicos, impelido por uma fome ou sede espiritual? A pergunta de Filipe se estava entendendo o que vinha lendo revela uma inteligente abordagem evangelística. Atingiu em cheio o desejo profundo do prospecto. Era isso que o eunuco realmente desejava: entender o que estava lendo e alguém que lho explicasse. E seu convite imediato de Filipe sentar-se junto a ele era uma conseqüência natural da oferta e demanda. Filipe ganhara sua confiança e respeito. Sua pergunta discreta recebera uma resposta favorável. Vv. 32-33: O trecho que o eunuco estava lendo encontramos no cap. 53 de Isaías em que descreve o sofrimento e a morte do servo sofredor. São os versículos que se encontram transcritos em nosso texto. São da Septuaginta, apresentando algumas diferenças quando comparados com o texto hebraico massorético, mais em palavras que no conteúdo. Comparam o servo com um cordeiro mudo perante seus tosquiadores. O v. 33 fala de sua humilhação, quando lhe negaram justiça. Há diversas 285 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 interpretações da pergunta: “Quem lhe poderá descrever a geração?” Uns acham que se trata aqui da geração contemporânea de Jesus, seus inimigos, cuja maldade ninguém poderia descrever. Outros afirmam que aqui não se trata da geração contemporânea de Jesus, mas de sua grande descendência espiritual. Quem poderia, naquela hora trágica, imaginar que iria ter uma tão grande família espiritual, já que da terra sua vida era tirada? A NTLH transmite esse sentido. Vv. 34-35: A quem se refere o profeta? Essa pergunta tem ecoado através dos séculos e obteve muitas respostas. Alguns a atribuíram ao próprio profeta Isaías ou a algum outro profeta. Vários escritos judaicos antigos afirmam que se referem ao Messias, mas também há outros que identificam o servo sofredor com o povo de Israel. Desde seu início, a igreja cristã identificou o servo sofredor com Jesus, o Messias. Também não poderia ser de outra forma, pois há tantos detalhes na paixão e morte de Jesus que se identificam perfeitamente com os detalhes descritos pelo profeta, que fez o Dr. Rottmann observar que as palavras de Is 53 parecem ter sido escritas ao pé da cruz do Gólgota (Atos dos Apóstolos, vl. 2, p. 45). Durante anos os mais ferozes críticos da Bíblia afirmaram que aqui não se trata de profecia, mas de acontecimentos descritos depois do fato acontecido (post eventu). Diziam isso porque no tempo deles a cópia mais recente que existia do livro de Isaías era de uns 900 anos D.C. Mas os achados arqueológicos dos escritos de Qumran, nas cercanias do mar Morto, descobertos em 1947, derrubaram estrondosamente o seu castelo crítico artificial. Entre esses escritos encontraram duas cópias do profeta Isaías que os peritos datam de uns 200 anos antes de Cristo. Filipe dificilmente poderia ter achado um texto mais adequado para expor sua mensagem evangelística a respeito do Salvador Jesus e de seu sacrifício substitutivo e expiador. Deve ter citado também muitas outras passagens referentes a Jesus no A.T., escritos na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos (cf. Lc 24.44). A evangelização que não conduz a Cristo erra o seu alvo. Cabem aqui algumas aplicações práticas a respeito do estudo da palavra de Deus e do testemunho de nossa fé. 1. A fome e sede da palavra de Deus que já comentamos anteriormente. 2. A persistência de prosseguir na leitura da Bíblia, mesmo sem compreender tudo. É preciso que continuemos seu estudo, passando por cima das passagens difíceis para uma posterior compreensão com o auxílio de comentários ou de pessoas competentes. 3. O ideal do crescimento espiritual. Temos tantos ideais e cultivamos 286 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 tantos valores na vida, mas muitas vezes o ideal de crescermos na fé e vida cristã é um dos últimos ou até falta completamente. Disse um pastor que é trágico que tantos membros da igreja nunca se deixam elevar a um nível espiritual mais alto do nível de respeitáveis descrentes. Um teólogo observou que mais perturbador ainda é que muitos mestres e obreiros da igreja nada fazem para melhorar o seu conhecimento e sua habilidade de ensinar e assim as pobres congregações são forçadas a contentar-se com uma classe de mestres de segunda, terceira ou quarta categoria. Isso não ocorre no mundo exterior onde o empregado tem de fazer cursos de aperfeiçoamento para manter seu emprego. 4. O ideal de cooperadores na tarefa redentora de Deus. Esse ideal Filipe revelou em alto grau e mais tarde certamente também o eunuco na sua terra natal. Filipe nada mais era que um evangelista leigo, cujo coração ardia em testemunhar a sua fé. E fazia-o onde se encontrava, perante multidões ou com uma só pessoa. Um pregador observa que ele não tinha nada mais do que nós: a mesma fé, o mesmo amor com que também nós fomos agraciados. Temos até mais conhecimentos de Jesus por causa dos escritos do N.T. que naquele tempo ainda não existiram. Temos todo o equipamento cristão necessário para o testemunho. A única questão é se o usamos ou não. Os que não o usam podem ser comparados com uma lanterna elétrica, cujas pilhas substituem com alguns trapos. Deixemos, portanto, brilhar a luz com as pilhas que Deus nos deu. Vv. 36-38: Com certeza Filipe também incluiu na sua exposição a necessidade do batismo e a grande comissão em Mt. 28.18-20. O Espírito Santo já havia operado a conversão mediante a mensagem evangelística que fluía da boca aberta de Filipe para o coração aberto do eunuco, de modo que este pediu para ser batizado quando chegaram a uma água. As palavras do v. 37, entre colchetes, não se encontram nos melhores manuscritos, mas apenas no texto ocidental e podem ser uma glosa muito antiga de algum escriba. Mas. mesmo não autênticas no texto, podem ter sido proferidas na ocasião porque, sem dúvida, foram usadas na igreja primitiva em cerimônias de batismo. Quanto à água, pode ter sido de algum riacho, ou de alguma fonte ou de algum açude, pois era escassa naquela região. O texto nada fala sobre a forma do batismo, se foi por imersão, aspersão ou derramamento. Não importa a forma desde que a água seja aplicada com as palavras da instituição e com a palavra de Deus. Os que insistem na imersão devem também admitir a correção das outras formas. 287 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Vv. 39-40: Alguns intérpretes procuram eliminar desse texto o óbvio intuito miraculoso do arrebatamento de Filipe. O verbo aqui usado para este ato é a‘rpa,zw, usado também para uma remoção sobrenatural em 2 Co 12.2 e 1 Ts. 4.17. Temos também no A.T. indicações de semelhante transporte sobrenatural em 1 Rs 18.12 e 2 Rs 2.16. O arrebatamento de Filipe não prejudicou o eunuco, pois não estava mais dependendo de seu instrutor. Com a fé em Cristo, adquirira agora um novo e suficiente entendimento da Escritura para encontrar nela a vida eterna e aplicar as profecias do A.T. a si e a seus semelhantes. Seguiu seu caminho com júbilo, o que demonstra a autenticidade de sua conversão, experimentando um dos mais deliciosos frutos do Espírito, que é a alegria profunda dum coração agradecido. Eusébio nos informa que o eunuco voltou a seu país de origem e ali anunciou a mensagem do Salvador, cumprindo-se assim as palavras do Sl 68.31. Quanto a Filipe, foi arrebatado pelo Espírito até Azoto, a antiga Asdode no A.T., uma cidade dos filisteus. De lá foi subindo para o Norte, evangelizando todas as cidades, até Cesaréia, cidade residencial dos governadores romanos da Judéia, onde provavelmente fixou residência, pois hospedou ali o apóstolo Paulo na volta de sua terceira viagem missionária (At. 21.8). Foi ele o pioneiro de três métodos evangelísticos ainda praticados hoje com muito sucesso: o evangelismo de massa, em Samaria; o pessoal, com o eunuco; e o itinerante, evangelizando de cidade em cidade. PROPOSTA HOMILÉTICA Predomina em nosso texto a obra da evangelização e da expansão da igreja, realizada por Deus através de seus instrumentos, os próprios cristãos. O texto nos estimula tanto para o crescimento de nossa fé como para o crescimento na vida cristã. Ele nos inspira para os mais elevados ideais cristãos, entre os quais se detaca o ideal de nos tornarmos cooperadores na tarefa redentora de Deus. No desenvolvimento essa inspiração ou estímulo deve predominar. O próprio tema poderia ser formulado no sentido de um apelo evangelístico, a saber: TEMA Cooperemos na obra redentora de nosso Deus 1. Atentos para a direção do Espírito Santo. 2. Agradecidos a Deus e compadecidos de nossos semelhantes. 3. Equipados com a mensagem cristocêntrica. Paulo F. Flor Dois Irmãos, RS 288 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEXTO DOMINGO DE PÁSCOA Atos 11.19-30 25 de maio de 2003 CONTEXTO O sexto domingo de Páscoa prepara a Igreja para a comemoração da Ascensão do Senhor Jesus, a ser lembrada na quinta-feira seguinte. Jesus sobe ao céu, mas não deixa a igreja sozinha: deixa, sim, com desafios e oportunidades. Alguns destaques das outras leituras: Sl 98 – Salmo que mostra a conseqüência imediata da ação de Deus entre os homens: alegria. Alegria porque Deus faz coisas maravilhosas, porque vence com seu poder, porque é fiel e justo. Até a própria natureza é convidada a festejar (cante a terra e os rios batam palmas). Como se apresenta nossa alegria em nossa vida diária ? O poder e amor de Deus são os principais motivos da nossa alegria ? 1 Jo 4.1-11 – “Nada de novo sobre a face da terra”. A Igreja Cristã luta contra a falsidade e o engano. Falsos profetas, que diziam receber o Espírito de Deus e ao mesmo tempo negavam a humanidade de Jesus, perturbavam a vida nas comunidades. O apóstolo João, orientado por Deus, oferece uma alternativa: “ponham à prova essas pessoas” mostrando que os que são de Deus têm vencido os falsos profetas. No entanto, não se trata de inquisição, mas de tratar todos na perspectiva do amor de Deus. Amemos uns aos outros porque o amor vem de Deus. Jo 15.9-17 – Vindo logo após as palavras de Jesus sobre a videira, o discurso sobre o amor segue a mesma lógica. O amor é orientado por modelos: o Amor do Pai, o amor do Filho aos discípulos, amem uns aos outros como eu amo e até dou minha vida por vocês. O escravo age por obrigação. O filho de Deus se move na esfera da motivação e é isso que lhe traz a alegria completa. Cumpre os mandamentos não por medo mas por ter sido amado por Deus e por desejar automática e intensamente amar o seu próximo. At 11.19-30 – A polêmica principal dos últimos capítulos, com conseqüência nos próximos, está resumida no versículo anterior à perícope: “Então Deus deu também aos não-judeus a oportunidade de se arrependerem e ganharem a vida eterna” (Atos 11.18). Pela descrição da “grande fome”, 289 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 é provável que tenha acontecido no ano 46. Cláudio foi imperador de 41 a 54 depois de Cristo. TEXTO V. 19: A morte de Estêvão, promovida pelas autoridades religiosas e com o aval de Saulo, futuro Paulo, mostrou que a perseguição aos cristãos era muito séria. As testemunhas do amor de Deus em Jesus Cristo passam a ser mártires (em grego tem a mesma raiz). A defesa da vida e da verdade motiva os cristãos a buscar a paz em outros rincões: a maioria se espalha pelo mundo comercial da época (Fenícia, Chipre e Antioquia). A prioridade é compartilhar a boa notícia de Jesus entre os do seu povo, os judeus. Vv. 20,21: Alguns são mais audazes: cristãos de Chipre e Cirene também compartilham a missão de Jesus com não-judeus e o resultado é impressionante: “O poder do Senhor estava com eles, e muita gente creu e se converteu ao Senhor”. Já se apresentam diferenças importantes na conversão de judeus e não-judeus. Os que não faziam parte do povo escolhido de Deus se agarram à fé de outra maneira. Vv. 22-24: Repercussões na vida da igreja: as boas notícias correram mais que as más. A Igreja de Jerusalém, onde estavam os líderes, recebe a notícia de uma “explosão evangelística” e envia Barnabé. Essa perícope também é o texto-base para o dia de São Barnabé, 11 de junho. Um pouco da sua biografia aparece em At 4.36-37. Provavelmente conhecia seus conterrâneos que foram de Chipre a Antioquia e por isso foi enviado. Seu perfil também o ajudava: “era homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé”. Ao ver aquele entusiasmo pela fé, Barnabé reconheceu as bênçãos de Deus e ficou alegre (exemplo para nós, pastores!). Seu conselho aos irmãos da exitosa congregação de Antioquia: ser fiéis a Deus de todo coração. Vv. 25,26: Barnabé é homem de visão. Apesar de Paulo estar há pouco tempo ao lado dos cristãos, depois de sua conversão em Damasco, Barnabé o escolhe para ajudar no desafio missionário. Estratégia de crescimento da Igreja: “eles se reuniram aquele ano todo com a gente daquela igreja e ensinaram muitas pessoas”. O impacto foi tremendo inclusive no âmbito social: pela primeira vez os seguidores de Jesus passaram a ser chamados de cristãos. Vv. 27-30: Ser igreja não significa estar livre de problemas. As crises também servem como termômetro da vida espiritual e como oportunidades de mostrar o amor. Os “cristãos”, muitos deles não-judeus, ofertam de acordo com o que têm para ajudar os irmãos na fé que passam fome na Judéia. Paulo e Barnabé são os representantes que levam o dinheiro aos líderes da Igreja. 290 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 APLICAÇÕES HOMILÉTICAS 1. Barnabé como líder da igreja: a. Sua dedicação (Atos 4.36-37) b. Sua alegria: reconhecer as bênçãos de Deus (At 11.22) c. Sua visão de igreja: buscando Saulo – formação teológica intensiva com os membros. d. Administrando o impacto: os seguidores são reconhecidos na sociedade e rotulados de “cristãos” porque seguem a Cristo. 2. A fome e a resposta dos cristãos a. Profetizada por Ágabo b. Mobilizando os cristãos: sem rancor, reconhecem os judeus como seus irmãos. c. Ofertando proporcionalmente: “cada um deu de acordo com o que tinha” 3. Deus e a logística a. Exílio como conseqüência da perseguição b. Barnabé: de Chipre para ajudar os que eram de Chipre em Antioquia c. Aproveitando recursos: Saulo estava começando seu trabalho evangelístico. Barnabé, apesar das resistências, o busca e trabalham intensivamente na preparação dos novos cristãos. d. Fome: estímulo ao amor na prática. Desafíos da igreja: observar as crises, reconhecer as bênçãos e “arregaçar as mangas” amando ao próximo como somos amados por Deus. PROPOSTA HOMILÉTICA (Adaptação de um texto de J.Sergio Fortes, consultor de logística em São Paulo) DEUS, ESPECIALISTA EM LOGÍSTICA. INTRODUÇÃO Logística na história humana: Logística é não apenas tema da hora, mas matéria obrigatória hoje nos currículos de muitas Faculdades. Originada a partir das necessidades de planejamento operacional do Exército em tempos de guerra, a Logística tem revolucionado o processo de abastecimento e distribuição da empresa moderna, com o objetivo de atingir o consumidor final mais rápido, com menor custo e, o que é essencial, antes do concorrente. Logística na história de Deus: Contudo, essa nova ciência é velha para Deus. A História está repleta de evidências do Deus da Logística. Vejamos alguns exemplos: 291 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 1. Caso José Versus Seus Irmãos. Odiado por seus irmãos, José é vendido como mercadoria para o Egito. Potifar, um preeminente funcionário do palácio compra-o como escravo, para uso doméstico. A paixão doentia e descontrolada da esposa de Potifar por José esbarra na integridade inegociável deste, resultando em sua injusta prisão. Há controvérsia se José ficou 2 ou 10 anos no calabouço. Contudo, ao interpretar o sonho de um assistente de Faraó, também preso, as portas do palácio se abrem para José. Interpretando estranho sonho do próprio Faraó, este confia a José a governança da maior potência da época. Sua política sábia livra não só o Egito da fome, mas sua família e seu povo. Ao ser negociado a mercadores, era impossível se imaginar que Deus estava usando José para implementar uma logística estratégica multinacional muito precisa (detalhes em Gênesis 37 a 47). 2. Caso Ananias versus Saulo. Nocauteado na estrada poeirenta de Damasco, o perseguidor Saulo de Tarso foi confrontado com Aquele que ele mesmo chamou, “O Caminho”. Depois desse encontro transformador, a autoridade de Paulo, seu poder, ódio e cartas precatórias para expulsar devotos seguidores de Jesus se tornaram sem valor. Cego e impotente, Paulo foi levado para a cidade onde pretendia implementar santa inquisição. Contudo, Deus surpreende Paulo de forma especial, mostrando-lhe que Seu “supply chain” era perfeito e Seu processo de entrega tinha endereço e hora exatos. O “consumidor” Saulo de Tarso foi atendido por Ananias EXPRESS, o mensageiro da logística de Deus. Essa mensagem alcança Saulo, que se torna Paulo, o maior comunicador sobre Jesus Cristo (veja história completa em Atos 9) 3. O exílio dos cristãos: conseqüência das perseguições contra os cristãos e também pela expansão comercial, os cristãos são desafiados a levar o evangelho a todas as nações. Aproveitam novas oportunidades, são desafiados pelas condições culturais diferentes (paganismo), trabalham com a escassez de recursos (ministério de tendas), recebem dons especiais (de línguas) para entender outros povos e compartilhar no seu idioma a mensagem de Cristo, superam as más tradições do judaísmo e mudam o perfil da sociedade da época, ao ponto de serem chamados de “cristãos”. Coincidência ou trabalho logístico de Deus? LOGÍSTICA NA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DA IGREJA (IELB) 4. Casos Seu e Meu. Você e eu somos o “mercado”, o alvo da precisa logística estratégica de Deus todo dia, que, de forma especial e específica, atende nossas necessidades, acode chamadas de emergência, responde preces urgentes. Surpreende-nos como e quando o processo começa, mas sabemos que chega de forma e meios inesperados. Displicentes e insensíveis erramos no diagnóstico: “Por acaso”; “Feliz co292 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 incidência”; “Por sorte”. Como se o consumidor, lá nos confins de seu país, pudesse receber o produto necessário, na data e hora certas, por mero acaso! Deus é especialista em chegar “just-in-time”, mesmo quando achamos que Ele está atrasado. Antes mesmo da necessidade bater à nossa porta, o processo logístico de Deus já se iniciou para que a solução que iremos precisar – talvez anos depois – nos alcance no momento exato. Recursos financeiros que chegam quando mais precisamos deles, ou a venda efetuada quando mais precisávamos, não são atos de acaso ou mera coincidência. Fique atento ao que o Deus de Logística faz todo o dia por você. “Antes mesmo do meu corpo tomar forma humana Tu já havias planejado todos os dias da minha vida; cada um deles estava registrado no Teu livro” (Salmo 139.16). “Estou lhes dizendo antes que aconteça, a fim de que, quando acontecer, vocês creiam que EU SOU” (João 13.19). Christian Hoffmann Montevidéu - Uruguai 293 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SÉTIMO DOMINGO DE PÁSCOA Atos 1.15-26 01 de junho de 2003 CONTEXTO 1. No pós-Páscoa, toda a Igreja vive a alegria da ressurreição e louva um Deus/Salvador vivo, que não foi e que não podia ser vencido pela morte. É uma ótima oportunidade para compartilhar a esperança que anima cada filho de Deus e que nos sustenta, ou seja, a fé e a esperança na ressurreição e na vida eterna, como diz o apóstolo: “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, então somos os mais infelizes de todos os homens.” (1 Co 15.19) Para os cristãos, é o momento de dizer e reafirmar esta verdade. 2. Vemos uma Igreja em formação, que ainda não viveu o Pentecostes, mas que já tem consciência da sua missão de ser testemunha e da importância de compartilhar a mensagem da salvação. “É necessário que dos homens que nos acompanharam todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós, começando no Batismo de João, até o dia em que foi elevado às alturas...um destes se torne testemunha conosco da ressurreição ...” (At 1.21). 3. Vemos os discípulos vivendo um momento espiritual e psicológico muito importante. Após a ressurreição eles tomam consciência da dimensão do que significa ser Jesus “o Cristo” e do que significa a ressurreição. Deus, o Filho de Deus andou entre eles e este fato teve sobre eles um impacto violento, mudou toda a sua atitude em relação ao tipo de missão que eles deveriam assumir. Antes da ressurreição vemos discípulos preocupados com lugares e colocações no Reino, vemos discípulos fugindo na noite em que Jesus foi preso e negando conhecê-lo. No sábado e domingo vemos que estes discípulos estão escondidos, acovardados e com medo, e nos perguntamos: que tipo de visão do Reino eles tinham? Após a ressurreição e ascensão eles tomam consciência de que o Reino foi inaugurado, que este não é um “reino deste mundo”, que não vai ser estabelecido com lutas e com espadas, mas sim com a Palavra e com o Espírito. Com Jesus ausente fisicamente, eles têm a missão de testemunhar, e pela pregação continuar estabelecendo este Reino. 294 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 4. No texto de hoje encontramos os discípulos entre dois momentos, Ascensão e Pentecostes, se preparando para receber o que Jesus tinha prometido “...mas recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo...”(At. 1.8). Naqueles dez dias de oração e meditação vemos a preocupação de Pedro em que mais alguém tome parte no ministério de ser testemunha de tudo o que aconteceu desde o princípio. TEXTO 1. “Naqueles dias” (v.15) entre a Ascensão e Pentecostes, quando estavam reunidos em comunhão, aqueles primeiros cristãos lá em Jerusalém, “levantou-se Pedro” (v. 15). As palavras de Pedro revelam uma expectativa, uma preparação para aquilo que viria, bem como uma preocupação com aquilo que estava sobre eles. Pedro tomou a palavra e nas suas palavras vemos reflexão teológica. “Convinha que se cumprisse a Escritura” (v.16). Pedro vê nas palavras dos Salmos revelações proféticas do que tinha acontecido com Judas, não como um fatalismo, ou algo premeditado, mas algo que já estava previsto. Mas havia um agravante: Judas era contado junto com eles, e tinha parte naquele ministério. Pedro via na escolha de Judas uma necessidade, não que ele foi escolhido para ser o traidor, mas sim que ele tinha sido escolhido para tomar parte naquele ministério (“serviço”, Tradução Ecumênica da Bíblia; “trabalho”, NTLH). Judas tinha um chamado do Senhor. Pedro via que esta tinha sido a vontade original do Senhor, e agora faltava um, o grupo estava incompleto. Logo, era necessário escolher outra testemunha, para que a missão que eles tinham pudesse ser assumida conforme os planos do Senhor. 2. Os versículos 18 e 19 são uma explicação do que aconteceu a Judas e uma introdução à justificativa teológica de escolher um outro para assumir aquele ministério, fato que não foi contestado. É bom lembrar que “os irmãos” estavam em oração e meditação, e Pedro pode ter refletido uma opinião que já era de todo o grupo. 3. Dentro da resolução de escolher mais um estavam previstas também condições para preencher aquele “ministério e apostolado” (v.25). A primeira delas é de que fosse alguém que tivesse acompanhado o grupo desde o começo, “todo o tempo” (v.21). Certamente alguém que havia convivido de perto com Jesus, e que tinha ouvido as suas palavras e seus ensinamentos, que tinha visto seus sinais e milagres, que podia ser “testemunha” (v.22). O testemunho era algo extremamente importante, pois com base nos testemunhos se estabelecia a verdade. O tempo deste testemunho se estendia do Batismo de João até a Ascensão, período que compreende todo o ministério terreno de Cristo. 295 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 4. Foram então apresentados dois nomes, José chamado Barsabás, que tinha o apelido de “Justo”, e Matias. Para este Ministério e Apostolado, não foi sugerido qualquer um. Ser testemunha envolve idoneidade, fidelidade, amor a Cristo e convicção da missão. O fato de estarem juntos naquele seleto e pequeno grupo de cristãos já revela muita coisa. Chama a atenção o apelido de José, o “Justo”. Não deve ter tido este apelido à toa, pois sem dúvida mostra algo da sua pessoa. Os dois, segundo aquela Assembléia, poderiam cumprir a missão de ser testemunha. Mas o povo de Deus não se apóia apenas na sua sabedoria. Em coisas espirituais sempre preferimos que Deus nos dê a última palavra, e foi esta a oração da Igreja: “Tu, Senhor, que conheces os corações de todos, revela-nos qual destes dois tens escolhido...” (v.24). Sortearam os nomes, para ver quem seria o escolhido. “O método empregado pelos judeus era o de colocar os nomes escritos em pedras, dentro de um vaso, e sacudi-lo até que uma pedra caísse” (Chave Lingüística, p.195). Este foi o método usado para entregar a decisão nas mãos do Senhor, e o escolhido por este método foi Matias. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS 1. Podemos explorar a questão do chamado, lembrando aos cristãos que todos são chamados para serem testemunhas, como Sacerdócio Universal. 2. Podemos lembrar a fidelidade, amor, idoneidade da testemunha em falar e agir de modo que possa honrar o nome do Senhor com a sua vida. 3. Podemos falar que todos somos responsáveis por testemunhar aquilo que vimos e ouvimos pela fé no Senhor. 4. Podemos aplicar diretamente à vida de cada filho de Deus o consolo do Evangelho, e a firme esperança que todos nós temos na ressurreição, de que não vivemos apenas para esta vida, mas para uma vida eterna com Deus. 5. Podemos consolar enlutados e a nós próprios com a preocupação que a Igreja teve desde o princípio em ser fiel, em procurar testemunhas fiéis para testemunhar todo o ministério de Cristo, até a sua Ascensão, por ser esta a mais pura expressão da verdade, pela qual estavam dispostos a dar a sua própria vida. 6. Podemos lembrar as qualificações que a Igreja pediu aos candidatos que assumiriam aquele ministério. Serem testemunhas da verdade, confiarem em Cristo, serem firmes em suas convicções, homens dos quais Deus conhece o coração, fazerem parte da Igreja de Jesus. 7. Podemos lembrar estas mesmas qualificações (acima) a quem almeja o Ministério. 296 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 8. Podemos aconselhar cristãos e a Igreja a colocarem nas mãos do Senhor, em oração e meditação na Palavra, todas as suas decisões. PROPOSTA HOMILÉTICA Tema: “Todos somos chamados por Deus para testemunhar o que vemos e ouvimos pela fé”: 1) Jesus: O Deus que andou entre nós. 2) Jesus: O Deus que ressuscitou. 3) Jesus: O Deus que alimenta nossa esperança na ressurreição. Rubens José Ogg São Lourenço do Sul, RS 297 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 O DIA DE PENTECOSTES Ezequiel 37.1-14 8 de junho de 2003 TEXTO A visão dos “ossos secos”, interpretada nos vv.11-14, tem a ver com a restauração da casa de Israel depois do exílio babilônico. O texto fala do poder de Deus que pode dar vida até mesmo aos ossos secos de um cadáver e do “espírito” por meio do qual ele “assopra” a vida. V. 1: Através da metáfora da “mão” (= poder) do Senhor (ver Ez 3.22), o “espírito de Javé” é apresentado como o agente que “inspira” e capacita o profeta com uma revelação divina. V. 2: Ezequiel passa ao redor dos (ou sobre os) ossos. O verbo hebraico em “fez andar” está no hifil, enfatizando que o poder vem de fora. Duas vezes se usa o advérbio “muito”(daom): mui numerosos; mui secos (“sequíssimos”). V. 3: Diante de uma pergunta retórica, uma resposta retórica: “Senhor Deus, tu o sabes”. Assim como Jesus fez diante de Pilatos, a resposta é um tanto enigmática, mas mesmo assim positiva. Só Deus pode responder essa questão a respeito da vida. Vv. 4-5: Pede-se que o profeta profetize aos ossos secos. Por mais ridículo que seja falar a palavra de Deus a ossos secos, o fato é que a palavra de Deus é poderosa para realizar o que ela anuncia. A chave de tudo está no v.5: “farei entrar o espírito em vós, e vivereis”. Vv. 6-8: No v. 7, Ezequiel faz o que lhe fora pedido, mas o processo anunciado no v.6 é dividido em duas fases. Os corpos vão tomando forma, mas “não havia neles o espírito”. Fica clara a alusão a Gn 2. V. 9: Pela primeira vez se pede ao profeta que se dirija ao espírito (pela primeira vez com o artigo, x;Wrh’). Num jogo de palavras que é possível em hebraico (e também no grego), pois a palavra para “vento” e “espírito” é a mesma, pede-se ao profeta que faça o “espírito” vir dos “quatro ventos”. É claro que, num dado momento, o vento só pode vir de uma direção, o que mostra que não se trata de simples vento ou de um vento qualquer. O imperativo “assopra” estabelece mais um vínculo com o Gênesis (ver 2.7). 298 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 V. 10: O profeta faz o que lhe fora pedido, e a promessa de Deus se cumpre. Os ossos, que eram mui numerosos e mui secos (v.2), agora estão de pé como uma força ou um exército muito muito (daom-. daom). grande. Os vv. 11-14 interpretam a visão à luz do juízo de Deus na forma do exílio. Por mais que se queira argumentar que se está falando apenas de pessoas vivas, a referência a “exterminados” (v.11) e “sepultura” (v.12) claramente aponta para o poder de Deus em criar vida onde a mesma não se encontra. O objetivo maior do poder desse espírito não é simplesmente dar vida, e sim que se saiba que “eu sou o Senhor” (v.14; ver v.6). No v. 14 o “espírito” é identificado como “meu Espírito”. APLICAÇÃO HOMILÉTICA É desnecessário dizer quão apropriado é este texto para o dia de Pentecostes. Pedro poderia muito bem ter escolhido Ez 37 para seu sermão em At 2. O texto reúne os temas de juízo e morte, ressurreição, e o poder do Espírito para dar vida, que propiciam uma bela conclusão ao semester domini (semestre do Senhor) e abrem o semester ecclesiae (semestre da igreja) em grande estilo. Vento e espírito interagem no evento do Pentecostes (At 2), que teve lugar quando o povo disperso de Israel tinha-se reunido na terra para a Festa das Semanas. Embora a “sequidão” do exílio babilônico fosse já coisa do passado, a posse da terra prometida no AT era apenas uma esperança. Como foi no tempo dos discípulos de Jesus e no tempo de Ezequiel, assim também é hoje: ossos sem vida, ossos secos são uma boa descrição da vida sem Deus, da vida marcada por dúvidas e desespero diante das promessas de Deus que aparentemente não se cumprem, do que significa estar “morto” em pecados e transgressões. Assim como, na criação, Deus falou e a vida passou a existir, assim a palavra de Deus, falada pelo profeta, dá vida aos ossos secos. O Espírito que revelou a verdade de Deus a Ezequiel (v.1) é também o poder que dá vida aos ossos. Com o som de um vento impetuoso que vem dos quatro cantos da terra, Deus “assopra” vida em seu povo, para que eles saibam que ele é o Deus que cumpre o que prometeu. Este Espírito é também o “espírito” ou “sopro” de vida que possibilita e capacita a vida de fé, criada pela palavra de Deus em Cristo. O Espírito Santo é a “conexão” divina entre a Palavra e o cristão, pela qual somos renascidos no batismo e recebemos novidade de vida. No entanto, ao invés de reunir seu povo na “terra”, o poder do Espírito do Pentecostes no Novo Testamento amplia a promessa para incluir “todas as nações”, ou seja, impele a passar de Jerusalém, da Judéia e Samaria, aos 299 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 confins da terra. A “terra prometida” em que o povo de Deus se estabelece é todo aquele lugar onde Deus faz habitar seu nome, aquele lugar onde ele está presente em palavra e sacramento, por meio do ofício do ministério, os meios da graça que ele escolheu para fazer com que o sopro do Espírito dê vida a ossos secos. Andrew H. Bartelt St. Louis, MO 300 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Deuteronômio 6.4-9 15 de junho de 2003 CONTEXTO HISTÓRICO O contexto é de um Israel quase ou totalmente paganizado, que viveu quatro séculos sob a influência da fortíssima idolatria egípcia, como se pode ver na rapidez com que o povo se volta aos ídolos do Egito (bezerro de ouro, lembrando o boi Ápis). No Egito, era um povo sem assistência espiritual, a não ser a religião de pai para filho. Precisa ser doutrinado do zero por Moisés e sacerdotes e pelos chefes de família. Este povo vai rumo a outro contexto totalmente pagão (cananeus, com suas novas roupagens idólatras: divindades da fertilidade). Esta era a situação espiritual deste povo em marcha para a terra prometida, com muita carência espiritual e necessidade de doutrinação. TEXTO E COMENTÁRIOS No texto Deus recomenda o ensino e o aprendizado constante de sua palavra, nesta época ainda restrita apenas à lei de Moisés (Pentateuco). Qual a estratégia deste ensino e aprendizado, fundamental para Israel em seu novo habitat? a) repetição por parte do pai (chefe da família). Podemos dizer que a cada verbo corresponde uma situação especifica, na qual a palavra estaria disponível pela repetição da mesma aos ouvidos da família: – Deitar e levantar lembra a vida de oração em particular e em família; – Andar pelo caminho lembra o testemunho, o falar da fé aos outros, principalmente aos da família; – Assentado em casa lembra a devoção em família, o repetir constante das doutrinas e dos atos maravilhosos de Deus, liderado pelo pai da família, a quem cabe esta tarefa em especial; – Atar lembra distintivos cristãos; – Escrever nos umbrais aponta para quadros bíblicos ao invés de representações idólatras. b) repetição também nos eventos festivos – 3 grandes festas com duração de 7 dias cada. Um dos objetivos de Deus ter instituído estas festas (Páscoa, Tabernáculos, Pentecoste/ colheita: Ex 34.18ss) era promover um intensivo ensino da Lei aos israelitas, por isso a obrigatoriedade de todo o povo 301 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 acorrer 3 vezes ao ano ao local das festas. Como não tinha material escrito disponível, a necessidade de um constante “soar nos ouvidos” (Lutero) da palavra lida, pregada, explicada e aplicada por intermédio dos sacerdotes. c) Os encontros semanais nos locais de culto, para adoração e para o ouvir permanente da vontade divina, no local onde a arca pousasse (Silo, p.ex.). Seria esta a disciplina permanente, à qual Israel deveria se submeter para que, como Moisés escreve em Dt 28, o povo fosse abençoado devido à obediência e fidelidade à palavra (Lei), representante legal de Deus no mundo. A palavra de Deus se torna viva pela presença do Espírito Santo. É o que o Senhor Jesus dá a entender a Nicodemos no evangelho do dia (Jo 3.1-17). Assim, a palavra remete a Cristo. O Messias está profeticamente presente na palavra (Lei). Sendo repetida no tempo e no espaço no meio de Israel, constantemente o povo estaria lembrado de que só o Senhor é Deus em meio a um contexto outra vez totalmente pagão em que Israel seria introduzido (Canaã). Só a palavra (Lei) poderia guardar Israel de descambar para novas formas de idolatria. A palavra “amarraria” Israel a seu Deus. Verificando o comportamento de Israel depois de introduzido por Josué, sucessor de Moisés, na terra de Canaã, o que é flagrante são de fato as duas situações que se alternam: Israel é obediente à palavra e vive em paz; ou Israel é rebelde e descamba para a idolatria e é oprimido por estrangeiros e pelos vizinhos. Precisamos lembrar que o grande e até único motivo por que Deus destacou esta pequena nação e povo, que foi Israel, e o tirou do meio de outros grandes povos, foi preparar um “berço” para Cristo, o descendente de Abraão e prometido a Israel e ao mundo. SUGESTÃO DE TEMA E PROPOSTA HOMILÉTICA Deus vem na Palavra A. Na sua lei vindicatória Decálogo: condena o pecado da idolatria de todo o tipo: grosseira e disfarçada. Remete constantemente ao arrependimento, à renúncia dos ídolos, dos mais crassos aos mais sutis. Mostra qual é a santa vontade de Deus na vida do cristão. B. No seu doce evangelho Traz Cristo e sua presença viva. Aponta para um Deus real, vivo e compassivo. Guia à vida eterna, simbolizada pelo “descanso” que Deus prometeu a Israel em Canaã. 302 Heldo E. Bredow Curitiba, PR Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Deuteronômio 5.12-15 22 de junho de 2003 CONTEXTO HISTÓRICO Teologicamente falando, os capítulos 5-11 são os capítulos centrais do livro de Deuteronômio. Não é sem razão que o tema da contemporaneidade homilética da aliança soa imediatamente no v. 3 “Não foi com os nossos pais, mas sim conosco...”. Por esse motivo o cap. 5 reitera o Decálogo, epítome da aliança, seguido por um comentário onde se enfatiza que Deus delegara a tarefa de comunicar Sua revelação a Moisés, atendendo ao pedido do povo que se mostrara medroso. A observação do sábado no Antigo Testamento era fundamentada na alegria e no júbilo. Com esse objetivo fora instituído por Deus. Originalmente, o sábado oportuniza a igreja do Antigo Testamento a refletir sobre e viver a liberdade que Deus lhes havia dado, livrando-os da escravidão do Egito. Ao tempo do Novo Testamento, o conceito de alegria e liberdade deu lugar à tristeza e ao fardo. O evangelho de hoje (Mc 2.23-28) recupera essa alegria e liberdade, contrastando-as com a falsa interpretação e o legalismo patrulhador dos fariseus. O enfoque do sermão poderá ser o de enfatizar a alegria que o povo de Deus manifesta ao celebrar o sábado quando, descansando de suas obras, ouve o que Deus lhes tem a dizer. ASPECTOS HISTÓRICOS E TEXTUAIS O motivo dado para a guarda do sábado no v. 15 difere do fornecido em Êx 20.11. Aqui em Dt o Êxodo do Egito é o referencial para o sábado. Deus tira o Seu povo da casa da servidão “com mão poderosa e braço estendido, pelo que o SENHOR, teu Deus, te orientou (hwc) que guardasses o dia do sábado”. Em Êxodo o referencial é a obra criadora de Deus efetivada em seis dias, depois do que Yahweh descansa no sétimo dia. Os dois referenciais/ motivos não se opõem, mas se relacionam e se complementam. Como evento, o Êxodo é uma realidade histórica mais próxima dessa nova geração do povo de Deus que peregrina no deserto e que, nas planíci303 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 es de Moabe, se prepara para adentrar a terra prometida e viver sua vida cristã num contexto socialmente distinto e religiosamente hostil. Tipologicamente, o Êxodo é uma criação (uma nova criação!) e, por isso mesmo, forma uma analogia com a narrativa de Gênesis. Enquanto no Egito, o povo de Deus estava sob o domínio da escravidão tanto física (não havia dia de descanso) quanto espiritual (não lhes era permitido celebrar festa ao SENHOR – cf. Êx 5.1). A liberdade, como dádiva de Deus, tem desdobramentos físicos, espirituais e escatológicos. No v. 12 a forma verbal, “guardar/observar” é um infinitivo absoluto, aqui empregado com força imperativa. Entretanto, essa “ordem” não pode nem deve ser entendida como mandamento legalista cujo cumprimento merece ou produz libertação. Ao contrário, esta palavra indica a instituição graciosa de um meio que Deus estabeleceu para conceder alegria, bênção e vida ao Seu povo. “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado”, diz Jesus no evangelho de hoje. A palavra “sábado” relaciona-se ao verbo tbv, que significa “descansar”. Embora formas cognatas desse verbo se encontrem em outras línguas semíticas, não há entre as demais nações a evidência clara de um Dia de sábado. Logo, o sábado é uma peculiaridade da religião do povo de Deus no Antigo Testamento. A pergunta é: como se “guarda” ou se “observa” o sábado para o santificar? A resposta é uma só, ou seja, “descansando” na obra dos grandes feitos de libertação de Deus. “Santificar” implica separar para ser abençoado por Deus para uma função específica. Em última análise, este é um ato do próprio Deus assim como também Ele é o agente único da santificação. Lutero, no Catecismo Maior, diz que “santificar o dia de descanso quer dizer tanto como conservá-lo santo.” E continua: “O dia em si não precisa de santificação, pois já foi criado santo. Mas Deus quer que ele seja santo para a tua pessoa. De sorte que se torna santo ou profano por causa de ti, dependendo das atividades a que nele te entregares: se santas, ou profanas” (CM, I, 87). O v. 13 mostra que a seqüência dos dias de trabalho não são um fim em si. Na verdade são um meio cujo foco central é o sétimo dia. É o sétimo dia que dá sentido para todos os demais dias e momentos da existência humana. Trabalho e alimento não são o que dão valor, significado e sustentação à vida. Assim como simples descanso, ócio e recreação não são os objetivos últimos da vida. No v. 14 a preposição l diante de hwhy indica propriedade, ou seja, “pertencente a”. O sábado pertence ao SENHOR desde o momento em que Ele “descansou” da Sua atividade criadora em Gênesis. O que pertence ao SENHOR Ele o dá ao Seu povo. Todos são beneficiados com esse dom de Deus: homens, mulheres, filhos, filhas, servo, serva, estrangeiro, boi, jumen304 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 to e qualquer outro animal doméstico. A bênção é abrangente e deve ser compartilhada. O v. 15 dá o motivo para a observação do sábado. Israel não precisa trabalhar no sábado porque é momento de celebrar a libertação real e histórica ocorrida pela intervenção da mão poderosa e do braço estendido de Yahweh em favor do Seu povo. Os benefícios dessa libertação o povo agora, dentro de sua vivência e ética cristãs no mundo heterogêneo em que está, estende aos seus “servos”, ou seja, a seus empregados. O sábado é uma “re-atualização” dos atos salvíficos de Deus. No culto divino que a igreja cristã celebra no Dia do Senhor, essa igreja “ouve” a “re-atualização” da vitória que Deus dá a Seu povo pela ressurreição de Cristo. ANOTAÇÕES HOMILÉTICAS a) A relação expressa entre o sábado e o Êxodo é análoga à relação entre o Dia do Senhor (Ap 1.10; o primeiro dia da semana) e a ressurreição de Jesus Cristo. b) Assim como o Êxodo demarca a libertação e a “nova criação” do povo de Deus pela celebração do sábado, da mesma forma os atos salvíficos pela ressurreição de Cristo são “re-atualizados” no Dia do Senhor. c) Observando o “sábado”, nós descansamos de nossas tarefas e assentamo-nos aos pés de Jesus para “ouvir o evangelho” da boa-nova da redenção de Deus em Cristo – a única que dá sentido às nossas vidas e traz descanso às nossas almas. Acir Raymann São Leopoldo, RS 305 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Gênesis 3.9-15 29 de junho de 2002 INTRODUÇÃO Por mais estranho que seja, esta é a única vez que a série trienal possibilita pregar o proto-evangelho, Gn 3.15. (A série tradicional ou histórica reformulada, que é anual, marca Gn 3.1-19 para o primeiro domingo na Quaresma.) Como de costume na Série Trienal, o texto foi selecionado em função da leitura do evangelho do dia, Mc 3.20-35. No entanto, Gn 3.9-15 tem sua autonomia querigmática, que vale a pena explorar. O CONTEXTO A edição de Almeida apresenta os vv. 8-19 como um parágrafo. Diante disto, chama a atenção o início da perícope no v.9. A rigor, a inclusão do v. 8 não melhora o quadro. Como se trata da parte final de uma narrativa, será necessário, especialmente na leitura pública, inserir um pequeno texto-ponte, situando a perícope. Quanto ao final no v.15, trata-se, sem dúvida, de um recurso para fazer do proto-evangelho o clímax da perícope. No entanto, atenção ao que segue (vv. 16-19) ajuda a perceber que mesmo o protoevangelho é apenas um lampejo de esperança num contexto cheio de ameaças e juízo. Em outras palavras, o proto-evangelho (v.15) é, na verdade, uma sentença de juízo sobre a serpente. DETALHES DO TEXTO A primeira parte da perícope é marcada pelo diálogo entre o SENHOR Deus e o homem e a mulher. Logo de saída aparece a clássica pergunta, “(Adão), onde estás”? É a primeira de quatro perguntas. (Notar que nenhuma pergunta é dirigida à serpente.) São, a rigor, perguntas retóricas, porque aquele que pergunta já sabe a resposta. Aliás, as respostas do homem e da mulher nunca tratam daquilo que se perguntou. Ao “onde estás?”, o homem talvez devesse responder, “estou aqui”. No entanto, na resposta ele explica por que se escondeu. À pergunta se comeu da árvore proibida, o homem talvez deveria ter respondido “sim”. No entanto, ele já vai além e põe a culpa na mulher. Além de retóricas, as perguntas são 306 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 perguntas de lei (como, aliás, costuma acontecer em pregações: sempre que se faz perguntas, está-se pregando lei, pois o evangelho não pergunta nada.) Também não é nada novo apontar para a transferência de responsabilidade no diálogo entre Deus e o primeiro casal: foi a mulher, foi a serpente. (A serpente não tem a quem transferir responsabilidade, em parte, talvez, porque Deus não pergunta nada a ela. Num sentido, porém, a serpente “transfere a responsabilidade” ao ferir o calcanhar do descendente da mulher, em meio àquele conflito de que fala o v.15.) Um detalhe nem sempre percebido é que o anúncio do juízo vem em ordem inversa à do diálogo: homem (vv.9-12) – mulher (v.13) – serpente (vv.14-15) – mulher (v. 16) – Adão (vv.17-19). Isto ajuda a mostrar que o centro ou ponto alto do texto está no meio, ou seja, nos vv. 14-15. Nos vv. 14-15 há uma referência dupla, ou seja, Deus se dirige tanto ao animal (a serpente) quanto a quem fala por meio dele (Satanás). “Comer pó” (v.14) aponta para total derrota e humilhação (Sl 72.9; Is 49.23; 65.25; Mq 7.17). O v. 15 é o “primeiro evangelho”, na forma de uma maldição sobre a serpente/Satanás. O texto tem um certo tom enigmático, em parte, talvez, por vir revestido da imagística do jardim (ferir a cabeça, ferir o calcanhar). No entanto, é, de fato, o primeiro anúncio do evangelho, e anuncia que a obra da salvação será um conflito (o tema do Christus Victor). Embora nenhum outro descendente da mulher tivesse sido capaz de vencer o tentador, um, “nascido de mulher” (Gl 4.4), viria para “destruir as obras do diabo” (1 Jo 3.8). Neste conflito, o Descendente da mulher sofreu e morreu (Is 53.12; Lc 24.26,46; 1 Pe 1.11), vencendo o poder satânico. Jesus Cristo, executor da maldição de Deus sobre Satanás e herói da raça humana, possibilita ao ser humano um final vitorioso em sua luta com o inimigo, pois “o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás” (Rm 16.20). Outros textos que direta ou indiretamente repercutem Gn 3.15 são Jo 12.31; At 26.18; Rm 5.18-19; Hb 2.14; Ap 12.1-9. O TEXTO NUM CONTRAPONTO COM MC 3 Mc 3.20-35 é lido no 3º domingo após Pentecostes em parte porque, pela série trienal, se está fazendo uma leitura contínua de Marcos (recheada, diga-se de passagem, com textos de João). Existe, é claro, a referência à blasfêmia contra o Espírito Santo (Mc 3.28-30), mas dificilmente seria esta a razão por que o texto foi escolhido para integrar a série trienal num domingo tão próximo ao Pentecostes. Mas o que importa mesmo é que Gn 3 foi escolhido por causa de seu paralelo temático com Mc 3. Logo, vale a pena explorar este paralelismo. Seguem algumas pistas: 307 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Mc 3.20-35 é uma cena daquele conflito anunciado em Gn 3. A oposição satânica a Jesus é mediada (Satanás é mestre em disfarces!) através dos parentes de Jesus, que dizem que ele está louco (Mc 3.21), e dos escribas, que dizem estar ele possesso de Belzebu (v.22). Jesus entra na batalha, falando por meio de parábolas. Parábolas não são meras ilustrações; são petardos usados num conflito. Jesus mostra que Satanás não seria tão tolo a ponto de promover uma guerra civil. Em outras palavras, está dizendo que alguém de fora veio para amarrar o valente (v.27). Ele é este “alguém de fora”. Mais uma vez, é o conflito anunciado em Gn 3. Dizer que “é tudo a mesma coisa”, que Jesus está coligado com Satanás é blasfêmia. É blasfêmia, pois implica negar sua condição de Descendente da mulher que veio para esmagar a cabeça da Serpente. O Descendente da mulher tem também a sua “descendência”, que é estabelecida, não por laços sangüíneos, mas pela vivência da vontade de Deus (Mc 3.35). Também este conflito entre fazer a vontade de Deus e deixar de fazê-la (dando ouvidos a Satanás) é tão antigo quanto o episódio no jardim do Éden (Gn 3). Vilson Scholz São Leopoldo, RS 308 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Ezequiel 17.22-24 6 de julho de 2003 AS OUTRAS LEITURAS Salmo 92 – Título na Almeida: “Hino de gratidão a Deus”. Por quê? Porque as obras do SENHOR são grandes e os seus pensamentos profundos. Ele está contra os ímpios. Ainda que estes cresçam, o justo florescerá como a palmeira e crescerá como o cedro. 2 Coríntios 5.1-10 – Os crentes, por causa do pecado, gemem. Porém não devemos desanimar, visto que “andamos por fé” e nossos olhos dirigem-se ao grande alvo – habitar com o Senhor. Marcos 4.26-34 – Todas as coisas estão absolutamente sob o domínio de Deus. O que ao homem parece impossível, para Deus não é. Nas parábolas, Jesus nos ensina o mistério do crescimento do reino, bem como do seu alcance sobre todos os povos, raças e nações. CONTEXTO Para compreender a perícope, recomenda-se a leitura de todo o capítulo 17. O profeta propõe a parábola das duas águias e da videira (1-10), e ele mesmo a explica (11-21). Nabucodonosor, a grande águia, havia deportado o rei Joaquim para a Babilônia e em seu lugar estabelecera Zedequias. Este traiu a Nabucodonosor e, buscando favores do Faraó, a outra águia, quebrou a aliança feita. O profeta decreta o juízo sobre Zedequias. Depois, de forma maravilhosa, em apenas três versos, o profeta aponta o consolo, a esperança e a vitória: isto vem do SENHOR, e chegará o dia em que ele derrubará a árvore alta e fará florescer o renovo. “Esta simbólica promessa se tornou uma realidade quando Deus deu a Jesus de Nazaré ‘o trono do seu pai Davi’ e estabeleceu o seu universal e eterno reino messiânico - Lc 1.32; Ap 11.15” (Roehrs – Concordia Self-study Commentary). Liturgicamente, o crescimento e a expansão da igreja são temas enfocados. A profecia de Ezequiel é referência e base sólida para este crescimento. No evangelho, a parábola de Jesus tem esta profecia como pano de fundo. 309 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 O TEXTO V. 22: “assim diz o SENHOR” é enfático. O renovo é o Messias. V. 23: A Babilônia era a grande árvore, e as diversas nações estavam à sua sombra. Diante deste domínio secular, o contraste e a surpresa: Deus fará o “renovo de Israel” crescer e florescer, e será refúgio para todas as nações. A grandiosidade desta profecia só é captada quando vista no sentido espiritual. Nisto residiu muitas vezes a dificuldade do povo de Israel e até dos discípulos de Jesus. V. 24: A salvação do SENHOR será testemunhada por todos. O normal é as árvores altas continuarem crescendo e “sufocando” as baixas, bem como as verdes crescerem, ao passo que as secas apodrecem. A sublimidade e o impacto da ação divina são destacados aqui. O SENHOR faz o anormal e o sobrenatural, invertendo a situação. Isto é notável, é divino! SUGESTÃO HOMILÉTICA Tema: Deus faz sua igreja crescer 1. Porque ele quer - No plano da salvação Deus incluiu a sua igreja – a igreja universal. - Ele fez promessas. Escolheu um povo, “plantou uma árvore”. - Desta árvore fez brotar o renovo, o Messias. - Enxertou os gentios na árvore que plantou. - Deus faz sua igreja crescer porque é portadora do evangelho. - Somos árvore. Não nos compete questionar o meio salvador escolhido por Deus, mas temos o privilégio de crermos e, como igreja, abrigarmos outros, chamando-os à fé no Salvador. 2. Quando ele quer - No plano da salvação o tempo de Deus nem sempre é o nosso tempo. - Por que se passaram tantos séculos até a vinda do Messias? Por que é demorada a vinda do Senhor? (2 Pe 3.4). - Tanto no AT como no NT, Deus concede tempo para arrependimento (2 Pe 3.9) e mantém a sua árvore a fim de “dar abrigo” a muitos, mesmo que esta árvore, às vezes, pareça seca e morta. 3. Como ele quer - Para que o plano da salvação se cumpra, Deus dirige todas as coisas e faz tudo cooperar para sua execução. - Às vezes, os ímpios brotam e crescem esplendorosamente, enquanto os justos parecem esquecidos. 310 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 - Deus não revoga a justiça. Mesmo que sua árvore estivesse “sufocada” pela erva daninha (opressão da Babilônia), o SENHOR reprovou a traição e falsidade de Zedequias ao quebrar um juramento. - Tempos de aflição sobre a igreja são tempos úteis sob os sábios propósitos de Deus e sempre redundarão em bênção. - Os feitos maravilhosos do SENHOR, bem como as suas promessas, que sempre se cumprem, são a fonte de confiança e esperança da igreja. Deus e seu povo sempre são vitoriosos, pois Deus derruba a árvore alta e faz crescer a baixa – para que todos saibam que ele é o SENHOR. Elton R. Luithardt Concórdia, SC 311 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 DEVOÇÕES A MELHOR COISA DA VIDA Amós 5.6-15 De vez em quando, Amós se levanta na Igreja, uns 2700 anos depois, para uma mensagem de impacto. Acontece só de vez em quando, três vezes ao longo de três anos, segundo a previsão da Série Trienal. Apenas o suficiente, não mais e não menos, assim nos parece, porque a mensagem de Amós é perigosa, explosiva. Muita lei. Por isso é preciso manter Amós sob controle, preso entre as capas do Livro. Uma das últimas vezes que ele mexeu comigo – e, talvez, com alguns outros aqui presentes — foi uns 15 anos atrás [será que já faz tanto tempo?], quando o lema da Igreja Luterana era exatamente o texto de hoje: “Buscai ao SENHOR, e vivei” (Am 5.6). Buscai ao SENHOR e vivei. Responda rápido: Qual a melhor coisa da vida? Cuidado, é uma pergunta traiçoeira. (É como aquela pergunta: O que você quer ser quando crescer? Resposta: Quero ser eu.) Qual a melhor coisa da vida? Pois a melhor coisa da vida ainda é viver. Pura e simplesmente viver. Vida é aquilo que a gente considera coisa normal e natural. Até que comece a ser ameaçada. Aí tudo muda. Em geral, valorizamos os dons de Deus quando nos são tirados ou ameaçados. Também a vida. Nos dias de Amós, a vida de Israel estava começando a ser ameaçada. A nuvem negra da morte se aproximava, vinda do norte. O grande sufoco final só viria mesmo uns 25 anos mais tarde. Agora, na pregação de Amós a morte já é uma realidade. Sua pregação é lei severa, sombria. “Preparate, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus” (4.12). As metáforas são lindas, mas a mensagem é terrível. A linguagem é poética, mas o cheiro é de morte. Talvez a mais sensacional seja aquela de Am 5.18-20, aquela do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. (Ver também 2.13; 8.11,12) No meio de tanta escuridão e golpe de lei em cima de golpe de lei, há um só lampejo de esperança e de evangelho: Buscai ao SENHOR, e vivei (vivereis). Ah, tem também a grande promessa de restauração, no final 312 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 (9.11-15). Mas isto é no final, um final feliz, diria alguém. Antes disto, o evangelho vem só na forma do “Buscai ao SENHOR, e vivei”. É mais um imperativo evangélico do que evangelho propriamente, mas merece nossa reflexão. Se queremos vida, a saída é buscar o SENHOR, com ênfase em SENHOR, Javé. Amós não podia mais partir do pressuposto que todos entenderiam de quem ele estava falando ao pronunciar o nome sagrado. Por isso, parte de sua mensagem é esclarecer a teologia naquilo que ela tem de mais central, que é a visão que se tem de Deus. Foi preciso amplificar ou ampliar o conceito de Deus. Não que Deus tivesse ficado maior; ao contrário, o conceito do povo é que tinha encolhido. “Deus é brasileiro” – isto nos parece tão verdadeiro, especialmente quando a Argentina é eliminada precocemente da Copa do Mundo. Mas, se levado a sério, parece dizer que não existe Deus nas margens direitas do rio Uruguai. Israel tinha domesticado Javé, transformando-o numa espécie de ídolo nacional. Amós, como porta-voz de Deus, se volta contra essas idéias. Além de preferir a expressão “Deus dos Exércitos”, que a Linguagem de Hoje coloca como “Deus Todo-poderoso” (ver 5.14), e além de nunca falar em “Deus de Israel”, Amós lembra, em Am 9.7: “Povo de Israel, eu amo o povo da Etiópia tanto quanto amo vocês. Assim como eu trouxe vocês do Egito, eu também trouxe os filisteus da ilha de Creta e os arameus da terra de Quir”. Parece que se diluiu o “escândalo da particularidade”. Mas não é isto que Amós quer. Ele quer mesmo é tirar as viseiras do povo, mostrando que Deus não cabe em nossos esquemas limitados. É o que Amós faz também em 5.8-9, aquele poema que a perícope omite: “O SENHOR Deus criou as estrelas, as Sete-Cabrinhas e as Três Marias. Ele faz a noite virar dia e o dia virar noite. Etc.” É este SENHOR que Amós manda buscar. É claro, isto nos parece paradoxal, pois quanto maior é este Deus que nos é apresentado, e mais “contraditório”, parece que mais difícil fica poder buscá-lo. Aqui é preciso lembrar que a própria mensagem que convida é ela própria a proximidade de Deus. Além disso, o SENHOR que se busca é, acima e antes de tudo, o Deus da aliança, o Deus que se compromete com a salvação de seu povo. Hoje, talvez, tenhamos que fazer o contrário do que Amós tinha que fazer. Há uma noção da grandeza de Deus, da sua onipresença, mas perdese de vista o específico da revelação de Deus, o assim chamado escândalo da particularidade, o fato de Deus se revelar apenas na face de Cristo. Buscai o SENHOR significa, em nosso contexto: Buscai a Jesus. Fora dele não há salvação. Se quereis viver, buscai ao SENHOR. Agora que sabemos quem ele é, basta buscá-lo. Mas nem tudo é tão simples. Onde podemos encontrá-lo? 313 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Os israelitas tinham certeza de que não precisavam ser instruídos a respeito disto. A solução era ir a Betel ou Gilgal, santuários do reino do Norte. A resposta deles, bastante afoita, talvez fosse: “Que tu achas, vaqueiro feito profeta, que estamos fazendo?! Estamos buscando o SENHOR, indo aos santuários”. Amós choca todo mundo, ao anunciar: “Povo de Israel, vocês querem pecar? Pois vão aos santuários de Betel e de Gilgal e ali pequem à vontade!” (Am 4.4) “O SENHOR diz ao seu povo: - Eu odeio, eu detesto as suas festas religiosas; não tolero as suas reuniões solenes. Não aceito animais que são queimados em sacrifício ... Parem com o barulho de suas canções religiosas; não quero mais ouvir a música de harpas. Em vez disso, quero que haja tanta justiça como as águas de uma enchente ...” (Am 5.2124). Não se trata de bairrismo, pois Amós não diz: É preciso ir a Jerusalém! Parece que, na mensagem de Amós, a religião foi secularizada. Parece. O que acontece é que Amós lembra a dimensão da assim chamada segunda tábua da Lei (Am 5.14 – “buscai o bem e não o mal”). Será, então, que temos aqui uma contestação da religião, especialmente do sistema sacrificial, em nome da ética? Na verdade, o que profetas como Amós contestam é uma religiosidade exterior apenas, uma religião sem arrependimento, um ritual sem conseqüências práticas, um culto sem lei e evangelho. Aqui é preciso lembrar que, no caso dos ouvintes de Amós, buscar o SENHOR era nada mais nada menos que ouvir a mensagem do profeta, crer nela, e colocála em prática. E o mesmo vale para nós hoje. Amós redivivo. Amós fala ainda hoje. Ele é o profeta da justiça social, mas, acima de tudo, é o profeta do “Buscai ao SENHOR e vivei”. Esta frase é só dele, na Bíblia. Que significa para nós hoje? Significa o que significou para os ouvintes de Amós, só que 2700 anos depois, no depois de Cristo. No hoje de 2002 significa buscar o Deus verdadeiro, Pai, Filho e Espírito Santo. Significa buscá-lo sempre, na vida de culto e no culto da vida. Significa buscá-lo na revelação em Cristo. Significa buscá-lo ali onde ele prometeu se fazer presente, e presente de forma que nos seja conveniente, por ser presença salvífica: na mensagem de lei e evangelho, que nos leva de volta ao batismo; na palavra visível do sacramento do altar, que volve nosso olhar ao “até que ele venha”. Buscai ao SENHOR Jesus, e vivereis. Amém. Mensagem proferida na Capela do Seminário Concórdia pelo Dr. Vilson Scholz, no dia 23 de outubro de 2002. 314 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 CAMINHO, VERDADE E VIDA Corria o ano de 1517. Os portugueses já tinham chegado ao nosso Brasil, mas os alemães parece que não ficaram sabendo, ou, se sabiam, não ligaram muito. Mais um dia de todos os santos estava chegando e tudo parecia “igual ao que era dantes no quartel de Abrantes”. Ao menos em Wittenberg, nos grotões do Império da época. Até que um monge e professor universitário aparece com um pedaço de papel na mão. Ele afixa o papel na porta lateral da Igreja do Castelo da cidade. Aquela porta era o quadro de anúncios ou quadro mural daquele tempo. No papel estão 95 teses ou afirmações. É um desafio para um debate. Quem desafia é Lutero. Os desafiados são os teólogos, por isso o texto está em latim. O assunto do debate é a venda de indulgências, um tipo de perdão enlatado que se comprava mais ou menos como hoje se faz um seguro: pra garantir, ou, para evitar o pior. Fé em Cristo e novidade de vida não eram lá tão importantes assim. Pois, “as marteladas de Lutero afixando aquelas 95 teses” – como disse um eloqüente pregador do passado — “ribombaram na igreja do Castelo de Wittenberg”. E estão ribombando ainda hoje, fazendo com que a gente se reúna aqui para refletir sobre a Reforma. Todo mundo sabe que “reforma” não é o mesmo que “construção”. Reforma é limpeza, é restauração. Não foi intenção dos reformadores fundar uma nova igreja. O objetivo também não é reformar prédios, costumes e tradições, se bem que esses também podem e às vezes precisam ser reformados. O objetivo é reformar o ensino da igreja, aquilo que se anuncia dos púlpitos e ensina em casa e em público. A Reforma quis e ainda quer lutar pela verdade do evangelho. A Reforma foi e ainda é acima de tudo um movimento religioso. Ela tem a ver com religião e espiritualidade. Trata de como a gente chega a Deus, ou, melhor, como Deus chega até nós. 315 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 E quando se fala em religião, existem três, ou, melhor, existem quatro grandes possibilidades ou formas de ser religioso. A primeira opção é a do moralista. Muita gente acha que religião é isso aí mesmo: só moral. Tem aquilo que é certo e aquilo que é errado. Gente boa vai pro céu, gente ruim vai pro inferno. Tem regra pra tudo, e tudo precisa ser seguido à risca. A gente precisa ter o máximo cuidado para não errar nunca. Quem não está cansado de ouvir a pergunta: E o que é que a tua igreja proíbe? Esta é a pergunta do moralista, ou, ao menos uma pergunta feita por causa dos moralistas. A segunda opção é a do sábio. É preciso pensar, investigar, entender. É preciso descobrir a verdade, os fatos. De tanto filosofar, quem sabe a gente chega a Deus. Ou, então, de tanto reunir provas a gente acaba se convencendo. Um dia aparece uma descoberta arqueológica, mais uma urna mortuária, e a gente se convence ou convence alguém. Como escreve o Sr. Sergio Jockymann, a propósito daquela inscrição “Tiago, filho de José, irmão de Jesus”: “Como os senhores sabem, não existem provas históricas da existência de Jesus”. E no final da coluna: “Sinto muito, mas ainda não foi desta vez que me convenceram. Mas, por favor, já que vocês estão aí, continuem tentando”. (Crônica publicada no Jornal Vale do Sinos, 25/10/2002) A terceira opção é a do místico. Se a gente quer, a gente pode alçar vôo e ter um contato direto com o sobrenatural. Hinduísmo, nova era, técnicas de meditação, revelações diretas do Espírito Santo, tudo entra na mesma categoria. Eu disse que existem três, ou, melhor, que existem quatro maneiras de ser religioso. A quarta maneira é aquela que a Reforma ensina. Ela é a opção bíblica. É tirada de Romanos, livro de enorme importância para a Reforma. Começa com um tríplice “não”. Eu leio Romanos 3.10-11: “Está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus”. Não há justo – este é o beco sem saída do moralista. Não há quem entenda – esta é a grande verdade para o sábio. Não há quem busque a Deus – este é o golpe de misericórdia no místico. Mas o tríplice “não” é seguido de uma sonora afirmação. Quero ler um texto de João, que, segundo Lutero, é mestre em justificação, a grande redescoberta da Reforma. Leio João 14.6: “Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. 316 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 O moralista quer um caminho. Jesus responde: Eu sou o caminho. O sábio busca a verdade: Jesus responde: Eu sou a verdade. O místico busca a vida. Jesus responde: Eu sou a vida. Esta é a opção cristã, enfatizada e sublinhada pela Reforma: não sou eu que vou a Deus, pois acabo sempre dando com a porta na cara. É que ele já veio a mim em Jesus Cristo, caminho, verdade e vida. É isso que a Reforma prega. Não só hoje e não apenas com palavras faladas. O musical “Libertação” fala disso também, do seu jeito musicado, com palavras que vêm direto do texto bíblico. E, pelo que consta, o ponto alto é justamente este: Jesus dizendo: Sou o caminho, a verdade, e a vida! Nada é mais central para a Reforma do que isto. Deus vos abençoe. Amém. Mensagem proferida pelo Dr. Vilson Scholz na Celebração Conjunta (IELB-IECLB) dos 485 anos da Reforma, na Igreja da Reconciliação, Porto Alegre, no dia 31 de outubro de 2002. 317 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 CORREI DE TAL MANEIRA... 1 Coríntios 9.24-10.5 Há duas semanas os meios de comunicação se reportaram a um acontecimento que marcou a vida dos brasileiros há 40 anos. Era o que se chamava de Cadeia da Legalidade. Ela surgiu quando o presidente Jânio Quadros renunciou e as forças militares impediram que o vice-presidente João Goulart assumisse. Uma resistência a essa medida dos militares começou no Rio Grande do Sul. A situação foi-se escalonando até a iminência de o exército bombardear o palácio Piratini, em Porto Alegre. Era o meu segundo ano no Seminário, no segundo ginasial, guri de 14 anos. A tensão foi crescendo no estado e na cidade: as escolas fecharam, o Seminário cancelou as aulas. Lembro-me que não havia clima para estudar e o que restava fazer era praticar esporte. O esporte aliviava a tensão, fazia-nos esquecer as ameaças – o esporte era um símbolo de tranqüilidade e paz, até que tivemos de evacuar o Seminário. Esta semana o mundo foi surpreendido por essa tragédia que assola e assombra a vida do povo americano. Desde terça estamos envolvidos num clima de tensão, perplexidade, consternação de amplitude mundial. Milhares de pessoas estão mortas – entre elas cristãos e, sem dúvida, inúmeros irmãos luteranos. A julgar pelos desdobramentos, estamos na iminência de uma nova guerra: escolas fechadas, cidades sendo evacuadas e a temporada de esporte, que poderia aliviar a tensão, foi cancelada - até mesmo a temporada de baseball que nunca fora interrompida desde a primeira guerra mundial. Se muitas vezes o esporte foi ameaçado pela guerra, olimpíadas foram suspensas por causa de conflitos, é possível e necessário relacionar o esporte com a paz. Cenas marcantes nesse sentido ocorreram em competições internacionais recentes quando, por exemplo, a comitiva da Coréia do Norte e do Sul entraram no estádio empunhando juntas a mesma bandeira. Mais marcante ainda quando Estados Unidos e Irã, inimigos políticos, se abraçam e se dão flores antes de um jogo de futebol. Só por esporte, entrei 318 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 na Internet esta semana para efetuar a busca do binômio “esporte + paz”. O resultado apareceu: mais de 914.000 mil entradas. Confesso que na quarta de manhã eu estava pronto a sugerir que nós, por solidariedade e respeito, cancelássemos os jogos “Azul e Branco”. Desisti da idéia quando pensei que também uma festa esportiva pode ser um meio de se abdicar da violência e acima de tudo exercitar a promoção da paz, da verdadeira paz. Paz não é bem o que se vê na congregação de Corinto. Nela há divisões e intrigas com muitos minimizando Paulo como apóstolo e o seu evangelho simplista do Cristo crucificado. Os cristãos de Corinto defendem as coisas que consideram do seu direito. Divergem num assunto que é estranho para nós. Alguns deles teimam que se pode comer a carne comprada no açougue para o churrasco, mesmo que antes tenha sido oferecida a ídolos. E apresentam três argumentos: (1) eles têm o direito de comer aquela carne porque existe apenas um Deus; (2) porque eles são mais sábios e mais fortes do que aqueles irmãos que têm escrúpulos em comer essa carne e (3) e que estando no seu direito, não há razão para deixar de exercê-lo. Paulo concorda que eles até têm esse direito. Mas insistir no exercício desse direito em detrimento do seus irmãos mais fracos é sinal de intolerância e falta de amor. Nos primeiros 23 versículos do cap. 9, Paulo contrasta a atitude daqueles que insistem em alimentar-se dessa carne com a atitude que ele Paulo tem em relação a uma outra questão. Paulo afirma, por exemplo, que ele tem o direito de comer e beber às expensas dos irmãos a quem ele ministra o evangelho. Para isso ele cita o AT, a vida dos seus colegas apóstolos e o ensino de Jesus. Apesar do seu inegável direito de comer e beber às expensas deles, Paulo deixa de lado esse direito para que, como diz ele, o ministério do evangelho e da paz possa ser fortalecido. Os cristãos de Corinto que se sentiam livres para comer a carne sacrificada aos ídolos pensavam que eles eram mais sábios, mais fortes e mais espirituais do que os seus irmãos. É no seu suposto conhecimento superior que o seu direito se fundamenta. As palavras do apóstolo no início do vers. “Não sabeis vós ...” se equivalem às palavras de Jesus quando perguntava: “Não tendes lido...?” Estes cristãos orgulhavam-se do seu conhecimento, mas, na verdade, estavam despreparados, ou seja, a sua espiritualidade estava fora de forma. A festa esportiva perto de Corinto realizava-se a cada dois anos. Era um grande evento que se caracterizava por extravagantes festivais de religião, competições, atletismo e arte, atraindo milhares de atletas e visitantes de 319 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 todo o império. Segundo alguns, Paulo esteve em Corinto durante os jogos da primavera do ano 51. Visto que não havia acomodações suficientes, todos tinham de alojar-se em tendas. Imagina-se que Paulo teria tido grandes oportunidades de vender tendas visto que ele era fazedor de tendas, e partilhar o evangelho da paz com a multidão que comparecera aos jogos. Muitos são os que participam de uma corrida, mas apenas um é o vencedor. Vimos isso ontem no campus e o veremos daqui a pouco. Cada competidor busca apenas vencer a corrida ou o jogo. Mas apenas um leva o prêmio. Os coríntios e nós somos convidados a fazer o mesmo que se faz nos jogos – correr “de tal maneira” que alcancemos o prêmio. É oportuno lembrar que o apóstolo aqui não está se referindo à salvação. Ele não está conclamando o perdedor a que se empenhe mais para alcançar o alvo da salvação. Eles já são santos! Paulo está desafiando os santos de Corinto e torcendo por eles a que lutem para cumprir a sua vocação de santos. As palavras do apóstolo aqui devem ser entendidas à luz do que ele diz em 2 Tm 2: “participa dos meus sofrimentos como bom soldado de Cristo Jesus. Nenhum soldado em serviço se envolve em negócios desta vida, porque o seu objetivo é satisfazer aquele que o arregimentou. Igualmente o atleta não é coroado se não lutar segundo as normas.” Corridas e jogos não são ganhos automaticamente. Há normas e cuidados a serem seguidos. Dentre os 914.000 daqueles sites na Internet, abri um que orienta como tornar-se um excelente atleta. Embora já não seja mais tanto do meu interesse pessoal, chamou-me a atenção naquele artigo que as duas características de um excelente atleta são competitividade e vigilância. Competitividade não no sentido de querer ganhar a qualquer custo, mas de procurar sempre fazer o melhor que se pode. Vigilância no sentido de ter sempre em mente o alvo e nele se concentrar evitando provocações, rivalidade e ameaças ao seu redor. A partir do nosso texto, além dessas duas eu acrescentaria a tolerância: ou seja, não se sobrepor ao mais fraco no sentido de abusar dele e minimizá-lo. Talvez fossem estes os cuidados que tinham os atletas de Corinto e, sem dúvida, são estes os cuidados que também vocês estão tendo neste “Azul e Branco”. Se isso é verdade no campo de esportes, tanto mais como cristãos estamos dispostos a exercitar a competitividade, a vigilância e a tolerância para vencer a corrida que nos está proposta. No segundo século a coroa dada ao vencedor era feita de galho de pinheiro ou folhas murchas de aipo. Nós corremos para ganhar uma coroa eterna, imarcescível, que nos foi conquistada por meio de uma coroa de espinhos. 320 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Das corridas que aconteciam perto de Corinto, o apóstolo volta-se para uma outra corrida, uma corrida na história há 1400 anos - a corrida da primeira geração de israelitas ao deixar o Egito em direção à Terra Prometida. Paulo refere-se a eles como “nossos pais” – pois quer que aprendamos com eles. Os israelitas tiveram a bênção de sair correndo do Egito, mas quando atravessaram o mar em seco e cruzaram a linha na praia do outro lado do mar Vermelho, olharam para trás e pensaram: “Nós vencemos! Nós ganhamos!” Essa autoconfiança, como muitas vezes se viu na história de Israel, começa a substituir a confiança deles no SENHOR. “Correi de tal maneira que o alcanceis”, diz o texto. A ênfase está no “de tal maneira”. Só há uma maneira de nos mantermos em forma espiritualmente e de fortalecermos o ministério do evangelho e da paz. Claro, Deus não se agradou da maioria dos do povo de Israel, mas agradou-se de pelos menos dois. Foram os que entenderam que a corrida espiritual envolve competitividade, vigilância e tolerância sim, mas acima de tudo confiança nAquele que tem o poder de os livrar da escravidão, dAquele que se entrega no Batismo e Santa Ceia, e dAquele que é a pedra viva que não quer ser batida com vara como fez Moisés no deserto, mas que quer o diálogo conosco para nos aliviar de tensões e incertezas e trazer paz à nossa alma. Se em grande parte de textos ouvimos Jesus dizer “segue-me”, aqui neste texto há uma inversão: Ele nos segue nessa corrida – porque Ele já a correu por nós, já chegou ao fim da linha, e já voltou para estar junto, atrás de nós e ao nosso lado para nos fortalecer e, quando exaustos, nos carregar. Nesta corrida a vitória é de um só: do cristão. Mas ele não é apenas um nem dois, são milhares e milhões, bilhões. Estamos em meio a uma festa esportiva no campus. Que o espírito da alegria, da vitória, da tolerância e amor continuem. Que de todas as formas ela simbolize a promoção da paz – acima de tudo da verdadeira paz. Sermão proferido pelo Dr. Acir Raymann na capela do Seminário Concórdia no culto especial da Festa Esportiva, no dia 16 de setembro de 2001. 321 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 VERDADES E VERSÕES Isaías 53.10-12 Prezados irmãos e irmãs em Cristo. Há algumas semanas a revista VEJA estampou como matéria de capa a mentira. Não que as pessoas sejam descaradamente mentirosas. Mostrou em um artigo bastante amplo o fato de as pessoas em campanha política prometerem coisas, afirmarem coisas que acreditam ser verdades, promessas que acreditam poder realizar, mas que se revelam totalmente inconseqüentes. É verdade. Existem pessoas que mentem ou manipulam fatos para chegar a certos fins. Existem outros que, por ingenuidade ou ignorância, são sinceramente crentes das suas próprias meias-verdades e inverdades. As pessoas não vivem a vida. Vivem versões da sua vida. Há pessoas que passam a vida acreditando piamente que a verdade consiste na versão que elas dão dos fatos, como se não existisse outra versão possível. A pergunta é: qual é a versão dos fatos que governa a minha vida? É possível que eu seja vítima da versão que tenho dos fatos? Isaías 53 apresenta uma versão dos fatos que foi intragável para Israel e que tem sido difícil, senão impossível, para muitos. Especialmente a verdade exposta nesse texto, 10-12. O texto opõe dois fatos. De um lado, iniqüidade, transgressão e pecado que, do outro lado se opõe a vida em oferta, trabalho, intercessão e justificação. Essa revelação é a que é sobre-humana de aceitar: que haja pecado/ culpa digna de tão imenso castigo e punição. Não é esta a imagem que o ser humano quer de si próprio. As suas mentiras e versões que dá de si próprio parecem ainda ser o seu mal menor. O texto mostra a vida humana necessitando de um trabalho indescritível de resgate. 322 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 O Senhor, então, preferiu, planejou, decidiu, diz o texto. Ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar. De todas as opções que Deus poderia levantar, de todas as hipóteses que Deus poderia imaginar, Deus, o SENHOR, optou e decidiu ser moído, ser triturado, ser esmagado, suportar sozinho toda a carga de castigo e retaliação que o pecado exigiu. Essas palavras de Isaías estiveram sempre presentes diante do povo de Israel, no seu culto, na sua devoção, através dos tempos. Mas o povo leu e recitou essas palavras olhando para as suas próprias feridas e sofrimentos. Era odioso ao povo reconhecer no servo transfigurado pelo sofrimento o contraponto da sua própria iniqüidade. Entretanto, ao mesmo tempo, o profeta anuncia que o SERVO verá a posteridade e que haverá prosperidade na seqüência de seu trabalho: a vontade do Senhor prosperará nas suas mãos. Finalmente, com os poderosos repartirá os despojos. O ser humano não consegue olhar tempo suficiente para esse quadro. O SERVO SOFREDOR é uma figura subumana. As pessoas desviam rapidamente o rosto. O quadro é insuportável. Quando Jesus se identifica com esse quadro e diz aos discípulos que é necessário sofrer, Pedro exclama: Não, Senhor. Isso jamais. Pedro, como todo o Israel, tem a sua própria versão para explicar os fatos. Pedro sente que o fato de que Deus decidiu moer e fazer sofrer o seu servo, esse fato tem de ser interpretado. Essa é também a dificuldade que cristãos experimentam. Apresentam uma versão de si próprios. Como se aquele quadro não fosse o seu. O ser humano, dizem os fatos em Isaías, exigiu que o SERVO fosse moído. A iniqüidade do ser humano é irremediável. Todas as suas justiças são como pano de limpar imundícies. O ser humano prefere a sua própria versão. Como se fazer certas obras, mostrar certos esforços, acolher certas obras, pudesse criar uma nova versão para o fato de que somos iníquos em tudo que fazemos e pensamos. Como é patético ver alguém que interpreta a Escritura fazer cara e pose de quem tem uma versão própria da Escritura, como se tivesse vencido em si a iniqüidade. Isaías apresenta duas realidades: a decisão e conseqüente ação de Deus de moer o SERVO por causa do pecado. E do outro lado em cada ser humano está o pecado, a transgressão, a iniqüidade em função do que aquele fato acontece. Esses são os fatos. Não há nenhuma versão que amenize o horror. 323 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 Mas o surpreendente é que, mantidos esses fatos, sem outra versão, o conhecimento destes fatos, sem outra versão, isso é que justifica. E nada mais existe. A vida do crente não é uma versão nova. A vida do crente consiste em nada mais do que em ser iníquo e saber-se justificado por Deus. Assim estamos diante de Deus. Não apresentando uma versão nova da nossa vida como se dependêssemos disso para sentir-nos povo de Deus. Assim, dessa maneira indigna, unicamente pela fé, somos o despojo e a prosperidade do SERVO sofredor. Exatamente apresentandonos com a nossa renovada iniqüidade, com a nossa iniqüidade pela qual ele derramou sua vida. Se queremos parecer menos iníquos do que somos, desvalorizamos a vida que foi entregue e derramada por nós. Deus quer a nossa verdade. Não a versão que nós preferimos dar da nossa vida. Deus não quer nossas promessas. Deus quer a verdade. E lá está o SERVO ainda intercedendo por cada um de nós, para que não caiamos em tentação de apresentarmos nossa vida como uma nova versão da raça humana. Essa verdade foi intragável a Pedro, ao povo de Israel e creio que cada um de nós tem sérias dificuldades com ela. Esse mistério do simul justus et peccator recusa qualquer versão que alguém queira apresentar a Deus. A verdade. Nada mais que a verdade. Versões são mentiras. Entretanto, que grande consolo e alívio isso tem sido para muitos e para nós. Não dependemos de versões santificadas de nós próprios para sabermos que Deus nos aceitou. E bem por isso Deus aceita a vida de cada um com a sua própria versão. Ao mesmo tempo essa é a única possibilidade de andarmos juntos, em comunhão, como povo redimido de Deus. Eu não posso impor a minha versão de vida cristã como verdade para ti. Nem tu podes impor a tua versão de vida cristã, de cristão, sobre mim. Deus me deu conhecimento da realidade: Ele me diz: tu és pecador. Eu sou teu Salvador. Vive esta versão que não é versão. Estes são os fatos. Vive estes fatos ali, como e onde Deus te chamou. Tu és povo de Deus. Pessoa de Deus. Somos uma comunhão de crentes. Não precisamos analisar ou julgar a versão de cada um. Cada um pela fé subsiste diante de Deus com a sua própria identidade, a sua versão mais autêntica e verdadeira. Devoção proferida pelo Prof. Paulo P. Weirich na capela do Seminário Concórdia em 16 de outubro de 2002. 324 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 RESCENSÃO SUMÁRIO DA DOUTRINA CRISTà Por Edward W. A. Koehler. 3.ed. revista e atualizada. Porto Alegre: Concórdia, 2002. 224 p. O Sumário é bem familiar à maioria dos pastores da IELB, bem como a muitos que, mesmo não tendo concluído o Curso de Teologia, foram alunos dos nossos Seminários. É uma obra querida, pois apresenta, de forma resumida, as principais doutrinas bíblicas. Foi lançado em terceira edição, chamada de “revista e atualizada” com o desejo, por parte da Igreja, de que ele se torne também querido ao povo, a fim de que este cresça no conhecimento daquilo que cremos e confessamos. É uma edição, por isso, aprimorada, apresentando, entre outros aspectos, correção ortográfica e gramatical, substituição de termos cujo sentido foi enfraquecido com o passar do tempo e indicações de fonte das Confissões Luteranas na edição em língua portuguesa do Livro de Concórdia. O autor (1875-1951) foi pastor e professor da Lutheran Church Missouri Synod nos Estados Unidos. Ao preparar o Sumário, pretendeu oferecer ao povo cristão o acesso aos ensinos bíblicos a todos aqueles que buscam algo mais além do conhecimento trazido pelo Catecismo Menor. Por essa razão, quem tem contato com o seu conteúdo pela primeira vez, poderá interromper a leitura diante de termos teológicos até então desconhecidos (gênero apotelesmático, por exemplo). Tais expressões, além de necessárias dentro da linguagem teológica, funcionam como um tempero a dar sabor diferente a um prato já conhecido. Apesar da sua presença inesperada, contribuirá para melhor saborearmos aquilo que nos é oferecido. A propósito, procure saborear a comunicação dos atributos na pessoa de Jesus Cristo com uma pitada de gênero apotelesmático, mas não esqueça de acrescentar também uma porção do idiomático e do majestático e depois passe a receita adiante! O Sumário é obra antiga, sem dúvida, contudo continua sendo parte daquilo que de melhor temos na língua portuguesa em exposição resumida das doutrinas de nossa fé cristã. Sua reedição, portanto, se justifica, pois permanece com a qualidade de ferramenta útil para aqueles que desejam ter às mãos instrumentos que ajudam a construir maior e mais sólido conhe325 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 cimento das coisas que Deus nos revelou. A IELB reconhece esse valor do Sumário, razão pela qual não somente o reeditou, mas também o incluiu na literatura que acompanhará o PEM (Programa de Evangelização e Mordomia) daqui em diante. Paulo Moisés Nerbas 326 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 FICHA DE ASSINATURA SIM! DESEJO FAZER UMA ASSINATURA DA REVISTA IGREJA LUTERANA. PARA ISSO, ESTOU ASSINALANDO UMA DAS SEGUINTES OPÇÕES: • • UMA ASSINATURA DE IGREJA LUTERANA POR UM ANO, POR R$ 17,00 UMA ASSINATURA DE IGREJA LUTERANA POR DOIS ANOS, POR R$ 30,00. NOME RUA OU CAIXA POSTAL CEP CIDADE ESTADO Após preenchida, coloque num envelope esta folha acompanhada de cheque nominal ao Seminário Concórdia no valor correspondente e remeta-o para: REVISTA IGREJA LUTERANA CAIXA POSTAL, 202 - 93.001-970 SÃO LEOPOLDO, RS ASSINATURA DE PRESENTE: SIM! DESEJO PRESENTEAR COM UMA ASSINATURA DA REVISTA IGREJA LUTERANA A PESSOA INDICADA NO ENDEREÇO ABAIXO. PARA ISSO, ESTOU ASSINALANDO UMA DAS SEGUINTES OPÇÕES: • • UMA ASSINATURA DE IGREJA LUTERANA POR UM ANO, POR R$ 17,00 UMA ASSINATURA DE IGREJA LUTERANA POR DOIS ANOS, POR R$ 30,00. NOME RUA OU CAIXA POSTAL CEP CIDADE ESTADO Após preenchida, coloque num envelope esta folha acompanhada de cheque nominal ao Seminário Concórdia no valor correspondente e remeta-o para: REVISTA IGREJA LUTERANA CAIXA POSTAL, 202 - 93.001-970 SÃO LEOPOLDO, RS 327 Igreja Luterana - nº 2 - 2002 SEMINÁRIO CONCÓRDIA Diretor Paulo Moisés Nerbas Professores Acir Raymann, Clóvis Jair Prunzel, Ely Prieto, Gerson Luís Linden, Leopoldo Heimann, Norberto Heine (CAAPP), Paulo Gerhard Pietzsch, Paulo Moisés Nerbas, Paulo Proske Weirich, Vilson Scholz. Professores Eméritos Donaldo Schüler, Martim C. Warth IGREJA LUTERANA ISSN 0103-779X Revista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. Conselho Editorial Acir Raymann (editor), Vilson Scholz (editor homilético) Assistência Administrativa Janisse M. Schindler A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografia Bíblica Latino-Americana e Old Testament Abstracts. Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelope com endereço e selado. Solicita-se permuta We request exchange Wir erbitten Austausch Correspondência Revista IGREJA LUTERANA Seminário Concórdia Caixa Postal 202 93.001-970 – São Leopoldo, RS 328