28 O envelhecimento e a saúde mental na saúde pública no Brasil1 Erika Laide Nigro Sheila Rizzato Stopa Saúde pública no Brasil D e maneira geral, a saúde pública somente passou a ser uma das prioridades políticas na segunda metade do século XIX, quando a higiene se tornou um saber social e a economia foi vinculada à saúde. Essa inter-relação ganhou destaque no contexto da Segunda Revolução Industrial, mas é uma questão que permeia as relações sociais até os nossos dias. Em resumo, havia - e ainda há - interesse em preservar a saúde dos trabalhadores para renderem mais nas atividades exercidas e proporcionarem maiores lucros ou, ao menos, não gerarem prejuízo (CARVALHEIRO, J.R. et al, 2008). No Brasil, no último século, divide-se a saúde pública basicamente em três modelos: 1) Ideário sanitarista-campanhista; 2) Médico-assistencial-privatista; 3) Neoliberal de assistência à saúde (CARVALHEIRO, J.R. et al, 2008). O primeiro modelo, denominado sanitarista-campanhista, baseava-se em uma população predominantemente rural, cujo principal produto da economia era o café. A preocupação principal era o saneamento dos espaços e erradicação de doenças que poderiam prejudicar a produção. Apesar disso, o perfil de morbimortalidade da população era de doenças infecto-contagiosas, combatidas e pesquisadas por sanitaristas como Oswaldo Cruz. Foram 1 O presente artigo é inédito e não há conflitos de interesse. As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 36, Ano IV, set. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 29 instituídas as campanhas da vacinação obrigatória, demolição de cortiços e fiscalização do comércio de alimentos (CARVALHEIRO, J.R. et al, 2008). O segundo modelo, assistencial-privativista, foi adotado a partir dos anos 1920, após a Primeira Guerra Mundial, e baseava-se em um modelo de contribuições dos empregados, que previa assistência médica e pensões para os trabalhadores e seus familiares. Esse sistema ainda era desigual, pois a maioria da população não era vinculada ao sistema empresarial. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a industrialização, e no Brasil a partir dos anos de 1950, ocorreu uma transição lenta e gradual para o modelo neoliberal de assistência à saúde (CARVALHEIRO, J.R. et al, 2008). Em meio a uma crise econômica no país, houve o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS), que aproximou ideais de uma reforma sanitária e de um projeto neoliberal (CARVALHEIRO, J.R. et al, 2008). Atualmente, com demandas ainda do começo do século passado, no qual a predominância eram doenças infecto-contagiosas, no Brasil, com crescente longevidade, há igualmente demandas de doenças crônico-degenerativas (VERAS, R., 2009). Envelhecimento populacional no Brasil Fenômeno mundial e irreversível, no Brasil o envelhecimento populacional ocorre aceleradamente. Os principais motivos são as quedas nas taxas de fecundidade e de natalidade, que aumentam a expectativa de vida da população e contribuem para o aumento do número de idosos (VERAS, R., 2009). O inédito processo de transformação na composição etária acarreta novas demandas sociais, econômicas e de saúde (VERAS, R., 2009; SÃO, R., XAVIER, F., 2003). A rápida mudança aumenta a preocupação com a qualidade de vida e os cuidados em saúde dos idosos, pois o aumento do número de indivíduos maiores de 60 anos na população implica a ampliação dos serviços de saúde e o uso de medicamentos (SÃO, R., XAVIER, F., 2003; EDUARDO, A. et al., 2008). Há, paralelamente a essa transição demográfica, a transição epidemiológica típica de um país em desenvolvimento, que não cumpriu a agenda da erradicação de doenças transmissíveis graves e mesmo as condições de saneamento básico, e que já começa a ter demandas específicas da população em envelhecimento, como, por exemplo, as oriundas das doenças crônicodegenerativas e/ou não transmissíveis (MENDES, E.V., 2010; MENDES, J. et al., 2004). As mudanças ocasionam a alteração do perfil dos usuários dos serviços de saúde e desafiam a estrutura estabelecida por políticas públicas de saúde obsoletas. O novo cenário exige diferentes ferramentas para atender à prevalência de doenças majoritariamente crônicas, que ‘batem à porta’ do REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 36, Ano IV, set. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 30 sistema de saúde vigente (MENDES, E.V., 2010; MENDES, J. et al., 2004). Entre as novas demandas dos pacientes mais velhos há, por exemplo, mais internações hospitalares e com maior tempo de ocupação do leito (VERAS, R., 2009; SÃO, R., XAVIER, F., 2003; EDUARDO, A. et al., 2008). Um dos impactos imediatos no sistema de saúde derivado dos fatos citados é o aumento do custo com tratamentos e profissionais, além da ocupação de leitos, o que provoca superlotação e filas de espera por vagas em hospitais (SÃO, R., XAVIER, F., 2003). Reforma Psiquiátrica e os serviços de atenção à saúde mental para idosos De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 450 milhões de pessoas no mundo sofrem de algum tipo de transtorno mental, sendo responsáveis por quatro em cada dez casos de incapacidades (HARDING, T.W. et al., 1983). Em países de alta renda, os quadros depressivos correspondem ao terceiro problema de saúde entre as mulheres, e nos países de média e baixa renda eles ocupam a quinta posição (OMS, 2001). No Brasil, o Ministério da Saúde estima que aproximadamente 20% da população precisa de algum tipo de atenção referente à saúde mental, sendo que 3% dos cidadãos apresentam algum transtorno severo (BRASIL, 2003). Esses dados sugerem a intensidade do impacto dos transtornos mentais em diversos aspectos da vida da população brasileira, como saúde, relações sociais, qualidade de vida e bem-estar (BRASIL, 2003; ARAÚJO, T.M.D., 2005). Apesar da magnitude das consequências supracitadas, a OMS reconhece que os transtornos mentais ou sintomas psicológicos ainda são desvalorizados e/ou pouco identificados pelos profissionais de saúde (OMS, 2001). Episódios com essas características ocorrem, principalmente, nos casos em que também estão presentes sintomas físicos, normalmente mais bem identificados, investigados e tratados, como muito frequentemente ocorre com a população idosa (BANDEIRA, M. et al., 2007; GONÇALVES, D.M., 2008). Com o aumento dessa população, a demanda dos serviços de saúde se modificou, pois idosos com 65 anos ou mais, em países de alta renda, usam os serviços de saúde três a quatro vezes mais do que as demais faixas etárias da população (LUDERMIR, A.B., FILHO, A.D.M., 2002). No Brasil, a saúde mental passou por um processo denominado Reforma Psiquiátrica, no final dos anos 1970. Formado por um conjunto de leis, normas, mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde, o processo ocorreu no contexto da crise do modelo psiquiátrico hospitalocêntrico e do aparecimento e fortalecimento dos movimentos de defesa dos direitos dos pacientes psiquiátricos (BRASIL, 2005). REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 36, Ano IV, set. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 31 Inspirados no movimento italiano que pregava a desinstitucionalização da psiquiatria, ocorreram, em 1987, na cidade de Bauru, São Paulo, o Segundo Congresso Nacional, cujo tema foi “Por uma sociedade sem manicômios”, e a Primeira Conferência Nacional de Saúde Mental, no município do Rio de Janeiro (BRASIL, 2005). Nesse período, implantou-se o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), na cidade de São Paulo, e dois anos mais tarde, em 1989, foram implantados os primeiros Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), em Santos, São Paulo. Os NAPS se tornaram um marco na Reforma, pois foram a primeira grande intervenção, e deram visibilidade da efetividade do movimento (BRASIL, 2005). Em 1988 foi criado o SUS, e em 1989 entrou no Congresso Nacional o projeto de Lei 10.216, que propunha a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e o processo de extinção dos manicômios no país (BRASIL, 2005; ALBERTO, C., CAMPOS, R.O., 2009). A partir da década de 1990 teve início a substituição de leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental baseada nas primeiras experiências dos CAPS, NAPS e Hospitais-Dias, embora mais de 90% dos recursos ainda fossem destinados aos hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2005). Finalmente, em 2001, o projeto de Lei 10.216 foi aprovado, depois de tramitar 12 anos no Congresso Nacional, garantindo os direitos das pessoas com transtornos mentais, a extinção manicomial e as linhas de financiamentos para as instituições extra-hospitalares, descentralizando a atenção à saúde mental, como já propunham o movimento pró-Reforma Psiquiátrica e o SUS. Iniciou-se, então, a desinstitucionalização de pacientes que estavam há muito tempo internados, por meio de programas como “De volta para casa”, “Residências terapêuticas” e, mais recentemente, a articulação com o Programa Saúde da Família (PSF) (BRASIL, 2005). Com a desinstitucionalização, os profissionais da saúde mental se depararam com uma nova função - a reabilitação psicossocial - dificultada, muitas vezes, pela perda de contato entre pacientes e familiares, além dos comprometimentos físicos típicos do envelhecimento, pois muitas pessoas envelheceram dentro dessas instituições (PAVARINI, S.C.I. et al., 2004). Há, portanto, paralelamente ao processo de reforma psiquiátrica, o envelhecimento populacional, incluindo os doentes mentais. Conforme descrito, o processo de assistência ao paciente psiquiátrico no Brasil passa por uma série de mudanças. O surgimento de novos serviços como o “De volta para casa”, sem dúvida, cria um cenário totalmente novo; se bem estruturado, é propício para a reinserção do indivíduo na sociedade. Mas como se dá esse processo de reinserção quando o paciente possui idade avançada e sua rede social se apresenta bastante reduzida? O indivíduo, que ao longo da vida apresentou algum transtorno psiquiátrico que comprometeu sua autonomia, ao receber suporte adequado tem possibilidade de se manter ativo na sociedade ampliada. REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 36, Ano IV, set. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 32 Autores como PAVARINI e col. (2004) sugerem que a capacitação em Gerontologia é essencial para os profissionais em saúde mental, pois com o aumento global da expectativa de vida do ser humano, o paciente psiquiátrico tende a viver mais. Há, portanto, o surgimento de uma nova situação. O paciente que aos 30 anos tem suporte de uma equipe de saúde juntamente com seus familiares, possivelmente aos 60 anos, por questões como morte ou redução da autonomia do cuidador, se tornará mais dependente do serviço de saúde. Assim, a atenção que em dado momento era “dividida” entre família e instituição, talvez tenha que passar a ser oferecida integralmente pela instituição. No entanto, até que a situação se apresente, é vital a incorporação da família ao tratamento do indivíduo com transtornos psiquiátricos. Oferecer aos familiares gama maior de conhecimento acerca da doença mental, do seu tratamento e prognóstico facilitaria a adesão ao tratamento, seja ele farmacológico ou não. O Programa Saúde da Família seria um aliado no que se refere à inclusão dos familiares ao tratamento do doente mental. No entanto, não é obrigatório na composição básica da equipe do PSF um profissional da saúde mental, como psicólogo e/ou psiquiatra (HARDING, T.W. et al., 1983). Essa talvez seja uma das soluções para facilitar o acesso dos pacientes e esclarecimento dos familiares a respeito do diagnóstico e tratamento do idoso com algum transtorno mental, muitas vezes impossibilitado de se deslocar até a unidade básica de saúde ou ambulatórios especializados. Atualmente, nos CAPs, que têm divisões como CAPSAD (que tratam dos pacientes dependentes em álcool e drogas ilícitas) e CAPSI (que dão atenção aos doentes mentais infantis), há grupos temáticos, abertos à população, nos quais são discutidas questões referentes a patologias e tratamento. Esses grupos ainda contribuem, positivamente, para a ampliação da rede social do doente e do cuidador. Há, no entanto, pouco relato na literatura acadêmica a respeito das experiências com os pacientes idosos (PAVARINI, S.C.I. et al., 2004). O Ministério da Saúde sugere que apesar de a Reforma Psiquiátrica ter avançado em muitos aspectos, ainda há desafios, como melhorar a equidade e acessibilidade; capacitação de recursos humanos para lidar com o novo contexto da saúde mental no Brasil, e ainda esforço para a sociedade debater a questão do doente mental e contribuir na sua reinserção social, e seu papel na sociedade, livrando-se de mitos e preconceitos (CARVALHEIRO, J.R. et al, 2008). Diante da revisão de literatura a respeito da atenção à saúde mental aos idosos, foi possível verificar que a união de temas relativamente novos e urgentes - saúde mental e envelhecimento - ainda precisa de mais relatos, discussões, ideias e avaliações para se avançar nos serviços de qualidade no que se refere à atenção descentralizada integral e igualitária, como propõe o SUS, sistema de saúde vigente no Brasil. Há indícios do despreparo dos profissionais, do sistema de saúde e da sociedade para lidar com os idosos e para lidar com doentes mentais. Os programas existentes ainda são poucos e REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 36, Ano IV, set. 2013. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista 33 deficientes para atender à atual demanda, mas com o investimento necessário auxiliariam essa missão sem precedentes. Referências ARAÚJO, T.M.D. Prevalence of psychological disorders among women according to socio demographic and housework characteristics. 2005; 5(3):337348. 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