Narcisimo e cultura rock: imagens do que sou

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NARCISISMO E CULTURA ROCK: IMAGENS DO QUE SOU
Róbi Jair Schmidt - Univel1
Imerso na cultura do narcisismo contemporâneo, o indivíduo tem a impressão de que
seu nome sai de seu corpo, de seu peito, de sua pele. Essa é a sensação que o sujeito
narcisista experimenta quando atrae todos os olhares para si: uma sensação de poder e
êxtase, como se atingisse o ápice. Esse é o efeito causado pelo reflexo social do espelho
narcisista pós-moderno, ramificando-se pelos mais diferentes espaços. Trata-se de uma
demanda performática, responsável por regulamentar a estetização da existência, a partir de
modalidades que fazem com que os indivíduos se exponham em sua exterioridade, como
personagens que apreciam em demasia a admiração provocada pelos olhares dos outros.
Ao analisar as diversas narrativas dos jovens presentes na constituição da cultura rock
no Brasil durante a década de 1980, é possível transitar por linhas discursivas que sinalizam
tanto para as armadilhas e conflitos produzidos pelos comportamentos sociais inspirados pela
cultura narcisista, bem como para aspectos que mostram certa sujeição dos jovens, muitas
vezes associado às regras, jogos e disputas de poder específicas de seu contexto.
Estas imagens estão presentes mais especificamente na poesia e nas narrativas dos
sujeitos que desempenharam papéis diversos ao participar dessa cena musical, tais como os
inúmeros integrantes das bandas de rock, os produtores, os compositores, os jornalistas, entre
outros personagens que acompanharam de perto a construção de um momento importante da
trajetória da música brasileira no final do século XX, participando ativamente da formação
do que pode ser definido como universo do rock brasileiro. Assim, pretende-se compreender
de que modo algumas das sensações e efeitos da cultura narcisista contemporânea
interferiram na constituição do gênero musical e de que maneiras o estilo de vida roqueiro se
transformou num “grande sucesso” junto à juventude brasileira desse período.
Estes personagens narcisistas e a relação que estabelecem com o seu mundo, estão
representados em vozes como a do roqueiro Lobão, a exemplo de sua canção “Vida louca
vida”, gravada no ano de 1987. Como pode ser identificadas em sua poesia:
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[email protected]
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Se ninguém olha quando você passa, você logo acha:/A vida voltou ao
normal/Aquela vida sem sentido, volta sem perigo/A mesma vida tudo é
sempre igual/Se alguém olha quando você passa, você logo diz:
"Palhaço!"/Você acha que não tá legal/Perde logo a noção do perigo,
todos os sentidos/Você passa mal/Se ninguém olha quando você passa,
você logo acha:/Eu tô carente, eu sou manchete popular/Já me cansei de
toda essa tolice, babaquice/Dessa eterna falta do que falar. (Vida louca
vida - Bernardo Vilhena e Lobão – 1987)
A partir da análise da letra “Vida louca vida”, pode-se identificar algumas das
características marcantes do indivíduo contemporâneo, entre elas sua desconfiança
persecutória em relação ao outro. O comportamento do sujeito presente na poesia do
roqueiro Lobão converge para uma cultura em que a imagem de si sobrepõe-se à maioria dos
valores sociais recorrentes em seu espaço. Essa cultura da imagem, exposta nos versos da
poesia “Vida louca vida”, apresenta um indivíduo que vive em constante estado de desejo,
desassossegado e perpetuamente insatisfeito consigo mesmo e com as relações sociais que
consegue estabelecer. Como é observável na poesia, a insatisfação do sujeito narcisista chega
a ser tão forte que o outro para ele se torna um observador incômodo, tanto na condição de
admirador como diante de um ato de indiscrição.
A eterna busca do desejo e o simultâneo desconforto provocado pela necessidade de
se expor “bem” fisicamente — principalmente com o objetivo de se apresentar para um
plano externo — é um dos temas abordados pelo psicanalista Jurandir Freire Costa. O autor
observa que:
Se nos sentimos bem com nossa forma física, tememos que o outro nos
inveje por não ter alcançado o que alcançamos; se nos sentimos mal, ele é
um suposto acusador, que nos humilha pelo simples fato de encarnar a
norma somática que lutamos, encarniçadamente, para corporificar.
(COSTA, 2004, p. 19.)
De qualquer maneira não haverá harmonia, tanto na falta como no excesso. O sujeito
narcisista quer todas as luzes apontadas para si, pois se sente incomodado quando não é
constantemente notado pelo olhar do outro. No entanto, não suporta o papel de centro das
atenções, ao mesmo tempo em que paradoxalmente se esforça para ocupar essa posição. Essa
atitude ambígua apresenta elementos de uma cultura que, ao valorizar excessivamente a
imagem, tem como resultado um sujeito que não está predisposto ao diálogo, efeito da
existência de um certo vazio presente na atitude desse sujeito narcisista — como diz o
fragmento poético “Já me cansei de toda essa tolice, babaquice/ Dessa eterna falta do que
falar” —, passivo frente à construção do mundo que integra. Isto porque, na construção do
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meio sustentado pelo narcisismo, a cultura da imagem apela para discursos que ganham em
superfície e perdem em profundidade, aproximando-se do próprio aspecto físico do espelho,
cuja principal característica é ser plano e raso.
Trata-se, portanto, de uma cultura em que a imagem seduz e excita o sujeito tomado
pelo narcisismo, em especial pelo prazer proporcionado na percepção do olhar do outro.
Mesmo não produzindo apenas sensações de prazer, a presença do olhar de terceiros é
imprescindível. Dito de outro modo, indiferente das sensações que possa causar, não há
como se desprender da necessidade do olhar do outro. Para o psicanalista Joel Birman, as
sociedades pós-modernas ocidentalizadas sempre buscam sentir-se em constante ambiente
espetacular, produzido por meio de belas imagens, nas quais o outro assume o status de
objeto.
Dessa maneira, o sujeito vive permanentemente em um registro
espetacular, em que o que lhe interessa é o engrandecimento grotesco da
própria imagem. O outro lhe serve apenas como instrumento para
incremento da auto-imagem, podendo ser eliminado como um dejeto
quando não mais servir para essa função abjeta. (BIRMAN, 1999, p.25).
O que caracteriza a intolerância na cultura do narcisismo é a impossibilidade de poder
admirar o outro em sua diferença, visto que o indivíduo não consegue se descentrar de si
mesmo. Desse modo, o outro pode ser sumariamente dispensado, após manifestar uma certa
admiração pela “plástica social” apresentada pelo indivíduo narcisista. Referindo-se sempre
ao próprio “umbigo”, o sujeito da cultura do espetáculo encara o outro como um objeto a ser
infinitamente manipulado para o gozo egoísta.
Essa construção social, colorida pelos ouropéis do artifício, é mediada pelo universo
da imagem, que aparece como personagem principal ao ser valorizada e inscrita nos roteiros
performáticos da pós-modernidade. A imagem é, portanto, imprescindível para o espetáculo
da cena social e para a captação narcísica do outro. A imagem é a condição de possibilidade
da sedução e do fascínio, sem a qual o ideal de captura do outro não pode jamais se realizar
nesse festim de exibicionismo. Para ser mais enfático nessa discussão que aborda algumas
qualidades dos personagens narcisistas da contemporaneidade, busca-se analisar algumas
representações desses sujeitos, as quais podem ser observadas em “É tudo pose”, outra
canção do cantor e compositor Lobão, composta no ano de 1988. A letra da música sinaliza
para vários espaços que atravessam os sujeitos contemporâneos, ambiente retratado pela
poesia musical da seguinte forma:
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Na vida hoje/É tudo pose/Todo mundo se imagina estampado em
outdoor/É tudo pose, é tudo pose, é tudo pose/Preocupados com olhares
ao redor/Pra entrar no carro/Pra sair na rua/Tudo, tudo vira pose, é bem
pior que na TV/Pra tirar um sarro/Cada um na sua/Inventando pose até
pra morrer/É tudo pose, é tudo pose, é tudo pose/A vida, vida sempre foi
assim/É tudo pose, é tudo pose, é tudo pose/Sai dessa podre ou vê se sai de
mim/Pose pra quê?/Pose pra quem?/Com essa pose você não vai ser
ninguém/Seja você/Sai do normal/No fim de tudo a vida vira um
carnaval/É tudo pose, é tudo pose, é tudo pose/A vida sempre, sempre foi
assim/É tudo pose, é tudo pose, é tudo pose/Sai dessa podre ou vê se sai de
mim. (É tudo pose - Bernardo Vilhena, Ivo Meirelles e Lobão- 1988)
A idéia de “pose” se conjuga aqui com as de exibição e teatralidade, pelas quais os
sujeitos se inserem como atores nos processos de socialização. Nessas situações
performáticas, como atores e atrizes num palco, os sujeitos devem se sentir como
participantes de um constante espetáculo, isto porque encenam papéis de acordo com
modelos diversificados. No entanto, a maioria das poses são “embaladas” pela necessidade
do olhar do outro para atingir a satisfação egocêntrica. Trata-se, portanto, de uma estratégia
em que, para alcançar visibilidade social, os personagens pós-modernos, utilizam-se de
máscaras para desfilar no cenário social. Este aspecto apresenta certa ressonância entre os
jovens roqueiros e o universo social mais amplo, pois os versos dão o tom que caracteriza a
inscrição dos jovens na cultura narcisista, como integrantes desse processo, o que pode ser
identificado nas representações poéticas analisadas, em especial nos seguintes versos: “É
tudo pose, é tudo pose, é tudo pose/sai dessa podre ou vê se sai de mim”.
Além disso, as metáforas do exibicionismo, inseridas nos versos da poesia “É tudo
pose”, remetem à absoluta exterioridade, forma primordial pela qual se concebe a economia
da subjetividade na sociedade do espetáculo e que possui fortes laços com a cultura
narcisista. Tudo isso remete aos resultantes maiores dessa leitura da vida, isto é, à exaltação
do status quo, no qual o parecer sobrepõe-se ao ser.
Esta discussão se insere numa perspectiva teórica que analisa as concepções
existentes entre parecer e ser presentes na cultura do narcisismo. Para o psicanalista Joel
Birman, a construção do mundo social, ao instigar os sujeitos a se sentirem participantes de
um roteiro de espetáculos, exige a criação de muitas “poses”:
Na cultura do espetáculo, o que se destaca para o indivíduo é a exigência
infinita de performance.(...) Aqui se confunde o ser com o parecer, de
maneira que o aparecimento ruidoso do indivíduo faz acreditar no seu
poder e fascínio. Nessa performance, marcada pelo narcisismo funesto em
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seus menores detalhes, o que importa é que o eu seja glorificado, em
extensão e em intenção. Com isso, o eu se transforma numa majestade
permanente, iluminado que é o tempo todo no palco da cena social.
(BIRMAN, 1999, p.168)
Assim, ser e parecer são confundidos no discurso narcísico, o que alimenta a
espetacularização da vida, constituindo um campo de disputas entre verdadeiro e falso, entre
original e cópia, pois o simulacro perpassa a totalidade do tecido social.
Com isso, o que o sujeito perde em interioridade ganha em exterioridade, o que
dificulta o convívio social com a diferença, pois suas relações são marcadamente
autocentradas, prejudicando o contato com o outro, ou seja, as sociabilidades existentes
nesse espaço correm o risco de não sobrepor-se à procura de outros caminhos além dos
contatos com sujeitos idênticos (ou extremamente semelhantes), seduzidos pelas regras da
cultura narcisista. Trata-se de um eu que quer as luzes apontadas para si e a sua relação com
o mundo exterior é carregada de máscaras para a exibição fascinante na captura do olhar do
outro.
Com isso, vale enfatizar, entretanto, que voltar-se para o próprio eu na cultura do
narcisismo da modernidade tardia não significa um encontro interior, uma conquista do
equilíbrio pessoal, num movimento subjetivo libertário e de associações mútuas. Ao
contrário, esta atitude leva a uma dissociação de si, já que se trata de um investimento para
adequar-se a um modelo exterior. Diante do diálogo sobre as características dos sujeitos
atravessados pelas normas narcisistas que tanto cultivam a exterioridade, Birmam discorre
sobre a questão definindo-a como “jogo encantado”:
Então o sujeito perde a densidade e a profundidade, transformando-se
numa espécie de superfície plana, margeada pela moldura de um
enquadramento. É disso que se trata, afinal de contas. Transforma-se a
cena do mundo em um contraponto de reflexões espetaculares, em que a
refração jamais perfura o jogo encantado entre o olhar e o espelho.
(BIRMAN, 1999, p.189)
Nessa medida, o sujeito é regulado pela performatividade, mediante a qual compõe os
gestos voltados para a sedução do outro, pois necessita de “poses” na maioria de suas
atividades. Tudo em prol do enaltecimento do eu. Nessa condição, as individualidades do
outro se transformam, tendencialmente, em objetos descartáveis, como qualquer objeto
vendido nos supermercados e cantado em prosa e verso pela retórica da publicidade
veiculada pelos meios de comunicação de massa.
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Este conjunto de discursos que buscam capturar as individualidades e transformar os
sujeitos contemporâneos em objetos descartáveis, tais como produtos à venda em
supermercados, pode ser observado em outro trabalho solo do cantor e compositor Lobão,
cujo título é “Esse mundo que eu vivo”, poesia criada no ano de 1987, período no qual é
acompanhado pelo músico Bernardo Vilhena. Trata-se de uma poesia na qual percebo que
essa atmosfera social proporcionada pelas imagens da cultura narcisista é propagada pelos
meios de comunicação de massa, o que, por sua vez, possibilita a sugestão de muitos estilos
de vida que interagem com grande parcela da sociedade imersa em “sonhos de consumo”.
“Pelo inverno nas cidades/Eu assisto às transformações/Pelos quartos nos hotéis/Nos
anúncios, nas televisões/Vendem crimes/Vendem inveja/Vendem tudo/Até ilusões”. (Esse
mundo que eu vivo, Bernardo Vilhena e Lobão, 1987.)
A partir de exemplos como este, é possível argumentar que a publicidate veiculada
em diferentes mídias estimula a concepção narcisista de mundo. Nesse processo, a televisão
surge como centro formador de gostos relacionados à cultura narcisista, o que pode ser
explicado a partir do fato de que nos últimos trinta anos as emissoras de televisão tornaramse os mais importantes meios de comunicação, em especial em “países periféricos”, tais
como o Brasil, onde o acesso de parcelas consideráveis da população a outras formas de
entretenimento, cultura e informação é limitado por questões políticas e econômicas.
A interferência da linguagem televisiva junto ao universo dos jovens é um aspecto
que posso analisar na medida em que destaco o discurso do roqueiro Lobão, extraído de um
livro de entrevistas.2 Nessa direção, o jovem músico diz o seguinte:
A nossa geração já vem colonizada da televisão. Vem com uma
informação que a geração que não foi televesiva não tinha. Fomos a
primeira geração que veio do Nacional Kid, é tudo diferente.
(LEONI,1995, p. 134.)
Vale ressaltar que a juventude da década de 1980 é uma das primeiras gerações cuja
infância foi fortemente marcada pelo universo televisivo. Nesse sentido, nas práticas
cotidianas dos jovens roqueiros, e conseqüentemente nas suas músicas, podem ser
visualizadas algumas referências televisivas bastante recorrentes na vida cotidiana dos jovens
desse período, a exemplo de programas como Jornada nas Estrelas, Chacrinha, telenovelas,
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Além de Lobão, Carlos Leoni também entrevistou outros roqueiros como Herbert Vianna, Renato Russo, Marina
Lima, Roberto Frejat e Nando Reis, para compor o seu livro como uma obra de memórias a respeito dessa geração da
música rock.
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Rock in Rio, Armação Ilimitada, entre outros programas que tiveram um papel relevante na
formação desta geração.
A televisão torna-se, portanto, um dos principais “espelhos” para alcançar uma certa
“visibilidade musical” nas últimas décadas. Sendo assim, essa geração sabia da necessidade
de incluir a televisão como forma de interação com o grande público e compreendia também
a necessidade de aceitar algumas exigências do universo televisivo, em especial o fato de que
era preciso conquistar pontos de audiência para conseguir alcançar sucesso entre os jovens.
Com isso a música rock desse período começou a ser tocada em trilhas sonoras de
várias novelas e filmes, quando não eram criadas programações televisionadas que
privilegiaram o rock nacional dessa época. Vale observar que essa é uma posição adotada
por diversas emissoras brasileiras de televisão.3 A forte interferência midiática —
especialmente da televisão — na vida dos jovens roqueiros, bem como sua ligação com esse
meio de comunicação de massa, é observável nas representações da juventude presentes na
poesia dessa geração musical. Este aspecto é perceptível na letra da música “Subproduto de
rock”, de autoria de Roberto Frejat e incluída no disco que surgiu de uma gravação feita ao
vivo durante o primeiro Rock in Rio realizado no ano de 1985, festival que, por sua vez, foi
todo ele televisionado pela Rede Globo. Nessa letra é possível notar as representações e a
importância que a televisão tem para essa juventude, principalmente ao expor sua atuação
como um elemento que faz parte da vida cotidiana dos jovens. Desta maneira destacan-se os
seguintes versos: “Mamãe, tá certo/Eu fui pro fundo e não pode/O mar tá bravo, que bode!/Pode
cortar/Televisão e vitrola/Parar o jogo/Você é a dona da bola.” (Subproduto de rock -Cazuza e
Roberto Frejat- 1984)
Essa geração musical constituiu-se a partir da negociação de espaços junto aos meios
de comunicação de massa, em especial a televisão, dialogando intensamente com as
estratégias publicitárias expressas pelos canais midiáticos. Muitos dos roqueiros desse
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Só para citar alguns programas televisionados nos quais os roqueiros dos anos 1980 obtiveram espaço para
divulgação de seus trabalhos, pode-se citar as seguintes canções: “Nosso louco amor”, novela Louco amor (1983),
cantada pela banda Gang 90 e as Absurdettes; “Casanova”, novela Champagne (1983), cantada por Ritchie; “Comeu”,
novela A gata comeu (1985), cantada pelo grupo Magazine; “Flores em você”, novela O Outro (1987), cantada pelo
grupo Ira!; “Brasil”, novela Vale tudo (1988), canção de Cazuza. Já com relação ao cinema, podem ser citados
diversas produções que adotaram algumas canções de rock como trilha sonora. Este é o caso de filmes como Menino
do Rio, de Antônio Calmom (1983); e Bete Balanço, de Lael Rodrigues (1984). Por fim, é possível registrar também
alguns programas televisionados especialmente dirigidos para os jovens e que cederam espaço para as bandas do rock
nacional apresentarem seus trabalhos, tais como Clip clip, primeiro programa de clips musicais da Rede Globo de
Televisão (1984); Fábrica do Som e Som Pop, ambos exibidos pela TV Cultura (1983); FM TV, da TV Manchete
(1985). Além disso, na década de 1990 surge no Brasil a MTV, canal de televisão só com programação musical
dirigida para o público juvenil. “Esses programas em geral conseguiram angariar, além do óbvio e indispensável
sucesso comercial, alguma simpátia da crítica.” Cf.: (REIS, 1992, pp. 29-30)
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período compreenderam o poder de sedução inscrito nas imagens produzidas pela linguagem
televisiva e sua importância na formação cultural brasileira, pois sabiam que por meio desse
canal de comunicação teriam acesso ao público jovem. Como telespectadores, os jovens
assumem uma certa aparência em que o valor das imagens possui grande importância, pois,
na medida em que “a mamãe cortar televisão e vitrola”, esses jovens perdem o que eles
consideram ser a fonte de acesso ao seu mundo social. A televisão e a vitrola são tão
importantes para os jovens que impedir o acesso a eles assume a condição de castigo, de
punição.
Posso compreender, portanto, de que maneira, com uma certa dose de facilidade, a
alteridade e a intersubjetividade dos indivíduos são modalidades sociais da existência que
tendem ao silêncio e ao esvaziamento. A produção dessa rede social que conduz à cultura
narcisista realiza-se em diferentes espaços, entre os quais se destaca o papel da mídia com
seus artefatos publicitários. Sem ela, o espetáculo se esvazia, perdendo seu colorido
retumbante e o poder de captura, por meio do que se utiliza de instrumentos de controle que
correm sobre caminhos que despertam forte encanto sobre o seu público.
As ondas do rádio, as telas da televisão e as páginas das revistas e dos jornais são
alguns dos espaços utilizados pelas produtoras musicais para dar maior visibilidade à
música-rock. Através desses meios, que de formas diversas interagem com a cena pública,
são exibidas as imagens de muitos dos jovens roqueiros.
Nesse contexto, operam forças que agem sobre os indivíduos, a ponto de deslocá-los
para campos de relações sociais, apresentando sujeitos que se encontram num estágio de
permanente busca pela exposição da exterioridade, o que faz com que tenham de criar várias
poses, simultaneamente. Nessa estética da arte de viver do sujeito narcisista, de sempre
querer almejar um certo estrelismo, o papel da mídia é imprescindível, pois está intimamente
vinculado à cultura do espetáculo.
A necessidade de fazer sucesso por meio da exposição pública é um aspecto que
atravessa o universo das bandas de rock, formadas pelos jovens desse período, bem como de
outras vertentes da arte pop, retratando uma certa histeria social, e, como exemplo, indico as
narrativas poéticas da banda baiana Camisa de Vênus, com a canção “Muita estrela, pouca
constelação”, poesia gravada no ano de 1987, com a participação do roqueiro Raul Seixas:
A festa é boa tem alguém que tá bancando/Que lhe elogia enquanto vai se
embriagando/E o tal do ego vai ficar lá nas alturas/O fotógrafo ele vai
documentar/O papo do mais novo big star/Pra aquela revista de rock e de
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intriga/Que você lê quando tem dor de barriga/E o jornalista, ele quer
bajulação/Pós new old é a nova sensação/A burrice é tanta, tá tudo tão à
vista/E todo mundo posando de artista/Eu sei até que parece sério, mas é
tudo armação/O problema é muita estrela pra pouca constelação. (Muita
estrela, pouca constelação - Marcelo Nova – 1987)
A construção das normas que conduzem as celebridades contemporâneas atingem a
cultura rock. Seu espetáculo não cessa em apresentar as estrelas e os artíficios presentes
nessa teatralidade, que não deixa de possuir seus efeitos sobre a rotina dos jovens roqueiros:
“O fotógrafo ele vai documentar/O papo do mais novo big star/Pra aquela revista de rock e
de intriga/Que você lê quando tem dor de barriga/E o jornalista, ele quer bajulação...”. Por
meio destes discursos, os roqueiros passam a ser definidos como personagens significativos
da cena social.
Nesse contexto, que, entre outros campos artísticos, envolve a cultura rock, a mídia se
destaca como instrumento fundamental, para nela se forjar o polimento de um indivíduo,
exaltado de si mesmo, e que se esmera então para estar sempre presente nos meios de
comunicação de massa, como jornais ou televisão. A cultura da imagem é o correlato
essencial da estetização do eu, na medida em que sua produção se realiza fundamentalmente
pelo perfeccionismo medido na constituição da imagem pela individualidade. Institui-se
assim a hegemonia da aparência, que define o critério fundamental do ser e da existência. Na
cultura da estetização do eu, o sujeito vale pelo que parece ser diante das imagens produzidas
para se apresentar na cena social.
Dessa forma, os sentimentos de pertencimento social se apóiam cada vez mais na
materialidade dos objetos externos. Nesta cultura da materialidade, que intensifica as
sensibilidades estéticas, o sentimento de posse de uma interioridade se torna cada vez mais
frágil.
Os indivíduos, além de serem levados a ver o mundo com as lentes do espetáculo, são
incentivados a se tornar um de seus participantes pela imitação de estilo dos personagens da
moda. A imitação, contudo, não pode ir muito longe. A maioria nem pode ostentar as
riquezas e o poder de grandes políticos, os dotes artísticos ou a formação intelectual dos
famosos, nem tampouco fazer parte da rede de influências que os mantém na mídia. Resta,
então, se contentar em imitar o que eles têm de acessível a qualquer um: a aparência
corporal. Daí nasce a obsessão pelo ideal do corpo espetacular, cujas trocas entre seus atores
se dão pela linguagem do corpo, que faz da maioria dos sujeitos uma “estrela”. Seja pela
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“inveja” ou pela admiração, a fama dos ídolos encarna as fantasias de seu público, que se
identifica com eles.4 Sendo assim, busca-se desenfreadamente a fama, em especial através da
orientação direcionada pela imitação dos personagens que são constantemente exibidos e
emoldurados pelos meios de comunicação de massa.
No jogo social em que os indivíduos pós-modernos estão envolvidos pela cultura do
espetáculo – na qual permanece o desejo da incansável reivindicação da exposição imagética
–, revelam-se sujeitos querendo fugir ansiosamente do anonimato produzido pela sociedade
de massas. Tal característica descreve personagens que temem a solidão em meio à multidão.
Isto faz com que essa freqüente busca da exposição da imagem alcance valor primordial na
sociedade contemporânea, situação que sofre forte interferência da mídia, e tem seus efeitos
sociais sobre as pessoas, expressando em muitos casos as conseqüências geradas pelos ideais
do narcisismo, como é bem observado nas reflexões da cientista social Maria Cláudia Pereira
Coelho:
O desejo moderno pela fama ganha contornos de uma tentativa
desesperada de fuga ao anonimato, através da suposta singularização que
a exposição pública da imagem de si granjearia. Essa exposição, contudo,
carrega em si um doloroso paradoxo: na imagem exposta, tornada
pública, o indivíduo já não se reconhece. Pastiche da individualidade,
essa imagem pasteurizada da singularidade é a negação da aspiração do
sujeito que anseia por distinguir-se da massa de indivíduos anônimos.
(COELHO, 1999, p.13)
Nessa mesma linha do debate que envolve as estrelas midiáticas e sua relação com a
subjetividade dos personagens contemporâneos, em especial a dos anônimos e dos invisíveis,
Christopher Lasch apresenta reflexões que, por mais que se destinem à leituras da sociedade
americana, são totalmente cabíveis para se pensar o universo dos jovens da cultura rock que
se constituiu ao longo da década de 1980 e sua admiração pelos seus famosos ídolos:
Os meios de comunicação de massa, com seu culto a celebridades e sua
tentativa de cercá-la de encantamento e excitação, fizeram dos
americanos uma nação de fãs. A mídia dá substância e, por conseguinte,
intensifica os sonhos narcisistas de fama e glória, encoraja o homem
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Nessa perspectiva, Umberto Eco comenta a influência que os famosos recebem da sociedade e a influência
que exercem sobre ela. Para o autor, uma celebridade tem êxito porque encarna um modelo que resume em
si desejos mais ou menos difundidos junto ao seu público. No entanto, a celebridade encarna algumas
tendências mais que as outras, e optando por algumas, empresta-lhes foro de legalidade, de exemplaridade.
Assim se estabelece “uma dialética pela qual o astro, por um lado, adivinha certas exigências não aclaradas
e, pelo outro — personificando-as — amplificadas, promove-as como acontece, em geral, no tocante à
televisão como escola do gosto, do costume, da cultura”. (ECO, 1979, p. 357)
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comum a identificar-se com as estrelas e a odiar a banalidade da
existência cotidiana. (LASCH , 1983, p. 43)
O dilema moral da contemporaneidade não é mais o da escolha entre ser e ter, porém
o da escolha entre ser e parecer. Esta é a faceta mais dura da felicidade das sensações — tão
intensamente cultuada pelo narcisismo —, embora seja a mais naturalizada, do ponto de vista
cultural. O indivíduo “comum”, o invisível midiático, esgota seus prazeres em dias no
trabalho obsessivo, massacrante, diariamente milimetrado e monitorado, sem poder tomar
posse do corpo-espetacular. Este aspecto é claramente retratado na poesia “Muita estrela,
pouca constelação”, do grupo Camisa de Vênus: quando vive a experiência da fama, nada
garante ao indivíduo sua permanência, exceto a fantasia de pertencer a um mundo do qual
está, na realidade, inapelavelmente excluído, a não ser como espectador, cujo exemplo do
jovem fã da cultura rock é um modelo produzido nesse espaço.
Assim, observo que a cultura do narcisismo oferece vários tipos de espetáculos que
constróem modelos de subjetividades e resultam num certo silenciamento diante das
possibilidades de reinvenção do sujeito e do mundo, devido ao excessivo culto do eu que
segue orientações de um pensamento individualista. Trata-se de um autocentramento que se
apresenta sob a forma da estetização gloriosa do próprio eu, que, de tanto se repetir, anula os
diversos agentes sociais e cria sentimentos de isolamento e solidão.
Dessa maneira, noto que essa geração musical, ao internalizar aspectos da cultura
narcisista presentes no rock, convive com situações de anulação e violência que
caracterizam, em especial, a vida urbana a partir da qual se constituiu a grande maioria
desses jovens roqueiros pertencentes à classe média brasileira. Dentre vários aspectos que
posso destacar desse campo de análise, a solidão e a dor merecem maior destaque, pois são
mencionadas em diversas composições produzidas nesse período. Isto porque os elementos
imagéticos atravessam vários campos sociais que interagem com os jovens, o que pode ser
melhor analisado quando são considerados alguns fragmentos poéticos da canção “Cidade
bunda”, de autoria do roqueiro Marcelo Nova, integrante da banda baiana Camisa de Vênus.
A tensão aumenta e nada é o que aparenta, aqui na cidade bunda/O cão
late pra roda e Márcia segue a moda, na cidade bunda/O ontem não
importa, o negócio é agora/A modelo é tão linda com os peitos de fora/E
todo mundo é ligado, todo mundo é esperto/E ninguém sabe entretanto
qual caminho é o certo/Aqui na cidade bunda não dá pé quando se
afunda/Aqui na cidade bunda o prazer é raso e a dor profunda/Mas na
cidade bunda eu tô morrendo, na cidade bunda eu tô perdendo/Na cidade
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bunda eu tô vivendo o meu melhor pesadelo/Na sexta é fenomenal mas na
segunda tá mal, na cidade bunda/As ruas não cabem mais, os carros todos
iguais, desta cidade bunda/O garoto morreu, ele foi massacrado, a camisa
que ele usava era do time errado/E há um abutre faminto em todo lugar
que eu vou/Já sou o meu próprio espantalho, mas ele nem se
assustou/Aqui na cidade bunda não dá pé quando se afunda/Aqui na
cidade bunda o prazer é raso e a dor profunda/Mas na cidade bunda eu tô
morrendo, na cidade bunda eu tô perdendo/Na cidade bunda eu tô vivendo
o meu melhor pesadelo. (Cidade bunda - Karl Hammel e Marcelo Nova 1995)
A cidade fictícia da canção do roqueiro Marcelo Nova é apresentada como uma típica
metrópole pela qual transitam os jovens contemporâneos que se defrontam com um
emblemático mundo de imagens que atravessam a cultura urbana em suas variadas faces
sociais. Estas imagens expõem um universo de espelhos e sua artificialidade, já que nessa
cidade o “prazer é raso e a dor profunda”, característica que atinge a muitos e os jovens não
se encontram fora desse jogo de disputas, o que pode ser observado quando o roqueiro
confirma que “na cidade bunda eu tô vivendo meu melhor pesadelo”.
Assim, outra questão que se deve buscar compreender é que a cultura narcisista, por
mais que atue com maior vigor junto à classe média — devido às possibilidades ampliadas
de consumo —, permeia todo o tecido social e seus distintos segmentos, pois a vontade de
consumir atinge todas as classes sociais no mundo contemporâneo, burguês e ocidentalizado.
Veiculados pela publicidade e pelos meios de comunicação, seus princípios afetam as formas
de socialização dos indivíduos. Este contexto orienta uma sociedade em que o
individualismo e a competição desvirtuam os princípios de responsabilidade e de lealdade,
fortemente atravessados pela intolerância, insegurança e ansiedade, marcas fundamentais de
uma estrutura social sustentada pelo gozo privado da existência. Nesse sentido, Jurandir
Freire Costa alerta para alguns resultados desastrosos desse processo:
O mundo dos espelhos não apenas se revelou menos encantador do que
parecia ser como produziu um fator de desequilíbrio crônico na formação
dos sujeitos. Sem o enquadramento simbólico da etiqueta, os indivíduos,
quanto mais intimistas e autocentrados se tornavam, mais inseguros,
intolerantes e ansiosos vinham a se comportar nas relações consigo e com
os outros. Certos de que o gozo das emoções abriria as portas para uma
vida autêntica e criativa, repudiaram o teatro do mundo, mas para
viverem imersos nas incertezas sentimentais, frustrações românticas e
obsessões sexuais. (COSTA, 2004, p. 15)
Dessa
maneira,
certas
reações
características
da
cultura
do
narcisismo
contemporâneo, tais como frustração, egoísmo, individualismo, incertezas, imediatismo e,
13
principalmente, a solidão, atravessam a cultura rock e a juventude dos anos 1980. Nessa
parte do estudo, portanto, é importante observar como alguns efeitos causados pelo mundo
dos espelhos interferiram de maneira decisiva nesse movimento musical.
Assim, defendo a hipótese de que a cultura rock não pode ser analisada
exclusivamente como vertente artística que efetua uma leitura crítica das relações narcisistas,
uma vez que possui sua parcela de responsabilidade na produção de “etiquetas” sociais
típicas da sociedade das imagens e que interagem com a juventude de seu tempo.
Uma das vozes mais expressivas dessa geração musical é a do cantor e compositor
Renato Russo, principal referência da banda brasiliense Legião Urbana. O vocalista é
bastante enfático ao se referir aos sentimentos que se criam durante e após um show de rock:
“Cada show dá a sensação de que você faz amor com 30 mil pessoas e depois vai para casa
sozinho”. (DAPIEVE, 2000, p. 143)
Vale lembrar que os shows de rock são uma constante rotina na vida dos integrantes
das bandas5, além de ser um dos mais importantes espaços da produção da cultura rock.
Nesse palco, ocupado pela juventude, a fala do roqueiro mostra a sensação paradoxal de
vazio, vivenciada na cultura rock, principalmente ao expor o imediatismo do prazer
proporcionado pela realização do show de rock e a solidão e tristeza constatada ao final do
evento. Por ser um momento de visibilidade fugaz, o roqueiro necessita cada vez mais do
palco como espaço de reconhecimento. Dessa maneira, a celebração do sucesso momentâneo
não passa de um intervalo antes de outra aparição pública. Os intervalos entre os vários
shows são apenas pequenas pausas. Este é um dos aspectos que regem a vida de uma
celebridade do rock, já que essa atividade pode ser atravessada por uma ansiedade contínua e
uma solidão profunda, pois, ao mesmo tempo em que narciso ocupa uma posição central no
palco, onde tem tudo, logo em seguida já não tem mais nada.
Além disso, é necessário observar que, ao dar destaque aos shows produzidos no
universo da cultura rock, é possível perceber sua aproximação com elementos presentes no
narcisismo contemporâneo, pois características como as da exposição de celebridades, do
5
Além dos grandes festivais de rock, tais como o Rock in Rio e o Hollywood Rock — que tiveram outras reedições ao
longo das décadas de 1980 e 1990 —, os shows de rock inseriram-se na vida cotidiana da juventude brasileira a partir
desse período, como observa a antropóloga Almerinda de Sales Guerreiro: “Desde meados dos anos 80, em qualquer
grande centro urbano do Brasil, em qualquer fim de semana do ano, é possível presenciar/participar de uma atividade
que reúne uma pequena multidão de jovens – os shows de rock”.(GUERREIRO, 1991, p. 142)
14
corpo espetacular, da performance exibicionista, entre outras, passam a fazer parte da
produção social do rock.
Nesse sentido, a presença de um personagem performático no palco possui o poder de
transformar a tristeza, dor, stress, entre outras angustiantes sensações do mundo moderno,
em um show, sendo essa uma entre outras formas de captura dos sujeitos contemporâneos,
uma forma de poder e controle que se orienta pela produção da “felicidade”. Esta discussão
pode ser melhor compreendida na medida em que são consideradas as observações teóricas
de Gilles Lipovetsky, num momento em que o filósofo analisa os rompimentos no
significado social provocados pelo entretenimento e sua nova face pós-moderna.
A época moralista [período que imperavam as tradições] era disjuntiva, a
época pós-moralista [leia-se também como pós-moderna] é conjuntiva,
reconcilia o stress e o coração, os decibéis e o ideal, o prazer e as boas
intenções. Já não se trata de inspirar o sentido austero e exigente do
dever, mas de sensibilizar, distrair, mobilizar pontualmente o público
através do rock e das estrelas. Nada deve estragar a felicidade consumista
do cidadão-telespectador, a própria tristeza tornou-se motivo de
entretenimento. Através da revivescência caricativa, é ainda a cultura
hedonista de massas que se afirma, a caridade-negócio não exprime a
reabilitação da boa velha moral, mas sim a dissolução pós-moralista.
Adquirindo o direito individualista a viver sem sofrer o aborrecimento das
lengalengas e sermões, no brilho pleno do espetáculo das variedades e dos
deserdados, do riso e das lágrimas, a própria moral deve ser uma festa.
(LIPOVETSKY, 1994, p.15)
As reflexões de Lipovetsky podem ser referências para pensar os shows tão presentes
junto à cultura rock, pois possibilita observar relações de poder que capturam os jovens
através de formas sedutoras, prática que transforma sentimentos como dor, raiva, tristeza e
angústia em uma festa ao transformá-los em peças do jogo do entretenimento. Além disso,
durante um show, pode-se observar um certo grau hierárquico produzido pela sociedade das
imagens, cujas luzes, na maioria das vezes,
estão apontadas para o centro, onde se localiza o vocalista dos grupos.6 Dessa maneira, os
olhares do público, em grande parte, são direcionados na mesma direção: espaço ocupado
6
Em sua dissertação de mestrado, a antropóloga Almerinda de Sales Guerreiro, a partir da análise de três bandas de
rock que surgiram na década de 1980 (Paralamas do Sucesso, Titãs e Legião Urbana), entre outros aspectos, estuda os
rituais festivos produzidos durante os maiores shows de rock desses grupos. Nessa pesquisa, a autora apresenta alguns
dados e reflexões que estão circunscritos na média geral desses palcos. “Toda a estrutura do palco 290 m quadrados de
área (20 m de largura e 14,5 m de profundidade), incluindo as caixas de som e os telões tem 60 m de largura. São 78
toneladas de equipamento, capazes de produzir 300 mil watts de potência sonora e 500 mil watts de iluminação. Os
telões, situados nas laterais do palco, têm em média 4 m de largura por 5 m de comprimento e permitem uma melhor
visualização da performance do grupo. Embora o show possa ser visto de qualquer lugar do Estádio, há uma parte do
15
por performances corporais que devem ser admiradas e imitadas, tornando o show de rock
um dos palcos privilegiados para o exibicionismo narcisista.
Num estudo intitulado Retratos de uma tribo urbana: rock brasileiro, a antropóloga
Almerinda de Sales Guerreiro analisa o rock da década de 1980, abordando os rituais que
atravessam os shows de rock, sobretudo a produção da idolatria de muitos de seus
personagens:
O território do show é ainda o local, por excelência, da idolatria aos mitos
modernos que ganha a feição de ídolo. É certo que o pop star se constitui
num ídolo para grande parcela de seu público, pois nele vê muito mais
que um simples mortal, a encarnação de um mito que representa um modo
de viver, uma fonte de inspiração que se dá através de sua obra como
também de sua pessoa. Um rock star deve representar a encarnação da
fúria de viver, como os deuses ele significa uma fonte efervescente de vida,
a qual transmite para seus devotos através da música. O rock star tornase, sobretudo no show, um objeto de fascinação e uma aura o envolve aos
olhos do público. (GUERREIRO, 1991, p. 163)
Nesse território, os anseios e desejos da multidão de jovens reunida para a festa segue
uma certa uniformidade. O fato de se sentir parte de uma massa humana, na qual se
reconhece na mesma música ou no mesmo cantor, compartilhando dos mesmos gostos e
interesses, os mesmos gestos no mesmo ritmo, aponta para o aspecto que transcende o evento
musical e se configura como uma força que também pode estar alterando certas dimensões
relacionadas à alteridade dos próprios jovens. Sedução e fascínio são os ingredientes que
permeiam as redes que organizam o entretenimento espetacular no qual os ídolos ocupam um
dos principais papéis nesse cenário de poses.
Diante do debate que sinaliza para as novas formas de poder que seduzem os sujeitos
contemporâneos, busco auxílio nas reflexões de teóricos que analisam o tema. Para Zygmunt
Bauman, um elemento fundamental nesse processo é a substituição da lógica da coerção pela
lógica da tentação:
A poderosa metáfora do Panóptico de Bentham e de Foucault não dá
conta dos modos em que o poder opera. Mudamo-nos agora, de uma
sociedade do estilo Panóptico para uma sociedade do estilo sinóptico: as
mesas foram viradas e agora são muitos que observam poucos. Os
espetáculos tomam o lugar da supervisão sem perder o poder
disciplinador de antecessor. A obediência aos padrões (uma maleável e
espaço, conhecido como gargarejo, que é a mais cobiçada pelos rockers. É seguramente neste espaço, mais
aproximado do astro, que se verifica a maior efervescência na massa, uma vez que o palco, que abriga o popstar, pode
ser considerado como fonte de sacralidade deste ritual moderno”. (GUERREIRO, 1991, p. 150)
16
estranhamente ajustável obediência a padrões eminentemente flexíveis,
acrescento) tende a ser alcançada hoje em dia pela tentação e não mais
pela coerção – e aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez de
revelar-se como força externa. (BAUMAN, 2001, p. 101)
O filósofo Michel Foucault pode não ter falado em poder sinóptico, mas já há muito
tempo vinha refletindo sobre as novas formas de poder que se utilizam da sedução para sua
operacionalização. Essa percepção do poder exposta pelo filosofo francês auxiliou os novos
pensadores a analisar as práticas contemporâneas de poder, tendo em vista sua ruptura com
aspectos que integravam o mesmo em outros períodos, o que fez com que leitores de
Foucault, a exemplo de Zygmunt Bauman, percebessem outras de suas sutilezas.
Tal discussão pode ser utilizada para se pensar a juventude e sua relação com a
cultura rock, em especial quando se aborda os shows de rock. Isto porque na medida em que
são analisadas manifestações típicas desses eventos, percebe-se que trata-se de um espaço
em que muitos jovens encontram-se em busca de referências que possam responder às suas
aflições, dores, frustrações. E é aí que reside a sofisticação do poder e sua sutileza
dominadora, pois o show de rock a princípio é visto por pesquisadores — a exemplo do
trabalho da antropóloga Almerinda de Sales Guerreiro —, como uma forma festiva que teria
a função de aliviar a dor, o que pode acontecer.
Contudo, esse sentido não pode ser visto como seu único e principal objetivo.
Quando muitas pessoas correm simultaneamente pra mesma direção, é preciso perguntar
atrás de quê, e do quê, estão correndo? Este questionamento pode ser feito aos jovens desse
período que costumavam freqüentar os shows dos grupos de rock ou mesmo assistir aos
eventos transmitidos pela televisão, seja no formato dos videoclipes ou outros modos de
divulgação da música rock que possam ser ouvidos e assistidos por milhares de jovens.7
Quando essa juventude é analisada como um grupo propício ao consumo de massa, é
possível verificar que ela pode estar correndo atrás de sensações agradáveis – táteis, visuais e
olfativas – ou atrás de delícias das sensações espetaculares prometidas pelos objetos que
7
Para o sociólogo Luís Antonio Groppo essa opção do rock por parte da juventude está ligada aos seguintes pontos:
“Nos anos 80 criou-se no Brasil, com destaque nos grandes centros urbanos do eixo Rio-São Paulo, um mercado
juvenil consumidor de música comercial ou pop-rock, seja ela de procedência nacional ou internacional, através de
produtos fonográficos e videográficos, da radiodifusão, televisão e de shows ao vivo. Completa-se, assim, o ciclo de
pesquisa e análise da música pop-rock em sua transformação de produto cultural-industrial ambíguo — a um tempo
servindo interesses da indústria musical e representando aspirações e culturas juvenis — a mercadoria plenamente
adaptada às necessidades da sociedade de consumo contemporânea, tornando-se um signo pseudo-cultural de diversão
e mais uma forma de inclusão das faixas juvenis no mercado cultural.” (GROPPO, 1996, p. 200)
17
correspondem à perseguição de sensações mais profundas e reconfortantes, podendo ser
manifestadas por um conselheiro especializado, a exemplo dos famosos personagens do
mundo contemporâneo. Uma celebridade é uma pessoa que detém bastante prestígio junto ao
público e sua autoridade é gradativamente ampliada pelo aumento do seu número de
seguidores. Nesse espaço o pop star do mundo do rock alcança uma significativa expressão,
pois representa o sonho de muitos, que logicamente só pode ser desfrutado por poucos.
Sonho esse embalado em meio à sede de entretenimento e diversão dessa juventude que não
consegue se desvencilhar das redes de poder articuladas pela indústria cultural.
Assim percebo que esses jovens vão seguindo certa adequação, articulada através dos
novos desejos, feitos sob medida para as novas gerações, revestidas por inesperadas seduções
nunca vistas antes. Assim, o show se torna um campo profícuo para a constituição das
celebridades, local onde reside o sonho de se tornar um artista pop star. E se esse sonho é
perseguido por tantos jovens, isto se justifica pelo fato de que uma das principais coisas que
chama a atenção num show de rock é a sua capacidade de encantar grandes contingentes de
jovens em torno de um pop star.
Assim, o show pode transformar-se no palco para o exibicionismo do corpo narcisista
que, além de querer a maioria das luzes apontadas para si, exige tudo em nome do gozo
privado, que, por mais que pareça possuir uma aura coletiva, pode estabelecer condições em
que a festa se transforme no encontro onde é possível se sentir uma celebridade, tratando-se
de um campo em que cada um busca enorme satisfação pessoal para de diferenciar da massa
e ao mesmo tempo ser reconhecido por ela como algo singular. Esse desejo de se satisfazer
do sujeito contemporâneo, em que o mesmo vive para correr atrás da eterna busca do prazer
particular, nas últimas décadas do século XX passa a necessitar, sobretudo de um palco para
existir. Esse fato é um aspecto bastante contundente também entre os integrantes das bandas
de rock da década de 1980. Assim, o palco é uma das necessidades dos sujeitos narcisistas,
um elemento fundamental para sua existência.
Nessa direção, posso analisar alguns discursos do cantor e compositor Cazuza,
extraídos de sua biografia — intitulada Cazuza: só as mães são felizes —, escrita pela
jornalista Regina Echeverria, obra que inclui várias entrevistas do cantor. Nesses discursos,
o cantor fala sobre a relação estabelecida com o público no decorrer de um show de rock:
Enfrentar o palco para mim é tudo. Aflora um lado sensual meio
incontrolável. Às vezes, entro de pau duro, a coisa pinta até antes de subir
18
no palco... Outras vezes, entro morrendo de medo, mas, cantando solto a
tensão. Sem brincadeira, é lance sexual mesmo. Fora do palco, sou tímido,
um menininho, me sinto profundamente desajeitado. Mas, no palco, sou
um super-homem, de pôr a capa e sair voando. Sinto o sexo aflorando,
olho para as pessoas e sinto que tem uma coisa também, que volta em
resposta. É muito um lance do prazer, eu e a platéia transando pra
caralho. (ECHEVERRIA, 1998, p. 359)
Trata-se de um eu em sua potência máxima (super-homem), num palco que produz
sensações que tanto enaltecem os integrantes das bandas nos shows de rock, de um momento
em que o sujeito se vê como uma totalidade de forças, de curto tempo, mas que só a ele
pertence. Essa situação, encenada por variadas performances dos vocalistas das bandas,
expressa a incansável busca de prazer, que, entre outras características, opera como funções
de poder e dominação que atravessam as atividades dos artistas que se encontram nos shows
de rock, cujo sucesso se restringe ao gozo particular, mascarado por uma dita diversão
coletiva, como aparenta a princípio esse espaço de lazer ocupado por essa juventude.
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
COELHO, Maria Claudia Pereira. A experiência da fama: individualismo e comunicação de
massa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de
Janeiro: Garamond, 2004.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979.
GROPPO, Luís Antonio. O rock e a formação do mercado de consumo cultural juvenil.
Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1996.
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Retratos de uma tribo urbana: rock brasileiro. Dissertação
(Mestrado em Antropologia). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.
LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa Era de esperança em
declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983
.
LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura: ética, mídia e empresa. Porto Alegre: Sulina,
2004.
LIPOVETSKY, Gilles. O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos.
Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1994, p.155.
REIS, Ronaldo Rosas. “Geração 80”, uma história silenciada: arte, mercado e mídia nos anos 80.
Tese (Doutorado em Comunicação). UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1992.
19
Bibliográfica
DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
ECHEVERRIA, Regina. Cazuza: só as mães são felizes. São Paulo: Globo, 1998.
LEONI, Carlos. Letra, Música e Outras Conversas. Rio de Janeiro: Gryphus, 1995.
Discografia
Bernardo Vilhena, Ivo Meirelles e Lobão. É tudo pose - gravada por Lobão no LP Cuidado (BMG
Ariola/1988).
Bernardo Vilhena e Lobão . Esse mundo em que eu vivo gravada- por Lobão LP Vida Bandida
(RCA Victor/1987).
Bernardo Vilhena e Lobão. Vida louca vida - gravada por Lobão no LP Vida bandida (RCA
Victor/1987).
Cazuza e Roberto Frejat. Subproduto de rock - gravada pela banda Barão Vermelho LP Plunct, Plact,
Zoom II (Som Livre/1984).
Karl Hammel e Marcelo Nova. Cidade bunda - gravada pela banda Camisa de Vênus no CD
Plugado: Camisa de Vênus ao vivo (Polygran/1995).
Marcelo Nova. Muita estrela, pouca constelação - gravada pela banda Camisa de Vênus com
participação de Raul Seixas no LP Duplo sentido (WEA/1987).
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