- Sociedade Brasileira de Sociologia

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SBS – XII Congresso Brasileiro de Sociologia
GT13 – Pensamento Social no Brasil
Antropologia e Política: Reflexões a partir das trajetórias de
Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro.
André Borges de Mattos
Este texto apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa de doutorado ainda em
andamento, cuja proposta é, em linhas gerais, retomar a clássica discussão nas ciências
sociais acerca das relações entre intelectuais e política. Mais especificamente, tento analisar
a atuação política de antropólogos no Brasil a partir das trajetórias de Darcy Ribeiro e
Roberto Cardoso de Oliveira, dois intelectuais contemporâneos que exerceram papéis de
indiscutível importância no processo de institucionalização e consolidação da antropologia
como disciplina no país, sobretudo a partir da década de 50.
Apesar de terem dado início às suas carreiras de maneiras bastante semelhantes, como
tentarei mostrar, eles acabariam por ocupar posições divergentes no campo da antropologia
brasileira. Se Roberto Cardoso de Oliveira tornar-se-ia um paradigma do trabalho do
antropólogo no Brasil, influenciando mais de uma geração de estudantes, Darcy Ribeiro, a
despeito de sua extensa e variada produção intelectual – sendo, aliás, um dos cientistas
sociais brasileiros mais traduzidos no exterior e um do mais respeitados escritores
brasileiros – teria sua influência intelectual bastante minimizada, ao menos entre seus pares,
e sua imagem vinculada preferencialmente à idéia de homem público, comprometido antes
com uma política tout court do que a produção acadêmica em sentido estrito.
Há pelo menos duas décadas a literatura antropológica tem sido pródiga em
referências às imbricações entre antropologia e política no país, de maneira a deixar claro
que se tratam de esferas não contraditórias, ainda que se considere a existência de uma
diversidade interna ao campo que levou a protestos contra uma suposta hegemonia do
Ethnology Brazilian Style (Ramos, 1990) a preconizar uma “antropologia do compromisso”
como traço distintivo da etnologia brasileira1. Seja como for, uma boa soma de trabalhos
vem ressaltar, embora não sem críticas, o caráter eminentemente político do
empreendimento antropológico brasileiro, realizado por antropólogos amplamente
comprometidos com as populações tradicionalmente estudadas em pesquisas etnográficas
(Cardoso de Oliveira 2000, Durham 2004, Peirano 1995, Ramos, 1990) ou empenhados em
um projeto de construção da nação (Peirano, 1981; 1992; 1995; 1999). O que na prática
resultaria, em ambos os casos, na impossibilidade de seu alijamento da esfera política.
Mas há de se considerar que isto não impediu que a disciplina reivindicasse certa
autonomia e independência científica sobretudo a partir da implantação dos primeiros
programas de pós-graduação antropologia social (PPGAS), que se seguiu à reforma de
19682. Além da consolidação de uma nova elite intelectual, este novo espaço permitiu
também a consagração do intelectual especializado, mais atento aos critérios de
cientificidade, mais imparcial, mais distante, enfim, um acadêmico, no sentido moderno da
palavra, modelo de excelência doravante seguido por boa parte dos cientistas sociais.
Neste mesmo momento, as trajetórias de Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira
começariam a tomar rumos diferentes. De um lado, enquanto a democracia brasileira sofria
os efeitos de um dos mais terríveis golpes políticos de sua história, a antropologia florescia
como uma disciplina verdadeiramente acadêmica por um processo no qual teve
participação decisiva Roberto Cardoso de Oliveira. De outro, Darcy Ribeiro, a despeito de
sua ampla participação no movimento de institucionalização da disciplina que vinha
ocorrendo no país há pelo menos duas décadas, via-se, ironicamente, de uma só vez
afastado deste mesmo processo, por força de sua condição de exilado político. Condição,
1
2
Para esta crítica conferir Viveiros de Castro (1999,2002).
Entre inúmeras referências sobre a política da pós-graduação no Brasil, ver Durham (1986).
2
aliás, na qual escreveria boa parte de sua obra de maior fôlego, a saber, a coletânea
intitulada Estudos de Antropologias da Civilização.
Assim, como tentarei mostrar, se Darcy passou a ser visto, aos olhos de seus pares,
como um autor “ultrapassado” e, ao contrário de Roberto, preso a esquemas teóricos
obsoletos, isso se deve em melhor medida ao fato de que de alguma maneira ele
permaneceu fiel ao tipo de intelectual mais “diversificado”, pouco a pouco substituído pelo
intelectual profissional e especializado, e não ao fato de ter simplesmente privilegiado, em
sua carreira, uma atuação política tout court. Tenho em mente, portanto, que a análise da
trajetória política de Darcy Ribeiro não pode desvencilhar-se da tarefa de atentar para o
contexto de sua produção intelectual, mas tampouco pode perder de vista a importância das
articulações internas à sua obra3, na qual, para ficarmos com categorias caras a autores
como Bobbio (1997), cultura e política estão idissociavelmente imbricadas.
Neste ensaio, contudo, não enfrentarei tal desafio em toda sua amplitude. Limito-me a
problematizar aspectos das trajetórias de ambos os autores e de parte de suas respectivas
obras com o intuito de tão-somente discutir em que medida são elas relevantes para o
estudo das relações entre política e antropologia no Brasil, apontando, concomitantemente,
para a importância, neste caso, dos condicionantes sociais destas relações e da própria
produção intelectual brasileira. Com isto, espero finalmente estar contribuindo para o
resgate de parte importante do pensamento social brasileiro.
Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro: notas para o estudo de duas
trajetórias
Roberto Cardoso de Oliveira é hoje um paradigma da produção antropológica no Brasil
e um dos mais prestigiosos autores em nosso meio acadêmico. Sua obra tem exercido
influência considerável sobre mais de uma geração de antropólogos e continua sendo
referência inclusive no exterior, a se julgar pelo extenso currículo de títulos com os quais
foi até agora agraciado4. Nascido em 1928, graduado em 1953 no curso de Filosofia da
FFCHL da Universidade de São Paulo e, mais tarde, sob a orientação de Florestan
Fernandes, Doutor pela mesma instituição no ano de 19665, este antropólogo paulistano
adotou a antropologia, como gosta de dizer, como “sua disciplina”, tornando-se um dos
principais personagens de seu processo de institucionalização no país6.
3
O mesmo recurso metodológico vale para a trajetória de Roberto Cardoso de Oliveira. Inspiro-me aqui no
trabalho de Bruno Latour sobre os cientistas O que este autor escreve sobre os representantes das ciências
naturais é bastante apropriado para os representantes das ciências sociais, isto é, que o objetivo último de sua
atividade é a produção de certa literatura específica. Desta maneira, os cientistas, sociais ou não, são mais do
que tudo “escritores e leitores que buscam se convencer e convencer aos outros” (Latour, 1997, p. 92). Ver
também Latour (2000).
4
Dentre os que Roberto Cardoso de Oliveira é atualmente detentor, destaco os seguintes: pesquisador
visitante da UnB, professor emérito da Unicamp, Grã Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (ONMC)
e ainda membro titular da Academia Brasileira de Ciência (ABC) e da The third world academy of sciences
(TWAS).
5
Com a tese defendida na cadeira de Sociologia I e posteriormente publicada em livro com o título
Urbanização e Tribalismo O processo de Integração dos Terêna numa sociedade de classes (Cardoso de
Oliveira, 1968).
6
Os dados preliminares sobre a trajetória de Roberto Cardoso de Oliveira a serem apresentados abaixo foram
quase todos extraídos basicamente de três fontes. Uma delas, a única biografia sobre o autor da qual tenho
conhecimento, é o livro Roberto Cardoso de Oliveira. Um artífice da antropologia, escrito por Maria Stella
3
Ironicamente ou não, sua adesão à antropologia se dá na ocasião de seu encontro com
Darcy Ribeiro7. Trata-se do exato instante em que esse convida o primeiro para integrar o
Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Estamos no ano de 1953. Sua carreira acadêmica,
porém, iniciar-se-ia efetivamente somente alguns anos depois, quando, em 1958, após
desligar-se do SPI, Cardoso de Oliveira passa a integrar, na qualidade de pesquisador
contratado, a equipe da Divisão de Antropologia e Etnologia do Museu Nacional,
instituição vinculada à Universidade Federal do Rio Janeiro, então Universidade do Brasil,
onde 10 anos depois seria criado o primeiro curso de pós-graduação em Antropologia no
país. Uma vez no Rio, o jovem antropólogo viu abrir-se diante de si a possibilidade inédita,
no Brasil, de conciliar o que até então parecia ocupar lugares distintos, isto é, ensino e
pesquisa, tarefa que desempenharia, segundo relatos posteriores, com indiscutível sucesso
(Amorin, 2001).
Depoimentos de vários de seus ex-alunos revelam a existência de um professor cuja
personalidade combinava um enorme carisma e um extremado rigor, o que vem a expressar
não somente sua preocupação com a formação dos jovens alunos como também o
compromisso que ele mesmo já havia assumido com a própria disciplina e com a formação
acadêmica de seus futuros profissionais8.
Assim, mais do que condições favoráveis para dar início à efetiva construção e
consolidação de uma carreira, sua mudança para o Rio de Janeiro lhe ensejaria uma
transformação íntima que, ao invés de identificá-lo com uma ou outra instituição em
particular, culminaria na instituição de si mesmo como profissional e como acadêmico; e,
daí em diante, na possibilidade de instituir para os outros as condições necessárias à
formação de novos antropólogos. (Amorin, op. cit.)
Seus projetos e feitos institucionais foram muitos. Dentre os principais, destaca-se o
projeto de “Estudos de áreas de fricção interétnica no Brasil”, que, em conjunto com o
“Harvard Central Brazil Research Project”, coordenado por David Maybury-Lewis e fruto
de um convênio entre o Laboratory of Social Relations, de Harvard, e o Museu Nacional,
rendeu importantes publicações, além de ter propiciado as bases para a aliança dos dois
antropólogos, crucial para a criação, em 1968, do PPGAS do Museu Nacional. Com Roque
Laraia, Júlio Cezar Melatti, Alcida Ramos, entre outros, Roberto Cardoso de Oliveira foi
Amorin como uma “justa homenagem ao trabalho que [Roberto Cardoso de Oliveira] realizou em várias
frentes, ao longo de mais de 40 anos de trabalho em favor da Antropologia Brasileira” (Amorin 2001, p.8),
prestada por ocasião do cinqüentenário da CAPES. A outra é um instigante relato auto-biográfico exposto em
O Diário e suas margens, no qual, como escreveu o nosso ilustre nativo, há um diálogo mudo e extemporâneo
entre o velho professor e o jovem aprendiz em suas primeiras incursões etnográficas junto aos índios Terêna e
Tükúna. Uma articulação de dois mundos separados por quase 50 anos de trabalho: “o do autor dos diários
escritos em tempos pretéritos e desse mesmo autor, agora transfigurado em leitor de si próprio e instigado
pelo desafio de um encontro imaginário entre o jovem pesquisador e o velho professor” (Cardoso de Oliveira,
2002, p.17). Finalmente lanço mão de uma pesquisa ainda em curso realizada por mim junto ao Arquivo
Roberto Cardoso de Oliveira, atualmente sob os auspícios do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), na Unicamp.
7
Neste sentido evoco as considerações de Geertz (1997) sobre o método para a realização de uma etnografia
do pensamento moderno, com especial ênfase no que ele chamou “dados convergentes”. Tratando-se de
“aldeias intelectuais, é possível coletar dados convergentes, pois, na maioria dos casos, o relacionamento
entre seus habitantes não é puramente intelectual, mas também político, moral, e intensamente pessoal (...)”
Laboratórios, institutos de pesquisas, departamentos acadêmicos, ciclos literários e artísticos em geral, todos
se enquadram neste modelo: “comunidades de indivíduos unidos por conexões múltiplas, onde o que
descobrimos sobre A nos diz também algo sobre B, porque conhecendo-se tão bem e por tanto tempo, A e B
são personagens nas biografias um do outro” (p. 234-235).
8
Para alguns destes depoimentos ver Corrêa e Laraia (1992).
4
também responsável pela criação, em 1972, do PPGAS da Universidade de Brasília, novo
empreendimento realizado nos moldes do programa do Museu Nacional, com o apoio da
Ford Foundation. Em 1985, convidado a integrar-se ao corpo docente da Universidade
Estadual de Campinas e implantar o seu programa de Doutorado em Ciências Sociais,
atuou como professor, coordenador do novo curso e da comissão de pós-graduação. Nesta
instituição sua presença foi ainda crucial para a criação posterior de uma área de estudos
pós-graduados denominada “Itinerários Intelectuais e Etnografia do Saber”, vigente até os
dias atuais9. Além da participação nas universidades, sua presença em órgãos gestores da
política de pós-graduação e de fomento brasileiras, dentre elas CAPES e CNPq, tem sido
intensa.
Evidentemente a favor a institucionalização da antropologia como disciplina de
excelência acadêmica, sua postura diante dos programas de pós-graduação e a decorrente
especialização da disciplina é, ainda hoje, isenta de ambigüidades. Recentemente destacou
os benefícios de seus desdobramentos para a antropologia: se até então a disciplina no
Brasil era teoricamente incipiente, “o salto que ela deu a partir de meados dos anos 60,
consolidando-se como uma disciplina moderna e de nível internacional a partir dos anos 70
foi” – a seu ver – “resultado dos programas de pós-graduação, particularmente com os do
Museu Nacional, UnB, USP e Unicamp”10.
Como vimos, dos quatro principais programas de pós-graduação em antropologia social
no país, participou diretamente da elaboração de três. Segundo Luis de Castro Faria (1992),
além do SPI, Museu Nacional, UnB e Unicamp foram as “quatro estações de uma via
triunfal” trilhada por Roberto Cardoso de Oliveira”, sem que ele contudo se detivesse por
muito tempo em alguma delas. Afinal, “o verbo permanecer de certo parece-lhe menos
atraente que mudar” (p. 14).
Isto talvez explique por que Amorin o considera um autor único, que se distancia tanto
da figura do autodidata quanto não permite determinar claramente um padrão externo
preponderante em sua formação. Ao contrário, “a identificação está impressa na trajetória
de sua vida profissional, como marca singular” (Amorim, op.cit, p. 35). Um profissional,
enfim, que, mais do que ser influenciado pelas as instituições por que passa, acaba por
imprimir seu estilo em cada uma delas.
Neste sentido, sua produção acadêmica não poderia ser deixada de lado, se não fosse
bastante vasta para ser analisada neste curto espaço. Não obstante, ainda seguindo Amorin,
é possível ao menos classificá-la em três eixos temáticos, correspondentes a todos os livros
e artigos publicados entre os anos de 1955 e 2000, dos quais daremos especial atenção
somente ao último, por razões expostas abaixo.
O primeiro refere-se às produções sobre as relações interétnicas, em que se incluem os
conceitos de “fricção interétnica”, “colonialismo interno”, além das análises do
campesinato indígena e as discussões acerca da identidade étnica. Encontram-se aí as
pesquisas realizadas junto aos Terêna e aos Tükúna11, bem como o trabalho sobre a
influência da ideologia de catalanidade na formação da antropologia catalã, no qual o autor
se valeu da noção de identidade inicialmente desenvolvida no estudo com índios
9
Esta área do doutorado, da qual faz parte o presente estudo, foi renomeada recentemente como “Itinerários
Intelectuais e Etnografia do Conhecimento”
10
Comunicação pessoal.
11
Para os trabalhos propriamente etnológicos de Roberto Cardoso de Oliveira, ver especialmente Cardoso de
Oliveira (1968,1976 e 1996). Para reflexões voltadas para o indigenismo, ver Cardoso de Oliveira (1972).
5
brasileiros.
As discussões concernentes às relações entre a Antropologia e a Epistemologia giram
em torno do segundo eixo-temático. Insere-se aí o clássico livro Sobre o Pensamento
Antropológico12, em que a própria disciplina torna-se o alvo privilegiado de sua reflexão
analítica, além de artigos e textos versando sobre a constituição e as especificidades da
antropologia brasileira13.
O terceiro e último itinerário de sua obra corresponde aos escritos sobre a ética
discursiva na antropologia, resultantes da articulação entre Epistemologia e Ética. Inspirado
em autores como Karl-Otto Appel e Jürgen Habermas, Roberto Cardoso de Oliveira
preconiza aí a existência de uma comunidade de argumentação como um local privilegiado
no qual indivíduos de diferentes grupos teriam a oportunidade de realizar um diálogo
intersubjetivo capaz de estabelecer adequadas regras de convivência porque conjuntamente
aceitas.
Detenhamo-nos, então, neste último aspecto da produção intelectual de Cardoso de
Oliveira. Ele é de particular interesse, pois vem funcionando como uma espécie de espaço
de objetivação das ações de um antropólogo que, não obstante ter se tornado um paradigma
do trabalho acadêmico, está sempre às voltas com questões políticas, sobretudo com a
política indigenista, ou, nas palavras do próprio autor, com o “bem viver” do outro.
Desta forma, os traços de sua trajetória situam-no de maneira bastante próxima à
definição gramsciniana de “intelectuais orgânicos”, segundo a qual intelectuais deveriam
estar compromissados com os problemas sociais “num imiscuir ativamente na vida prática,
como construtor, organizador, „persuador permante‟” (Gramsci 1978, p. 8). É ao menos o
que se pode inferir de uma de suas conferências, proferida recentemente na Universidade de
Brasília, na qual Cardoso de Oliveira abordou o assunto da ética da ação ao dissertar sobre
o compromisso dos antropólogos que trabalham em Ong‟s, setores governamentais e mais
especificamente no campo indigenista. Quanto à própria atuação, afirmou ser um “etnólogo
orgânico”14, numa evidente alusão à definição de Gramsci, embora, “quem sabe renovandoa, para acentuar a relação umbilical que esse pesquisador possui com uma entidade, uma
classe social, um setor de classe ou um dos segmentos deste setor em que está
ideologicamente inserido” (Cardoso de Oliveira, s/d)15.
Na proposta de uma ética da ação está pressuposto o papel do antropólogo como
“mediador” numa situação de diálogo entre duas etnias. Hoje, quando os povos indígenas
ganharam voz própria por meio de seus próprios representantes, a tarefa ética que cabe ao
antropólogo é “claramente a de mediação no âmbito da comunicação interétnica ou, em
outras palavras, no âmbito do „agir comunicativo‟ – esse mesmo agir de que nos fala
Habermas –, e de tal modo que sempre que estivermos voltados para a realização do
trabalho etnográfico, também estaremos abertos para as questões que a própria prática
indígena nos propuser” (idem).
Esta idéia de “prática” é tributária da obra de Lucien Levi-Bruhl, que a definiu como
“regras de conduta individual e coletiva, o sistema de direitos e deveres, em uma palavra as
12
Cardoso de Oliveira (1988)
Sobre estes trabalhos ver Cardoso de Oliveira e Ruben (1995).
14
Vale notar que se trata de uma auto-definição, como consta em várias passagens de O Diário e suas
margens, que já estava presente em seu horizonte de pesquisa e ação indigenista desde os anos cinqüenta,
quando Cardoso de Oliveira, então etnólogo do Sistema de Proteção ao Índio (SPI), realizava seu estudo junto
aos Terêna. (cf. Cardoso de Oliveira, 2002).
15
Neste exemplo o autor referia-se aos antropólogos inseridos no setor político indigenista.
13
6
relações morais dos homens entre si” (idem, grifos originais). Roberto Cardoso de Oliveira
atualiza, contudo, o sentido original de “relações morais”, dando a essas um sentido
moderno como o de “relações dotadas de um compromisso com o direito de bem viver dos
povos e com o dever de assegurar condições de possibilidade voltadas para o
estabelecimento de acordos livremente negociados entre interlocutores” (idem, grifos
originais). Está expressa aqui a distinção idealizada pelo autor entre ética e moral.
Enquanto essa última implica no compromisso do antropólogo com o “bem viver” de todos
os povos, a primeira estaria ancorada na idéia do dever e da responsabilidade como o valor
mais alto de uma pessoa como ser social, ou, para evocar Habermas, relacionada com o
lugar em que hábitos concretos da vida abrigam deveres, mesmo que estes, por estarem de
tal maneira emaranhados aos nossos hábitos, percam toda a sua força normativa. (Cardoso
de Oliveira, 1993).
Cabe assim ao antropólogo assumir a tarefa de comprometer-se embora mantendo
sempre uma distância relativa, seja de uma, seja de outra cultura, o que lhe daria, entre
outras coisas, a garantia de sua independência como pesquisador. Ademais, sua ação deve
depender do consentimento de ambas as partes, que se obrigam a construir o diálogo numa
situação de simetria, marcada pela razão como operador essencial da relação. Condições,
portanto, do que Appel denominou “comunidade de argumentação”.
Se antes o espaço de mediador, por exemplo, entre as etnias indígenas e o Estado, cabia
geralmente a um representante deste último, sejam eles funcionários públicos, políticos ou
administradores, “pouco comprometidos com as condições de verdadeiro bem estar dos
povos indígenas” (Cardoso de Oliveira, s/d), convém agora aos antropólogos ocuparem este
espaço. Mas, se por um lado isto afasta definitivamente a idéia de uma suposta necessidade
de preservar um objetivismo atualmente insustentável – que para Cardoso de Oliveira nada
mais é do que uma ideologização radical da própria objetividade –, por outro permanece a
tentativa de garantir uma imparcialidade – que, ao contrário da neutralidade, deve estar
sempre presente no horizonte do etnólogo orgânico.
Exposta aqui de maneira excessivamente resumida, esta é, portanto, a tarefa ética e
moral que cabe ao etnólogo orgânico. Uma ética que privilegia a intervenção discursiva na
sociedade investigada em detrimento “de sua ação na esfera política, já que esta está cada
vez mais vulnerável à partidarização e jamais deve substituir a ordem moral” (idem).
Somente assim, uma vez definitivamente descartado um relativismo absenteísta responsável
por uma posição de neutralidade equívoca, o etnólogo torna-se apto a manter, ao menos no
plano cognitivo, sua imparcialidade, o que tanto em termos cognitivos quanto morais
significaria “a adoção de uma postura instrumentalizada pela perspectiva adotada: nesse
sentido, a imparcialidade apenas demanda que o intérprete se coloque „em perspectiva‟
(para usar aqui mais uma expressão de Dumont), portanto de maneira crítica se esforçando
para não deixar de responder, com argumentos, às objeções advindas de interpretações
alternativas sobre o problema em pauta” (idem).
Ao problematizar e, portanto, tornar objetiva uma ética de participação política do
antropólogo, Roberto Cardoso de Oliveira parece trazer à luz o novo modelo de se fazer
antropologia que se seguiria à profissionalização da disciplina, cujo ponto alto fora a
implantação dos cursos de pós-graduação. Ao redefinir o seu território institucional, ao
utilizar-se de uma linguagem própria, mais especializada, ao privilegiar os trabalhos e
projetos coletivos em detrimento da ação individualizada (Corrêa 1995), a antropologia no
Brasil definiria também este novo modelo, que por sua vez implicaria a imposição de um
estilo próprio de atuação política segundo o qual o antropólogo ficaria obrigado a
7
posicionar-se tão-somente a partir de um único referencial: a academia. As reflexões de
Cardoso de Oliveira vêm assim expressar sua própria conduta como antropólogo que, uma
vez comprometido, deve assegurar os meios de garantir a preservação de sua independência
e imparcialidade como pesquisador. Uma política, portanto, despolitizada porque diferente
da política ordinária dos políticos16. Algo bastante próximo do que Norberto Bobbio (1997)
chamou “política da cultura”.
Há na proposta de Bobbio a premissa de que tanto a política quanto a cultura
devem ser tratadas a partir de visões distintas. Menos do que despolitizada, a cultura
assume uma posição alternativa, com uma autonomia relativa em relação à política
ordinária. E o intelectual, como intelectual, deve, portanto, agir de uma forma diferente
daquela que agiria o cidadão comum. Um modelo de conduta, ideal, é certo, que deve ser
caracterizado
por uma forte vontade de participar das lutas políticas e sociais do seu tempo que não
deixe [o intelectual] alienar-se tanto a ponto de não sentir mais aquilo que Hegel chamava
de ‘o elevado rumor da história do mundo’, mas, ao mesmo tempo, por aquela distância
crítica que o impeça de se identificar completamente com uma parte até ficar ligado por
inteiro a uma palavra de ordem. Independenza ma non indifferenza [independência mas
não indiferença]” (idem, p.79).
Poucas coisas poderiam ser mais condizentes com a idéia do antropólogo mediador,
proposta por Cardoso de Oliveira e, ao que parece, antevista, preconizada e exercida por
Bobbio.
Jamais me distanciei do tipo ideal do intelectual mediador, cujo método de ação é o
diálogo racional, no qual os dois interlocutores discutem, apresentando, um ao outro,
argumentos raciocinados, e cuja virtude essencial é a tolerância” (idem, p.16).
Eis o que me parece
Darcy Ribeiro. Se tanto
fizeram política, Darcy
partidário, de sua obra17.
uma diferença pungente em relação ao que se propunha fazer
ele, quanto Roberto Cardoso de Oliveira, como intelectuais,
jamais deixou de enfatizar o caráter participativo, parcial,
Mais do que isto, no bom estilo de um intelectual que não se
16
É sintomático que, em fins da década de 70, em um debate público com Darcy Ribeiro a ser retomado
adiante, Roberto Da Matta, substituo de Roberto Cardoso de Oliveira na Função de Diretor de Antropologia
do Museu Nacional quando este deixa a instituição em 1972, faça a seguinte declaração: “Porque assim
fazendo, verificamos que a Antropologia Social – ou as Ciências Sociais – têm um quadro de referência
próprio. (...) Suponho que o melhor meio de viver numa sociedade, praticando uma ciência tão complexa
como a Antropologia Social, é confiando e lutando permanentemente por um espaço que essa e outras
disciplinas possam ocupar e pela ocupação desse espaço, nele criar sua área de „poder‟: suas regras, sua
instrumentação social e política, numa palavra, sua ética. (...) Recuso-me, pois, a aceitar o seu chamamento de
submeter minha Antropologia à ideologia” (apud Corrêa, 1995, p. 97).
17
É verdade que, como funcionário do SPI, Cardoso de Oliveira mais de uma vez destacou o caráter
“utilitário” de suas pesquisas, particularmente para o indigenismo, ainda que, como Darcy e Eduardo Galvão,
fossem costumeiramente acusados no SPI de conduzirem pesquisas “puras” ou como “especialistas em pena
de índio”. Note-se, por exemplo, na passagem de uma carta escrita a Alcida Ramos em novembro de 1962,
seu argumento de que eram acusações injustas, “como você [Alcida] pode ver pelos trabalhos por nós
publicados, todos (ou quase todos) preocupados com o destino das populações tribais e de procedimentos
8
submeteria às regras impostas ao trabalho acadêmico a partir de certo momento, salientou
diversas vezes ser um homem de muitas faces, de muitas peles18, ainda que dissesse ser
acima de tudo um homem de idéias. Mas, como pensador, era também um fazedor que não
se cansava de fazer referências à responsabilidade que sentia pesar sobre os seus ombros
quando se tratava dos problemas enfrentados pelo povo brasileiro. Dizia ele: a “pele que
ostentei e que ostento é a de político. Sempre fui, em toda a minha vida adulta, um cidadão
consciente, capaz de emocionar-se pelos problemas humanos, sobretudo os sofrimentos,
onde quer que eles se dêem, na Terra inteira (...) Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e
há de ser, que me dói demais o Brasil que é”. (Ribeiro, 1997, p. 545).
O início de sua trajetória nos remete à cidade mineira de Montes Claros, onde Darcy
Ribeiro nasce em 1922 e vive toda a sua infância e adolescência19. Mais tarde, em Belo
Horizonte, ingressaria no curso de medicina, com o qual, a despeito das expectativas da
mãe em ver o filho tornar-se médico, não se identificaria. Sua verdadeira vocação somente
iria se desenvolver na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, onde Darcy, por
conseqüência de suas obrigações como bolsista cujo trabalho consistia em realizar leituras e
fichamentos de dezenas de romances e estudos sobre o país, começaria a pensar
sistematicamente o Brasil. A mesma bibliografia, segundo o próprio antropólogo, que
também o puxaria para “dentro do Brasil”, fazendo-o nos pensar, a partir de então, como
povo e como história, ao contrário das aulas de ciências sociais, cujas explanações teóricas
curiosamente o puxavam para “fora do país”. Começava assim a ganhar contornos cada vez
mais nítidos a profunda aversão à erudição, no sentido estrito do termo, e ao saber
desvinculado dos principais problemas brasileiros, que ele alimentaria até o fim da vida.
Nos anos seguintes escreveria uma série de ensaios etnológicos sobres os Kadiwéu, os
Ofaié-Xavante e os Kaapor20. Posteriormente, já no período de exílio (1964-1976),
enfrentaria sua tarefa mais ousada e ambiciosa, isto é, escrever seus Estudos de
Antropologia da Civilização21, que em seu conjunto somam seis obras. Além destas,
contam ainda sete ensaios de cunho literário, além de vários artigos sobre a educação no
Brasil. Neste ínterim, como se sabe, exerceu ainda uma vasta gama de atividades políticas
junto ao Estado, no Brasil e outros países da América Latina, além de atuar decisivamente,
como veremos adiante, na consolidação de importantes instituições voltadas para as
ciências sociais no Brasil.
Seus mestres foram muitos, embora sua influência tenha se exercido somente pela
leitura de suas obras. Entre eles, além da admiração por Oracy Nogueira, Antônio Cândido,
Donald Pierson e Herbert Baldus, Darcy recorda, entre os brasileiros, Roquete Pinto “o
mais completo antropólogo brasileiro do passado”, embora não tenha deixado discípulos.
Pensava o mesmo de Curt Nimuendaju, etnólogo autodidata, nascido na Alemanha, autor
da “obra etnológica mais fecunda que temos. Ou teríamos, porque, até hoje, permanece
inédita no Brasil” (idem, p.120). Devotava também grande admiração por Arthur Ramos,
estudioso dos negros brasileiros e de nossa herança indígena, além de “autor do painel mais
amplo e compreensivo do processo de formação do povo brasileiro” (idem, p.121). Em
Gilberto Freire encontrava o autor da obra mais importante da antropologia brasileira, que é
práticos mais ajustados a assisti-las” (Arquivo Edgard Leuenroth, Unicamp). Mas isto é diferente de
considerar seu trabalho parcial.
18
Conferir Ribeiro (1997, p. 544, passim).
19
Os dados biográficos de Darcy Ribeiro estão reproduzidos em Borges de Mattos (2005).
20
Para um bom relato da pesquisa de campo entre os Urubu-Kaapor ver Os Diários Índios (Ribeiro, 1996).
21
Ver Ribeiro (1977, 1978, 1979a, 1979b, 1985, 1995)
9
Casa-grande e Senzala. Além destes, cita outros pensadores, antropólogos sem saber:
Manoel Bonfim, Capistrano de Abreu e Josué de Castro. Em contrapartida, aos cientistas
sociais brasileiros, contemporâneos seus, reservou a crítica de que só produziam uma
bibliografia infecunda, “inútil, porque, na verdade, suas contribuições são palpites dados a
discursos alheios, compostos no estrangeiro para lá serem lidos e admirados. Por isso
mesmo, para nós também, quase sempre as suas obras são inúteis ou fúteis, no máximo
irrelevantes” (ibidem).
Darcy, no entanto, foi parte importante desta história. No âmbito da institucionalização
das ciências sociais brasileiras, participou da criação, no Rio de Janeiro, do Museu do
Índio, local em que foi realizado o primeiro curso pós-graduado de formação de
antropólogos no Brasil, concretizado com a ajuda da CAPES. Curso que mais tarde seria
acolhido pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e finalmente pelo Museu
Nacional. Sobre isto, orgulhava-se Darcy, já no fim da vida: “Assim é que sou pai e avô de
quantidade de antropólogos e sociólogos que fizeram seus estudos e suas primeiras
pesquisas debaixo dos meus olhos ou dos olhos de meus sucessores” (idem, p. 197) Entre
os quais, Roberto Cardoso de Oliveira.
Neste ínterim, deve-se destacar sua adesão, ainda na juventude, ao Partido Comunista,
que lhe daria a possibilidade de engajar-se politicamente e afastar-se mais concretamente da
outra possibilidade então também vigente: tornar-se erudito. Uma decisão, no entanto, não
isenta de conflitos. Como afirma Bomeny (2001), a Escola Livre guardou, entre outras
singularidades, um dilema, um “confronto que [ele] nunca pôde resolver entre a atividade
acadêmica e a militância. Caminhos suspeitos para ambas as adesões que supunha natural:
os comunistas lhe cobrando ação, a academia lhe exigindo rigor e isenção” (p. 42). Seja
como for, a influência do partido comunista parece ter sido definitiva no sentido de fazer de
Darcy, assim como de todos os membros do “partidão”, “um herdeiro responsável pelo
destino humano” (Ribeiro, apud p. 42).
Figura marcante na trajetória de Darcy Ribeiro, certamente um dos homens mais
admirados por ele, foi o Marechal Cândido Rondon, com quem obteve o primeiro contato
em 1947 por ocasião de sua contratação pelo Sistema de Proteção ao Índio (SPI). Como
Darcy gostava de lembrar, ficou “atado a Rondon pela vida inteira” (Ribeiro, op. cit p.
150). A ele devotava admiração confessa, quase uma adoração. A ponto de dizer ter dois
alter egos. “Um, meu santo-herói, Rondon, com quem convivi e trabalhei por tanto tempo,
aprendendo a ser gente” (p. 223).
O outro era Anísio Teixeira, com quem manteve estreita ligação a partir de 1950. A
afinidade entre os dois, a despeito da diferença entre as duas personalidades, ancorava-se
principalmente na preocupação compartilhada por ambos acerca dos problemas do país.
Assim é que o encontro desses dois “apaixonados” pelo Brasil dá luz ao até então inédito
encontro entre as ciências sociais e a educação (Bomeny, op.cit)22. Um e outro, a partir de
então, unidos pelo ideário da escola pública. Se Rondon, todavia, seria o “santo-herói”,
trata-se agora de um “santo-sábio”. Mas, “por que santo os dois? Sei lá”, dizia ele.
“Missionários, cruzados, sim, sei que eram. Cada qual de sua causa, que foram ambas
causas minhas. Foram e são: a proteção dos índios e a educação do povo” (p. 223).
Assim é que a educação tornou-se, para Darcy, da mesma maneira que para outros
22
O trabalho de Helena Bomeny, um dos únicos sobre a trajetória política de Darcy Ribeiro dos quais tenho
conhecimento, traz uma análise sobre a educação no Brasil a partir dos projetos políticos do antropólogo,
segundo ela, último representante da Escola Nova.
10
intelectuais da época, “estiolados numa vida acadêmica esterilizante”, como gostava de
dizer, uma via segura para a militância. Por esta porta Darcy Ribeiro entrava
definitivamente na política nacional. Seria impossível, todavia, nos limites deste texto,
comentar cada uma das atividades desenvolvidas por este intelectual no cenário das
políticas públicas. Basta mencionar que, entre seus cargos, foi Ministro da Educação no
governo Jango e posteriormente chefe do Gabinete Civil da Presidência da República.
Também atuou como vice-governador de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, além de
Secretário de Desenvolvimento Social em Minas Gerais pelo Governo de Newton Cardoso.
Finalmente, ocupou o cargo de Senador da República de 1990 a 1997, ano de sua morte.
Entre seus inúmeros feitos23, criou, junto com Brizola, no Rio, nada menos do que 507
CIEPs, além do sambódramo. Em São Paulo, ao lado de Oscar Niemayer, ajudou a planejar
o Memorial da América Latina, inaugurado em 1989. Em favor da causa indígena, criou,
em colaboração com os irmãos Orlando e Cláudio Vilas Boas, com o Doutor Noel Nuts e
com Eduardo Galvão, o Parque Indígena do Xingu. Dentre os “fazimentos” que mais se
orgulhava, todavia, estavam as universidades que ajudou a construir ou reformar24, com
destaque para a UnB, à qual Darcy Ribeiro gostava de se referir com especial orgulho.
Minha filha, mulher e mãe é, hoje, meu orgulho. Valeu a pena sofrer e lutar pelas
alegrias de criá-la. Mais ainda vale a alegria de vê-la restaurada em sua dignidade e
armada de suas ambições. O título maior que levarei da vida é o de fundador e primeiro
reitor da Universidade de Brasília. (p. 262)
Darcy construiu boa parte de sua trajetória como uma figura pública. Poucos
antropólogos brasileiros deram-se tanto ao debate público e, mais ainda, a trabalhos
desvinculados de suas pesquisas acadêmicas25, quanto ele, especialmente após o seu retorno
do último exílio, em 1976, quando se voltaria vorazmente contra o “intelectualismo” ao
qual, a seu modo de ver, tinha aderido a antropologia brasileira. Isto ocorre, portanto, no
mesmo período em que nossa disciplina profissionalizava-se pela implantação dos
programas de pós-graduação iniciada na década de 60 – cujos resultados foram tão
celebrados, como vimos, por intelectuais como Roberto Cardoso de Oliveira. Por ter sido
Darcy Ribeiro figura importante no processo de consolidação da disciplina até sua saída do
país, sua surpresa quanto aos novos rumos tomados pela antropologia não deixa de ser
significativa.
Para Corrêa (1995), suas críticas dirigiam-se naquele momento a três características que
ele acreditava ter adquirido o novo “fazer antropológico”. Primeiro, se indignava com a
nova linguagem da disciplina, agora, ininteligível; segundo, reclamava a “irrelevância
social” dos novos temas vigentes, preocupados com as microrelações sociais em detrimento
das interpretações globais da sociedade; finalmente, dirigia feroz crítica à “carreira
acadêmica”, tratada quase como uma perversão do ofício do antropólogo.
23
Reporto aqui o leitor às suas Confissões.
Universidade de Brasília, Universidade do Norte Fluminense, Universidade de Argel.
25
Como procurei mostrar em Borges de Mattos (2003), um bom número de antropólogos mantém, de uma
maneira ou de outra, vínculos com atividades “extramuros”. Contudo, esses trabalhos quase sempre guardam
estreita relação com suas pesquisas acadêmicas. Não por outro motivo, ao contrário, por exemplo, de nossos
pares norte-americanos, são comuns entre esses antropólogos referências a um tipo de estado liminar que os
situa entre um e outro espaço e não ora num, ora noutro. Isto não impede, porém, que sua vinculação ao
campo intelectual seja preponderante.
24
11
Como aponta ainda a autora, especialmente neste último ponto Darcy se mostrou
incansável nos ataques à antropologia, de seu ponto de vista, cada vez mais profissional e
acadêmica. Com certo otimismo, no entanto, pensava ele que a situação poderia ser mudada
por “aqueles que, debaixo de condições tão adversas, estão produzindo a nova Sociologia, a
nova Antropologia do Brasil, que prometem ser as melhores que tivemos (...) Uma vez
libertos de gerontes e de ruminantes, esta nova geração promoverá um verdadeiro
florescimento cultural. Comprometida com o povo” (Ribeiro, apud Corrêa, op. Cit, p. 93).
De sua perspectiva, não promoveu.
Pode-se inferir, assim, o motivo pelo qual, se comparado a outros antropólogos
importantes na história da antropologia no país, Darcy manteve-se praticamente ausente da
vida acadêmica brasileira durante quase toda sua vida profissional. Seus esforços foram
direcionados em melhor medida para as lutas indigenistas e, mais tarde, a expressar sua
especial preocupação com os problemas da educação no Brasil, para as várias esferas de
atuação política nas quais se inseriu, atividade que não abandonou nem mesmo durante o
período em que passou pelo exílio26. Evidentemente, é preciso reconhecer que se trata aqui
de um autor profícuo cujas obras, ao menos aquelas destinadas às discussões acerca dos
problemas enfrentados por povos indígenas, ainda exercem influência no meio acadêmico
(Souza Lima, 1985). Ao falar de sua ausência, entretanto, refiro-me ao trabalho acadêmico
no sentido estrito, isto é, produção de teses, orientação de alunos, pesquisas específicas etc.
Neste âmbito, em que ele praticamente não atuou, destacava-se somente sua crítica
contumaz.27
As Confissões estão repletas de passagens que no mínimo desqualificam as ciências
sociais brasileiras. Talvez marcado pela experiência do exílio, Darcy já há algum tempo
combatia o que acreditava ser uma espécie de “colonização intelectual”, da qual ele mesmo
procurava fugir28. Um exemplo:
A maioria de nossos pesquisadores assume uma atitude seguidista que faz de suas
pesquisas meras operações de comprovação das teses em moda na antropologia
metropolitana, só visando redigir seu discurso doutoral, sem nenhum compromisso
etnográfico nem indigenista. O resultado é a reiteração do já sabido e o desperdício de
preciosas oportunidades de ampliar o conhecimento da etnografia brasileira, enquanto
isso é praticável, e de exercer o ofício de antropólogo com fidelidade aos povos que estuda.
(Ribeiro, 1997, p. 146)
26
Durante o exílio Darcy teve a oportunidade de assessorar os presidentes de Chile e Peru, além de contribuir
para a criação de universidades no Uruguai, Venezuela e Argélia. (Ribeiro, 1997).
27
Ao comentar sobre a dificuldade de conseguir emprego quando retorna definitivamente ao país, Darcy
lembra o momento em que foi reintegrado, por decisão do ministro Eduardo Portela, conhecedor de seu
desejo de “voltar ao convívio de meus colegas professores da universidade, ao cargo de professor de
antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Um gesto que o reconciliaria com o mundo
acadêmico. Porém, já na nova função, muita coisa o surpreendeu: “Praticamente ninguém sabia nada de mim,
senão como um político errado e como um subversivo. Nenhum aluno tinha lido nada meu. Até meus colegas,
jovens antropólogos, achavam que eu era descartável (...) O veto ditatorial a todos nós exilados funcionou. Foi
interiorizado pela maioria dos professores. São coisas da ecologia, inevitáveis. Uma raça nova, diante do
vazio, se expande formidavelmente” (Ribeiro, 1997, p. 468).
28
Embora sejam as Confissões, digamos, sua obra tardia, um certo descontentamento com a posição
subordinada do intelectual de países subdesenvolvidos já estava presente explícita ou implicitamente em seus
escritos anteriores, como aqueles da década de 70. Ver, por exemplo, Ribeiro (1978, 1985). Isto será
retomado em seguida.
12
Quanto aos índios, até então sujeitos privilegiados da observação antropológica, não
passavam, aos olhos dos antropólogos, de “fósseis vivos do gênero humano”, o que o levou
a rotular a antropologia como uma “primatologia” ou uma “barbarologia”, e os
antropólogos, “gigolôs de índios”. Por se tratar de uma etnologia acadêmica,
“aparentemente científica e inocente”, mais preocupada em estudar mitologias ou
colecionar artefatos do que com o trágico destino dos povos indígenas, os antropólogos
seriam incapazes de compreender os reais problemas dos povos indígenas. E, o que é pior,
resultava daí
a tendência em que muitos antropólogos caíram de se converterem, como ocorre com
tantos sociólogos, no que passei a chamar ‘cavalos-de-santo’. Ou seja, pessoas por cuja
boca falam sumidades metropolitanas que os deixam boquiabertos de admiração, tal como
Exu e outras potestades dos cultos afro-brasileiros falam pela boca de seus ‘cavalos’
quando estes entram em possessão. (idem, p.156)
A expressão maior desta incansável luta talvez tenha sido o famoso debate travado em
fins da década de 70 entre Darcy Ribeiro e o antropólogo Roberto da Matta, publicado na
revista Encontros com a Civilização Brasileira, contendo uma entrevista de Darcy, uma
réplica de Da Matta e uma tréplica de Darcy29. Da mesma maneira que sua insatisfação
mostra as redefinições da antropologia nos últimos vinte anos – agora mais preocupadas
com os setores “marginais da sociedade” – a resposta de Da Matta indica os novos rumos
na era da pós-graduação. Como salienta Mariza Corrêa (op. cit. P. 97),
ao dizer que o está ‘passando a limpo’, Da Matta está também reafirmando,
explicitamente, a direção implícita do processo de construção institucional – do qual
participou intensamente – nos quase vinte anos que antecederam o debate; estava, de fato,
passando a limpo um trecho da história de nossa disciplina, pondo em dia, num belo
resumo, as características que, desde a criação dos programas de pós-graduação,
orientariam a formação de antropólogos no país.
De um lado temos, assim, uma disciplina em processo avançado de profissionalização e
autonomização por meio da implantação dos cursos de pós-graduação e, de outro, um
intelectual que à primeira vista se coloca explicitamente contra as implicações desta
mudança. Mas não só. Suas críticas se dirigiam em melhor medida, como já mencionado,
para o que ele acreditava ser a própria condição do intelectual do “terceiro mundo”, e não
unicamente para o processo de especialização per se. Como escreveria em 1978, em
prefácio à quarta edição venezuelana de O processo Civilizatório, ao referir-se às críticas
que o livro havia sofrido, “só não fiquei aplastado debaixo daquele parecer
competentíssimo porque fui salvo por um ataque de raiva possessa contra todos os que
pensam que intelectual do mundo subdesenvolvido é subdesenvolvido também” (Ribeiro,
1978a, p. 21). Ao que se poderia adicionar a seguinte passagem de suas Confissões, quando
Darcy se refere à Escola Livre de Sociologia e Política, do qual fora aluno, e à Faculdade
29
À entrevista dada por Darcy ao jornalista Edílson Martins no número 12 da revista (Ribeiro, 1979a),
seguiram-se a réplica de Da Matta e a tréplica de Darcy no número 15.
13
de Filosofia da Universidade de São Paulo:
Acho muito legítimo estudar qualquer tema só movido pelo desejo de saber. Afinal,
nosso ofício de cientistas tem por fim ampliar e melhorar o discurso humano sobre a
natureza das coisas, inclusive de si próprios. O que desejo assinalar aqui é o caráter
alienador de uma escolástica científica que fechava nossos olhos para o contexto
circundante, nos desatrelava do ativismo político para fazer de nós futuras eminências
intelectuais e acadêmicas. Em nome da neutralidade científica, estávamos sendo
doutrinados para aceitar como despolitização nossa contrapolitização com sinal invertido.
E gostávamos. (Ribeiro op. cit., p. 143)
Destarte, se o problema era a colonização intelectual à qual estariam, aos seus olhos,
submetidos os intelectuais brasileiros, e a despolitização oriunda da necessidade de um
cientificismo para ele inaceitável, tudo indica que, ao menos no caso da antropologia, a
especialização acadêmica era, mesmo que indiretamente, uma maneira de potencializá-lo.
Em contrapartida, as novas regras e exigências da produção intelectual que passaram a ser
recorrentes em um campo de conhecimento que aos poucos foi ganhando sua autonomia,
parecem ter contribuído para situar, a partir de certo momento, a trajetória intelectual de
Darcy Ribeiro como divergente, e Darcy, ele mesmo, como um outsider30, a despeito de ter
sido também um precursor31.
A se julgar pelas referências, presentes implícita ou explicitamente em boa parte de seus
escritos, Darcy parecia querer privilegiar um tipo de trabalho intelectual que pouco a pouco
foi dando lugar a uma antropologia submetida a critérios de cientificidade tão bem
exemplificada pelo trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira – é bom dizer, herdeiro
intelectual de Florestan Fernandes. Sua antropologia “independente”, revolucionária,
apaixonada, parcial, patriótica, participante, voltada para os grandes esquemas conceituais,
com objetivo explícito de influenciar as pessoas, tornava-se de certa forma incongruente
com uma disciplina que, conforme reconheceriam décadas mais tarde alguns antropólogos,
estava destinada a uma vocação “eminentemente acadêmica” (Fonseca, 2004). Como
salienta um de seus comentadores acerca do seu livro As Américas e a Civilização, trata-se
de uma “antropologia combatente, na linha da melhor tradição antropológica brasileira: a
linha de um Roquette Pinto e de um Arthur Ramos”.
Assim, se Darcy, no exato instante em que a antropologia dava um dos passos mais
significativos de sua história rumo a especialização acadêmica, passou a ser visto como um
30
A propósito, é relevante lembrar o que Norbert Elias (2000) considera serem traços comuns de
estigmatização de outsiders numa vasta configuração de estabelecidos-outsiders: “A anomia talvez seja a
censura mais freqüente a lhes ser feita; repetidamente, constata-se que outsiders são vistos pelo grupo
estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros” (p. 27). Mais interessante, no
entanto, é notar que a possibilidade de retaliação dos outsiders não raro se dá, simbolicamente, pelo reforço
do estigma. A respeito de um grupo de crianças e adolescente de Wiston Parva, nome fictício de uma pequena
cidade inglesa estuda por Elias, diz o autor: “Eles gostavam de fazer exatamente as coisas que lhes eram
censuradas, como um ato de vingança contra aqueles que os censuravam” (p. 30).
31
Sendo o presente texto a apresentação de dados parciais de uma pesquisa ainda em andamento, não realizo
aqui uma análise das continuidades certamente existentes entre as formulações conceituais de Darcy Ribeiro e
os trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira, ambos precursores, segundo Eduardo Viveiros de Castro (1999),
da “Escola do Contato”.
14
autor “ultrapassado32” (Corrêa, op. cit.), ainda que estivesse no auge de sua produção
teórica, tudo indica que a razão para tanto reside no fato de que ele parecia de alguma
maneira atualizar a figura anacrônica do intelectual que prevaleceu no Brasil pelo menos
até a década de 30. São estes intelectuais, aliás, desvinculados de instituições científicas e
universitárias, “divididos entre a meta do renome literário e o status conferido pela carreira
de pensador ou ensaísta, espremidos entre as servidões do funcionalismo público e as
atividades de jornalismo, desejosos de salvar o país sem perder a si mesmo e aos seus”
(Miceli, 1987, p. 19), que parecem ser os seus interlocutores mais privilegiados, e não seus
pares mais “próximos”, naquele momento realinhados em torno dos programas de pósgraduação (Corrêa op. cit). Trata-se, neste último caso, de um padrão de intelectual que
vinha se consolidando à medida que o espaço universitário ganhava forma nas décadas de
30 e 40, quando era o intelectual crítico quem se tornava o modelo por excelência,
conseguindo aliar uma formação especializada a um mercado de grande imprensa ainda
bastante cobiçado na época33. Um momento de transição para uma formação mais
especializada, no qual havia cada vez menos espaço para o que Antônio Cândido chamou
“destinos mistos”, isto é, intelectuais, como aqueles de uma geração anterior à sua, “com
um pé na literatura e outro na doutrina e militância política” (Miceli, op. cit.). Ainda assim,
como mostra Sérgio Miceli, o trabalho intelectual do “crítico profissional” estava longe de
se tornar um compromisso científico estrito. Em São Paulo isto somente iria acontecer a
partir da década de 50, com a primeira leva de teses e trabalhos acadêmicos da escola
sociológica paulista, seja de autoria de seus membros estrangeiros, seja da primeira geração
de alunos formados. Mesma época em que surgia o ISEB no Rio de Janeiro34 (idem). Os
anos 60 assistiriam, enfim, ao desfecho do processo de profissionalização das ciências
sociais e da antropologia em particular no país.
Por conseguinte, com o novo rumo tomado pela antropologia, o principal objetivo de
boa parte de seus estudantes passaria a ser uma sólida formação acadêmica por meio de
cursos de mestrado e doutorado para posteriormente conseguir inserção nas próprias
universidades e centros de pesquisa35. E os intelectuais, neste caso os antropólogos –
agora mais preocupados com suas carreiras acadêmicas, com o diálogo com os pares, com o
exercício da crítica distanciada, com a avaliação de especialistas, entre outras coisas –, a se
fecharem nas academias e seus departamentos.
Não estou sugerindo – e que isto fique bem entendido – que o trabalho intelectual no
Brasil, e particularmente dos antropólogos, de lá para cá possa ser reduzido ao exercício
acadêmico da profissão, ainda que muitos tenham individualmente – e, é bom dizer, mais
do que legitimamente – enveredado por este caminho. Se o exemplo de Roberto Cardoso de
Oliveira não fosse suficiente para dirimir tal idéia, os vários profissionais politicamente
32
Neste sentido, ao comentar depoimentos de Roberto Da Matta, Mariza Corrêa lembra que, se neles Darcy
aparece como uma figura ultrapassada, “Eduardo Galvão é quase uma figura de Museu, pouco menos de dez
anos depois de ter concluído seu doutorado em Columbia” (Correa, 1995, p. 84). Curiosamente, o mesmo
Eduardo Galvão que, segundo Darcy Ribeiro, “foi o melhor dos etnólogos brasileiros” (Ribeiro, 1997, p. 194).
33
O Grupo Clima, formado em 1939 por estudantes da FFCHL, é a expressão deste período em que o sistema
cultural ainda era pouco profissional e segmentado, “no qual a oposição entre jornalistas e acadêmicos não
tinha os contornos beligerantes de hoje” (Pontes, 1998, p.215). O livro de Heloísa Pontes apresenta um
excelente estudo sobre o grupo.
34
É bom lembrar que São Paulo e Rio de Janeiro foram locais decisivos para a institucionalização das
ciências sociais no país.
35
O trabalho de Jacoby (1990) é um bom indicativo de que o fenômeno não se restringe ao Brasil. Para dados
referentes a esta discussão, ver também Borges de Mattos (2003).
15
engajados, com trabalhos de relevância inquestionável, ou ocupando posições dentro e fora
da universidade, incontestavelmente seriam. A reforçar este argumento, em um depoimento
recente Eunice Durham (2004) lembrou que a intensificação do engajamento político nos
anos 60, 70 e 80 no Brasil produziria uma expressiva mudança na postura de jovens
pesquisadores a ponto de levar a autora a sugerir que a “observação participante”, cerne da
observação etnográfica, corria o risco de dar lugar à “participação observante”. Todavia, as
novas configurações do trabalho intelectual, advindas das transformações acima citadas,
apontam, ao menos no caso da antropologia brasileira, para a consolidação de tipo de
profissional que, se engajado politicamente, ou mesmo exercendo atividades nãoacadêmicas, tornou-se inquestionavelmente referenciado pela universidade e, por
conseguinte, por suas atividades acadêmicas.
Em suma, Darcy e Roberto parecem não estar tão distantes no que se refere à atuação
política concreta. Creio não ser este o traço que distingue suas trajetórias. Ambos parecem
querer combinar duas facetas de uma mesma personalidade. Há pouco tempo, ao referir-se
a uma “disposição participativa na vida local” que haveria de marcar o seu trabalho como
antropólogo, Roberto recordou “uma saudável combinação de etnólogo e de indigenista da
qual nunca [se] libertaria” (Cardoso de Oliveira, s/d). Contudo, a balança parece pender
para um dos lados, como nesta passagem a respeito de sua pesquisa junto aos Terêna, na
década de 50: “(...) eu exercia dois papéis – o de pesquisador e o de funcionário – e por
mais que eu desejasse priorizar o primeiro, o segundo papel estava sempre a solicitar a
minha atenção e participação” (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 223). E se Darcy disse em
várias ocasiões ser feito para compreender, mas também para agir, isso não o impediu de
privilegiar igualmente um dos lados de sua personalidade mista de político e intelectual:
“Meu mundo é o da escritura, das idéias, da representação. Nisso é que verdadeiramente
vivo (...). Na verdade, as ações concretas a que me dei por anos e anos na convivência com
os índios e no ativismo político foram comandos de minhas idéias, imperativos éticos que
me impus, convicções a que me dei e a que me dou apaixonado” (Ribeiro, 1997, p. 54-55).
De certa maneira, ambos parecem expressar a figura do intelectual comprometido,
próximo, com efeito, da definição de “intelectual orgânico” proposta por Antônio Gramsci
(1978) e atualizada, com vimos, por Roberto Cardoso de Oliveira ao se referir à sua
condição de “etnólogo orgânico”. Suas respectivas condutas parecem, ademais, corroborar,
como reconheceu Ramos (1992, p. 155), considerando ao menos a etnologia, que “fazer
antropologia no Brasil é um ato político”, e, por isso, “os antropólogos brasileiros não
podem dar-se ao luxo de uma torre de marfim nem de ébano, sob pena de enfrentarem a
pecha de „omisso‟ vinda da opinião pública, da comunidade acadêmica e, em muitos casos,
dos próprios povos que estudam”; e, mais ainda, que a “tradição da antropologia neste país
sempre esteve associada à preocupação de atuar em defesa dos direitos, principalmente
daqueles que têm sido a grande fonte de inspiração antropológica”. Isto posto, onde, pois,
caberia indagar, está a originalidade de Darcy?
Assim como boa parte dos antropólogos brasileiros, antes e depois dele, Darcy fez
política. Assim como Roberto Cardoso de Oliveira, entre outros, comprometeu-se com o
“bem-estar” dos marginalizados de toda ordem. E, assim como todos eles, jamais deixou de
referir-se a si mesmo acima de tudo, não é demais reforçar, como um “homem de idéias”,
um antropólogo e intelectual cujo exercício político não era senão um desdobramento
natural desta condição. Porém, ao romper com a academia, com suas novas regras e
convenções, com sua nova linguagem, rompeu também com a imagem do intelectual
acadêmico, modelo por excelência que se consolidaria a partir de 1968. Eis o motivo pelo
16
qual sua trajetória ficaria marcada não por uma, mas por múltiplas faces, como vem
expressar este breve comentário de Antônio Cândido: “ Darcy Ribeiro [foi] um dos maiores
intelectuais que o Brasil já teve. Não apenas pela alta qualidade de seu trabalho e da sua
produção de antropólogo, de educador e de escritor, mas também pela incrível capacidade
de viver muitas vidas numa só, enquanto a maioria de nós mal consegue viver uma”. Era,
de alguma maneira, ao menos como ele haveria de construir sua experiência de vida36.
A despeito de tudo o que ocorria a sua volta, Darcy, demonstrou, como lembra Corrêa
(1995), ter permanecido fiel à antropologia que aprendeu. Isto lhe custou conviver em um
mundo que cada vez menos comportava o intelectual de “muitas faces”. Seu projeto, no
melhor estilo de uma geração que certamente não foi a que lhe sucedeu, não poderia ser
reduzido ao exercício acadêmico da profissão. Sua vida, bem como o objetivo de sua obra,
ao que tudo indica, era uma espécie de “ir além”, e estaria em melhor medida resumida
nesta passagem do prefácio de O Povo Brasileiro, seu livro mais importante: “Portanto, não
se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e
faço ciência movido por razões éticas e por um fundo de patriotismo. Não procure aqui,
análises isentas. Este é um livro que quer ser participante, que aspira a influir sobre as
pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo” (Ribeiro, 1995, p 17).
Bibliografia
AMORIN, Maria Stella de (2001) Roberto Cardoso de Oliveira, uma artífice da
antropologia . Brasília, Paralelo 15, CNPq.
BOBBIO, Norberto (1997) Intelectuais e Poder. Dúvidas e opções do homem de cultura na
sociedade contemporânea. SP, Editora Unesp.
BOMENY, Helena (2001) Darcy Ribeiro. Sociologia de um indisciplinado. Belo
Horizonte, Ed. UFMG
BORGES DE MATTOS, André (2003) Antropólogos e Antropologia entre o acadêmico e
o não-acadêmico: outras inserções. Unicamp, Campinas, Dissertação de mestrado.
________________________ (2005) Antropologia, Estado e o exercício profissional do
antropólogo: reflexões a partir da trajetória de Darcy Ribeiro. Cadernos do IFCH.
36
Por motivo de espaço, não reproduzo aqui as discussões acerca da utilização do “método biográfico”
em ciências sociais. Mas quero lembrar que, ao falar em experiência, não estou me referindo a uma
categoria que se auto-evidencia e se auto-define, expressando de maneira incontestável o que foi ou viveu o
sujeito. Ao contrário, compartilho a visão de Joan Scott (1999), para quem a experiência é algo construído,
contado, narrado, negociado e dependente, portanto, da narrativa que a expressa. Concordo, neste sentido,
que uma história de vida é também uma maneira de conferir, ou construir, uma identidade, que deve ser
entendida como um evento discursivo, estando, portanto, amarrada à noção de experiência. O que leva à
conclusão de que “não são os indivíduos que têm uma experiência, mas os sujeitos que são constituídos
através da experiência” (idem, p. 27). Para uma discussão resumida destas questões e algumas referências
bibliográficas ver Borges de Mattos (2005).
17
Campinas, Unicamp, no prelo
CARDOSO DE OLIVEIRA, R. (s/d) O mal-estar da ética na antropologia prática. Texto
apresentado como conferência na Universidade de Brasília por ocasião das
comemorações dos 30 anos do programa de Pós-Graduação em antropologia.
________________________ (1968) Urbanização e Tribalismo. O processo de Integração
dos Terêna numa sociedade de classes. RJ, Zahar
________________________ (1972). A Sociologia do Brasil Indígena. RJ, Tempo
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_________________________ (1976) O Processo de Assimilação dos Terêna.
_________________________(1986) “A categoria de (Des) ordem e a Pós Modernidade na
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_________________________(1988) Sobre o pensamento antropológico, RJ Tempo
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