Volume 5 - Intelectuais e discurso

Propaganda
Anais do II Simpósio de História
em Estudos Amazônicos
Universidade Federal do Pará
Belém, 15 a 18 de junho de 2015
A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732
Volume 5
Intelectuais & discurso
PPHIST/Universidade Federal do Pará
PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão
PPGH/Universidade Federal do Amazonas
ISBN 978-85-61586-88-1
Ficha Catalográfica
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
/ Intelectuais e discurso. Rafael Chambouleyron (Org.).
Belém: Editora Açaí, volume 5, 2015.
98 p.
ISBN: 978-85-61586-88-1
1. História – Cultura política. 2. Intelectuais – Discurso. 3.
Poder - Amazônia – Educação. 4. História.
CDD. 23. Ed. 348.9977
Apresentação
Apresentamos os Anais do II Seminário de
História em Estudos Amazônicos, realizado
em Belém, de 15 a 18 de junho de 2015. O
primeiro Seminário foi realizado em São Luís,
em 2013, fruto do esforço conjunto dos
programas de pós-graduação em História da
Universidade Federal do Maranhão e da
Universidade Federal do Pará, aos quais se
junta agora o da Universidade Federal do
Amazonas. Neste ano, o SHEA congregou
docentes e discentes das três instituições,
resultando na apresentação de mais de cem
trabalhos, aqui publicados, organizados em
sete volumes, cada um referente a um
Simpósio Temático. O objetivo é reforçar os
laços entre as pós-graduações de instituições
amazônicas, que historicamente,
compartilham trajetórias comuns.
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Sumário
“MAIS DIFICULTOSO EDUCAR DO QUE INSTRUIR”:
EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO PARA A NAÇÃO NAS PÁGINAS
DA REVISTA A SEMANA (BELÉM, ANOS 1920)
Adnê Jefferson Moura Rodrigues ..............................................................................3
INTERFACES ARTÍSTICO-CULTURAIS: ETTORE BOSIO E O
DEBATE SOBRE A PRODUÇÃO DA MÚSICA BRASILEIRA
DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA (1892-1936)
Amanda Brito Paracampo ........................................................................................ 14
“MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS”: MÁRIO DE
ANDRADE E O FOLCLORISMO MUSICAL SOBRE
A REGIÃO AMAZÔNICA (1938)
Edilson Mateus Costa da Silva ................................................................................ 23
IMPRENSA, HEGEMONIA E SANEAMENTO
RURAL NO PARÁ (1916-1921)
Elis Regina Corrêa Vieira ......................................................................................... 31
NO PINCEL E PARA A HISTÓRIA: REPRESENTAÇÃO E
MEMÓRIA NA ARTE DE THEODORO BRAGA
Igor Gonçalves Chaves ............................................................................................ 42
A INFLUÊNCIA DE JOAQUIM NABUCO E ANSELMO DA
FONSECA NA CRÍTICA À IGREJA CATÓLICA EM FINS
DO SÉCULO XIX (1880-1888)
Jerusa Barros Miranda .............................................................................................. 50
A HISTÓRIA PROFISSIONAL: APONTAMENTOS PARA UMA
ANÁLISE DA HISTORIOGRAFIA MARANHENSE DO
FINAL DO SÉCULO XX
João Batista Bitencourt ............................................................................................. 60
CIÊNCIA, TERRITÓRIO E FRONTEIRAS: EXPEDIÇÕES E
RELATOS DE VIAGEM AO RIO PURUS (1903-1905)
Nelson Sanjad ............................................................................................................ 67
1
Intelectuais e discurso
FROM BASEL TO THE AMAZON: THE TRANSNATIONAL
CAREER OF JACQUES HUBER (1867-1914) AND HIS WORK ON
THE AMAZONIAN RAINFOREST
Nelson Sanjad ............................................................................................................ 76
EDUCAÇÃO, MANUAIS DIDÁTICOS E HISTÓRIA PÁTRIA
NO PARÁ REPUBLICANO (1900-1920)
Wanessa Carla Rodrigues Cardoso ......................................................................... 86
2
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
“MAIS DIFICULTOSO EDUCAR DO QUE INSTRUIR”:
EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO PARA A NAÇÃO NAS PÁGINAS DA
REVISTA A SEMANA (BELÉM, ANOS 1920)
Adnê Jefferson Moura Rodrigues1
Resumo
O presente artigo tem como objeto de suas preocupações analisar as crônicas e
os artigos que abordaram a educação das crianças como instrumento primordial
para a construção da identidade nacional, veiculados na revista ilustrada A
Semana, em seu período inicial de circulação, durante a década de 1920.
Influenciados pelas imagens de sociedade “moderna” e “civilizada”, os textos
veiculados comumente atrelam as crianças às noções de “futuro da nação” ou
“país do futuro” e indicam a emergência de diferentes projetos para a infância,
bem como uma reinterpretação do papel das crianças na sociedade.
Palavras-chave: Educação; Nação; A Semana.
A instauração da República representou para muitos contemporâneos da
época um passo primordial para se galgar a civilização do país. Segundo Maria
Tereza Chaves de Mello, durante as décadas finais do século XIX, era corrente
na sociedade, principalmente entre os setores mais liberais da intelectualidade,
a linha interpretativa que percebia a implantação da República, somada a
Abolição da escravatura, como insígnia da entrada do país nas sendas do
progresso.2
A assimilação de ex-escravos à nacionalidade e a imagem brasileira perante
a ciência europeia de povo degenerado e que, portanto, não constituía uma
nação, eram questões urgentes para os governantes da época 3. Tais fatores
foram, constantemente, atrelados a um passado visto como atrasado, ligado ao
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia,
Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes).
2 MELLO, Maria Tereza C. de. A república consentida: cultura democrática e cientifica do
final do império. Rio de Janeiro: Ed. FGV/Edur, 2007.
3 HANSEM, Patrícia. Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de
um ideal de infância brasileira na Primeira República. 2007. 252 f. Tese (Doutorado) –
Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas,
Programa de Pós-Graduação em História Social. São Paulo, 2007.
1
3
Intelectuais e discurso
tempo da escravidão, e que precisava ser superado por novas condutas sociais,
mais afinadas aos ideais de nação “moderna” e “civilizada” perspectivados no
período a partir do exemplo das sociedades europeias4.
Ao pesquisar a construção de uma feição cívico-pedagógica na literatura
infantil, Patrícia Hansen destaca que a educação, com base nesses discursos, foi
percebida como motor para impulsionar o “desenvolvimento” do país,
atrelando a imagem da criança às noções de “futuro da nação” ou “país do
futuro”.5 Em Belém, passados cerca de trinta anos desde a queda da Monarquia,
no alvorecer da década de vinte, as revistas ilustradas veiculavam em suas
páginas representações de crianças permeadas por esses discursos.
As representações de infância no periodismo ilustrado tornam possível
analisar uma reinterpretação do papel das crianças na sociedade. A identificação
de uma nação inconclusa e fora dos “trilhos” da modernidade é um tema
constante em diversas discussões presentes nas revistas que circularam na
capital paraense. Tanto o analfabetismo quanto a mortalidade infantil são
apontados pelos articulistas como grandes obstáculos ao desenvolvimento, e a
intervenção sobre a infância aparece geralmente como premissa fundamental
para a transformação do país.
Fotografias de crianças veiculadas pel’A Semana, por exemplo,
acompanhadas de legendas, como “Com quem o Brasil conta para o futuro”6,
coadunavam a imagem das crianças ao pretenso potencial que possuem para
construir este país tão ansiado. Já em artigo veiculado pela revista A Semana,
intitulado “Escola” e assinado por Andrade Pinheiro, o articulista defende a
instituição como meio principal para reverter o analfabetismo, que, segundo ele,
“nos afigura um formidável Centauro, que só a escola será capaz de impugnar,
Ibidem, 2007; SEVCENKO, Nicolau. “A capital irradiante: técnica, ritmo e ritos do
Rio”. In: ___________ (org.). História da vida privada no Brasil – da Belle Époque à era
do rádio. São Paulo: Companhia da Letras, 2010.
5 Acrescente-se a fala de Michelle Perrot, que destaca uma transformação simbólica da
“função social” das crianças. Após a Revolução Francesa, os filhos passam a ser objetos
de investimento afetivo, econômico e educativo das famílias. No entanto, essa noção
abrange os novos e mais amplos interesses da coletividade, em que os filhos não
pertencem apenas aos pais, pois agora também representam o futuro da nação, da raça,
etc. No Brasil, Patrícia Hansen identifica uma acentuação desta postura com a
implantação da República. PERROT, Michelle. História da Vida Privada IV: da
Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 134;
HANSEM, Op. Cit., p. 31.
6 COM QUEM O BRASIL CONTA PARA O FUTURO (Fotografia). A Semana, 23
de Dezembro de 1922.
4
4
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
expugnar e anniquilar por completo”. 7 À educação se atribui papel quase
redentor, continua o articulista: “a escola é como Christo, dá vista aos cegos”.8
A Semana, através de seus artigos, extravasa para a opinião pública sua
preocupação com a educação, instrumento principal para colocar o país na rota
da modernidade. 9 A escola aparece como principal agente para a formação de
indivíduos instruídos e patriotas e tinha importância fulcral para o país, segundo
a revista. Por um lado, concebia-se o dever que a instituição possui em moldar
hábitos mais alinhados aos padrões tidos como civilizados. De outro, a
imprescindibilidade de consolidação de uma identidade nacional, que por via de
uma educação patriótica, formaria os futuros construtores da nação moderna e
civilizada.
Embora revistas ilustradas como A Semana tenham por finalidade abordar
assuntos cotidianos, como a moda, as colunas sociais, os flirts, ou o mundanismo
por assim dizer, em várias oportunidades os articulistas do semanário paraense
apresentam a importância da formação infantil para a construção de um país
afinado as imagens de nação “moderna” e “civilizada”. Ao refletimos sobre a
criação e circulação de revistas ilustradas, porém, podemos inferir as razões para
que a infância e, mais especificamente, a educação fossem temas constantes nas
páginas da revista.
A circulação de revistas ilustradas faz parte de um processo mais amplo, que
levou Maria Martha de Luna Freire a destacar a década de 1920 como belle époque
das revistas10. Em Belém, a criação de ilustradas tem como especificidade o
compromisso de seus articulistas com um movimento de renovação da
literatura paraense ou, podemos dizer, com o modernismo no Pará. A Semana,
que em seu subtítulo afirmara ser a “interessante e elegante revista da elite
paraense”, circulou aos sábados, na capital paraense e em cidades do interior do
estado, até meados de 1942, alcançado o maior período de veiculação entre os
periódicos desta natureza durante a primeira metade do século XX. Embora A
Semana não fosse considerada por seus redatores uma “revista de letras”, se
tornou o principal espaço de difusão do modernismo literário paraense até o
A ESCOLA. A Semana, 03 de setembro de 1921.
A ESCOLA. A Semana, 03 do setembro de 1921.
9 Segundo Moysés Kuhlmann Jr., entre o final do século XIX e o início do século XX,
a educação passou a ser encarada pelo Estado brasileiro como um fator estruturante da
sociedade “moderna”, devido a necessidade de intervenção na infância ter se tornado
tema no campo legislativo. KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. “A circulação das ideias
sobre a educação das crianças: Brasil, início do século XX”. In: FREITAS, Marcos
Cezar de; KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. Os intelectuais na história da infância. São
Paulo: Cortez, 2001, p. 465.
10 FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.
7
8
5
Intelectuais e discurso
surgimento de Belém Nova, publicação quinzenal fundada por Bruno de
Menezes, que circulou entre 1923 e 1929.
Edgar Proença e Sandoval Lage, ambos redatores da revista A Semana, além
de Ernani Vieira, De Campo Ribeiro e Lindolfo Mesquita, são alguns dos
nomes que escreviam para a revista e integravam a chamada Associação dos Novos,
assim denominado o grupo de intelectuais que percebeu como necessária a
renovação da literatura paraense, sintonizando-a às vanguardas artísticas
europeias.11 Não por acaso, o formato impresso escolhido pelo grupo para
ecoar a renovação das artes paraenses foi justamente a revista, veículo
comumente percebido como porta-voz da novidade.12
De acordo com Aldrin Figueiredo, o movimento sinalizava uma adesão ao
grito de renovação paulista, que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922,
mas afirmava um perfil próprio de atuação no campo das letras, resguardando
o principal elemento de distinção entre os “novos” e a intelectualidade paulista:
a diversidade intelectual, expressa pelo convívio de diferentes gerações de
autores. Unindo o grupo, estava, entretanto, o objetivo de formar uma nova
identidade nacional, relendo a história brasileira a partir do ângulo amazônico e
sob o signo da “modernidade”.13
Na revista, a renovação literária pretendida pela Associação dos Novos fez parte
de um projeto mais amplo de “modernização” da sociedade, que contemplava
também a conformação de novos hábitos entre a população. Isto explica a
recorrência da educação infantil como tema em artigos e crônicas, que a
apontavam como caminho principal para construir uma nova nação, sendo as
crianças a representação de seu potencial futuro.
Em outro artigo assinado por Andrade Pinheiro, intitulado “Educação”, o
articulista chama a atenção ao papel que as famílias possuem em relação à
educação das crianças. Se por um lado afirma-se a importância da instrução, o
que significa dizer processo de aprendizagem escolarizada, por outro, a
necessidade da educação, dimensão da formação humana que é adquirida
primeiramente em casa, no seio familiar, não é deixada de lado e tem seu papel
igualmente confirmado.
Ha escriptores que confundem a educação com a instrucção; entretanto são
entidades diversas; a educação inclue a instrucção, mas esta não inclue aquella. A
prova disso ahi temos por toda a parte. A educação vem do berço, da família, passa
aos bancos e vai além. A instrucção não vem da família, em geral [...].
FIGUEIREDO, Aldrin. Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no
Pará dos anos 20. Belém: IAP (Instituto de Artes do Pará), 2012.
12 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de
República (1890-1922). São Paulo: Edusp/FAPESP, 2008.
13 FIGUEIREDO, Op. Cit., p.23-26.
11
6
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Todos os professoros confessam que é mais dificultoso educar do que instruir.
Quando a creança ou o menino traz do seio da familia, ou de casa para falar mais
claro, os princípios da boa creação ou da boa educação esta continua nos bancos
escolares, e os professores sentem o prazer de attental-a. Mas quando não os traz,
os mesmos professores declaram, que se há meninos que se vão instruindo vão ao
mesmo tempo se educando outros há que se mostram refractarios áquelles
princípios, e não há ensino nem força humana que os possa encaminhar pela semitas
de uma boa conducta, dos bons modos, do respeito e da urbanidade.14
A distinção entre instrução e educação, segundo a revista, é clara. E a
existência das duas está diretamente atrelada a “urbanidade”. Isto porque, como
podemos conferir, para o articulista estas (educação e instrução) são princípios
que o viver na cidade reclama. Formar as pessoas que viverão na cidade é papel
tanto da escola quanto da família, e isto perpassa necessariamente pelo
disciplinamento das crianças. Seguindo em suas palavras, à disciplina cabe o fim
de “concertar lhes os costumes e modos, ornando-lhes o entendimento com a
instrucção [das crianças].”15Além disso, a disciplina não é apenas um fator
positivo para o convívio no meio urbano, ganhando o termo um significado
diferente, quando o autor faz uma analogia ao respeito que os militares
apresentam em relação aos seus superiores. Pois, “o soldado em geral é um
homem disciplinado, e a cortesia que guarda para com seus superiores e seus
eguaes, tambem a sabe guardar para com todos os homens”.16
Nesse sentido, para inserir o Brasil no caminho que outros países mais
“civilizados” já trilharam, a revista assevera o tom de recrutamento de pais e
mães para o esforço necessário de formar o futuro da nação. No período
subsequente a Primeira Guerra Mundial, é possível verificar, inclusive, o uso de
expressões bélicas, como “soldados do amanhã”, que tanto reforçam o futuro
potencial das crianças quanto destacam a importância da disciplina militar nesta
formação.17
Artigos que apontavam a Alemanha como exemplo a ser seguido pelo Brasil,
quanto a valorização de suas tradições e de seus símbolos nacionais, passaram
a ser comuns no semanário paraense. Os governos alemão e japonês também
são citados como exemplos quando são tratados, respectivamente, a
necessidade de conformação do sentimento nacional e o desenvolvimento
econômico, identificado pela revista como resultado dos investimentos na área
educacional18. A menção a estes países pode estar ligada ao momento de
EDUCAÇÃO. A Semana, 23 de abril de 1921.
Idem. A Semana, 23 de abril de 1921.
16 Ibidem. A Semana, 23 de abril de 1921.
17 Ibidem. A Semana, 23 de abril de 1921.
18 NACIONALISEMOS O NOSSO ENSINO. A Semana, 23 de dezembro de 1922.
14
15
7
Intelectuais e discurso
recuperação econômica que passaram após o fim da Primeira Guerra,19 ainda
na primeira metade da década de 1920, e sido usado como estratégia pela revista
para sustentar seus argumentos em prol do ensino como via de fortalecimento
do nacionalismo.
A falta de nacionalismo é identificada como causa precípua dos problemas
sociais vividos pela população brasileira, entre eles a pobreza. A ela estão
associados costumes que fazem parte de um passado que se quer esquecer,
contudo, o ensino pode ser uma arma decisiva para a construção deste país que
tanto se almeja. Combinando-se disciplina e patriotismo, por meio de um
ensino que exalte a nação, será possível acabar com as características que
corrompem a sociedade brasileira. Faz-se necessário, de acordo com A Semana,
“nacionalizar o ensino”.
Ora, sendo estas causas primordiaes da degenerencia do nosso caracter, voltemos
as nossas vistas para escola e ali administremos um ensino exclusivamente nacional –
fazendo com que “a nossa musica sempre cante o amor da nossa patria e a gloria
do nosso povo, a gymnastica forme o nosso soldado e o ensino profissional o
prepare para as nossas indústrias. A literatura exalte os nossos poetas, a Historia
celebre as proezas dos nossos antepassados, a Geographia nos faça conhecer o
nosso paiz a fundo e nos mostre a sua riqueza e o seu futuro,” [...]. 20
O trecho supracitado é um indicio para várias relações que podem ser
estabelecidas como forma de propiciar sua compreensão no contexto em que
foi formulado. Além da necessidade de administrar um ensino exclusivamente
nacional, que, em suma, significa a valorização dos símbolos nacionais por meio
da instrução, a revista faz questão de ressaltar este método como forma de
combater a “degenerencia” do caráter da população.
O termo evidencia a circulação, ainda neste período, dos ideais cientificistas
compartilhados por intelectuais e por parte das elites que foram utilizados para
legitimar a implantação da República. De acordo com Nicolau Sevcenko, a
entrada destas ideias se deu de forma mais acentuada na década de setenta do
oitocentos, segundo a influencia das diretrizes cientificas e técnicas emanadas
da Europa e dos Estados Unidos, quando das instabilidades políticas do regime
monárquico.21 Segundo Maria Tereza Chaves de Mello, embora haja uma forte
influencia do filósofo de Montpellier nas elites políticas brasileiras, , o estudo
HOBSBAWM, Eric J. A era da guerra total. In: Era dos extremos: o breve século XX,
1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 43.
20 NACIONALISEMOS O NOSSO ENSINO. A Semana, 23 de dezembro de 1922.
21 SEVCENKO, Nicolau. Introdução: O prelúdio republicano, astúcias da ordem e
ilusões do progresso. In: ___________ (org.). História da vida privada no Brasil – da Belle
Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia da Letras, 2010, p. 14.
19
8
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
positivo dos fatos sociais de Augusto Comte foi adaptado ao contexto nacional
e aqui se hibridizou ao monismo de Ernst Haeckel e ao evolucionismo social
de Robert Spencer, atendendo aos anseios da intelectualidade como forma de
contrapor “as hierarquias fundadas no privilégio e a caduca união trono-altar”.22
De modo geral, estas são algumas das influencias que os articulistas d’A
Semana compartilham. A ideia de evolução social, que aplica as descobertas de
Lamarck e pincipalmente de Darwin à sociedade, entre elas a seleção natural e
a luta da espécie, ainda se faz presente em seu discurso, e a crença na razão e na
experiência como os únicos instrumentos do conhecimento humano (que
fundamenta o Monismo) consubstanciaram a posição fincada pela a revista em
seus artigos.
Por outro lado, o fator de “degeneração” que acomete a sociedade, é
ressignificado pela revista, pois através de um ensino exclusivamente nacional
se pode reverter tal situação. A visão de povo degenerado emergiu
fundamentalmente em trabalhos médicos que afirmavam uma antropologia
racista que se centrava em características antropométricas como forma de
determinar os limites social e político da República, em especial o trabalho de
Raimundo Nina Rodrigues.23 Mas, em contrapartida ao pessimismo
apresentado pelas teorias racistas da Primeira República, há uma
supervalorização da escola e da importância das crianças naquela conjuntura. A
nacionalidade brasileira, bem como tudo o que a ela está ligado (a sua literatura,
sua história e sua geografia, como apontados pela revista), são motivos de
orgulho para a sociedade, e devem ser enaltecidos pela escola e por seus alunos.
Tal movimento também pode ser percebido em uma escala maior,
demonstrando que o momento de afirmação da nacionalidade pela sociedade
paraense dialogava com o cenário nacional, pois a visão de que a nação ainda
não estava consolidada era comungada por grande parte das elites políticas e
intelectuais do Brasil. Os estudos de Patrícia Hansem corroboram isso, ao
evidenciar que os autores que escreveram livros infantis, em geral de cunho
cívico-pedagógico, tentaram romper com a visão de povo degenerado, através
da exaltação do nacionalismo, em parte justificado pelo engrandecimento das
“riquezas naturais” do Brasil.24 Nesta contextura, os articulistas da revista A
Semana se utilizaram de uma postura romântica e encomiástica para contrapor a
visão de povo degenerado, mesmo que contradizendo os ideais cientificistas que
se acentuaram desde 1870 no Brasil e que em determinados momentos a revista
demonstra em seus discursos.
MELLO, Op. Cit., p. 95.
HANSEM, Op. Cit.,, p. 52
24 HANSEN, Op. Cit., p. 54.
22
23
9
Intelectuais e discurso
A implantação da República não foi suficiente para apagar os costumes
“atrasados”, verdadeiros sinais da degeneração do povo brasileiro, como deixa
transparecer a revista. Figuras do cotidiano como o “devedor recalcitrante”, “o
caloteiro contumaz” ou “a melindrosa irreflectida que se gruda horas a fio ao
telephone numa conversa lezadora dos interesses da casa”, descortinam o
“descalabro moral e material” que se faz presente na população brasileira.25
E tudo – esse desrespeito pelo direito alheio, essa falta de compreensão dos próprios
deveres – se não deve etiologicamente senão á ausência do civismo que deveria ter
sido ministrado dentro do lar, nas escolas primárias como nos cursos superiores,
para a depuração dos caracteres, para o alevantamento moral do povo e consequente
engrandecimento da patria.26
Arraigados na sociedade, esses costumes ganham o caráter de doenças,
fazendo com que seus sintomas atrapalhem o engrandecimento da pátria. O
desrespeito a padrões comportamentais, insígnias da pretensa modernidade
desejada, se expressa em uma linguagem clinica, fruto do cientificismo, ou
positivismo heterodoxo, que arrebatou a intelectualidade brasileira durante os
momentos finais do período monárquico. Suas causas são “etiológicas” e para
sua “erradicação” é necessário um tratamento com status profilático, de longo
prazo, que grosso modo deve se dar por “doses” de civismo. Apropriado pelos
articulistas d’A Semana como um amalgama de patriotismo e disciplina, o
civismo é um remédio para o principal problema da nação, a falta destes dois
elementos.
Entrementes, é sugestivo o nome do artigo que denuncia a indisciplina e a
ausência de patriotismo na sociedade: “Terra Ideal”, local privilegiado para a
conformação do “bom, do belo e do perfeito”, traz à tona o otimismo dos que
reverteram as características do povo brasileiro nos auspícios de uma nação que
será “o orgulho máximo das Américas”.27 Se a concepção de nação incompleta,
por isso mesmo em formação, contraria a percepção de nação moderna e
civilizada, reforça, por outro lado, o papel da educação das crianças como motor
para “moralização dos costumes”. Por sua via, o país conquistaria uma
transformação completa e radical dos hábitos e costumes de seu povo.
É possível que a importância da instrução como símbolo de distinção social
entre os sujeitos também tenha aumentado, ao ganhar as paginas da revista a
percepção de que os indivíduos “embuidos de alguma luz, não alcançassem, de
futuro, os titulos literarios e scientificos, já fôra bastante, que, no correr dos
TERRA IDEAL. A Semana, 07 de fevereiro de 1925.
Idem. A Semana, 07 de fevereiro de 1925
27 TERRA IDEAL. A Semana, 07 de fevereiro de 1925.
25
26
10
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
annos, conseguissem ser homens instruidos para dignamente ocuppar logar
saliente no meio social”.28 Embora não possamos atestar como fator decisivo o
momento econômico instável, provocado pela queda dos preços da borracha
no mercado internacional,29 para a ampliação de sua compreensão enquanto
ferramenta de ascensão social, também não podemos desconsiderá-lo.
Contudo, uma pergunta torna-se latente: quais as crianças que poderiam,
quando adultos, tomar para si, não mais as rédeas, e sim o volante desta nação?
Provavelmente os articulistas d’A Semana não se referiam às crianças pobres,
analfabetas e desnutridas. Os textos veiculados pela revista se dirigem a um
público privilegiado, com maiores oportunidades de acesso ao conhecimento
escolarizado. Isto indica que a educação defendida pela revista não se destina a
todas as camadas sociais de maneira igualitária. Àqueles que não se encaixam
neste padrão letrado e economicamente abastado, embora não possam ser
excluídos, devem receber outro tipo de ensino.
Logo, o projeto educacional para o país não é homogêneo, e para os
articulistas d’A Semana nem deveria. Embora apresente contornos coletivos, ele
possui finalidade e perfil distinto para as diferentes camadas sociais. Aos mais
pobres cabem um outro papel na sociedade, mesmo que o “processo de
civilização” perpasse necessariamente por eles. A Semana, por exemplo, atentava
para a necessidade de um “ensino profissional que os prepare para todas as
indústrias”.30 Esta preocupação com a formação profissional para os mais
pobres não era recente e se deu desde o período de implantação da República
no Pará, sob o governo de Lauro Sodré, sendo criadas escolas noturnas que
tinham por intuito gerar mão-de-obra qualificada para as indústrias.31 Desta
forma, podemos inferir que o disciplinamento da população mais pobre
também deveria ocorrer por meio do trabalho e por uma educação que
permitisse colocar isso em prática, unindo a labuta fabril ao processo de
alfabetização.
Idem. A Semana, 07 de fevereiro de 1925.
De acordo com Barbara Weinstein os saldos da economia da borracha no Pará, e na
Amazônia como um todo, diminuíram vertiginosamente após o ano 1910. Nem mesmo
o crescimento da exportação do produto, observado em 1912, pôde conter a sua
desvalorização no mercado. Um dos principais motivos da queda dos preços da
borracha na região foi a concorrência da produção racional de látex proveniente da Ásia
que, ano após ano passava a aumentar sua parcela nos lucros dentro da balança
comercial internacional. WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e
decadência, 1850-1920. São Paulo: HUCITEC, 1993.
30 NACIONALISEMOS O NOSSO ENSINO. A Semana, 23 de dezembro de 1922.
31 FARIAS, William Gaia. “Construindo a República pela Educação”. In: _______. O
alvorecer da república no Pará. Belém: Ed. Açaí, 2010, pp. 59- 72.
28
29
11
Intelectuais e discurso
O caráter nacionalista e a disciplina deveriam estar presentes na educação de
um modo geral, mas em relação aos mais pobres, tal aspecto recrudescia.
Perceber a pobreza enquanto um problema de saúde era comum e
constantemente significava isolamento e “tratamento clínico” para as crianças
que viviam nas ruas. Em A Semana, as imagens de crianças pobres só apareciam
quando o intuito era o de ressaltar as ações realizadas no campo da assistência,
envolvendo, especialmente, o Instituto de Assistência a Infância, dirigido por
Ophir Loyola.
Portanto, cabe destacarmos que as paginas d’A Semana, locais de
publicização da moda contemporânea, dos bailes de gala na Assembleia
Paraense, da “vida mundana” na capital paraense, e, por isso mesmo,
higienizadas, com uma pretensa ausência de conflitos sociais, não combinam
com as cores fortes da pobreza e da falta de oportunidade a educação e a saúde
que atingem a grande parte da população do Estado, por mancharem o cenário
pintado pela revista.
Fica, em nosso entender, evidente que os artigos e as crônicas de A Semana
propagandeavam uma concepção de criança heterogênea, ao levarmos em
consideração os diferentes objetivos da educação para as camadas mais e menos
privilegiadas. Mas o caráter nacionalista passou a ser preponderante em seus
discursos, reverberando a importância de se conformar uma identidade cultural
que reforce a ideia de nação.
Como Alessandra Schueler e Ana Malgadi evidenciam, a instauração da
República, de fato, não representa “um marco zero” da escolarização elementar
e das políticas de institucionalização, disseminação e democratização da
educação escolar no Brasil, mas há uma ampliação das discussões sobre a
educação enquanto instrumento de edificação da nacionalidade, que amadurece
nas décadas seguintes, já no inicio do século XX.32
Expurgar de vez para o passado os símbolos do atraso como o
analfabetismo, por exemplo, estava na ordem do dia, e fez com que a educação
tivesse um papel essencial para formar as crianças, futuro da nação. Em síntese,
estava se reinterpretando o passado do país, trazendo à tona o processo de
reconstrução identitária que se processava no interior da sociedade. O
prosseguimento do projeto de formação das crianças e, com isso, de
“modernização” dos hábitos e dos costumes fazia com que as fronteiras entre
o público e o privado estivessem cada vez mais fluídas. A Semana, nesta
conjuntura, tornou-se palco para a circulação destas ideias e canal entre as duas
MAGALDI, Ana. & SCHUELER, Alessandra. Educação escolar na Primeira
República: memória, história e perspectivas de pesquisa. Revista Tempo, v. 13, nº 26, Rio
de Janeiro, 2008.
32
12
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
dimensões, ao exteriorizar para os lares de seus consumidores a importância das
crianças na construção do sentimento nacional.
13
Intelectuais e discurso
INTERFACES ARTÍSTICO-CULTURAIS: ETTORE BOSIO E O
DEBATE SOBRE A PRODUÇÃO DA MÚSICA BRASILEIRA
DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA (1892-1936)
Amanda Brito Paracampo1
Resumo
Através desta pesquisa buscaremos analisar uma parte da vida do italiano Ettore
Bosio a partir de sua moradia em Belém, Pará, no início da era republicana
brasileira na última década do século XIX até a metade da terceira década do
século XX quando da sua morte; e também três períodos importantes para a
música brasileira produzida ao mesmo tempo da sua residência no país, uma
fase inicial republicana a partir de 1890, os movimentos de renovação das artes
a partir de 1910 tendo seu auge iniciando-se em 1920, e em 1930 o processo de
institucionalização de uma linguagem nacional para as artes.
É o objetivo desta pesquisa analisar as interfaces artístico-culturais que
permearam a vida do maestro-compositor italiano Ettore Bosio desde sua
chegada em Belém pela segunda vez em 1892 até o ano de sua morte nesta
mesma cidade em 1936 e o debate que estava acontecendo em muitas partes do
país justamente durante este primeiro período da República brasileira. Este
tempo de transição do sistema monárquico para o republicano, incluindo
algumas décadas antes e depois, foi dominado por um significado de
modernização e progresso essencialmente no meio da elite da sociedade
brasileira e também da elite intelectual, que segundo Lúcia Lippi, “aceitou
aquelas ideias que permitiam pensar a integração do Brasil na cultura
ocidental”2.
Durante a denominada belle époque, houve inúmeras mudanças no espaço
físico das maiores e mais ricas cidades do país e igualmente no modo de viver
das pessoas que nelas residiam, o fluxo de ideias estrangeiras se espalhavam com
maior facilidade na busca de um “novo padrão de prestígio social”3, e isso
Bolsista CNPq/PPHIST/Universidade Federal do Pará
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na primeira república. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990, p. 81. A autora complementa com esta afirmação na mesma página:
“O positivismo, o darwinismo, o spencerismo e o materialismo preencheram o mesmo
papel, essas correntes veicularam uma filosofia da história que possibilitava esta
integração ao moderno, ao científico, ou ao Estado positivo”.
3 OLIVEIRA, 1990, p. 111.
1
2
14
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
ocorria com igual relevância no meio musical. Temos o exemplo do compositor
francês Darius Milhaud que passou temporariamente pelo Rio de Janeiro
durante este período e se sentiu maravilhado pelo que vivenciou, “conjugando
os pólos da cultura europeia e do popularesco carioca sob as espécies do
requinto e do exotismo”4. Os intelectuais procuravam pensar o Brasil e propor
ideias que acentuassem o caráter nacional e assim pudessem integrar o país no
contexto do ocidente, para isso precisavam definir um povo brasileiro através
de traços específicos, ou seja, uma identidade e uma alteridade, a partir de suas
diferenças também. Tais ideais penetravam quaisquer cantos da sociedade
elitista paraense igualmente, por exemplo, a política de atração de artistas e
intelectuais do governo de Lauro Sodré.
Constatamos, a partir dos dados, que Bosio chegou a Belém em janeiro de
1892, junto com a “Companhia de Opera Lyrica Italiana dirigida por Joaquim
Franco”5. E em meio a diversos anúncios em igualmente diversos jornais da
cidade, percebemos que a ópera do maestro italiano é uma das mais aguardadas,
a chamada O Duque de Vizeu, tinha como maior propaganda o fato de ser cantada
totalmente em língua portuguesa, mesmo advinda de uma companhia lírica
italiana, o que nos leva a pensar acerca da tentativa de aceitação da obra,
cuidadosamente pensada por Bosio, através de um fator intrínseco àquela
sociedade: o idioma. A ópera era uma adaptação de um poema português escrito
por Lopes de Mendonça 6, extraído dele o libreto do poeta brasileiro Pacheco
Netto7.
Estudando a vida de Ettore Bosio no período em que chegou a Belém, quase
para completar 30 anos de idade8, até o ano de sua morte, na mesma cidade, em
1936, aos 74 anos; podemos perceber a sua inserção total na sociedade
belenense da época. Sobre a mesma, falaremos mais adiante neste artigo. No
entanto, é necessário reconhecer desde o princípio que o maestro não se parecia
com a imagem do imigrante italiano padronizada pelos estudiosos, primeiro
porque ele era um artista (e não um agricultor) e era de sua natureza profissional
que viajasse costumeiramente, consequência do lugar onde nascera, pois sua
cidade natal ficava na região do Vêneto no norte da Itália, caracterizada pela alta
WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários: a música em torno da semana de 22. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 40.
5 A Província do Pará, 13-01-1892, ano XVII, p. 3.
6 A biografia do dramaturgo português pode ser lida em MÓNICA, Maria Filomena
(Org.). Dicionário Biográfico Parlamentar – 1834-1910. Vol. II, pp. 890-891. Lisboa:
Assembleia da República, 2005.
7 A Província do Pará, 03-04-1892, ano XVII, p. 2.
8 SALLES, Vicente. Música e músicos do Pará. 2a edição ampliada e corrigida.
Microedição do autor. Brasília, 2002, p. 57.
4
15
Intelectuais e discurso
industrialização em contraste com o sul agrário italiano, de onde advinha a
maior parte dos agricultores para esta região do Brasil.
É difícil acreditar que um italiano se tornasse um brasileiro de fato, seria mais
provável a ideia de troca cultural, pois houve um choque de culturas, que foi
assimilado com certa facilidade por este grupo europeu. Isto é, o imigrante que
se estabelece no local de destino tende a se encaixar naquela sociedade, ele
resiste a isso quando estabelece padrões migratórios (redes de apoio,
casamentos endogâmicos e etc.), porém estes não duram para sempre. O
brasileiro acaba também por assimilar aspectos da cultura europeia italiana e
torná-los tradicionais de certa maneira, como ideologias, culinária, os gestos, o
palavreado, a acolhida familiar, a música. Ettore Bosio se encaixa perfeitamente
nesta ideia de troca cultural, a mesma já estava insipiente na vida dele ao aportar
em Belém para nunca mais sair e conquistou uma parte da sociedade belenense
através da sua erudição e competência artística.
A questão da brasilidade necessita ser recorrente, pois está ao redor de nosso
personagem a todo tempo e ele mesmo se utiliza disso. Mas esta “brasilidade”
não é por si só totalmente brasileira, elementos europeus e americanos naquela
época eram precisos para atestá-la. Como disse Mário de Andrade, “o Brasil […]
entrou no concerto das nações que hoje em dia dirigem a civilização da Terra,
tem de concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o
singulariza e individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e alargar a
civilização”9.
Como já mencionamos anteriormente, o maestro chega a Belém no início
do ano de 1892, vinha da cidade de São Paulo depois de residir lá por dois anos
fazendo suas apresentações e antes disso passara brevemente pelo Rio de
Janeiro. Segundo Vicente Salles (2002), ele nasceu no dia sete de fevereiro de
1862, o que nos indica que estava prestes a completar 30 anos de idade. Bosio
chegou ao Brasil pela primeira vez em 1888, inspirado a conhecer o país após
um encontro com Carlos Gomes na Itália, descreve Salles: “Fez os estudos
iniciais de música com o maestro Borghetto. Em 1881 mudou-se para Trento e
em 1885 matriculou-se no Liceu Musical de Bolonha. Nessa cidade, visitou
Carlos Gomes, mostrando-se interessado em vir para o Brasil.”10
Em 1888, trabalhou como violoncelista em uma companhia lírica no Rio de
Janeiro e também em São Paulo. Em 1889 voltou para a Itália, “estabelecendo-
Trecho de Mário de Andrade citado na obra de MORAES, Eduardo Jardim. A
Brasilidade Modernista:
sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Editora
Graal, 1978, p. 71.
10 SALLES, 2002, p. 57.
9
16
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
se em Savona com um pequeno negócio de pianos”11, após fracassar com o
comércio, depois de um ano voltou-se para a música novamente. Apesar de em
1887 ter estreado uma ópera de sua autoria de nome La coppa d’oro, em um ato;
ele voltou a trabalhar como violoncelista, desta vez conhecendo o empresário
brasileiro Joaquim Franco, levando-o para São Paulo mais uma vez já em 1890.
Percebemos, então, que Bosio imigrou para o Brasil por duas vezes, na primeira
ele retornou ao seu país de origem depois de um período de muitas
apresentações, sugerindo uma época rentável já que voltou para a Itália para
abrir seu próprio negócio, confirmando a tese do tipo mais padronizado de
imigração italiana. Entretanto, ele volta ao Brasil, mas desta vez não retorna ao
seu país. Ele escolhe o nosso país para viver até sua morte, e mesmo tendo
trabalhado por Rio de Janeiro e São Paulo, como já foi mencionado
anteriormente, o italiano finca raízes em Belém do Pará.
Aqui na cidade, o maestro se envolve com muitos paraenses e italianos
pertencentes a uma classe social mais favorecida pela sociedade, porém não
somente, ele também cria relações com pessoas menos favorecidas. Suas
relações com tais indivíduos também ajudam a reconhecer sua importância para
aquele meio ou meios, e também para os outros imigrantes italianos que ali
frequentavam. Quanto aos primeiros, Bosio se reúne diversas vezes com Mario
Cattaruzza12, editor do folhetim italiano L’Eco del Pará, mídia utilizada para
reunir italianos residentes no Estado e também servir como veículo de notícias
do Pará para a Itália; assim como Antonio Faciola13, filho de pai italiano, músico
ligado até ao Centro Artístico do Pará14 e depois intendente de Belém; o
compositor Carlos Gomes15; o maestro José Cândido Gama Malcher16, e muitos
outros. Tratando-se de outros indivíduos nem tão conhecidos pela sociedade na
época, mas que foram sendo reconhecidos pouco a pouco por suas habilidades
ditas como “especiais”, porém com igual relevância, Bosio relacionou-se com a
médium espírita Anna Prado17 e todos de sua família, chegou até ser fotógrafo
Idem.
L’Eco del Pará, 29-05-1898, ano I, n. 1, p. 4.
13 Para ler uma breve biografia de Faciola, ver SALLES, Vicente. Música e músicos do Pará.
2ª edição ampliada e corrigida. Microedição do autor. Brasília, 2002.
14 O Pará, 10-10-1899, n. 558, p. 2.
15 Para ler mais sobre a vida de Carlos Gomes, ver SALLES, Vicente. Música e músicos do
Pará. 2a edição ampliada e corrigida. Microedição do autor. Brasília, 2002; e COELHO,
Geraldo Mártires. O brilho da supernova. Rio de Janeiro: Agir, 1995.
16 Para ler mais sobre a vida de Gama Malcher, ver igualmente SALLES, Vicente. Música
e músicos do Pará. 2a edição ampliada e corrigida. Microedição do autor. Brasília, 2002.
17 Para uma biografia de Anna Prado, ler MAGALHÃES, Samuel Nunes. Anna Prado:
a mulher que falava com os mortos. Brasília: FEB Editora, 2012.
11
12
17
Intelectuais e discurso
de algumas de suas sessões espirituais18; conheceu também o escritor Nogueira
de Faria; e também muitos comerciantes da época, a maioria italianos, retratados
no álbum Gli italiani nel nord del Brasile escrito por Aliprandi e Martini de 1932.
Ettore Bosio era um maestro-compositore, isso quer dizer que ele tanto dirigia
quanto era responsável por compor a obra. O italiano vinha de anos de estudos
de música na Europa, passeando e trabalhando por verdadeiros centros da
cultura europeia, todavia, aqui em Belém ele rapidamente ingressou na nossa
cultura popular regional, compondo sambas, composições para pastorinhas19 e
teatrinhos da revista de Nazaré. De acordo com Maria Lenora Menezes de Brito
(1986), ao fazer uma biografia de Waldemar Henrique, precisou pesquisar um
pouco sobre um de seus professores, ninguém menos que o maestro Bosio,
segundo ela, para um estrangeiro dominar o samba como estilo musical era
muito difícil. O maestro compôs o “Samba do Costa”, de ano até então
desconhecido, mas sabe-se que a composição foi feita entre as décadas de 1900
e 1930. É de autoria do italiano, igualmente, o primeiro registro de samba
carnavalesco do Brasil, na peça “Pimenta nos cuscuz”, datada de 1914 20.
A partir da década de 1920, há um embate contra o passado e contra o
mimetismo europeu. Existem alguns que acreditam que a resposta para a
brasilidade está na modernização do passado, pois através deste último se
modelaria uma “nova sociedade”; no entanto, “há os que, ao recusar o passado,
voltam-se para o primitivismo, visto como o caminho para a construção do
nacional”21. Aqui poderíamos pensar também o aspecto do romantismo
agregado ao nacionalismo, bastante influente naquela época. E determinadas
produções musicais de Bosio, como as citadas anteriormente, demonstram
características românticas aliadas ao regional. Este de grande importância neste
meio intelectual, pois pressupõe-se o “redescobrimento dos antigos valores
nacionais, a volta a fontes tradicionais de formação brasileira e a proeminência
do regional como ponto de partida para se alcançar o nacional”22.
Constatamos, ao avaliar suas obras, que o maestro, apesar de sua forte
influência europeia, conseguiu mesclar tanto os estilos europeus quanto
brasileiros em suas produções. Poderíamos supor que suas produções musicais
refletiam seu estilo de vida ou até mesmo suas influências diárias? Sabemos,
O detalhamento das sessões espíritas e a participação de Ettore Bosio nelas estão
esclarecidos no livro de FARIA, Raymundo Nogueira de. O trabalho dos mortos: o livro
de João. Editora Flammarion, 1921.
19 Segundo Brito (1986), as pastorinhas são um estilo musical que mistura características
vindas do nordeste do Brasil e africanas.
20 SALLES, 2002.
21 OLIVEIRA, 1990, p. 192.
22 Idem, p. 194.
18
18
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
entretanto, que além de influenciar musicalmente Waldemar Henrique, ele
também descobriu os irmãos Nobre 23, Helena e Ulisses, esta primeira com
apenas 15 anos de idade na época. Era contemporâneo de
Gama Malcher, que em 189024, estreou sua ópera Bug-Jargal no Teatro da
Paz, já em 1892 era Bosio que estreava a sua O Duque de Vizeu no mesmo teatro,
até que três anos depois, em 1895, Gama Malcher estreava novamente, desta
vez com a sua Iara. Bosio só estreará novamente no icônico teatro em 1900,
com sua ópera Ideale. Era, de fato, um período rico para a música, a vida artística
e também para a cidade de Belém, em pleno auge da economia gomífera na
Amazônia. Naquela época, Belém só ficava atrás da cidade do Rio de Janeiro
em termos de produções artísticas de qualidade.
E não era somente neste meio artístico que Belém estava inserida na
transição do século XIX para o XX, e por consequência o maestro Bosio, aqui
se distanciando do meio artístico-musical e adentrando o meio cultural, existia
também uma revolução espiritual, transformações na mentalidade dos
indivíduos acerca de definições como modernidade, o novo, o futuro e o
passado, a velha dicotomia entre o espírito científico e a cultura popular. Mary
del Priore (2014) analisa a história do sobrenatural e do espiritismo dizendo que
era uma “moda nova” iniciada em meados do século XIX nos Estados Unidos.
Especificamente em relação ao nosso maestro, Bosio participou de várias
sessões espíritas na casa da família Prado. Juntamente com a médium Anna
Prado, seu marido Eurípedes e a filha deles Antonina, que psicografava.
Durante os anos entre 1918 e 1921, inúmeras materializações espíritas foram
registradas no posterior livro de Raymundo Nogueira de Faria. E Ettore Bosio
era o fotógrafo que as registrava, segundo o autor, o intuito era para dar mais
credibilidade e confiabilidade ao fenômeno, elogiando o italiano25:
(...) compositor exímio, seu temperamento e sua timidez o afastaram das glórias
autorais, que lhe estavam reservadas, a julgar pelo início de sua carreira de artista,
pelo êxito de seus trabalhos de moço. Uma de suas mais apreciadas óperas, quando
Segundo Gilda Maia (2006), Ettore Bosio passava pela rua da casa dos irmãos quando
escutou a voz de Helena e se encantou. Treinou-a junto a Josephina Aranha e a
apresentou ao meio musical no antigo Sport Club. Helena era uma soprano lírico leggero,
que canta notas agudas com rapidez, é uma habilidade que atrai plateias e incomum para
a idade que ela tinha, chamando a atenção dos jornais no início do século XX.
24 Vicente Salles (2002) lista as óperas mais importantes da época, os autores e suas
datas de estreia no Teatro da Paz, porém ele comete um equívoco quanto ao ano de
estreia de O Duque de Vizeu, escrevendo que a ópera é de 1895, quando, na verdade, sua
estreia é no dia 3 de abril de 1892, ver em A Província do Pará, O Democrata e Diário de
Notícias do Pará na respectiva data.
25 FARIA, 1921, p. 25.
23
19
Intelectuais e discurso
ainda jovem, O Duque de Vizeu, (...), conquistou aplauso dos mestres, a simpatia dos
críticos, a consagração das plateias. Falam por nós testemunhos insuspeitos: em 22
de junho de 1895, Carlos Gomes, o imortal maestro nacional, escrevia ao
empresário F. Brito, do Rio, recomendando-lhe O Duque de Vizeu (...).
Temos um relato mais pessoal sobre Bosio a partir de Nogueira de Faria.
Identificamos, portanto, que a sua figura importante na elite e sociedade
belenense da época servia como ponte para questões menos conhecidas daquele
meio. Era comum os jornais encherem de cinismo e ironia as matérias sobre o
assunto, porém, “nas melhores casas, reunida a boa sociedade, as mesas
giravam”26. Registros que serviam como afirmações, como por exemplo, as
fotografias que o maestro tirava, geravam simpatia pelo fenômeno e ganhavam
o apoio de autoridades.
Em suma, o maestro Ettore Bosio, ou Heitor Bosio, como alguns o
chamavam, teve três momentos importantes de parte da sua vida: a sua chegada
a Belém no início da Primeira República e os anos responsáveis por seu
reconhecimento nacional na década de 1890, depois, a partir de 1900, suas
produções cada vez mais mescladas com os estilos musicais brasileiros e
também o seu caráter pessoal explorado pela cultura popular do meio em que
vivia a partir da concepção do espiritismo, vemos nesta segunda parte um
maestro consideravelmente mais integrado à sociedade belenense e à cultura
artístico-musical não somente nacional, mas regional, também os anos finais de
sua vida, a partir de 1921, em que escreve dois livros, e também integra o
Conservatório Carlos Gomes, participando de sua reorganização no ano de
1929, atuando como professor e diretor, aí adentrando em seus últimos anos de
vida a partir da década de 1930, culminando no ano de sua morte, 1936.
É de nosso conhecimento, a partir das pesquisas mais recentes do século
XXI acerca dos italianos em Belém e no Pará, que eles se diferenciavam da
grande leva de imigrantes por conta das escolhas que faziam, assim notamos
que eles tiveram de se adaptar à nossa sociedade, que era então muito diferente
por questões também geográficas, demográficas e climáticas, das cidades
escolhidas no eixo sul-sudeste do Brasil. As escolhas eram específicas e
representavam seus atores sociais. Bosio representou uma destas
especificidades.
Inúmeros biógrafos preteriram uma narração cronológica à narrativa
biográfica, iniciando a partir do nascimento, infância, formação, enfim, até a
morte do biografado. Sabina Loriga defende que, apesar desta preferência, “não
implica que a biografia deva necessariamente repousar sobre uma trama
DEL PRIORE, Mary. Do outro lado: a história do sobrenatural e do espiritismo. São
Paulo: Planeta, 2014, p. 66.
26
20
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
cronológica”27. E ainda acrescenta: “não existe uma regra formal nesse domínio,
nem mesmo a respeito das características individuais”. Neste trabalho, não é
nosso objetivo fazer uma narrativa cronológica da vida de Ettore Bosio,
podemos dizer que faremos uma biografia “informal”, ou melhor, é nosso
intento narrar um estudo de caso instrumental do maestro italiano, sendo este,
“os que têm o foco em uma unidade – um indivíduo (…). [Instrumental] quando
se examina um caso para se compreender melhor outra questão, algo mais
amplo (…)”28. Neste caso, utilizaremos, como já foi mencionado, três etapas da
vida do maestrocompositor desde sua segunda chegada em Belém no ano de
1892, na tentativa de melhor explanar três períodos importantes do cenário
artístico-musical na Primeira República.
Mary del Priore escreveu sobre a criação da biografia e suas diversas
transformações ao longo da história, desde o surgimento da Nova História na
década de 1960 com os Annales, optando por focar no indivíduo e o fato,
privilegiando-os em todas as dimensões: econômicas, sociais, culturais e
espirituais; até os escritos biográficos atuais, “Lucien Febvre, (…), foi pioneiro
em colocar as bases de uma biografia histórica renovada. (…) Instaurava-se uma
‘biografia modal’ que, debruçada sobre o indivíduo, informava sobre a
coletividade”29. Ela ainda cita o famoso Jacques Le Goff no sentido dele ter
dado à biografia histórica uma análise original, dele propor que em uma
biografia existem várias outras biografias, a partir das diversas facetas de apenas
um indivíduo, “é uma construção feita de acasos, hesitações e escolhas, que
permitem ao biógrafo, segundo Le Goff, escapar à tal ilusão biográfica fustigada
por Bourdieu”30.
Ettore Bosio morava em Belém justamente neste período de mudanças e
reformulações de ideais intelectuais e acabou participando desse processo
ativamente como podemos perceber através de suas produções artísticomusicais e também de suas atividades fora do eixo musical. É nosso intento, a
partir deste estágio inicial da pesquisa, mostrar a inserção do italiano neste meio
artístico de Belém; abordar também o trânsito das companhias líricas, tão
frequentes nos anúncios dos jornais da época na cidade, principalmente na
década inicial da República; iremos discutir a política laurista de atração de
intelectuais e artistas tanto estrangeiros quanto brasileiros para Belém; também
LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Coleção História e
Historiografia, vol. 6. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011, p. 18.
28 VENTURA, Magda Maria. “O estudo de caso como modalidade de pesquisa”. In:
Revista Socerj, n. 20 (5), set-out, pp. 383-386. Rio de Janeiro, 2007, p. 384.
29 DEL PRIORE, Mary. “Biografia: quando o indivíduo encontra a história”. In: Topoi,
vol. 10, n. 19, jul-dez, pp. 7-16, 2009, p. 9.
30 Idem, p. 10.
27
21
Intelectuais e discurso
evidenciaremos o Movimento da Ópera Nacional31 (1860-1864) realizado na
metade do Império brasileiro e a tentativa de distanciamento deste, ao
caracterizá-lo como europeu acima de tudo e não verdadeiramente brasileiro,
ou seja, no viés modernista; para tal estudo consideraremos igualmente os
diálogos entre Bosio e outros personagens da cidade que eram contemporâneos
a ele, muitos da elite paraense, outros inseridos em outra esfera social, exemplos
já foram dados neste artigo; enfim, evidenciaremos seu papel como imigrante
italiano, já que realmente o era, com todas as suas especificidades e participações
no meio social em que vivera através da sua música.
Ettore Bosio era uma testemunha do que o meio intelectual, artístico,
musical e cultural passava, ele produzia para a sociedade que o acolheu, ele
representava o olhar externo e interno ao mesmo tempo. Se a sociedade é
entendida como um repertório de mecanismos interpretativos e de sistemas de
valores, consideramos a natureza dos indivíduos e o papel da cultura como
essenciais. Há sempre relações contínuas e trocas tanto positivas quanto
negativas entre o indivíduo e o meio em que vive, que o influencia e que ele
mesmo se torna influência, neste sentido, devemos encontrar um ponto de
equilíbrio. Para isso, partiremos da ideia de que a cultura é composta não
somente pelos valores da sociedade, mas também pelas próprias escolhas de
cada indivíduo, e que cada tomada de decisão ao longo da vida repercute, alguns
mais outros menos, a uma coletividade. Assim, admitiremos que cada ator social
possui um valor simbólico acumulado e valores culturais individuais, ou seja,
atuam ativamente nessas relações sócio-culturais não somente recebendo uma
carga imensa de influências, mas acrescentando seus próprios ideais, reflexões e
escolhas no meio em que vivem.
Para mais informações acerca do Movimento da Ópera Nacional, ler COELHO,
Geraldo Mártires. O brilho da supernova: a morte bela de Carlos Gomes. Rio de Janeiro:
Editora Agir, 1995.
31
22
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
“MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS”: MÁRIO DE
ANDRADE E O FOLCLORISMO MUSICAL SOBRE A REGIÃO
AMAZÔNICA (1938)
Edilson Mateus Costa da Silva1
Resumo
O presente texto versa sobre a Missão de Pesquisas Folclóricas, organizada por
Mário de Andrade, durante o período em que foi diretor do Departamento de
Cultura de São Paulo. Especificamente a sua visita à Amazônia para realizar
registros sobre a música folclórica no Pará. A partir desta “Missão” iremos
abordar as perspectivas acerca do folclore e da música amazônica, além de
dialogar com os valores modernistas e como estes influenciaram na organização
da coleta folclórica que era capaz de revelar uma pretensa “essência” do “povo”
do Norte e, consequentemente, nacional.
Palavras-chave: Mário de Andrade; Música; Amazônia; Folclore.
Introdução
No final do século XIX surge, de forma embrionária, um nacionalismo
musical brasileiro que se tornou hegemônico nos anos 1930 com os trabalhos
musicológicos e folclóricos de Mário de Andrade, assim como de sua geração
modernista. Esta perspectiva da noção nacionalista esteve intimamente
associada ao âmbito erudito até meados de 1960.2 O lugar e a importância do
folclórico e do popular consistiam na sua utilização como “matéria-prima” para
a construção de uma música que representasse a nacionalidade. Esta concepção
de música modernista verificava nas manifestações folclóricas um estado
“primitivo”, que deveria ser “lapidado” pela musicalidade erudita.3
Para Mário de Andrade, em uma perspectiva modernista, a música popular
era aquela oriunda do meio rural, folclórica (espontânea e coletiva), e a urbana
Doutorando em História Social da Amazônia (UFPA/PPHIST).
BAIA, Silvano Fernandes. A historiografia da música popular no Brasil (1971-1999). Tese
de Doutorado em História. São Paulo: USP, 2011, p. 24.
3 CONTIER, Arnaldo Daraya. O nacional na música erudita brasileira: Mário de
Andrade e a questão da identidade cultural. Fênix: revista de História e Estudos
Culturais, v. 1, n. 1, dez. 2004, p. 2. Disponível em: www.revistafenix.com.br; acesso
em: 01.05.2015.
1
2
23
Intelectuais e discurso
que ainda não havia sido deturpada pela cultura massiva, se tornado
“popularesca” e/ou vulgar.4 Esta musicalidade atrelada à indústria cultural e,
mais especificamente à indústria fonográfica, não foi pensada e valorizada por
estudiosos musicólogos e folcloristas como um campo inserido em seus estudos
pelo menos até meados dos anos 1980.5
Para Mário de Andrade o papel dos estudos folclóricos era o de fornecer
material e reflexões para os compositores eruditos estabelecerem suas obras. 6
Segundo ele “Uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo”, ou seja,
“O artista tem só que dar para os elementos já existentes uma transposição
erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente
desinteressada”.7 Os primeiros ensaios acerca da música em uma vertente
modernista, que incluiu Mário de Andrade, se concentravam nos aspectos
relativos à “brasilidade” e a “identidade cultural e nacional”.8 Mas, Mário de
Andrade afirma que embora desconsidere os valores “europeizantes”, não
acredita que a presença de elemento da cultura europeia no folclore musical
brasileiro o descaracterize. Por outro lado, o Brasil para ele deve ser pensado
além do “aborígene” e do “exótico”, deve ser verificado em sua síntese com os
elementos oriundos de outras partes não americanas.9 Por criticarem os valores
“Belle-epoquianos”, os modernistas acreditavam que somente a valorização da
música brasileira conquistaria uma “independência musical” frente ao
colonialismo dos valores europeus na arte e na cultura.
O folclorismo modernista buscava a “essência” da música brasileira nas suas
manifestações in locus Para estes, a música foi tomada como uma expressão “das
mais diversas falas populares antropofagicamente internalizadas no ‘povo
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3 ed. São Paulo: Villa Rica, 1972,
p. 2.
5 BAIA, Silvano Fernandes. A historiografia da música popular no Brasil (1971-1999). Tese
de Doutorado em História. São Paulo: USP, 2011, p. 25.
6 CONTIER, Arnaldo Daraya. O nacional na música erudita brasileira: Mário de
Andrade e a questão da identidade cultural. Fênix: revista de História e Estudos
Culturais, v. 1, n. 1, dez. 2004, p. 2. Disponível em: www.revistafenix.com.br; acesso
em: 01.05.2015.
7 ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3 ed. São Paulo: Villa Rica, 1972,
p. 3.
8 CONTIER, Arnaldo D. Música no Brasil: História e interdisciplinaridade – algumas
interpretações. História em Debate: Problemas, temas e perspectivas. São Paulo: ANPUH,
1991, p. 158.
9 ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3 ed. São Paulo: Villa Rica, 1972,
p. 5.
4
24
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
brasileiro’, visto como a síntese de todas as etnias e nacionalidades”.10
Interessante notar que o critério para a pesquisa de aspectos regionais em uma
perspectiva modernista tem relação com o fato de que as diferentes
manifestações presentes nas localidades do país guardam uma mesma
“essência” que pode revelar o “povo” brasileiro. Para entender a nacionalidade
artística é necessário recolher as manifestações folclóricas regionais.
Pesquisa e coleta folclórico-musical em Mário de Andrade
Imbuído desta perspectiva de forjar uma musicalidade nacionalista oriunda
do “povo”, porém, retrabalhada pelos compositores eruditos, Mário de
Andrade passou a elaborar seus projetos etnográficos de coleta musical
folclórica. Suas pesquisas ganharam destaque a partir da sua colocação como
diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Neste cargo,
criou a Discoteca pública Municipal (1935) e a Sociedade de Etnografia e
Folclore (1936), neste ano foi responsável por patrocinar a chamada Missão de
Pesquisas Folclóricas que tinha como objetivo fazer levantamento das
manifestações populares do Norte e do Nordeste do Brasil, que foi realizada
somente no período de fevereiro a julho de 1938. A “Missão” tinha como
objetivo realizar registros de composições musicais nos seus lugares de origem,
preservando a essência popular/folclórica, ainda não “contaminada” pela
modernidade.11 Esta iniciativa se deu também ela compreensão de que ainda
havia uma precariedade dos estudos etnográficos relativos a Brasil e também
uma visão crítica do processo de modernização do país que vinha extinguindo
manifestações populares. Esta tônica tornou-se um discurso emblemático dos
folcloristas brasileiros, que estabeleciam uma crítica aos ideais de “BelleÉpoque”, na qual deixavam de pensar a modernidade como promovedora de
um “progresso” exclusivamente positivo para a sociedade brasileira
europeizada.12
A equipe da Missão de Pesquisas Folclóricas era composta por Luís Saia
(chefe da expedição e arquiteto), Martin Braunwieser (músico e maestro),
Benedito Pacheco (técnico de gravação) e Antônio Ladeira (auxiliar geral). Esta
CONTIER, Arnaldo D. Música no Brasil: História e interdisciplinaridade – algumas
interpretações. História em Debate: Problemas, temas e perspectivas. São Paulo: ANPUH,
1991, p. 154.
11 ACERVO de pesquisas folclóricas de Mário de Andrade: 1935-1938. São Paulo:
Centro Cultural São Paulo, 2000, p. 12.
12 CONTIER, Arnaldo D. Música no Brasil: História e interdisciplinaridade – algumas
interpretações. História em Debate: Problemas, temas e perspectivas. São Paulo: ANPUH,
1991, p. 153.
10
25
Intelectuais e discurso
“Missão” realizou coleta nos Estados da Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão e Pará.
Os registros foram realizados em discos, fotografias, artefatos culturais, filmes
e relatórios sobre as manifestações populares encontradas. Segundo o
intelectual idealizador esta iniciativa tinha como objetivo fomentar o interesse
nacional acerca do folclore brasileiro, nas suas palavras: “Futuramente com a
colheita que a Missão está fazendo, São Paulo possuíra uma base para o estudo
das nossas tradições populares, absolutamente incomparável no país”.13
Posteriormente a sua saída do Departamento de Cultura da Prefeitura de
São Paulo, após 3 anos como diretor, Oneyda Alvarenga organizou e catalogou
o acervo grandioso construído neste período e que passou a integrar o Museu
Folclórico da Discoteca Pública Municipal de São Paulo. Após a morte de Mário
de Andrade, esta continuou catalogando a obra do intelectual, e a prefeitura de
São Paulo publicou diversos trechos das pesquisas realizadas na “Missão”,
sejam livros, discos e anotações no período de 1945-1955. Posteriormente, as
coletas andradeanas foram esquecidas durante 30 anos e retomadas somente na
década de 1990. As gravações sonoras foram disponibilizadas ao público em
1992-1993, período em que foram remasterizadas para o acesso de
pesquisadores. Posteriormente, em 2006 foi publicada uma coleção com 6 cd´s
contendo as gravações das coletas realizadas nas diferentes regiões, o que nos
permite analisar os documentos sonoros desta expedição.14 O material sonoro
desta Missão de Pesquisas Folclóricas ficou dividido em audiovisuais e musicais.
No que tange aos filmes realizados há registros de: “Cocos, Danças das praias,
reis do Congo, Crioulo, Carimbó, Bumba-meu-boi, catimbó e babassuê, etc”.15
Missão de Coletas Folclóricas no Pará
Devemos lembrar que o interesse de Mário de Andrade a respeito das
particularidades musicais da Amazônia se deu em sua vinda à região em 1927.
Neste período, o intelectual teve contato com suas primeiras coletas
etnográficas sobre o lugar que ajudou a compor suas perspectivas a respeito do
folclore brasileiro. Neste sentido, muitos aspectos musicais foram investigados
em Belém, onde visitou os terreiros de manifestações afro-brasileiras das
chamadas “músicas de feitiçaria”, registrou os “batuques” e as apresentações de
ACERVO de pesquisas folclóricas de Mário de Andrade: 1935-1938. São Paulo:
Centro Cultural São Paulo, 2000, p. 13.
14 SANDRONI, Carlos. O acervo da missão de pesquisas folclóricas (1938-2012).
Debates, Rio de Janeiro, n. 12, jun. 2014, p. 56.
15 ACERVO de pesquisas folclóricas de Mário de Andrade: 1935-1938. São Paulo:
Centro Cultural São Paulo, 2000, p. 13.
13
26
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
boi-bumbá.16 Embora Mário de Andrade não tenha vindo à capital paraense em
1938 com a Missão de Pesquisas Folclóricas que dirigiu, ele direcionou os
procedimentos etnográficos a partir das suas experiências prévias nas
localidades e sua proposta nacionalista folclórica. Obviamente, o objetivo da
empreitada consistia em registrar as manifestações já evidenciadas pelo
intelectual.
As coletas realizadas pela Missão de Pesquisas Folclóricas no Pará
obedeceram à lógica desenvolvida a partir das noções de folclore presentes na
perspectiva modernista de Mário de Andrade. No geral, os materiais foram
coletados na capital paraense, porém representavam manifestações da
musicalidade rural, ou sua presença nos ambientes urbanos. Em destaque nestas
recolhas estão os registros do boi-bumbá. É interessante notar que não
aparecem nas gravações a titulação “carimbó”. Neste período, o termo ainda
não era usual para os meios urbanos no Pará, sendo reconhecido somente em
ambientes rurais. Até o momento da “Missão” há apenas duas referências acerca
do termo: Renato Almeida17 que afirmava existir o gênero na ilha do Marajó e
no Maranhão; assim como Vicente Chermont de Miranda, que localiza o
fenômeno na mesma localidade.18 Portanto, para os estudos de cunho
folclorista não havia uma presença marcante do “carimbó”. Oneyda Alvarenga
em 1950, compreendia a referência de Renato Almeida como válida, assim
como localizava-o no Maranhão.19
Neste sentido, há um registro interessante da Missão de Pesquisas
Folclóricas paulista: a coleta do carimbó em Maranhão. O gênero folclórico tem
uma rítmica semelhante ao encontrado no caso paraense, porém era tocado com
a “marimba”, instrumento semelhante ao “berimbau”, e que não tinha presente
o “curimbó”, tambor característico e que dá nome ao fenômeno no Pará. A
semelhança mais marcante entre a expressão deste gênero folclórico nas
localidades do Pará e do Maranhão se encontra na dança, pois se aproxima
inclusive do bailado dos grupos folclóricos de Belém. 20
Podemos concluir com essas observações sobre o carimbó, que, assim como
observava Mário de Andrade, a etnografia acerca do folclore brasileiro, e em
especial sobre a Amazônia, ainda não estava estabelecida, mas em estado quase
inexistente. Também é interessante notar que o objetivo da “missão” não residia
em compreender as idiossincrasias do folclore paraense. Para esta abordagem
ANDRADE, Mário de. O Turista aprendiz. São Paulo: Secretaria de Cultura, 1976.
ALMEIDA, Renato. História da Música Brasileira. 1926, p. 161.
18 MIRANDA, Vicente Chermont de [1910]. 2 ed. Belém: UFPA, 1968.
19 ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950, p. 171.
20 Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade (1938). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JEQ0NzpvIpE. Acesso em: 05 mai. 2015.
16
17
27
Intelectuais e discurso
modernista do popular, o que estava sendo feito era a coleta da “brasilidade”,
percebida no sentido de unidade relacionados nas reflexões do intelectual. A
sua preocupação de realizar incursões etnográficas, em Belém quando da sua
estadia em 1927, nos terreiros nos quais havia a “música de feitiçaria” denotava
o caráter de reconhecimento de manifestações ocorridas no Brasil como um
todo. Ao mesmo tempo, suas reflexões sobre as músicas de “pajelança” são
realizadas em conexão com a noção do elemento indígena como constituinte
da nacionalidade, e, devido à Amazônia ser marcada pela cultura originária desta
etnia seria um polo irradiador para outras regiões.21 A importância dada por
Mário de Andrade aos gêneros de “música de feitiçaria” aparece nas coletas da
comissão, como nas gravações de “Pagelança”: Mestre paroá (longe caminhos por
onde segui) e Mestre Casulero (No dobra daquela ponta).22
Mas o gênero de rotulação mais presente nas coletas da “Missão” foi o “Boibumbá”. Porém, a partir da análise do material sonoro, podemos perceber que
este se refere a todos os fenômenos ligados ao tronco irradiador do “batuque”.
Assim como é uma aproximação com as perspectivas de unidade nacionalista.
No sentido de relacionar as experiências ocorridas em todo o Brasil, como as
“músicas de boi”. Um exemplo desta preocupação do autor foi o seu estudo
Danças dramáticas no Brasil, no qual ele elenca as manifestações musicais do Norte
envolvidas com os eixos articuladores de reconhecimento do “batuque” e do
“boi-bumbá” como elementos nacionais que representam o Brasil “profundo”.
Nesta obra, organizada por Oneyda Alvarenga, aparecem as coletas folclóricas
realizadas em sua vinda à capital paraense, assim como uma parte dos registros
foram doados em 1938 pelo grupo de boi-bumbá de Belém “Estrela D´Alva” à
Discoteca Pública Municipal de São Paulo. Mário de Andrade estabeleceu
registros tanto relativos aos autos dramáticos, quanto em outros momentos
“joaninos”.23
Como apontamos anteriormente, o carimbó aparece sob o rótulo “boibumbá” nas canções gravadas. Assim como há uma miscelânea de combinações
rítmicas recolhidas sob esta denominação. Há também uma interessante
inclusão do gênero “massivo” na canção Dentro do Juruna, uma versão da música
carioca Pelo Telefone, gravada e difundida pela mídia.24
ANDRADE, Mário de. Música de feitiçaria no Brasil. São Paulo: Martins, 1963.
ANDRADE, Mário de (org.). Missão de Pesquisas Folclóricas, vol. 6: músicas tradicionais
do Pará e Paraíba. São Paulo: Sesc/SP, 2006.
23 ANDRADE, Mário de. Danças dramáticos no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p.
33.
24 Esta canção tem sido considerada a primeira gravação do samba carioca, neste
sentido, da musicalidade de origem no batuque. Cf. NAPOLITANO, Marcos. História
e música. São Paulo: Autêntica, 2004.
21
22
28
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
É interessante notar que o termo “Boi-Bumbá” é uma expressão paraense
do vocábulo “Bumba-meu-boi” que conservou seu chamamento até o
Maranhão, segundo Vicente Salles: “Ao transpor a fronteira para o Pará, isto é,
ao adentrar-se na Amazônia, denomina-se Boi-Bumbá”.25 É destacável o fato
de que Mário de Andrade manteve a denominação local do fenômeno,
respeitando a sua particularidade. Outro ponto importante a que chama atenção
Vicente Salles é a sua “dramaticidade”, pois segundo ele o Boi-Bumbá é mais
“rico” em sua composição do que no chamado “bumba-meu-boi”.26 Esta
afirmativa pode ser constatada nos registros da “Missão” de 1938, em especial
nas filmagens recolhidas por esta. Podemos perceber uma maior variação e que
apresenta uma inserção mais significativa dos personagens e enredos, assim
como a presença marcante dos elementos “caboclo” e “índio” que demarcam a
peculiaridade do fenômeno no Pará. Além disso, o boi é mais elaborado na
caracterização.27
Em Belém, a Missão de Pesquisas Folclóricas teria de enfrentar uma primeira
dificuldade: os cultos afro-brasileiros estavam sob o controle da polícia e
proibidos de livre culto. Porém, devido à influência política que possuía tornou
possível a realização da coleta nos espaços dos praticantes destas modalidades
religiosas de matriz africana em Belém. Além do controle policial, também havia
a dificuldade relativa aos seus líderes religiosos que não se expunham
abertamente como representantes dos “terreiros” da capital paraense. Por outro
lado, a presença da “missão” repercutiu de forma positiva na sociedade paraense
e os intelectuais locais passaram a pressionar as autoridades locais no sentido de
promover a liberdade de culto. Esta viria em 1948, quando os pais-de-santo
tiveram “livres garantias” da chefia de polícia local, porém este processo não
teria ocorrido sem a presença dos estudiosos folcloristas.28
Considerações Finais
Podemos perceber que a Missão de Pesquisas Folclóricas foi responsável
por dar início a uma perspectiva etnográfica que desenvolveu um importante
âmbito de pesquisas sobre o folclore no Brasil. Além disso, a coleta proposta
pela “Missão” trouxe um importante acervo de pesquisa documental que
SALLES, Vicente. Op. Cit., 195.
SALLES, Vicente. Op. Cit., p. 195.
27 Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade (1938). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JEQ0NzpvIpE. Acesso em: 05 mai. 2015.
28 SALLES, Vicente. O Negro na formação da sociedade paraense. Belém: Paka-tatu, 2004, p.
24.
25
26
29
Intelectuais e discurso
proporcionou aos pesquisadores um amplo estudo sobre a música folclórica.
Neste sentido, podemos verificar estas gravações como fontes para o estudo da
música amazônica, observando elementos que contemporaneamente já
apresentam outra dinâmica.
A “missão” também realizou uma importante inclusão da arte musical
amazônica como constituinte do fenômeno ao nível de Brasil. Mário de
Andrade verificava na Amazônia um importante espaço para a apreensão da
brasilidade musical e que mais recentemente vem sendo retomado pela
historiografia e pelos estudos culturais.
A importância da “missão” também reside na apreensão que a
intelectualidade realizou acerca da visão de folclore e música popular que
influenciou enormemente todos os campos de criação e crítica musical no
século XX.
30
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
IMPRENSA, HEGEMONIA E SANEAMENTO RURAL NO PARÁ
(1916-1921)
Elis Regina Corrêa Vieira1
Resumo
A partir de 1916 foi intensificado entre as elites intelectuais o debate sobre o
saneamento rural ou saneamento dos sertões. Os jornais paraenses não ficaram
excluídos deste processo e denunciavam diariamente os problemas sanitários
do estado e os riscos que essa condição trazia ao desenvolvimento do Pará. O
objetivo deste artigo é investigar a atuação dos jornais paraenses na defesa do
saneamento rural, mais especificamente como contribuíram para tornar este
discurso hegemônico.
Palavras-Chave: imprensa, hegemonia, saneamento rural, Pará.
Introdução
Não é preciso ter lido o livro de Belisário Penna ou os de Monteiro Lobato, nem
ter assistido a célebre conferência de Miguel Pereira para se ter a convicção de que
os homens rurais brasileiros são uns doentes. Basta é ver o serviço do nosso roceiro,
observa-lhe o cansaço eterno que o distancia do trabalho. (....) Porque o Brasil é um
vasto hospital, mas sem enfermeiros e cataplasmas.2
O artigo acima foi publicado no jornal católico A Palavra em 1919 e aponta
para um amplo movimento em defesa do saneamento rural ou saneamento
sertões. Talvez o símbolo máximo do Brasil doente seja traduzido no discurso
de Miguel Pereira que em 1916 em conferência que homenageava Carlos
Chagas, denunciou que o sertão3 do Brasil era um imenso hospital. No mesmo
ano, o Instituto Oswaldo Cruz divulgou seus relatórios das expedições
científicas realizadas no interior do Brasil e ratificava a imagem de um sertão
doente e abandonado. Neste contexto se intensificam nos meios intelectuais os
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia na
Universidade Federal do Pará
2 A Palavra, 07 de dezembro de 1919,p.1
3 Considero que o termo sertão não é apenas uma referência geográfica, mas é também
uma categoria social e cultural construída historicamente. Ver: AMADO, Janaína.
Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.8,n.15,1995,p.145-151.
LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão Chamado Brasil. São Paulo: HUCITEC, 2.ed. 2013.
1
31
Intelectuais e discurso
debates sobre o saneamento rural, sendo criada em 1918 a Liga Pró-Saneamento
do Brasil.4
Nas campanhas pelo saneamento rural a imprensa assume um papel muito
importante ao produzir textos diversos que denunciavam o péssimo estado
sanitário dos sertões do Brasil e ao publicar artigos médicos em defesa do
saneamento, como os que Belisário Pena publicou no Correio da Manhã em 1917
e que posteriormente foram reunidos e deram origem ao livro Saneamento do
Brasil.5
É preciso mencionar ainda Monteiro Lobato que discutiu intensamente o
tema do saneamento no jornal O Estado de São Paulo, mais tarde estes artigos
foram reunidos e deram origem ao livro Problema Vital. Nesta obra Lobato
realiza a redenção do personagem Jeca Tatu, o diagnóstico sobre a preguiça e
indolência do caboclo tão marcante em Urupês sofreu profundas
transformações. Em contato com as ideias sanitaristas Lobato passa a
responsabilizar as doenças e a ausência dos poderes públicos pela situação de
miséria e indigência em que se encontrava o homem do campo. 6
Segundo Castro-Santos, uma das questões mais provocantes no estudo da
primeira república é compreender como a luta pelo saneamento rural ganha
uma força simbólica tão grande a ponto de conquistar as primeiras páginas dos
periódicos.7 A atuação da imprensa foi fundamental para que este debate
alcançasse um público mais amplo e envolvesse diversos setores da sociedade.
Os jornais paraenses não ficaram excluídos deste processo e denunciavam
diariamente os problemas sanitários do estado e os riscos que essa condição
trazia ao desenvolvimento do Pará. O objetivo deste artigo é investigar a
atuação dos jornais A Palavra, Estado do Pará e Folha do Norte na defesa do
saneamento rural, mais especificamente como contribuíram para tornar este
discurso hegemônico8.
Das Neves, Agres Roberta Oliveira. Campanha de Saneamento e Profilaxia Rural no
Amazonas. (1920-1923). Dissertação - Universidade Federal do Amazonas, Programa de
Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Manaus, 2008,
pp.20.
5 LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão Chamado Brasil. São Paulo: HUCITEC, 2013,pp.166.
6 LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão Chamado Brasil. São Paulo: HUCITEC, 2013, pp.214.
Ver também: ALVES FILHO, Aluízio. As metamorfoses do Jeca Tatu: a questão da
identidade do brasileiro em Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Inverta, 2013.
7SANTOS, Luiz Antônio de Castro. O pensamento sanitarista na Primeira República:
Uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de
Janeiro, v.28, n.2, 1985 ,pp.194.
8 Utilizamos o conceito de hegemonia de Antônio Gramsci. Segundo o autor, o Estado
é produto de múltiplas e dinâmicas relações entre sociedade civil e politica, num
permanente jogo de pressões e contrapressões entre diversos grupos que visam a
4
32
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
É importante salientar que o advento da República Brasileira marcou um
período de intenso remodelamento urbano 9 e de preocupações com a saúde e a
higiene da população. A historiografia já analisou com profundida o processo
civilizatório e higienista vivenciado pela cidade do Rio de Janeiro durante o
inicio do século XX que provocou tensões diversas e culminou na chamada
Revolta da Vacina.10 Os discursos higienistas também eram latentes no Pará,
em 1910, após acordo com o governo paraense, uma comissão liderada por
Oswaldo Cruz combateu e erradicou a febre amarela em Belém, endêmica na
maioria dos estados do Norte e Nordeste. 11
Mas a cidade não foi o único espaço da modernidade e das preocupações
higienistas. Em trabalhos como os de Maciel e Hardman, que investigaram
respectivamente a implantação de linhas telegráficas pela Comissão Rondon e a
instalação da estrada de ferro Madeira-Mamoré, percebemos o esforço
republicano em modernizar e “civilizar” os chamados sertões do Brasil.12 No
entanto este projeto encontrou um poderoso adversário, as doenças, no caso da
Amazônia, especialmente a malária. Oswaldo Cruz foi inclusive contratado em
1909 pela companhia construtora da Madeira-Mamoré para realizar a profilaxia
da malária que dizimava os trabalhadores da ferrovia, como bem lembra
Hardman, essas ações estavam pautadas no ideário de “sanear para produzir.”13
No movimento pelo saneamento rural é notório como um discurso médico
fornece um diagnóstico dos problemas do Brasil e da maneira de supera-los, a
ciência se colocava como redentora deste Brasil “desconhecido” e doente, capaz
produção de um consenso em que o projeto de um determinado grupo é aceito pelos
demais. Tal concepção implica a ideia de uma direção intelectual que é imposta por um
grupo a toda sociedade, através do consentimento e não pela coerção física. Ver:
Gramsci, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989. Ver também : Maquiavel, a política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991.
9 Sobre este processo em Belém ver: SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a
belle époque. Belém do Pará (1870-1910). Belém: Paka-Tatu, 2000.
10 Ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo,
Cia da Letras, 1996. Ver também: SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da vacina: Mentes
insanas em corpos rebeldes. Scipione, São Paulo, 2001.
11 AMARAL, Alexandre Souza. Vamos à Vacina? Doenças, saúde e práticas médico-sanitárias
em Belém (1904-1911). Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do Pará, Centro
de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da
Amazônia, Belém, 2006.
12 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio. Caminhos, práticas e imagens da “Comissão
Rondon”. São Paulo: EDUC, 1998. HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a
modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
13 Idem, pp.151
33
Intelectuais e discurso
de conduzi-lo ao progresso e a modernidade.14 Mas o discurso do saneamento
rural precisava ser legitimado, era preciso convencer uma elite intelectual e
politica de que o saneamento era condição indispensável para o
desenvolvimento do país. A imprensa paraense teve participação ativa neste
processo e é isto que analisaremos a seguir.
Jornais paraenses e o movimento pelo saneamento rural
Analisando os jornais paraenses das primeiras décadas do século XX é
notória a preocupação da imprensa com a questão do saneamento. Encontramse nestes periódicos diversos artigos que faziam uma analise geral do estado
sanitário do Pará ou que denunciavam a presença de doenças e endemias em
áreas especificas do interior do Estado. Em 1917 o Estado do Pará, denunciava
que o impaludismo fazia muitas vitimas na Vila de Castanhal e povoação de
Inhangapi, na Estrada de Ferro Bragantina, segundo o jornal para se ter
dimensão do mal que a região enfrentava “basta saber-se que naquela zona, com
uma população de cerca cinco mil pessoas, registram-se dez óbitos, na média,
por dia, em consequência da malária”.15
Ainda em 1917 o jornal publicou na primeira página um extenso artigo
assinado pelo Dr. Antônio Peryassú em que se apontava a frequência de
doenças como o “impaludismo, a ancylostomiase, a leishmaniose, a tuberculose
e a diphiteria”. O Dr. Peryassú alertava que as quatro primeiras doenças eram
os “fatores principais de degeneração dos habitantes do interior deste grande
Estado, ameaçando mesmo o aniquilamento de energias do nosso povo.” 16
Neste mesmo ano, o correspondente da Folha do Norte em Ourém,
denunciava que o impaludismo fazia crescente número de vitimas17 e A Palavra
denunciava que no Distrito de Guajará-Assu irromperam com intensidade as
febres palustres”18. Em janeiro de 1921, A Palavra ainda apontava o mesmo
quadro preocupante descrito pelo Dr. Peryassú, segundo o jornal quem
percorre o interior do Estado e contempla seus habitantes observa que “batidos
pelas enfermidades e sem medicamentos, desprovidos de roupas e muitas vezes
até de alimentos, procuram atinar com a geratriz desses males e não o
KROPF, Simone Petroglia. A descoberta da doença dos sertões: ciência e saúde nos
trópicos brasileiros no inicio do século XX. In: Ciência, Civilização e República nos Trópicos.
Rio de Janeiro: MAUAD X: Faperj, 2010, p.59.
15 Estado do Pará, Belém,13 de março de 1917, p.4.
16 Estado do Pará, Belém, 06 de fevereiro de 1917, p.1.
17 Folha do Norte, Belém, 11 de outubro de 1917,p.2
18 A Palavra, Belém, 7 de março de 1917,p.1
14
34
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
alcançando, mostram-se apavorados, na eminência de um desânimo
completo.”19
É importante notar como os jornais por meio de denúncias e análises das
condições sanitárias do Pará, ajudam a difundir um debate que ocorria de forma
intensa nos círculos médicos, ampliando seu alcance e tentando convencer a
sociedade da importância e da urgência do saneamento rural. De fato Gilberto
Hochman aponta que os atores do processo de saneamento rural foram muito
variados e que em conjunto estes sujeitos foram capazes de difundir socialmente
o caráter público da doença e um diagnóstico das condições sanitárias do país.20
O governador Lauro Sodré não ficou alheio ao debate do saneamento,
possivelmente respondendo às críticas em relação às doenças que afligiam os
paraenses, afirmava com certa indignação que “os males que castigavam o Pará
eram os mesmos de todo o país”. Ao mesmo tempo dava destaque aos seus
esforços que segundo ele se voltavam para “sanear a terra e acudir as vítimas
das endemias com que a população lutava”.21
Por mais que cobrassem ações dos poderes públicos e debatessem com
frequência o tema do saneamento, até o jornal mais critico ao governo Lauro
Sodré reconhecia que a crise da borracha 22 impunha grandes dificuldades ao
Estado. Segundo o articulista d’ Palavra J.C. Oliveira, devido a crise econômica
enfrentada pelo Pará, “o Estado não tinha meios para realizar o saneamento do
interior e a União deveria assumir seu ônus”.23
O articulista da Palavra também sugeria que o governo federal nomeasse
uma “comissão mista de médicos e engenheiros que percorressem estado por
estado da União, estudando suas condições higiênicas e os meios de melhoralas”, isto porque as condições de higiene de uma grande porção do território
eram desconhecidas, segundo o articulista, “sabemos apenas que o interior do
Brasil esta assolado com epidemias, desamparado e quase inabitável.” 24
Em 1917, mesmo com uma situação financeira delicada, o Pará conseguiu
dar importantes passos em direção ao saneamento. Neste ano, o governador
A Palavra, Belém, 16 de janeiro de 1921,p.1
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento. São Paulo: HUCITEC, 2006, pp.41
21 Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do Estado do Pará em Sessão
Solenne de Abertura da 2ª Reunião de sua 10ª Legislatura a 7 de setembro de 1919 pelo
Governador Dr. Lauro Sodré. Pará: Typ. da Imprensa Official do Estado, 1919, pp.101102.
22Sobre a crise da borracha ver: WEINSTEN, Barbara. A Borracha na Amazônia:
Expansão e Decadência (1850-1920). São Paulo: Editora Hucitec,1993. Ver também :
SANTOS, Roberto. O Grande Colapso. In: História Econômica da Amazônia (1880-1920).
São Paulo: T.A .Queiroz, 1980.
23 A Palavra, Belém, 3 de Outubro de 1919, p.1.
24 A Palavra, Belém, 16 de janeiro de 1921,p.1.
19
20
35
Intelectuais e discurso
Lauro Sodré implantou a Inspetoria de Profilaxia do Impaludismo, chefiada
pelo Dr. José Alves Dias Júnior. No final de 1916 e nos primeiros meses de
1917 o Pará enfrentou uma grande incidência de malária nos subúrbios da
capital e no interior do Estado, conforme atesta o artigo d’Palavra:
A imprensa tem denunciado ultimamente temerosas irrupções de febres em
localidades marginais da estrada de ferro bragantina e em vários outros pontos do
Estado. Mas é horrível dize-lo! Nos centros dos centros, na própria capital esta
acontecendo hoje a mesma coisa. (...) Há perto bem pertinho outra Belém, Belém
mais vasta e mais povoada, coalhada de barracas, mergulhada em chacos e pântanos
(...). Aí dezenas de milhares de irmãos nossos sofrem...Há casos onde famílias
inteiras estão prostadas....raríssimas as que não tem pago pesado tributo de duas,
três e mais pessoas a morte.”25
Sem dúvida as denúncias da imprensa foram fundamentais para convencer
os poderes públicos da urgência do saneamento rural e da necessidade de criar
uma inspetoria responsável pela profilaxia da malária. Deste modo, em março
de 1917, a Inspetoria iniciou seus serviços e possuía os seguintes postos
sanitários em Belém: “Penitenciária”, no bairro de mesmo nome, “Miguel
Pereira”, no bairro de São Braz, “Gaspar Viana”, no bairro da Cremação, “Santa
Luzia”, no lugar de mesmo nome, “Belisário Pena” na Pedreira, “Jurunas” no
Bairro de mesmo nome, “Oswaldo Cruz”, no bairro do Sousa, “Antônio Vieira”
no bairro de Monte Alegre e o de Murubira na ilha de Mosqueiro.26
Além da capital paraense a Inspetoria do Impaludismo estendeu sua ação á
margem da Estrada de Ferro Bragantina, desde o Entroncamento até IgarapéAssu. Para superintender os serviços de paludismo na zona bragantina, foi
nomeado o Dr. Matta Bacellar, tendo como auxiliares o Dr. Amaro Damasceno
Junior, um farmacêutico e um delegado de saúde. Foi criado o posto sanitário
de Santa Isabel e nas localidades marginais da estrada havia um representante
da inspetoria, encarregado da distribuição gratuita de quinino e a fiscalização do
estado sanitário local.27
Em abril de 1917 o Estado do Pará estampava na primeira página um longo
artigo informando sobre os trabalhos da Inspetoria. Segundo o jornal, “em 10
25A
Palavra, 1 de março de 1917,p.1. Sobre o processo de exclusão e marginalização
promovido pela modernização da cidade ver: DIAS, Edinéa Mascarenhas. A Ilusão do
Fausto (1890-1920). Manaus: Valer, 1999.
26 DIAS JÚNIOR, José Alves. Histórico do Saneamento Rural no Estado do Pará até
1920. In: A prophylaxia rural no Estado do Pará. SOUSA ARAÚJO, H.C (org).
Publicação destinada a comemoração do centenário da Independência. Belém,
Tipografia da Livraria Gillet, 1922.pp.19
27 Idem, pp.19
36
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
dias foram consultadas 2.061 pessoas e visitados 860 impaludosos”, e
distribuídos “15.122 pílulas e 13.791 capsulas de quinino.” O jornal também
informava que o estado sanitário da zona que compreendia “ Santa Izabel,
Caraparú, Americano, Apeú e Castanhal, está melhorando, não se tendo
registrado óbito algum”28
Além de cobrar medidas de saneamento a imprensa também defendia a
profilaxia rural, sugerindo que as escolas rurais instruíssem as crianças sobre a
prevenção de doenças. Isto fica evidente no artigo de O.D. Carneiro, segundo
o articulista pela instrução higiênica dos mais jovens, estes corrigiriam os mais
velhos, garantindo que a próxima geração fosse “limpa, são e laboriosa”. Ainda
segundo ele “sem ensinar ao filho do impaludado, do rotineiro, como lutar
contra o anopheles e como substituir seus métodos agrícolas (...) toda missão
saneadora, toda prática lítero-agricola não passará da primeira página dos
jornais”.29
Em 1918, o articulista d’ Palavra Eloi-Sully, defendia que o ensino de higiene
nas escolas era um assunto que muito deveria interessar os governos porque “a
saúde das classes produtoras é uma das condições de nossa prosperidade geral,
a par da instrução profissional fundamentalmente agrícola”. Segundo Eloi-Sully,
diversas doenças degradavam em grau alarmante as energias da população rural,
deste modo, “a narração dos seus graves estragos e o ensino sumário de sua
propagação e da sua profilaxia geral, muito contribuiriam para elevar o nível
higiênico das nossas populações do interior”.30
É importante notar nestes discursos a compreensão de saúde que eles
expressam, segundo Britto, o sanitarismo propôs uma concepção peculiar de
saúde como fator de progresso. Deste modo, foi elaborada uma espécie de
teoria higienista do desenvolvimento, que procurava explicar a desigualdades
entre as nações a partir da existência ou não de uma politica sanitária. A autora
também destaca que ao atribuir o atraso do país à ausência de saúde e educação,
o pensamento médico-higienista apresentou uma solução nova para o impasse
em que se achava o Brasil, recusando o determinismo de base climática e étnica
que predominava no debate intelectual desde o século XIX.31
De fato é perceptível nos discursos da imprensa a preocupação com a saúde
das classes produtoras, sendo as endemias rurais, vistas como um impasse ao
desenvolvimento no país, por isso, a defesa do ensino de higiene nas escolas
rurais. É importante refletir também que dentro das praticas médicas tidas como
Estado do Pará, Belém, 14 de abril de 1917,p.1
A Palavra, Belém, 7 de Dezembro de 1919.p.1
30 A Palavra, Belém, 24 de Fevereiro de 1918.p.1.
31 BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira. Rio de Janeiro
Editora Fiocruz, 1995,p.
28
29
37
Intelectuais e discurso
oficiais existiam diversas disputas internas e que o higienismo tentava se afirmar
e alcançar um espaço maior dentro do mercado.
Como observa Pereira Neto, havia diversos conflitos entre os médicos que
rivalizavam pela afirmação de determinadas práticas profissionais, existindo
basicamente três perfis de práticas médicas: generalista, especialista e higienista.
O autor também enfatiza que não podemos tomar estes três perfis como
esquemas rígidos, já que os médicos poderiam conjugar estas práticas. Segundo
Pereira Neto, os higienistas lutavam por uma ampliação dos espaços de
participação profissional nas esferas públicas e desejavam conquistar o
monopólio de uma determinada fatia do mercado.32 Deste modo, ao defender
a importância da educação higiênica, a imprensa esta contribuindo para a
afirmação profissional desta prática médica e legitimando a ampliação da sua
participação na esfera pública.
Ao mesmo tempo em que os jornais defendiam o ensino de medidas
profiláticas nas escolas rurais, algumas vezes eles mesmos se tornaram um
espaço para divulgar estas medidas. Em 1917, um articulista da Folha do Norte
alertava que a ancilostomíase fazia crescente número de vitimas no Pará, mas
que era conhecido tão somente por médicos. Segundo o articulista era preciso
tornar a moléstia conhecida “pela vulgarização de seu tratamento, denunciando
os focos vetores, enfim pela entero- profilaxia individual, o que bem se poderia
conseguir por meio de folhetos, prescrições públicas, revistas, jornais, etc”.33
Ainda em 1917, A Palavra, informava que no Rio de Janeiro os poderes
públicos tomavam providências para combater a ancilostomíase, conhecida
pelos nomes de “ chlorose tropical, opilação, amarelão e que é devida a um
verme – o ancilóstomo – que vive no intestino delgado, alimentando-se de
sangue”. A notícia seguia com a publicação dos sintomas da doença e das
formas de tratamento.
O Estado do Pará também publicou um artigo informando à população que
visitou a Sociedade Médico Cirúrgica e ouviu diversas opiniões de clínicos sobre
o impaludismo. Deste modo, explicava que o “micróbio do impaludismo vive
no sangue, como parasita e é aí que vai busca-lo o mosquito, da espécie
anopheles fêmea, que também se alimenta do sangue” e por isso, acaba
transmitindo o micróbio para o indivíduo são. O jornal recomendava a
população “evitar a picada do mosquito, dormindo dentro do mosquiteiro e
quininizando-se” e como o mosquito depositava seus ovos na água estagnada
32NETO,
André de Faria Pereira. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2001,p.52
33 Folha do Norte, Belém, 27 de janeiro de 1917,p.2.
38
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
era necessário que “o povo auxilie os poderes públicos evitando os depósitos
permanentes expostos ao tempo, durante dias.”34
Já em 1919, o Estado do Pará publicou na segunda página as informações de
um folheto médico em que se explicava detalhadamente e em linguagem
simples, as formas de contração da ancilostomíase e as medidas para prevenila:
a opilação ou amarelão é uma moléstia produzida por uma pequena lombriga que
vive no intestino (tripa) do homem e lhe suga o sangue.(...) O ankylostomo deposita
grande quantidade de óvulos. Um opilado pode eliminar um, dois milhões de óvulos
por 24 horas. Os óvulos deitados a terra em lugar fresco e úmido vivem ali por
muito tempo e se desenvolvem em larvas. As larvas penetram pela pele, introduzemse no corpo e vão se colocar no intestino onde ficam agarradas. Se não houvesse o
mal hábito de deixar as fezes a flor da terra, ninguém apanharia opilação. Toda casa
deve ter uma fossa por mais simples que seja. O trabalhador deve sempre lavar as
mãos antes de comer, porque quem trabalha na terra pode pelas próprias mãos
receber os germens da moléstia”.35
Ao defender que as medidas profiláticas das endemias rurais fossem
inseridas no currículo escolar e ao tentar difundir e vulgarizar o modo de
contração e prevenção dessas doenças, a imprensa nos faz refletir como a
hegemonia esta entrelaçada com a cultura. Raymond Willians ressalta que a
hegemonia não pode ser entendida no plano de uma mera opinião e
manipulação, segundo o autor, ela é um sistema central, efetivo e dominante de
significados e valores que não são meramente abstratos, mas que são vividos e
fornecem um sentido de realidade para a maioria das pessoas em uma
sociedade.36
Deste modo, para que o discurso do saneamento rural se tornasse
hegemônico, era preciso muito mais do que convencer uma elite intelectual e
politica, era necessário torna-lo parte da vida dos trabalhadores rurais. Daí a
importância de ensinar as crianças o modo de prevenção das endemias rurais e
de tentar vulgarizar sua profilaxia por meio da imprensa. Era preciso afirmar
uma nova forma de compreender o mundo, este estaria povoado de micróbios
invisíveis ao homem, mas extremamente danosos a sua saúde. Era necessário
também introduzir novos hábitos como a construção de fossas e a
obrigatoriedade de lavar as mãos antes das refeições. Por meio do saneamento
rural a ciência “revelava” não apenas um sertão “desconhecido”, mas revelava
Estado do Pará, Belém, 14 de março de 1917,p.2.
do Pará, Belém, 03 de novembro de 1919, pp.02-03.
36 WILLIANS, Raymond. Cultura e Materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo:
Unesp, 2011, pp.53.
34
35Estado
39
Intelectuais e discurso
também um mundo desconhecido aos trabalhadores rurais, tentando modificar
sua relação com a natureza e com o seu próprio corpo. 37
Ficou perceptível por meio desta analise que a imprensa é uma força social
e cultural ativa. Conforme lembram Cruz e Peixoto, como toda força social a
imprensa atua na produção de hegemonia, propondo uma compreensão da
temporalidade, afirmando diagnósticos do presente, memórias de sujeitos, de
eventos e projetos, com os quais “pretende articular as relações
presente/passado e perspectivas de futuro.”38 Deste modo, a imprensa paraense
legitimou o discurso do saneamento rural e o diagnóstico de que a maior parte
da população rural estava doente, mais do que isso, confiou que a ciência
poderia redimir o Brasil de seus males e conduzi-lo a um futuro de progresso e
prosperidade.
Considerações Finais
Uma das principais lutas do movimento pelo saneamento rural era a defesa
de que a União deveria zelar pela saúde do povo, não agindo somente nos
portos e no Distrito Federal, mas em todo território nacional, para as lideranças
do movimento deveria ocorrer uma centralização e uniformização dos serviços
de saúde. Os debates gerados por este movimento foram fundamentais para a
criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em 1920. 39
O saneamento rural foi incluído no DNSP como Diretoria de Saneamento
e Profilaxia Rural (DSPR), por meio dela a autoridade federal intervinha através
de acordos com os estados que poderiam contar com recursos da União para
obras de saneamento, desde que ressarcissem um dia metade dos gastos
federais.40
O Pará firmou em dezembro de 1920 um acordo com o governo federal
para que o DSPR combatesse as endemias rurais no estado. A condição primeira
do contrato era que o Pará aceitasse e reconhecesse “todas as leis sanitárias,
disposições e instruções” da autoridade federal. Os serviços de saneamento do
Sobre os embates entre medicina e pajelança no Pará ver: IGUEIREDO, Aldrim
Moura de. A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileiras na Amazônia
(1870-1950). Belém: EDUFPA, 2008. SILVA, Jairo de Jesus Nascimento da. Da Merebaayba à Variola: isolamento, vacina e intolerância popular em Belém do Pará (1884-1904).
Dissertação, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, UFPA,
Belém, 2009.
38 CRUZ, Heloisa de Faria; Peixoto, Maria do Rosário. Na Oficina do Historiador:
conversas sobre História e imprensa. In: Projeto História, São Paulo, n.35, 2007, p.259
39 HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento. São Paulo: HUCITEC, 2006, pp.183205.
40 Idem, p.186
37
40
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
DSPR seriam realizados “de preferência e com a maior amplitude, nas zonas
mais atingidas pelas endemias, de população mais densa e maior riqueza
econômica”. Em contrapartida o estado se comprometia “a indenizar a União
no prazo de dez anos da metade das despesas”.41
O contrato firmado entre o governo do Pará e o governo federal efetivou e
ampliou o saneamento rural no estado. Todavia para que este contrato fosse
firmado ocorreu um longo processo de convencimento em que diversos
intelectuais defenderam o saneamento como condição indispensável para o
desenvolvimento do Pará. No caso particular da imprensa, suas páginas estavam
permeadas de denúncias sobre as condições sanitárias do estado, alertando
sobre os riscos que isso trazia para a economia. Além disso, muito mais do que
convencer as elites politicas, a imprensa também foi fundamental para difundir
uma nova cultura, pautada na higiene e na ciência médica.
Dom Santino em sua Carta Pastoral sobre a Imprensa Católica afirma que
nem a posteridade escapa a influência do jornal, porque “é uma voz do passado,
um documento a prestar serviços para o futuro” 42. De fato a investigação do
saneamento rural evidencia como a imprensa é uma fonte muito rica, sobretudo
se tomada como objeto de pesquisa e não mero depósito de informação. Deste
modo, acredito que se a imprensa for compreendida como força social e
cultural, como objeto da pesquisa histórica, terá muitos serviços a prestar para
o futuro e para os historiadores.
Acordo com o Estado do Pará. In: A prophylaxia rural no Estado do Pará. SOUSA
ARAÚJO, H.C (org). Publicação destinada a comemoração do centenário da
Independência. Belém, Tipografia da Livraria Gillet, 1922, pp.23-24.
42 A Palavra, 11 de agosto de 1921 ,p.3
41
41
Intelectuais e discurso
NO PINCEL E PARA A HISTÓRIA: REPRESENTAÇÃO E
MEMÓRIA NA ARTE DE THEODORO BRAGA
Igor Gonçalves Chaves1
Resumo
O presente texto tem o objetivo de abordar a representação da história da
Amazônia construída na pintura de Theodoro José da Silva Braga, exposta no
ano de 1908 com título de “Fundação da Cidade de Belém”. A criação dessa
tela se dá no período da intendência de Antonio Lemos, que a encomendou.
Trata-se de um contexto profícuo para a produção das artes visuais na cidade
de Belém e o pintor Theodoro Braga se destaca no mundo das artes e da
intelectualidade belenense no início do século XX.
No início do século XX, a cidade de Belém do Pará experimentava o
processo de ebulição no meio artístico, o qual em certa medida se liga,
substancialmente, ao momento do boom da economia da borracha, a Belle époque
como o período (1870-1910) ficou notoriamente conhecido na historiografia da
Amazônia. A vinda de artistas brasileiros e também do exterior torna-se ponto
emblemático para a constituição da “civilização” na Amazônia, uma imagem
fortemente evocada pelo poder público paraense para demonstrar a evolução
da sociedade local. O foco deste texto delimita-se à cidade de Belém, capital do
estado do Pará e centro urbano projetado ao mundo como a pequena Paris dos
trópicos, ou seja, a imagem da moderna cidade, antro da civilização e do
progresso, que se pretendia construir sobre a capital paraense.
O intendente municipal na década de 1900 era Antonio José de Lemos que
se destacou enquanto liderança política na Belém republicana do início do
século XX. Antonio Lemos desempenha papel fundamental na fomentação do
meio artístico belenense sendo sua a encomenda de uma série de pinturas que
reproduzem alguns dos principais logradouros da cidade amazônica como a
Catedral da Sé e a Praça da República. Tal feito inaugura a fase de encomendas
da intendência municipal e cristaliza a figura do sr. Senador Antonio Lemos
como mecenas das artes2. Essa postura de apreciador das artes contribuiria para
fortificar o mecenato como postura própria das lideranças políticas da região
Universidade Federal do Pará/Programa de pós-graduação em história social da
Amazônia.
2 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Eternos modernos: uma história social da arte e da
literatura na Amazônia, 1908-1929. Campinas, SP, 2001.
1
42
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
amazônica, prova de seu refinamento intelectual e do lugar da cidade de Belém,
segundo alguns viajantes estrangeiros, enquanto um dos principais centros
culturais do país3.
É justamente um dos protegidos do intendente municipal que irá impactar
o cenário artístico da capital paraense com a exposição de uma de suas obras
no ano de 1908, a qual carrega em si grande valor simbólico para a
memória/história de Belém. O homem em questão é Theodoro José da Silva
Braga, artista paraense e considerado um profissional ilustre pelos intelectuais
da época. A que se deve esse renome? Principalmente a formação da carreira
do sr. Theodoro Braga: diplomado pela Faculdade de Direito do Recife em
1893; discípulo de Jerônimo Teles Junior, Jean-Paul Laurens e outros; estudante
do curso de pintura da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro; aluno
laureado com o prêmio de viagem à Europa em 1899, onde permaneceu como
pensionista por cinco anos visitando instituições de formação artística e
estabelecendo contato com mestres europeus. Não é estranho, portanto, a
criação de expectativas em torno do jovem paraense tendo em vista as
referências que ele construiu ao longo de sua formação e o que o historiador
Aldrin Moura de Figueiredo considera uma rápida evolução em meio aos novos
talentos nacionais4. Após o fim de sua pensão na Europa, o sr. Theodoro Braga
retornaria a Belém para firmar-se enquanto um “nome de influência” nas artes
visuais do Pará. No dia 16 de outubro de 1906, o sr. Braga já inaugurava sua
terceira exposição de pinturas compondo aquarelas dedicadas aos “cantos
pitorescos e antigos da cidade de Belém”5. Após essa temporada prolífera e bem
avaliada em 1906, o artista paraense seria convocado a executar o trabalho que
culminaria na composição de uma de suas obras capitais. Sob o pedido e
encomenda do intendente municipal Antonio Lemos, o sr. Theodoro Braga
deveria confeccionar uma tela representativa da gênese da cidade de Belém.
Desse modo, depois de encerrada a terceira exposição de aquarelas, no mês de
novembro de 1906 o artista embarcaria para Lisboa, retornando à Europa dessa
vez na qualidade de profissional consolidado e com o intuito de investigar os
arquivos, os documentos e os registros sobre o início da colonização portuguesa
na Amazônia.
Nesse ponto é necessário salientar a relevância dada por Theodoro Braga à
pesquisa documental. Esse indivíduo, além de profissional das artes também se
traveste de pesquisador da história, recorrendo aos vestígios do passado para
construir uma obra imagética na qual será exposta uma versão desse passado.
COUDREAU, Henri. L’Avenir de la capitale du Pará. ABAP. V.8. Belém, 1913.
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Eternos modernos, 2001, p. 49.
5 BRAGA, Theodoro. A arte no Pará (1888-1918) retrospectiva histórica dos últimos
trinta anos. Revista do IHGP, vol. 8, 1934, p. 149-159.
3
4
43
Intelectuais e discurso
Tal ocorrência não é exclusiva dessa fase da carreira de Theodoro Braga, pois o
mesmo foi sócio de instituições dedicadas à história, à geografia e à arqueologia
no Brasil – a saber, no Pará, no Ceará, no Rio Grande do Norte e em
Pernambuco -, além de ter publicado as Apostilas de História do Pará. Como é
possível perceber, o artista belenense construiu para si uma interessante
imagem, qual seja a de um intelectual que é pintor, historiador, pesquisador e
professor. Não é exclusividade e nem ineditismo essa pluralidade de atuações
em Theodoro Braga, outros seguem essa linha de artista-erudito como é o caso
do paulistano Benedito Calixto que se dedicou a longas pesquisas sobre o
período colonial do estado de São Paulo6. Podemos supor que Theodoro da
Silva Braga tenha herdado o posicionamento de pintor-historiador de seus
mestres na Escola de Belas Artes e na Europa, pois a tradição do artista que se
envereda pelos arquivos em busca de registros pretéritos para suas composições
remete ao final do século XVIII7. Trata-se de um diálogo entre disciplinas
distintas, uma fornecedora do fato ocorrido e outra recriadora desse fato por
meio dos pincéis e das tintas. Theodoro Braga, portanto, se encaixa entre esses
homens das artes cuja dinâmica e a exigência da profissão os levou a outras
searas como a história e a arqueologia. Nas palavras de Peter Burke:
Esses pintores podem ser vistos como historiadores de pleno direito. Eles
aprenderam a partir do trabalho dos historiadores profissionais que eram
encontrados em número cada vez maior nas universidades do século XIX, mas
fizeram também suas contribuições para a interpretação do passado. A história que
eles, frequentemente, representavam era a história nacional, movida pelo
nacionalismo8.
Em 17 de dezembro de 1908, Theodoro José da Silva Braga, de volta à terra
natal após o tempo de pesquisas na Europa, realizava sua quarta exposição
artística no salão do Theatro da Paz, apresentando mais de oitenta trabalhos,
dentre eles a sua grande tela histórica intitulada A Fundação da Cidade de Belém
do Pará.
Para a análise da obra de Benedito Calixto ver: ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto
e a construção do imaginário republicano. Bauru: Edusc, 2003. Também uma boa parte
das pesquisas de Calixto encontram-se hoje no Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
7 PARET, Peter. Imagined Battles: Reflections of War in European Art. Chapel Hill:
University of North Caroline Press, 1997.
8 BURKE, Peter. Testemunha ocular: História e Imagem. Bauru – São Paulo: EDUSC,
2004, p. 198.
6
44
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Figura 1: A Fundação da cidade de Belém, Theodoro Braga, 1908. A tela histórica
encomendada por Antonio Lemos ao pintor paraense Theodoro Braga representando
as origens da Belém do século XX. Uma importante construção da história da sociedade
amazônica por meio da narrativa visual da arte. Atualmente faz parte do Acervo do
Museu de Arte de Belém.
Com 226 cm de largura por 504 cm de comprimento, o óleo sobre tela que
retrata a fundação da capital paraense foi apresentado ao público às dez horas
da manhã na data acima descrita. Enquanto obra de arte de tema histórico, suas
largas dimensões contêm uma interessante composição de cenas: dois
momentos diferentes divididos por duas grandes árvores que ornamentam o
centro da tela. No lado direito o espectador pode ver os índios tupinambá
aglomerados nas duas margens de um igarapé que posteriormente se tornaria o
Ver-o-Peso9, eles observam ao longe a chegada de três embarcações
portuguesas “que trazem a expedição civilizadora”10. No lado esquerdo um
grande número de pessoas se ocupa no trabalho de construção o futuro Forte
do Presépio, ao fundo uma igreja de taipa e palha já demarca o início da
“civilização”. Ao centro e em primeiro plano, à sombra das grandes embaúbas
e seringueiras, está Francisco Caldeira Castelo Branco, comandante
expedicionário, reunido ao seu estado-maior para definir o planejamento futuro
da viagem de Pedro Teixeira ao Maranhão.
A composição das cenas nos leva a perceber o aspecto narrativo presente na
construção da tela. Quando o olhar do espectador segue o traçado da direita
para a esquerda pode ler a história da gênese da sociedade amazônica, ou seja,
BRAGA, Theodoro. A fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará:
estudos e documentos para a execução da grande tela histórica pintada pelo autor e
encomendada pelo benemérito intendente municipal de Belém Exmo. Sr. Senador
Antonio J. Lemos. Belém: Secção de Obras d’A Província do Pará, 1908.
10 Ibidem.
9
45
Intelectuais e discurso
a pintura é uma narrativa na qual o espectador observa a história de Belém, um
processo que se desloca dos tupinambá nus e habitantes das florestas para os
portugueses “senhores e conquistadores”11, construtores da civilização. O
contraste entre as duas cenas parece servir perfeitamente à narrativa histórica
artisticamente confeccionada por Theodoro Braga. Da paisagem florestal que
predomina no lado direito para a modificação do terreno natural pelas mãos
dos trabalhadores no lado esquerdo a história representada no óleo sobre tela
segue claramente uma trajetória progressiva em direção ao mundo considerado
civilizado, isto é, do reino das matas para a urbe moderna em estado de gestação.
O mesmo é válido para os personagens presentes nas duas cenas: a sociedade
dos tupinambá de um lado e do outro a sociedade moderna, colonizadora e
cristã. Um ponto interessante a ser notado nos trabalhadores do Forte é a
existência tanto de lusitanos quanto de indígenas, o que indica a assimilação das
populações nativas ao processo civilizatório – note-se, por exemplo, o fato
desses indígenas estarem trajados com roupas o que os diferencia dos
tupinambá no lado direito. A obra de arte, nesse caso, serviria também para fins
instrutivos, pois através da contemplação da mesma os espectadores, os
belenenses, entrariam em contato indireto com a história de sua terra, as origens
da formação de sua sociedade, observando a evolução em direção ao progresso
que se desenvolvia desde a gênese de Belém.
O português colonizador desempenha papel central na história proposta
pela Fundação de Theodoro Braga, são eles os portadores do germe civilizatório
nas terras paraenses. Por outro lado, o artista não deixa de fora os povos nativos
da Amazônia, estes devem marcar sua presença enquanto símbolo de um tempo
anterior ao progresso, o período da pré-história de Belém. O papel deles na tela
é, contudo, de antagonismo, pois observam a chegada das naves lusitanas não
com admiração e nem com curiosidade, mas sim com o ódio dirigido aos
inimigos12. Posteriormente esses antagonistas seriam domesticados como bem
indica a cena à esquerda com os indígenas ocupados em trabalhar na construção
do Forte do Presépio, incapazes, portanto, de resistir ao destino da conquista.
Desse modo, os objetivos da pintura de Theodoro Braga se conjugam em
apresentar a origem da moderna cidade de Belém do século XX, metrópole
herdeira da empreitada lusitana do século XVII. A narrativa em A Fundação
forma um elo entre a cidade do intendente Antonio Lemos e o passado colonial,
o qual é elaborado de modo a consolidar a imagem do presente.
A Fundação de Belém nos remete a outra pintura de tipologia histórica
intitulada A Conquista do Amazonas. Esta tela, em certa medida uma “prima”
daquela produzida por Theodoro Braga, foi confeccionada pelo artista
11
12
Ibidem.
Ibidem.
46
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
fluminense Antonio Diogo Parreiras e entregue alguns meses antes da
exposição d’A Fundação, em 18 de janeiro de 1908. O que chama a atenção para
a relação entre uma obra e outra, além da própria temática em comum, é o fato
de A Conquista ter sido feita sob a encomenda do governador do Estado do
Pará, o sr. Augusto Montenegro, em praticamente o mesmo período da
encomenda do intendente Lemos. A pintura de Antonio Parreiras representa o
ato solene de posse das terras amazônicas por Pedro Teixeira, momento
construído como crucial para a história do Estado do Pará; também em A
Conquista os conquistadores portugueses ocupam o protagonismo e a
centralidade da iconografia, demonstrando – tal como na Fundação – o lugar
privilegiado do europeu lusitano enquanto construtor da civilidade. Desse
modo, pode-se perceber que o retrato de acontecimentos históricos e sua
elevação a postos privilegiados para a demarcação das origens da civilização
amazônica configuram um ponto de interesse do poder público paraense, no
momento em que as lideranças estadual e municipal se preocupam em elaborar
versões do passado. O período político também se mostra propício à elaboração
dessas narrativas visuais cujo sentido vai de em direção à invenção de um legado
para os governos republicanos do final do século XIX e início da década de
1900, um legado que será delimitado no distante tempo da Amazônia colonial.
O óleo sobre tela de Theodoro Braga pode ser entendido tanto como
representação quanto como memória. A representação de algo está ligada ao
fato de se relacionar um objeto a uma ideia e remeter o espectador a essa ideia,
dito de outro modo é tornar presente algo que está ausente13. O termo tal como
é trabalhado por Carlo Ginzburg mostra-se bastante eficaz para o caso aqui
estudado. A tela artística de Theodoro Braga não é um retrato fiel da realidade,
o fato histórico não foi pintado tal como realmente aconteceu. O artista
paraense elaborou a sua versão do acontecimento e construiu uma
representação do mesmo. Para isso ele recorreu a um conjunto de documentos
e registros do período colonial. As fontes dessa investigação foram publicadas
num opúsculo chamado A fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará:
estudos e documentos para a execução da grande tela histórica pintada pelo autor e
encomendada pelo benemérito intendente municipal Exmo. Sr. Senador Antonio J. Lemos.
Esse opúsculo foi escrito com a finalidade de ser apresentado em conjunto com
a pintura o que é revelador das intenções do sr. Theodoro Braga: este não
apenas confecciona uma representação do fato histórico, como também
elaborou um meio de confirmar a veracidade de seu trabalho.
GINZBURG, Carlo. Representação – a palavra, a ideia, a coisa. In: Olhos de madeira
– nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 85-103.
13
47
Intelectuais e discurso
Ao expor minha tela Fundação da Cidade de Belém e com ela um opúsculo
explicando-a e documentando-a, esperava eu, tal é a importância do assunto para
nós, que todos que dele tratam viessem imediatamente armados de documentos
irrefutáveis e esmagadores, cheios de luz e verdade, reduzir a cinzas o meu quadro
e os meus estudos. (...) Nada inventei, nem fiz história: garanti o meu trabalho de
uma fortaleza inexpugnável, ataquem-me e destruam-na, mas com elementos. (...)
Dizer e não provar é não dizer14.
No trecho acima, o artista belenense busca defender sua posição de
estudioso da história afirmando que sua arte foi pensada a partir de um
arcabouço documental e não inventada ao léu. Esse posicionamento do pintorhistoriador, essa necessidade em legitimar sua pintura, configura novamente o
caso emblemático de um profissional da arte que se traveste de investigador do
tempo passado, o que já foi abordado nos parágrafos anteriores.
A questão da memória é outro ponto a ser ressaltado quando se analisa a
Fundação. Esta tela, que ocupa um importante lugar na coleção de arte do poder
público paraense, reproduz um fato pretérito tomado como fundamental para
a história de Belém e da Amazônia, portanto é sua função servir como memória
visual desse fato. Levando isso em consideração é necessário atentar para
algumas funcionalidades da memória. Pierre Janet nos chama a atenção para a
função social da memória, sua propriedade de comunicar algo a alguém e
principalmente, sua capacidade de transmitir um acontecimento a quem não o
testemunhou15. Além da função social a memória também é elemento essencial
para a identidade, seja ela coletiva ou individual16. A tela de Theodoro Braga
abarca em grande medida essas propriedades da memória. Em primeiro lugar
ela transmite à sociedade belenense do século XX um acontecimento do
passado e nesse caso um passado tão antigo e distante que, de modo natural,
ninguém poderia relembrar; logo a tela histórica é instrumentalizada para
preencher uma lacuna na memória da sociedade, é a representação tornando
presente o fato que está ausente. Em segundo lugar a Fundação de Theodoro
Braga - ao reproduzir um passado pressuposto como comum ao povo
belenense - cria uma identidade, uma memória coletiva para a metrópole
paraense e ao mesmo tempo torna-se um recurso para o poder público
cristalizar a imagem que se desejava da história da cidade “belle-époqueana”.
O amálgama de tantas instrumentalizações de uma pintura revela o quanto
há de emblemático nas obras iconográficas de Theodoro José da Silva Braga, e
também demonstra que a sua utilização para as análises da sociedade amazônica,
A Província do Pará, 11de maio de 1909, p. 1.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp,
1990.
16 Ibidem.
14
15
48
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
notadamente de seus membros ilustrados e seus intelectuais, pode ser bastante
frutífera. O uso das artes visuais na investigação histórica dos grupos letrados
da Amazônia e seu relacionamento com o poder público é bastante interessante
no que toca ao entendimento dos projetos e discursos que se destacavam no
meio ilustrado paraense e sua percepção de como deveria ser interpretada a
história de Belém e da Amazônia. No caso da Fundação de Theodoro Braga
temos a composição de um discurso sobre as origens da sociedade amazônica,
o qual se pretende cristalizador de uma memória do passado e representativo
de um fato histórico. Trata-se de um discurso que é elaborado não pelas letras
e sim pelas tintas dos pincéis que contam uma história, mas ao mesmo visa
ocupar um lugar especial na história de Belém encantando seus “leitores” com
suas cores e com sua estética.
49
Intelectuais e discurso
A INFLUÊNCIA DE JOAQUIM NABUCO E ANSELMO DA
FONSECA NA CRÍTICA À IGREJA CATÓLICA EM FINS DO
SÉCULO XIX (1880-1888)
Jerusa Barros Miranda
Resumo
Este trabalho busca perceber em que medida os discursos nas obras O
Abolicionismo de Joaquim Nabuco e a Escravidão, o Clero e o Abolicionismo de
Anselmo da Fonseca, são tomados como explicação histórica pela historiografia
geral da escravidão e pela historiografia que versa sobre a posição da Igreja
Católica ante ao regime do cativeiro africano. Bem como heranças, memórias e
ideologias que nos legaram.
Palavras-chave: Escravidão, Discurso, Igreja e ideologia.
Londres, agosto de 1883, a tipografia de Abraham Kingdon & Co, lança uma
obra que marcará profundamente o pensamento brasileiro no final do século
XIX e que ainda hoje é passagem obrigatória para quem estuda escravidão ou
áreas afins. A obra a que me refiro é O Abolicionismo1 de Joaquim Nabuco, que
foi recebida com festas no Brasil pelos que comungavam do ideal deste autor
pernambucano2. O uso desta obra nesse artigo é analisado com o objetivo de
perceber como o discurso inserido nele foi tomado como explicação histórica
da sociedade de então. Mas especificamente, como a sua tese de que a Igreja
Católica não teve participação nenhuma no movimento abolicionista foi
transformada em memória que caracterizava o dito movimento e como essa
memória ainda nos dias de hoje é utilizada por autores que escrevem sobre a
história da Igreja.
Seguindo a análise, outra obra que contribuiu para cristalizar as teses de
omissão da Igreja Católica quanto à escravidão e o processo abolicionista é A
Escravidão, o Clero e o Abolicionismo, autoria de Luís Anselmo da Fonseca3,
A referida obra ganharia várias edições desde sua primeira publicação em 1883, sendo
publicada em 2003 pela Senado Federal. Cf.: NABUCO, Joaquim, 1849-1910. O
Abolicionismo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
2 DANTAS SILVA, Leonardo. A atualidade de Joaquim Nabuco. In: NABUCO,
Joaquim. Op. Cit, p.12. .
3 FONSECA, Luís Anselmo da. A escravidão, o clero e o abolicionismo. Recife: FUNDAJ,
Editora Massangana, 1988.
1
50
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
publicado no ano de 1887 pela Tipografia Imprensa e Econômica. Este livro
aborda, em suas quase 700 páginas, a maneira indiferente e pacífica com que a
Igreja aceitava a escravidão, utilizando-se dela e nada fazendo para que fosse
abolida do nosso país. Essas e outras obras, com o mesmo viés, foram
protagonistas importantes, ou melhor, serviram de base ideológica, legando
uma memória para as discussões que se espalhavam por todo o país, sobre o
processo de emancipação dos escravos e a participação da Igreja Católica nele,
influenciando toda uma historiografia da época e atual.
A historiografia a que me refiro é especificamente onde estão inseridos os
autores que dedicaram suas pesquisas para provar que a Igreja foi totalmente a
favor da escravidão e contra a abolição. Esta corrente historiográfica é
representada por uma ala mais progressista formada por padres e clérigos como
Riolando Azzi, Eduardo Hoonaert e José Oscar Beozzo, além de intelectuais e
historiadores, como Mário Maestri. Estes autores acabam, em suas “histórias da
Igreja” fazendo justamente a mesma interpretação de omissão eclesiástica em
relação à escravidão africana no Brasil, ainda muito influenciados pela ideologia
circulante das últimas décadas do século XIX. Cabendo ao clero intelectualizado
conservador, aos historiadores dentro e fora da Igreja advogar a perspectiva do
clero, com intuito de defender a Igreja Católica das acusações de omissão no
movimento abolicionismo.
(...) um texto jamais se encontra isolado. Suas idéias e sua linguagem podem advir
de um outro discurso, construído num meio social distinto (...) 4.
Neste sentido, a ideologia liberal abolicionista, presente nas obras de
Joaquim Nabuco, Anselmo da Fonseca e posteriormente, em certa medida, nas
obras de Mário Maestri, José Oscar Beozzo, Riolando Azzi e Eduardo
Hoonaert, só ganha sentido, na sua crítica à Igreja em relação com a escravidão,
pensada no contexto dos embates e das disputas políticas entre ultramontanos
e liberais em fins do dezenove.
No Brasil, os acontecimentos das últimas décadas do século XIX, em certa
medida era um reflexo da confrontação que se verificava na Europa entre o
Liberalismo e a Igreja Católica. Esta que almejava ampliar e aumentar seu poder
e autonomia. O que, desde o período colonial, era dosado pelo sistema do Real
Padroado português. Este que nasce da outorga da Bula Inter-Caetera, em 1455,
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão. Os letrados e a sociedade escravista no Brasil
colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. p.19
4
51
Intelectuais e discurso
pelas mãos do Papa Calixto III. Dando assim, início a uma aliança entre Coroa
e Igreja, onde a segunda passa a ser subordinada ao poderio da primeira5.
Entretanto, não era uma relação de subordinação strictu sensu, era mais como
uma relação de troca, onde no período da América portuguesa a Igreja
“sacralizava o Projeto Colonial e legitimava ‘moralmente’ o modo de proceder
e atuar” do Estado português e este supria suas necessidades financeiras, como
as viagens pastorais e a construção de templos.6 Este sistema de ajuda mútua irá
arrastar-se até o Império, onde o poder secular será exercido sobre o poder
eclesiástico através do Estado Imperial. Todavia, já em 1759, este sistema já
mostrava seus primeiros sinais de crise. Com o episódio “da expulsão das
ordens religiosas do mundo ibérico, a submissão religiosa, no Brasil, ao Estado,
ficava cada vez mais evidente, e os conflitos com a Igreja ficaram em estado
oculto, disfarçado, até virem à tona sobre o furor da Questão Religiosa” 7.
Segundo Raymundo Heraldo Maués, “O nome deste amplo movimento de
reforma da instituição eclesiástica deriva do fato que, se pretendia ligá-la mais
estreitamente a Roma, desatando as amarras do regime do padroado que
tolhiam sua liberdade”. Com isso, há uma preocupação por parte dos pontifícios
locais em implantar uma política de total controle e obediência às ordens
romanas. O que na Amazônia será feito pelo Bispo D. Macedo Costa. Este que
defendia uma ideologia extremamente conservadora de acordo com os ditames
do ultramontanismo. Com isso, este movimento “romanizador” desencadeará
ferrenhos embates entre o poder eclesiástico vigente, o laicato e outros setores
progressistas da Igreja que não estavam de acordo com as implementações
“romanizantes”8.
Os embates se davam entre o conservadorismo eclesiástico da Reforma
romanizadora versus os ideais liberais de cientificidade, modernidade, civilidade e
progresso, muito caras até então para aquela sociedade. Os choques envolviam
vários sujeitos, dentro e fora da Igreja. Ou seja, se de um lado uma ala do
catolicismo brasileiro queria reforçar seus laços com o conservadorismo
romano, através de sua Reforma Eclesiástica, por outro se defrontava com o
ideário do movimento liberal, em voga e que era defendido por outra ala mais
Cf.: FILHO, João Dornas. QUAE SUNT CAESARIS. In: O Padroado e a Igreja
Brasileira, 1939 Editora: Coleção Brasiliana, Universidade Federal do Pará, pp.5- 34.
6 BAPTISTA, Mauro. Evangelização ou escravização? In Vida Pastoral. São Paulo:
Edições Paulinas, janeiro/fevereiro de 1988, p. 16. Apud. BEZERRA NETO, José
Maia. O Clero, a escravidão e a campanha abolicionista. Texto digitado.
7 FREITAS NEVES, Fernando Arthur de. Op. cit. p. 93.
8 MAUÉS, Raymundo Heraldo. As atribulações de um doutor eclesiástico na Amazônia
na passagem do século XIX ou como a política mexe com a igreja católica. In: MARIN,
Rosa Acevedo (org.). A escrita da história paraense. Belém: NAEA/UFPA, 1998, p. 139.
5
52
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
progressista da Igreja e por membros do Partido Liberal de então. Diante disso,
a crítica liberal inaugura uma visão da Igreja Católica como sinônima de atraso
e de arcaísmo, muitas vezes tomada como empecilho ao desenvolvimento do
país.
A crítica liberal abolicionista considerava a instituição servil como
característica de uma sociedade atrasada e sem desenvolvimento, cuja
associação direta era tecida em relação ao movimento do catolicismo
romanizado. Segundo as críticas liberais à Igreja, esta era partidária da
escravidão, haja vista por não se engajar na causa abolicionista de libertação dos
escravos negros. Este era um dos principais debates que estava presente no
Brasil da década de 1880, onde a Igreja Católica era agente de destaque nessa
discussão. Logo, a Igreja era alvo das criticas de Joaquim Nabuco e Anselmo da
Fonseca, de abolicionistas e liberais, devido seu posicionamento institucional
de não tomar, destacadamente, parte do movimento abolicionista no Brasil.
A interpretação do texto em particular torna-se, assim, essencial, pois nos leva a
observar o movimento e o fluxo da construção ideológica. (...)Podem ainda resistir
ao tempo, readaptando-se ideologicamente a despeito das transformações históricas
mais profundas9.
Foi tentando entender as relações da sociedade colonial escravista a partir
da ideologia jesuítica que legitimava a instituição da escravidão, é que Ronaldo
Vainfas produz seu livro Ideologia e Escravidão: Os letrados e a sociedade escravista no
Brasil colonial. Neste momento é importante chamar atenção para a forma como
o autor percebe a ideologia em seu trabalho, pois é baseado em sua visão desse
termo que pretendo debruçar-me sobre as críticas feitas a Igreja no último
quartel do século XIX.
Neste sentido, estudar a ideologia implica na verificação das “formas de
consciência construídas em determinadas sociedades, levando-se em conta o
seu papel na reprodução social das classes historicamente estabelecidas.”
Vainfas não considera a ideologia como ilusão de uma época ou falsa consciência,
enredo de uma farsa montada pelas classes dominantes para dissimular as
contradições sociais.10 Para a compreensão desse trabalho é necessário que se
entenda a ideologia como um “sistema de significações complexo, expresso de
formas diversas, nem sempre idênticas, mas articuladas na sustentação da
VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p.19.
Para mais informações dessa prcepção do termo ideologia Cf.: CHAUÍ, Marilena. O
que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1981. & OLIVEIRA, V. M. Ideologia: pontos para
reflexão. Concinnitas (UERJ), UERJ, v. 1, p. 145-153, 1999.
9
10
53
Intelectuais e discurso
hierarquia social e da dominação de uma classe sobre o conjunto da
sociedade.”11
A opção por esse viés de análise nos leva a fazer duas considerações
essenciais: Primeiro, adotar a “noção de discurso na análise dos textos, o que
implica em não considerá-los como transparentes”. Segundo, “refletir sobre o discurso
significa examinar todas as condições que presidem a sua elaboração: as condições
de produção, que remetem às determinações sociais, intelectuais e literárias
explicativas de sua construção; as condições de circulação vinculadas aos meios de
que dispõe o discurso para transitar na sociedade; as condições de reconhecimento, ou
seja, as possibilidades que as ideias do discurso têm de tocar a ideias da ordem
social, modificando-a ou não, conforme as estruturas de poder vigentes na
mesma sociedade”12. Portanto, a partir das considerações feitas acima é que
podemos pensar em trabalhar com a noção de discurso na análise das obras de
Joaquim Nabuco e Anselmo da Fonseca, enquanto versão ideológica liberal.
Como fez José Maia Bezerra Neto que procura em seu estudo sobre o
“movimento abolicionista e os embates em torno da construção da memória sobre
o mesmo, afirmar que foi a partir de obras como O Abolicionismo e a Minha
Formação que Joaquim Nabuco construiu a sua memória histórica do
movimento abolicionista”13. Segundo Bezerra Neto, a obra O Abolicionismo
acabou por consolidar a maneira pela qual os abolicionistas que comungavam
de visões parecidas como as de Nabuco, “queriam ser lembrados, bem como a
forma pela qual desejavam que a escravidão e o abolicionismo fossem
guardados na lembrança das gerações futuras.” Ou seja, Bezerra Neto afirma
que com as produções de Joaquim Nabuco ocorreu uma “cristalização de uma
memória possível do abolicionismo como se fosse a memória deste, diria mais,
transformaram esta memória em história do movimento abolicionista.” Pois,
até o início 1980 a historiografia da escravidão produzida no Brasil, em sua
maioria praticamente, compreendiam o escravismo e a processo abolicionista
através das lentes fornecidas por Nabuco14. O que não foi diferente quanto a
sua crítica da participação da Igreja Católica na abolição, pois a memória
abolicionista desse liberal pernambucano foi transformada em explicação
histórica daquele momento, como por exemplo o trecho abaixo retirado do O
Abolicionismo que foi tomado como verdade histórica sobre o tema e
imortalizado na escrita de muitos historiadores até os dias atuais.
VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit. p. 14
VERÓN. E. Op. cit., p. 189-204. Apud: Idem, pp. 17-18
13 BEZERRA NETO, J. M. O doce Treze de Maio. O abolicionismo e as visões da
Cabanagem, Grão-Pará – Século XIX. In: FREITAS NEVES, F. A. & PINTO LIMA,
M. R. (Org.). Faces da História da Amazônia. Paka-Tatu/ Belém, 2002, p. 347
14 Idem, p. 344
11
12
54
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Em outros países, a propaganda da emancipação foi um movimento religioso, prega
do púlpito, sustentado com fervor pelas diferentes igrejas e comunhões religiosas.
Entre nós, o movimento abolicionista nada deve infelizmente, à Igreja do Estado;
pelo contrário, a posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero
secular desmoralizou inteiramente o sentimento religioso de senhores e escravos.
No sacerdote, estes não viam se não um homem que os podia comprar, e aqueles a
última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção, pelo nosso clero, do posto
que o Evangelho lhe marcou foi a mais vergonhosa possível: ninguém o viu tomar
a parte dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro, e para dizer
a verdade moral aos senhores. Nenhum padre tentou, nunca, impedir um leilão de
escravos, nem condenou o regime religioso das senzalas. A Igreja católica, apesar
do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca
elevou no Brasil a voz em favor da emancipação15.
Outra obra que também trata da participação do clero na escravidão, mas
com mais exclusividade e profundidade é o livro do também liberal
pernambucano Anselmo da Fonseca, A Escravidão, o Clero e o Abolicionismo. Este,
publicado em 1887 e já muito embebido das influências de Nabuco. Anselmo
da Fonseca compartilhava da visão inaugurada pelo autor de O Abolicionismo, o
que concluímos que, desde pelo menos o final do século XIX, a tese de Nabuco
já havia se tornado explicação histórica para se entender o escravismo e o
abolicionismo16. E neste sentido a obra de Anselmo veio para amalgamar e
arraigar sua memória abolicionista dos acontecimentos do final do século XIX,
ao que tange a visão da Igreja no processo de libertação dos cativos africanos.
Para o autor o clero nunca representou um papel importante no Brasil, nem
do ponto vista moral nem do intelectual. Mas ele não se isenta de reconhecer
que em diferentes fases da civilização brasileira houve exceções a essa regra
geral, estes eram os que buscavam o progresso social e eram patriotas. Ou seja,
segundo Anselmo da Fonseca o Brasil teve padres com grandes idéias de
ilustração, civismo, caráter, com ações nobres e obras de alcance e trabalho de
valor. Porém, com o tempo, esse quadro mudou progressivamente. Ao
contrário de outras classes sociais que tem melhorado e se elevado pelo
trabalho, pela instrução e pelo espírito de progresso;
O clero brasileiro tem decaído pela falta de cultura, pela indolencia, pelo
indifferentismo moral e sobre tudo pelos máos exemplos que dá, que cada dia vão
perdendo suas atenções, considerações que outrora faziam jus (...). O clero brazileiro
é hoje [1887] geralmente representado por homens vulgares, dotados de pouca
15
16
NABUCO, Joaquim. Op. cit. p. 38
BEZERRA NETO, J.M. Op. Cit. p. 345
55
Intelectuais e discurso
instrucção, tão ambiciosos como egoistas, fouxos nos costumes e excessivamente
amantes da commodidade e do goso. Geralmente são alheios a todas as conquistas
do espirito humano, e jazem n’um atrazo intellectual realmente pasmoso 17.
Ele concorda com Joaquim Nabuco quando de sua fala em “O
Abolicionismo”, onde critica a posição da Igreja ante a servidão negra e sua
indiferença ao abolicionismo, demonstrando que a abolição no Brasil nada deve
à Igreja Católica. O que leva Fonseca a comparar a sociedade brasileira daquele
período com a sociedade estadunidense. Na visão do autor, a liberdade que se
deu nos Estados Unidos foi aonde realmente houve a conversão do escravo em
cidadão, pois lá tiveram a preocupação de instruí-los, ou seja, após serem
libertos recebiam educação. “Foi uma revolução moral e política” e a classe
social que mais cooperou foi o clero.
Em todo este estudo sobre o movimento abolicionista, Anselmo da Fonseca
questiona qual o papel do clero brasileiro; O que tem feito os padres do Brazil? De
bem quasi nada; de mal muito. Segundo ele as ordens religiosas do paiz forão sempre
escravocratas e proprietarias de escravos18.
As doutrinas expendidas n’este capitulo e nos anteriores nos fornecem nova e solida
base para fundamentar as justas accusações que dirigimos ao clero brazileiro, pela
sua condemnavel attitude perante a questão servil. Se os nossos padres tivessem
querido e podido cumprir o seu dever de militar contra a escravidão e em favor da
liberdade, poderião contar como ponto de apoio não só com a doutrina christã,
como também com a philosophia tanto metaphysica como positiva, e com o direito
tanto privado quanto publico19.
Em seu livro, Anselmo da Fonseca também faz fortes críticas ao movimento
de “romanização” da Igreja Católica, vendo-o de forma negativa para as
políticas do Estado Imperial, deixando bem claro suas idéias liberais de
cientificidade, progresso, civilidade e liberdade, vindas da Europa e que em
muito balizavam suas críticas ao catolicismo ultramontano:
E’ fora de duvida que a predominancia do romanismo exerce influencia retardadora
e de resultados negativos para a civilisação e a liberdade. E’ coisa sobre que estão de
accordo todos os grandes pensadores das nações européas e americanas – a
inaptidão do clero romanista em geral para estimular os povos no caminho do
progresso social, principalmente no que diz respeito ao aperfeiçoamento das
FONSECA, Anselmo da. Op. cit. p.7
Idem, pp. 26-28
19 dem, p. 130
17
18
56
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
liberdades. Quanto mais o romanismo dominar em sociedade, tanto menos ella será
liberal e progressista.20
Na província do Grão-Pará, tais obras foram recebidas na forma de
apropriação do discurso contido em suas páginas. Foram feitas com o objetivo
de engrossar o debate entre ideologias políticas antagônicas, fruto dos embates
travadas no interior da sociedade paraense entre liberais e ultramontanos no
segundo quartel do século XIX. Segundo Bezerra Neto, tais obras causaram
polêmicas no Pará, o que pode ser percebido na leitura dos jornais daquele
período, atentando para as discussões travadas entre os redatores de jornais
rivais, como o Diário de Notícias e o Diário do Grão-Pará. O primeiro sendo de
caráter abolicionista e o segundo de caráter conservador. Ou seja, é perceptível
nas acusações feitas a seguir pelo jornal abolicionista, as influências de Anselmo
da Fonseca na fermentação das críticas à Igreja, pois no artigo denominado
“Aos Reverendos do Grão-Pará”, tais acusações, baseavam-se na obra A
escravidão, o clero e o abolicionismo
Nunca nos doem as mãos na tarefa de fazermos esquentar as bochechas dos
reverendíssimos escriptores do decano, que, sem mais nem menos, passam
papeletas de ignorantes e palhaço aos que lhe estão muito acima, quando elles é que
são irrisórios palhaços e ignorantes mais deploráveis. È opinião geral que o clero
brazileiro, nesta luta do abolicionismo contra o escravismo, nada tem feito em
abono dos míseros cativos; pelo contrário, muitas vezes tem-se posto ao lado dos
senhores. Isto em regra geral, assim como também em regra nunca representou no
paiz um papel importante, nem sob o ponto de vista intellectual, nem sob o moral.
Em these é isto que o illustre escriptor Anselmo da Fonseca, em um volume, de
mais de setecentas páginas, desenvolve e demonstra cathegoricamente com a
evidência dos factos de todos os tempos21.
Fica claro com o trecho acima que os articulistas do Diário de Notícias
criticavam os clérigos pertencentes à redação do periódico Diário do Grão-Pará,
acusando-os de “gaiatos” e “ignorantes”, pois, “querendo provar que o clero é
abolicionista, contra todos os factos que provam o contrário,” não aceitavam a
tese desse escritor pernambucano de que a Igreja Católica colaborou com a
escravidão, o que fazia com que os colunistas do periódico conservador
atirassem “ao mesmo tempo meia dúzia de desafôros ao illustrado Dr. Anselmo
da Fonseca, escriptor profundo, erudito e conscencioso” 22.
Idem, p. 139
Diário de Notícias, 07 de abril de 1888. [Nota do autor, pp. 22-23]
22 Cf. Diário de Notícias, 06 de abril de 1888. [Nota do autor p.21]
20
21
57
Intelectuais e discurso
Joaquim Nabuco e Anselmo da Fonseca ofereceram às gerações futuras a
forma pelo qual os mesmos deveriam ser entendidos historicamente,
conseguindo fazer de suas memórias e daqueles que a compartilhavam-na como
se fosse a única possível, adquirindo, portanto, status de verdade histórica. A
partir das obras de Nabuco e Anselmo, muitos historiadore compreenderam a
escravidão e a abolição nos termos colocados por estes abolicionistas,
“transformando o que era discurso contra a escravidão e, portanto, leituras da
mesma, ainda que não inverídico, em sua explicação histórica”23. Ou seja,
Nabuco e Anselmo se tornam balisas de trabalhos que serão inscritos um século
depois por Evaristo de Moraes24, Mário Maestri25, João Santos26, José Beozzo,
Eduardo Hoonaert, Riolando Azzi, entre outros.
Segundo Maestri em “A cruz e a senzala: a Igreja no Brasil escravista”, a
“Igreja Católica jamais entrou em contradição com a escravidão”.27 Seus
trabalhos estão inseridos em argumentos e justificativas para provar que a Igreja,
desde a Antiguidade foi a favor da escravidão, sempre fazendo largo uso dos
escravos que possuia. José Oscar Beozzo bebe da mesma fonte quando de seu
trabalho “A Igreja e a escravidão” afirma que “Não se pode negar que a Igreja
deixou de agregar-se com todas as forças ao movimento abolicionista e que só
lhe emprestou oficialmente sua voz em meados de 1887”28. Neste mesmo
trabalho de Beozzo podemos perceber claramente a influência das ideias de
Joaquim Nabuco, como um dos motes de argumentação da sua tese quando faz
citação das frases do autor pernambucano, como por exemplo: “Eu tinha
sempre lastimado a neutralidade do clero perante a escravidão, o indiferentismo
do seu contato com ela.”29 Na mesma linha de crítica à omissão do poder
BEZERRA NETO, J. M. Op. cit. pp.344-345;350
Mais especificamente a obra a que me refiro é: MORAES, Evaristo de. A campanha
abolicionista (1879-1888). Brasília: Editora da UNB, 1986
25 MAESTRI, Mário. A Cruz e a Senzala: A Igreja no Brasil Escravista. In: Leitura, São
Paulo, vol.6, março de 1988. E também; MAESTRI, Mário. O cristianismo foi alguma
vez
revolucionário?
In:
Mídia
Independente: http://midiaindependente.org/pt/blue/2002/06/28144.shtml Junho
de 2002. Além de muitas outras obras sobre este tema, mas, não cabe aqui citar todas
pelos limites desse plano e porque não será necessário nesse momento.
26 SANTOS, João. A Romanização da Igreja Católica na Amazônia (1840-1880), In:
Hoonaert, Eduardo (org.). História da Igreja na Amazônia: ensaios de interpretação a
partir do povo, 4ª edição, Editora: Vozes, 1994.
27 MAESTRI, Mário. Op. cit., p. 10.
28 BEOZZO, José Oscar. “A Igreja e a escravidão”. In: História da Igreja no Brasil: ensaio
de interpretação a partir do povo. Petrópolis, Vozes, 1992. Tomo II, 3ª Ed. p. 279.
29 NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Coleção Documentos Brasileiros, n. 90. Rio de
Janeiro. José Olímpio, 1957. Apud. Ibdem, p 278.
23
24
58
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
eclesiástico, a historiografia amazônica também envereda por esse caminho,
com o trabalho de João Santos, “A romanização da Igreja Católica na Amazônia
(1840-1880)”, onde afirma que assim como o bispo D. Afonso Torres, o então
bispo D. Macedo Costa silenciara diante da escravidão africana, não tomando
nem uma atitude que fosse de encontro com o sistema escravista, e afirma ainda
que esse “silêncio” por parte do bispo deve-se ao fato de muitos padres
exercerem o papel de “senhores de escravos”, tendo em seu seminário
diocesano a presença de negros escravos trabalhando como domésticos. 30
A construção de tal discurso de omissão do catolicismo na Questão Servil
acaba por lançar uma “névoa”, que dificulta a percepção que para além da
instituição, parte do clero seja ultramontano ou não, teve notória participação e
engajamento nas lutas contra a escravidão na Província do Grão-Pará e em
outras partes do Brasil.
Podemos afirmar que as obras de Joaquim Nabuco e José Anselmo da
Fonseca, contribuíram para a construção de uma memória abolicionista
sustentada no corolário liberal, portanto adversa ao clero, sobre a qual foram
incorporadas pela historiografia geral da escravidão. Resultando em teses de
envergadura em todo o país, mesmo que passados cem anos daquelas primeiras
publicações. O que se percebe, portanto, é uma constituição e certa
ideologização da relação da Igreja com o escravismo e a campanha abolicionista,
tanto no Brasil como na província do Grão-Pará no final dos Oitocentos.
30
SANTOS, João. Op. cit., p.316.
59
Intelectuais e discurso
A HISTÓRIA PROFISSIONAL: APONTAMENTOS PARA
UMA ANÁLISE DA HISTORIOGRAFIA MARANHENSE
DO FINAL DO SÉCULO XX
João Batista Bitencourt1
Resumo
A presente comunicação busca arrolar apontamentos para uma análise da
historiografia maranhense do final do século XX, quando se observa a
realização de estudos avançados no campo de saber por profissionais que
atuavam nas universidades do Estado. Entre 1982 e 1999 foram concluídas
nove dissertações de mestrado e uma tese de doutorado. Esta produção de
cunho profissional demarcou uma alteração em relação à historiografia
precedente, levando a algumas inovações historiográficas que, entre outras
questões, destaca-se a diversificação temática e a renovação teórica.
A história maranhense, embora tenha espaços “autorizados” de produção,
como o Instituto de História e Geografia do Maranhão e os Departamentos de
História das Universidades, federal e estadual, é em geral observada no âmbito
global da produção intelectual do estado que, deve-se salientar, é marcadamente
tocada pelo que se convencionou chamar de “ideologia da decadência”. Inserida
nessa lógica sem uma análise própria, mais exclusivamente vinculada ao
caminhar do campo de saber no estado, a produção histórica é, grosso modo,
pensada em sua inserção em tal marca da criação cultural maranhense. Isto é,
não há uma observação propriamente historiográfica sobre o conjunto da
produção histórica e as análises sobre determinadas obras ou autores, partem
em geral de uma compreensão do sentido, traduza-se: como esses reproduzem
a “ideologia da decadência”. Colocada nesses termos, a percepção decorrente
leva a crer em dois tipos de história: a que confirma a tradição e a que faz a sua
crítica. Desse modo, pode-se aferir que a demarcação de transformações mais
marcantes na historiografia regional seria a inserção ou não dentro do sentido
daquela tradição, confirmando ou criticando tal marca da produção intelectual
estadual.
A “ideologia da decadência” tem sido entendida como um discurso que
emerge na primeira metade do século XIX projetando um sentimento de perda
ou passagem de uma “idade de ouro”, na qual o Maranhão teria experimentado
Doutor em História. Professor do Curso e Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Maranhão.
1
60
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
grande desenvolvimento. O tempo de glória e prosperidade que tal
discursividade lamenta o fim teria ocorrido na segunda metade do século XVIII,
como resultado da ação modernizadora do Marquês de Pombal ao instituir a
Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Surgido inicialmente das
queixas das classes econômicas e de seus representantes políticos, tal discurso
atinge a produção intelectual, se constituído em um itinerário de atraso para o
Estado no qual a própria se vê caminhando. Sob a lógica da decadência, o surto
de progresso do final do século XVIII teria fomentado uma forte atividade
intelectual quando a prosperidade já declinava. Assim, tem-se outro momento
de glória, não mais econômico e sim cultural, quando se forja a “Atenas
brasileira”, cuja figura emblemática é Gonçalves Dias. Acompanhando o ritmo
da decadência econômica segue-se à primeira geração da “Atenas” uma segunda
que já não consegue fazer do Maranhão um centro gravitacional da
intelectualidade brasileira, seus membros então abandonam a terra natal para se
projetarem nos círculos culturais da capital do Império. No limiar do século
XX, as grandes alterações na vida política e econômica nacional, com o fim do
trabalho escravo e a república, teriam se constituído no golpe de morte ao
convalescido desenvolvimento maranhense. Naquele momento a “ideologia da
decadência” é acionada a brada voz, como uma “reação” dos intelectuais que,
ao relembrarem os “bons tempos” afirmando a tradição e se firmando nela, se
articulam na intenção de um dia revivê-los. Se autodenominando os “novos
atenienses”, essa geração funda as agremiações de “saber autorizado”, como a
Academia Maranhense de Letras (1908) e o Instituto de História e Geografia
do Maranhão (1925). Essas instituições, ao que parece, sofreram alguns revezes
durante o governo Vargas e retornaram mais fortalecidas no final dos anos de
1940, já com uma nova geração de intelectuais ainda vinculados à tradição. 2
Na seara de Clio, no Maranhão, inovações de maior vulto seriam aparentes
somente com a criação do Curso de História da Universidade Federal do
Maranhão, quando historiadores profissionais se desvinculando da tradição
identitária da “Atenas” estariam aptos a formular a crítica da “ideologia da
decadência” e promover reformulações na historiografia estadual. Dito desse
modo, dois parâmetros impõem-se para pensar a história da história
maranhense no século passado: filiação à tradição e local de enunciação
discursiva. Muito embora a questão seja aqui tratada de maneira bastante rápida,
são esses dois parâmetros que mais reluzem. Elementos de grande importância
em uma análise historiográfica, é lúcido contudo, pensar que tais parâmetros
não sejam capazes de dar conta das complexidades que envolveram a trajetória
SILVA, Ana Ládia Conceição. Falas de decadência, moralidade e ordem: a “História do
Maranhão” de Mario Martins Meireles. São Paulo. Dissertação (Mestrado em História
Social) USP, 2008.
2
61
Intelectuais e discurso
da escrita da história no Maranhão do século XX. Basta lembrar, por exemplo,
que Mario Martins Meireles, historiador de grande reconhecimento da geração
que ascendeu no final do Estado Novo, era discípulo de Jerônimo José de
Viveiros e, tal como seu mestre, foi membro da AML, do IHGM e defensor da
tradição. Porém, seu trabalho de maior envergadura é uma obra de síntese que
faz sua produção histórica diferenciar-se da de Viveiros. Pode-se lembrar
igualmente que o Curso de História da UFMA é proveniente da Faculdade de
Filosofia, esta criada em 1952 por meio de um movimento no qual a AML teve
destacada atuação. Quando da federalização (1966) o corpo docente
remanescente da antiga Faculdade de Filosofia, cujos membros em grande
medida eram vinculados às instituições guardiãs da tradição, permaneceu.
Somente na década de 1980 o Curso de História da UFMA vivenciou uma
renovação de maior densidade, com o investimento na capacitação e titulação
dos professores. Tal profissionalização do ofício no âmbito estadual ganhou
reforço com a criação do curso de História da Universidade Estadual do
Maranhão, na década de 1990.3
As transformações e permanências acima lembradas fazem com que se
apresente como um problema de estudo para a história maranhense seu próprio
desenvolvimento no desenrolar da história vivida no século XX.
A história desde sua profissionalização no século XIX, quando se constituiu
como campo de saber institucionalizado, tem apresentado inúmeras inovações:
surgem escolas, arcabouços teóricos, métodos e conceitos no seu caminhar.
Aparecem novos problemas, novas abordagens, novos objetos, como lembra o
título da coletânea organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora nos anos de
1970 para demarcar o aparecimento de uma “nova história”.4 Tais
desdobramentos, associados a uma série de outras implicações do presente, do
momento da escrita, interferem na representação do passado e na eleição de
temas. A perspectiva histórica resultante do alinhamento com determinada
matriz historiográfica, ou teoria de análise, é então um definidor do padrão
narrativo, do uso e tratamento dado às fontes, da idéia de realidade histórica,
etc., pois como disciplina a história constituiu regras, métodos, conceitos;
maneiras de fazer próprias do campo de saber. Essas lógicas e práticas da
história, que são mutáveis com escolas e arsenais teóricos que se transformam
no tempo, implicam em alterações na compreensão e representação do passado
e cabe ao historiador conhecê-las e analisá-las. Ou seja, a história se tornou
objeto de estudo da própria história. Na abertura da obra História e memória,
BITENCOURT, João Batista e GALVES, Marcelo Cheche (Orgs) Historiografia
maranhense: dez ensaios sobre historiadores e seus tempos. São Luís: Café & Lapis; Ed.
UEMA, 2014. P. 11.
4 LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Org.). História: novas abordagens. Rio de janeiro.
F. Alves, 1976.
3
62
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Jacques Le Goff apresenta seis problemas para o conceito de história, o
primeiro deles diz respeito justamente a essa relação entre os acontecimentos
pretéritos e o arsenal analítico que os aborda. Assinala o historiador:
que relações existem entre a história vivida, a história ‘natural’, senão ‘objetiva’, das
sociedades humanas, e o esforço científico para descrever, pensar e explicar esta
evolução, a ciência histórica? O afastamento de ambas tem, em especial, permitido
a existência de uma disciplina ambígua: a filosofia da história. Desde o início do
século, e sobretudo nos últimos vinte anos, vem se desenvolvendo um ramo da
ciência histórica que estuda a evolução da própria ciência histórica no interior do
desenvolvimento histórico global: a historiografia, ou história da história.5
O século XIX é o momento em que ocorre na Europa a profissionalização
da história, se estabelece o campo de conhecimento que se institucionaliza. A
disciplina história resulta de um consenso de comunidade, da consciência dos
que fazem história de que no que fazem compartilham de certo domínio, com
determinadas práticas, métodos e fronteiras que os separam de outros. Definir
o papel, a função e os critérios do historiador, possibilitando a autonomia como
campo intelectual e acadêmico ao estabelecer o que é e o que não é história,
passou pela criação de rigorosos critérios de produção, uma profissionalização
da história que decretava o fim do tempo de aventuras e de produções aleatórias
de diferentes pesquisadores com seus próprios direcionamentos. Regras
metodológicas passaram a traçar os caminhos da construção histórica,
delimitando um campo de ação do historiador e sua relação com os demais
ramos das ciências sociais. Constituía-se uma comunidade de ofício que passou
a trabalhar para sua afirmação, definindo um domínio e uma congregação de
iguais que julgava se certa produção estava ou não de acordo com as regras,
práticas, métodos, objetos. Em uma palavra, se era história. 6
Com a oficialização da história, processo observado mais claramente entre
os franceses, com a afirmação do trabalho de arquivo, da referência às fontes, e
da organização da produção que caracterizam a escola Metódica, vulgarmente
conhecida como positivista,7 a boa forma da arte de contar dá lugar ao peso da
mensagem passada, impondo-se a ideia de verdadeiro ou falso e, com isso, a
relevância das fontes (documentos, destaque aos escritos e nesses a validade dos
oficiais) e do método para chegar à verdade.8 A essa escola atribui-se,
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 3ª ed. Campinas: UNICAMP, 1994. P. 7.
REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989. P. 13-41.
7 BOURDÉ, Guy e MARTIN, Hervé. Les écoles historiques. Paris: Seuil, 1983. P. 137-169.
8 REVEL, Jacques. História e Ciências Sociais: uma confrontação instável. In: BOUTIER,
Jean e JULIA, Dominique (Orgs.) Passados recompostos: campos e canteiros da
história. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1998. P. 79-90.
5
6
63
Intelectuais e discurso
principalmente à luz da crítica da sociologia durkheimiana que via os
historiadores com desprezo, o apego à política, contada através de nomes
próprios e fatos isolados, e a falta de teoria e análise conjuntural, apenas uma
narrativa descritiva beirando uma compilação anedótica de curiosidades.
François Simiand, por exemplo, apontou e atacou “os ídolos da tribo dos
historiadores”: o apego aos fatos políticos; o peso dos indivíduos, com ênfase
nos chamados grandes homens; e a prisão cronológica, com a busca das
origens.9
Do final do século XIX com a oficialização da história pelos metódicos até
atualidade, as transformações foram muitas. Pode se conferir na escola
Metódica o início de uma vasta história da história na época contemporânea
cujas inovações passam, entre outras influências como a micro história italiana,
pelo envolvimento com materialismo histórico e dialético, o que se poderia,
grosso modo, chamar de uma escola marxista e sua renovação vinda
principalmente dos historiadores ingleses ligados à história social, e a escola dos
Annales, constituída a partir da revista criada por Marc Bloch e Lucien Febvre,
e suas sucessivas gerações. A história no século XX, mesmo perdurando com
bastante força os modelos do século anterior, dos quais a escola Metódica é
emblema, passou por grandes transformações e experimentou nas últimas
décadas novas possibilidades ao adentrar ao campo da cultura. Assim a escrita
da história muito se renovou com o desenrolar da disciplina, dessas inovações
emergiu o interesse em estudar o seu próprio movimento.
No Brasil, a história acadêmica teve seu início com a criação da Faculdade
de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 1934. Costuma-se destacar deste
momento inicial a influência da missão francesa, em especial a atuação de
Fernand Braudel. Embora se afirme que as chamadas grandes teses sobre a
história do país tenham surgido fora do âmbito universitário, em referência aos
trabalhos de Gilberto Freire, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior
(respectivamente, Casa grande e senzala, Raízes do Brasil e Formação do Brasil
contemporâneo), a historiografia nacional da segunda metade do século XX
acompanhou as tendências mundiais.
No Maranhão, últimas décadas do século XX, o historiadores acadêmicos
encontraram melhores condições para dialogar com seus pares em âmbito
nacional, na medida em que realizaram cursos de formação avançada em outros
centros. Procedimento que alterou os caminhos da produção histórica local, até
então, em grande medida, fruto de atividades diletantes sem grande rigor
metodólogico ou sem acompanhar os avanços da disciplina resultando em uma
produção bastante localista e sem desdobramentos teóricos de maior densidade.
BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989.
São Paulo: UNESP, 1991. P. 21.
9
64
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Assim, o que se chama de historiografia profissional maranhense são, então,
estudos históricos – dissertações de mestrado e teses de doutorado – resultantes
da titulação de pesquisadores vinculados às universidades. Entre 1982 e 1999
observou-se a conclusão dos 10 primeiros trabalhos deste gênero, sendo que
apenas um destes foi um estudo de doutorado.
Porém, mesmo realizando trabalhos de história, nem todos os profissionais
realizaram seus mestrados em programas de pós-graduação em história, duas
das dissertações foram defendidas em programa de mestrado em educação, as
de Maria do Socorro Coelho Cabral e Maria de Lourdes Lauande Lacroix.
Quase todos os profissionais eram ligados a Universidade Federal do Maranhão,
apenas um deles, Carlos Alberto Ximendes, tinha vínculo com a Universidade
Estadual do Maranhão. Boa parte desses profissionais buscaram formação
avançada no Rio de Janeiro, seis dos dez trabalhos foram defendidos em
programas de pós-graduação daquele Estado, com predominância para o
programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense,
com quatro defesas, os demais foram realizados em programas de São Paulo,
dois, e Pernambuco, dois. Constata-se um número não muito expressivo de
trabalhos, porém deve-se salienter que as duas últimas décadas do século XX
foi o momento inicial de titulação dos profissionais da história do Estado e,
igualmente, que o curso de História da UEMA foi criado apenas na década
de1990.
No que se refere ao período em que se detem os estudos, percebe-se que há
um predomínio de estudos situados no Império. São cinco trabalhos que estão
cronologicamente no período imperial, três no período colonial e dois no
período republicano. Sobre as temáticas abordadas nota-se temas muito
variados, apenas dois trabalhos versam sobre um mesmo tema, educação, que
são justamente os dois trabalhos defendidos em programa de pós-graduação em
educação, nos demais os temas não se repetem. Tem-se, além dos dois sobre
educação, trabalhos sobre os seguintes temas: Balaiada, Independência,
escravidão, colonização, economia, jesuítas, serviços urbanos e operariado
feminino.
Pede então pensar que, no período em questão, ocorreu uma passagem de
uma história feita por o que se pode chamar de “homens de letras”, eruditos
autodidatas ou historiadores diletantes, para profissionais com formação e
estudos avançados na área de história. A historiografia profissional, desta forma,
representou um deslocamento do “lugar” de produção da história maranhense.
Até as duas últimas décadas do século XX o Instituto Histórico e Geográfico
do Maranhão e a Academia Maranhense de Letras representavam o espaço
“autorizado” da história, esse espaço com a historiografia profissional passou a
ser as Universidades. Tal mudança levou a algumas inovações historiográficas
65
Intelectuais e discurso
que, em uma rápida comparação com a historiografia precedente, pode-se
destacar.
A partir da década de 1960 tornou-se mais visibilizada uma história de
caráter de síntese globalizante, ganhou destaque uma história geral do Maranhão
que se desdobrou em produções com o mesmo perfil sobre municípios, este
tipo de produção apresenta uma narrativa bastante factual. Assim, a
historiografia profissional surgiu com a marca da diversificação temática e da
renovação teórica. As produções do final do século abordam temas específicos,
trabalhados a partir de formulações teóricas com problematizações. Embora
ainda algumas vezes tentando abarcar todo um processo que envolve o objeto
de estudo, porém não mais de cunho factual e sim de cunho analítico.
Igualmente se diferencia da historiografia que vigorava até então por ter um
modo de explicação histórica pelos parâmetros da história econômica e social,
já que anteriormente era predominante o modo de explicação pela política.
Entre os 10 trabalhos acadêmicos do período encontra-se a primeira tese de
doutorado em história defendida por um historiador maranhense. Intitulada “A
colonização do Maranhão”, a tese de Maria do Socorro Coelho Cabral, sob a
orientação de Raquel Glezer, foi defendida em 1992 no Programa de PósGraduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. No mesmo ano de defesa o estudo de
Cabral foi publicado pelo Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado –
SIOGE, com o título “Caminhos do gado: conquista e ocupação do Sul do
Maranhão”.
Nascida no município de Balsas, Maranhão, em 04 de julho de 1946, Cabral
estudou em Belo Horizonte, Minas Gerais, e cursou a graduação em História
em Goiânia, Goiás. Depois de formada retornou a Balsas e posteriormente, em
1974, transferiu-se para São Luis. Naquele mesmo ano iniciou como professora
substituta no curso de História da Universidade Federal do Maranhão onde
atuou por aproximadamente 20 anos.10
Cabral, na introdução de sua tese afirma as diferenças no povoamento do
litoral e do sul (interior) do Maranhão e critica a forma como a historiografia
privilegiou a primeira destas áreas e constitui a identidade estadual a partir de
uniformizações que excluíam referências ao sertão.11 Sua tese é, então, a busca
deste passado longe do mar e, até aquele momento, ausente na história. Se essa
é uma diferença manifestada muitas outras poderão ser descortinadas por uma
análise historiográfica.
FARIA, Regina Martins de. Apresentação. Ciências Humanas em Revista. São Luís v. 4
n. 1. jun. 2006. P. 11. Disponível em http://www.pdfio.net/k-3399358.html. Acesso
em 11/11/2014.
11 CABRAL, Maria do Socorro Coelho. A colonização do Sul do Maranhão. 1992. 224 f.
Tese (Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo.
10
66
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
CIÊNCIA, TERRITÓRIO E FRONTEIRAS: EXPEDIÇÕES E
RELATOS DE VIAGEM AO RIO PURUS (1903-1905)
Nelson Sanjad1
Resumo
No início do século XX, o rio Purus era um dos menos conhecidos da bacia
amazônica, embora fosse regularmente percorrido por coletores de drogas do
sertão, caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros. Estes, embarcados em
Manaus, passaram a ocupar, no final do século XIX, uma extensa região
disputada pelo Brasil, Peru e Bolívia, e habitada por inúmeras etnias indígenas.
Somente em março de 1903 uma expedição científica adentrou o rio, enviada
pelo Museu Goeldi, no mesmo período em que o governo peruano instalava
postos militares e aduaneiros no mesmo rio e também no Juruá, ampliando os
conflitos entre seringueiros e caucheiros. Em março de 1904, uma segunda
expedição do Museu Goeldi chegava ao Purus, pouco antes de graves conflitos
armados que levaram os governos do Brasil e do Peru a assinar um acordo para
a demarcação da fronteira. Foram, então, instaladas duas comissões técnicas
binacionais, uma destinada a fazer o reconhecimento do Juruá e a outra do
Purus, até as suas cabeceiras. A exploração do Purus foi chefiada por Euclides
da Cunha e executada entre abril e dezembro de 1905. Ela resultou em um
relatório ilustrado com fotografias e mapas, publicado em 1906, mesmo ano em
que Huber lançou o mais importante entre os sete trabalhos científicos
publicados pelos pesquisadores do Museu Goeldi sobre o rio Purus. Apresento
aqui uma análise comparada do relatório de Euclides da Cunha, e de outros
escritos de sua autoria sobre o Purus e a Amazônia, e os trabalhos de Jacques
Huber, particularmente os que analisavam a geomorfologia e a fitogeografia do
vale do Purus e do baixo Amazonas. Creio ser possível estabelecer relações e
aproximações entre esses autores, uma vez que o próprio Euclides reconheceu
a influência de Huber na construção de um olhar ou de uma percepção do
mundo amazônico, mediada pela ciência, após encontrar pessoalmente com o
botânico em Belém, em 1905. Cabe analisar como essas intertextualidades
contribuíram para a construção de relatos edênicos sobre a região, tal como o
fez Euclides, e como estimularam a intervenção política na região com fins de
exploração ou conservação de recursos naturais.
Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI. Programa de Pós-Graduação em
História/UFPA.
1
67
Intelectuais e discurso
Uma das tendências mais interessantes na história da ciência é a relação entre
espaço e conhecimento, isto é, o estudo do conhecimento científico no local
onde ele floresce. A literatura anglo-saxã tem denominado essa linha de
pesquisa como geografia histórica da ciência. Recusando uma concepção de
ciência como conhecimento sem-lugar ou des-locado, David Livingstone a
definiu como “uma formação cultural, definida por uma ampla rede de relações
sociais e pelo poder político, e moldada pelo ambiente local no qual seus
praticantes desempenham suas tarefas”. Steven Shapin, por sua vez, considera
a geografia como um dos fatores que podem influenciar o desenvolvimento da
ciência, assim como os valores culturais, o gênero e a identidade nacional. Mais
ainda, Shapin vê na geografia um pré-requisito necessário à existência da ciência,
tanto quanto a temporalidade e a corporalidade. Simon Naylor, finalmente,
demonstrou que uma concepção geográfica da ciência não se resume a entender
esse ramo do conhecimento de maneira espacializada, mas também que a
própria ciência pode criar espaços e lugares para suas próprias atividades.
Segundo Naylor, há três distintas maneiras de estudar a geografia da ciência: 1)
considerando as microgeografias, isto é, os espaços onde os cientistas têm
desenvolvido seu trabalho (aqui entram as etnografias de laboratórios e os
estudos institucionais); 2) considerando a ciência em seu contexto, incluindo a
cidade, a região e a nação – ou as forças políticas, religiosas, sociais, econômicas
que incentivam ou impedem o desenvolvimento da ciência em determinado
espaço-tempo; 3) considerando as “cartografias da ciência”, ou seja, não apenas
o espaço onde a ciência ocorre, e sim a maneira como a ciência produz
conhecimento sobre o espaço, reinventando-o, e como o espaço influencia a
formulação de teorias científicas.
É nesse último aspecto que quero situar minhas reflexões. O que vou
apresentar aqui são os resultados preliminares de um estudo comparado de duas
narrativas sobre determinado espaço – o rio Purus – ambas mediadas pela
ciência e conectadas pelo esforço em qualificar o mundo natural, tornando
possível o controle político desse mesmo espaço. O rio Purus tornou-se
conhecido nacionalmente no final do século XIX em razão de sua
navegabilidade (é um dos poucos rios amazônicos sem cachoeiras, navegável
em toda a sua extensão), em razão dos extensos seringais ali existentes, que
propiciaram a fixação de milhares de nordestinos fugidos da seca, e das
possibilidades de conexão, a partir de suas nascentes, com as bacias dos rios
Madeira, Juruá e Ucayalli. Esta questão, de ordem geográfica e geopolítica,
torna-se de importância capital na década de 1860. Os governos central e
provinciais preparavam-se, então, para a abertura do rio Amazonas à navegação
internacional, demandada pelos países vizinhos do Brasil e pelos países
europeus. O que estava em jogo era o acesso a uma extensa área do Peru e do
68
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Brasil, que já se sabia rica em seringa e caucho – ou seja, o controle e a
exploração desses recursos.
Naquele momento, destaca-se a atuação de Manuel Urbano da Encarnação,
caboclo de conhecimentos práticos, considerado o melhor conhecedor do rio,
reconhecido líder dos moradores, capaz de intermediar as relações entre o
poder constituído e as populações indígenas. Capaz, inclusive, de definir o local
onde as povoações deveriam ser criadas pelos imigrantes recém-chegados. Em
1861, Manual Urbano foi comissionado pela Província do Amazonas para
proceder a um levantamento geográfico, solucionando dúvidas existentes sobre
varadouros que ligavam o Purus e o Juruá. No ano seguinte, o engenheiro João
Martins da Silva Coutinho, também comissionado pela província e
acompanhado de Manuel Urbano, percorreu o mesmo rio, explorando seu
potencial como via de circulação. João Martins produziu um relatório de grande
utilidade para a diplomacia brasileira no momento em que esta lidava com
questões fronteiriças.
Assim que a bacia do Amazonas foi aberta às nações amigas, a Royal
Geographic Society enviou um explorador para localizar o divisor de águas de
três grandes tributários, o Madeira, o Purus e o Juruá. Sabia-se que os três rios,
e também o Ucayalli, nasciam no mesmo divisor. Era muito provável, portanto,
que houvesse conexões interiores entre essas bacias, os conhecidos varadouros,
que propiciariam o acesso mais rápido e alternativo àquela região (imaginem o
que seria acessar o Ucayalli através do Madeira, sem necessidade navegar pelo
Amazonas) e também a conexão com a bacia do Prata. William Chandless
realizou sua famosa viagem pelo Purus em 1867, tendo como guia o inestimável
Manuel Urbano. Chandless, contudo, entrou no afluente errado e não
conseguiu localizar o divisor de fundamental importância para a distinção
daquele complexo sistema hídrico. Essa questão permaneceu aberta e
inconclusa até o início do século XX. E o rio continuou como local de trânsito
da população indígena, dos coletores de drogas do sertão, de caucheiros
peruanos e seringueiros brasileiros.
Em 1903, milhares de brasileiros habitavam a calha do Purus, convivendo e
em conflito com índios e caucheiros que desciam o rio vindo do Peru. Os
povoados do Purus produziam a maior quantidade de seringa exportada pelo
Amazonas e as taxas recolhidas pelo estado eram bastante significativas. Nesse
mesmo ano, o governo peruano decidiu instalar postos militares e aduaneiros
nos rios Juruá e Purus, exigindo o recolhimento de taxas e passando a controlar
o acesso aos recursos naturais. Ampliaram-se os conflitos entre seringueiros e
caucheiros.
Em março, chega ao rio uma primeira expedição científica do Museu Goeldi,
na qual embarcaram Andreas Goeldi, inspetor do horto botânico e primo do
então diretor, Emílio Goeldi, dois preparadores e o fotógrafo Ernst Lohse. Eles
69
Intelectuais e discurso
coletam principalmente mamíferos, aves e plantas. Lohse faz, provavelmente, o
primeiro levantamento fotográfico do rio, de rara sensibilidade, registrando a
vegetação e a paisagem, os povoados, os habitantes, as atividades econômicas,
as condições de navegação e as transformações ambientais já visíveis naquela
época, como o desmatamento, a abertura de clareiras na floresta, a introdução
do gado e a plantação de roças.
Em março de 1904, logo após graves conflitos armados, uma segunda
expedição do Museu Goeldi adentrou o Purus, desta vez com a participação do
botânico Jacques Huber e novamente de Andreas Goeldi. Novas coletas,
fotografias e observações foram realizadas, sobretudo na confluência do rio
Acre. Retornaram em maio, mês em que os governos do Brasil e do Peru
assinaram um acordo para a demarcação da fronteira, do qual fazia parte a
instalação de duas comissões técnicas binacionais, uma destinada a fazer o
reconhecimento do Juruá e a outra do Purus, até as suas cabeceiras.
Euclides da Cunha foi nomeado para chefiar a comissão do Purus. Ao rumar
para Manaus, o barco parou no porto de Belém e Euclides foi ter com Emílio
Goeldi e Jacques Huber no Museu Paraense. Segundo seu próprio relato, ali
passou duas horas inolvidáveis, em companhia, sobretudo, de Huber, a quem
Euclides não poupou elogios. Retornando ao barco, a comissão seguiu viagem.
A expedição ao Purus foi executada entre abril e dezembro de 1905. Ela
resultou em um relatório encaminhado ao governo brasileiro, de autoria de
Euclides e publicado pela Imprensa Nacional em 1906, com tabelas e uma
valiosa carta das nascentes do Purus e dos varadouros que as ligam com as do
Madre de Dios (afluente do Madeira) e do Ucayalli – carta esta que respondia a
décadas de dúvidas sobre a formação desses rios. Nesse mesmo ano, 1906, em
março, Jacques Huber publica em francês “A vegetação do vale do rio Purus”,
no Bulletin de l’Herbier Boissier, revista suíça, com fotografias e desenhos. Esse
é o mais importante entre os sete trabalhos científicos publicados pelos
pesquisadores do Museu Goeldi sobre o rio Purus, entre 1904 e 1910. Temos,
portanto, no mesmo ano, dois relatos, duas visões sobre o rio, ambas mediadas
pela ciência, como já mencionei, uma originada das observações de um
engenheiro em missão diplomática, outra originada de um botânico com
sensibilidade para perceber o dinamismo da paisagem.
Contudo, antes de fazer algumas reflexões sobre esses relatos, cabe um
preâmbulo da maior importância: Euclides da Cunha, em célebre passagem,
confessou-se decepcionado com a monotonia da paisagem amazônica. Ao
adentrar o rio Pará, não conseguiu ver senão a imensidão do espaço, não
encontrando em si mesmo as emoções que lera em relatos de alguns naturalistas
viajantes. Essa sensação só teve fim depois do encontro com Goeldi e Huber.
Euclides afirmou ter lido durante a noite uma monografia de Huber, que lhe
70
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
preparou a visão para o que se descortinaria no dia seguinte, ao entrar no rio
Amazonas.
Esta passagem é referida pelos estudiosos e comentadores da obra
euclidiana, mas não conheço um único trabalho que tenha investigado qual foi
a monografia que Euclides leu, nem o porquê do momento epifânico que lhe
sucedeu ao amanhecer do dia seguinte. José Carlos Barreto de Santana faz a
pergunta, lembrando que a obra deve ter sido capital para a percepção do espaço
amazônico, mas não avança na resposta. Outros estudiosos, sobretudo os que
se preocuparam com o conteúdo científico da obra de Euclides, tampouco
chegaram perto de uma possível formulação.
Ao investigar a obra de Huber, deparei-me com o texto “Contribuição à
geografia física dos furos de Breves e da parte ocidental de Marajó”, publicado
em 1902 no Boletim do Museu Paraense. Acredito que tenha sido esta a
monografia lida por Euclides, por duas razões: o fato de ser o único trabalho
até então publicado por Huber que teria um interesse direto para Euclides; e o
fato do conteúdo deste artigo ter sido apropriado por Euclides e reutilizado em
vários de seus escritos amazônicos. Os comentadores de Euclides, como
Walnice Galvão, Nicolau Sevcenko, Roberto Ventura, Luiz Costa Lima e o
próprio Santana já haviam chamado a atenção para essa característica: Euclides
utilizou muitas ideias e até mesmo expressões e trechos de relatos de viagem,
cartas e textos científicos, sem dar os créditos para os respectivos autores. Assim
procedeu no livro “Os Sertões” e também nos escritos amazônicos. Entre estes,
o principal exemplo dado por Santana pode ser observado no seguinte trecho:
Infelizmente, a natureza da nossa missão, senão a nossa própria incompetência, não
nos permitiu indagações geognósticas capazes de elucidarem melhor o assunto, de
acordo com a íntima relação entre as formas topográficas e a estrutura dos terrenos.
Apenas conseguimos notar como fator preponderante desde a confluência do
Solimões, até a foz do Chandless, o mesmo grés limonítico que sob o nome
cientificamente consagrado de Parasandstein forma a base dos terrenos amazônicos.
É a mesma rocha, já finamente granulada, já com seixos conglomerados pelo óxido
de ferro – e uma disposição estratigráfica idêntica. E, como ela, francamente
sedimentária, se originou no seio de vastas massas de água doce, conclui-se com
segurança que o Purus até quase às suas cabeceiras, a exemplo da maioria dos
tributários do Amazonas, se traduz como um resto de amplíssimo lago que na época
terciária, após a sublevação dos Andes, cobria tão desmedidas superfícies.
Este trecho, publicado nas páginas 45 e 46 da quarta parte do “Relatório da
Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus”, foi
parafraseado de uma carta que Euclides recebeu de Emilio Goeldi, datada de
28 de outubro de 1905 e enviada em resposta a um pedido do engenheiro.
Euclides pedira ao diretor do Museu Paraense ajuda na identificação e
71
Intelectuais e discurso
interpretação das amostras de solo coletadas na calha do Purus. Goeldi, em
determinado trecho, escreveu:
Impressiona-me principalmente de encontrar lá, como fator geológico integrante de
feição predominante, outra vez o elemento, como aqui no baixo Amazonas – o grés
limonítico, o “Pará-Sandstein”, como ele ficou batizado pelos nossos geologistas no
Museu. É a mesma pedra, ora com grão de areia fina, ora com seixos pequenos e
maiores, reunidos em conglomerado, ligado e cimentado por óxido de ferro, que na
superfície e pela ação da água e dos atmosféricos se transforma em limonite
(“Brauneisen”). Fica agora por saber se a disposição estratigráfica lá em cima é a
mesma, como aqui no Pará. (...)
O “grés limonítico” deve a sua origem / tanto quanto me lembro das minhas
conversas com os nossos geologistas / a vastas inundações por dilatado tempo, de
água doce. Evidentemente sofreu quase por toda a parte numerosas transformações,
até que se efetuasse o peneiramento atualmente visível quanto ao calibre dos
elementos constituintes nos perfis e cortes que por aqui se podem examinar.
Quanto à monografia de Huber, é o resultado de uma expedição realizada
em fevereiro e março de 1900 em companhia de Karl von Kraatz-Koschlau e
Gottfried Hagmann. Posicionando-se contra os autores que viram no
soerguimento da ilha de Marajó o fenômeno que dividiu a foz do Amazonas,
um braço seguindo para o norte e outro indo encontrar as águas do Tocantins
para formar o rio Pará, Huber defende uma hipótese formulada por Herbert
Smith na década de 1870, segundo a qual a parte sul do arquipélago de Marajó
teria sido formada pela deposição de sedimentos carreados pela correnteza do
Amazonas, pelas marés diárias e pelos fluxos de água sazonais. Faltava
descrever, segundo Huber, o complexo sistema hídrico da região, identificando
os principais canais e os divisores de águas. Faltava, ainda, descrever os
processos ecológicos responsáveis pela formação das ilhas – as tidelowlands de
Herbert Smith – e identificar a linha que distinguia a geografia botânica da foz
e do baixo curso do rio.
É isto o que Huber faz nas 52 páginas do trabalho, ilustrado com dois mapas
e cinco fotografias. Localiza os principais canais e seus tributários, bem como
os divisores de águas, chamados de zonas de neutralização dos fluxos e refluxos.
Em seguida, propõe duas categorias de ilhas, conforme a origem geológica: as
mais antigas, cuja constituição era semelhante ao litoral oceânico do Pará, e as
recentes, formadas por aluviões – “e que ainda se formam sob os nossos olhos”.
Finalmente, Huber descreve pormenorizadamente o papel da vegetação na
formação e consolidação das ilhas, desde as colônias pioneiras de aningas ou
aturiás, seguidas da instalação e expansão do mangal e finalmente o
desenvolvimento da vegetação arbustiva, com destaque para o papel das
palmeiras na fisionomia da paisagem. Huber distingue, ainda, a vegetação dos
72
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
furos daquela que era possível observar nas margens do baixo Amazonas,
caracterizando, dessa maneira, ecossistemas em todo distintos.
Euclides da Cunha reproduziu diversas vezes essas informações. O melhor
exemplo pode ser lido no discurso de recepção na Academia Brasileira de
Letras, incluído no livro “Contrastes e confrontos” em 1907. As três primeiras
páginas contêm paráfrases e elaborações retóricas baseadas no trabalho de
Huber, incluindo a reprodução quase literal da forma como Huber percebeu a
paisagem. Também em “Terra sem História”, publicado postumamente em
1909, Euclides faz várias referências ao texto de Huber, chegando a tomar os
furos como metáforas da incompletude, assim como a vegetação simbolizaria a
“imperfeita grandeza”.
O que quero destacar não é apenas o uso de informações sobre a formação
das ilhas e a vegetação local, e sim a imagem da Amazônia como um mundo em
formação, inacabado, jovem, a página do Gênesis que faltava escrever. Esta
mesma imagem, mais austera e desprovida do encanto literário, está presente
também no texto de Huber, que destaca por diversas vezes o dinamismo da
geologia local, a ação transformadora das águas fluviais e do clima, o papel da
vegetação na composição da paisagem, e sobretudo a inconstância e
irregularidade da topografia, que se transformava a cada enchente, com ilhas
aparecendo e desaparecendo, com cursos d’água sendo modificados, com
sedimentos transportados de uma praia a outra, fazendo com que mapas e
roteiros logo ficassem desatualizados. Movimento e transformação, construção
e ruínas são topos articulados por Euclides para construir uma chave
interpretativa da paisagem e da sociedade amazônica – e parece, um minha
opinião, ser este o quadro ou a moldura com a qual o escritor passa a ver a
paisagem quando acorda naquele glorious day, exatamente quando seu barco
singrava os furos de Breves em direção ao Amazonas. A monótona paisagem
tornou-se compreensível em seus processos ecológicos – e foi recriada pelo
escritor.
A proximidade entre o discurso racional de Huber e a retórica literária de
Euclides é impressionante. Ela volta a aparecer nos relatos sobre o rio Purus,
escritos de maneira independente e publicados no mesmo ano. O relatório de
Euclides foi organizado em sete partes: a organização da comissão; as instruções
de viagem; o diário da viagem; a descrição da paisagem, da rede hidrográfica e
das coordenadas geográficas; o clima; os caracteres físicos da região e os
povoadores, finalizando com a correspondência oficial anexa. Quero destacar a
refinada percepção de Euclides quanto às forças físicas que agem na
transformação da calha do rio, fazendo e refazendo as voltas sinuosas que o
caracterizam, bem como a distinção da vegetação ao longo do curso e conforme
a qualidade do terreno, não em sua composição florística (que julgava incapaz
de identificar, além de desnecessária para o relatório), e sim em sua fisionomia
73
Intelectuais e discurso
ou aspecto geral. Parece-me particularmente interessante a tentativa de justificar
as características dos grupos sociais locais a partir da distribuição geográfica de
algumas espécies: naquele rincão, Euclides observou a espacialização da
ocorrência de seringueiras e da castilloa, chegando à conclusão que a maneira
de extrair o látex e o caucho, respectivamente, havia determinado os “atributos”
das duas novas e originais sociedades que se gestavam no alto Purus. Enquanto
o caucheiro seria nômade, errante, desbravador, o seringueiro era sedentário,
preso ao local em que se fixava e teria papel superior no povoamento definitivo
da região.
Huber, por sua vez, apresenta duas características únicas do Purus: a enorme
diferença na altura das águas durante cheia e estiagem, e a excessiva sinuosidade
do rio. Ambas tinham reflexos diretos na vegetação, que Huber segue
caracterizando conforme o terreno: a várzea, com suas praias e barrancos de
vegetação completamente diferente; os lagos e igapós, originados no processo
de modificação do curso do rio, e cuja vegetação também era específica, quando
não completamente arruinada; e a terra firme, com vegetação arbustiva alta e
densa, que Huber imaginava ser o desenvolvimento de antigas várzeas ou
igapós. Huber também distingue a vegetação do baixo, médio e alto curso do
rio, chamando a atenção para a distribuição da seringueira, do caucho e de
algumas espécies de palmeiras, bambus e de Theobroma, defendendo que aquela
região provavelmente era a pátria do gênero.
A análise de Huber concorda e complementa em todos os aspectos o
relatório de Euclides. Não há dissonâncias ou contrastes. Ambos selecionaram
e observaram os mesmos fenômenos e procuraram explicá-los. Euclides
ocupou-se da geografia física, enquanto Huber a extrapolou para explicar
também a geografia botânica e caracterizar os ecossistemas locais. Mesmo sem
se considerar apto a desenvolvê-lo, Euclides reconheceu a importância desse
conhecimento, com uma finalidade: a partir da geografia botânica, queria definir
o quadro social, o comportamento dos habitantes, as possibilidades de
povoamento.
À primeira vista, poderíamos imaginar que ambos acertaram os passos que
cada um daria, mas certamente não foi isso o que aconteceu. Euclides, assim
que recebeu o trabalho de Huber, em 17 de setembro de 1906, escreveu ao
botânico a seguinte carta:
(...) envio-lhe os mais vivos agradecimentos pela remessa da sua bela monografia
(...) – que li e reli, sentindo, como brasileiro, o maior reconhecimento pelo
naturalista que com tanto brilho sabe desvendar os primores da nossa flora. Eu,
infelizmente, passei por ali, a correr e a braços com outras coisas. Vi as árvores, de
relance, na marcha fatigada das canoas. Mas do que vi, concluo que o Senhor define,
como ninguém ainda, a vegetação do grande rio. Faltou-me apenas ver, confirmada
74
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
pela sua, uma observação de conjunto, que me impressionou no altíssimo Purus (...):
uma diminuição qualquer no aspecto imponente da mata. (...) Vou mandar para a
biblioteca do Museu Goeldi o meu relatório, onde palidamente me referi àquela
flora.
Huber respondeu somente em 5 de julho de 1907, iniciando com muitos
pedidos de desculpas pela demora, justificando-a em razão de “circunstâncias
extraordinárias” (eram de fato, provocadas pela saída de Goeldi da direção do
museu). Mais adiante, Huber comenta:
Li com muito prazer o substancioso Relatório, que é um documento geográfico de
grande importância e completa em muitos pontos as realizações clássicas de
Chandless. O que me interessava principalmente era a descrição do divortium
aquarium, que levou para sempre o mito de uma cadeia de montanhas entre o
Ucayalli e as nascentes do Purus, Juruá e Javary. (...) No que tem respeito à flora do
último trecho do Purus, parece com [ilegível] que lhe seja essencial diferenciá-la da
do curso médio e inferior do rio, o que claramente está indicado pelo aparecimento
da Calliandra [ilegível], que faz prever um conjunto de espécies todo especial, que
aparece outra vez no curso médio dos afluentes ocidentais do baixo Ucayalli e do
Huallaga.
O mapa do Purus é para mim uma grande preciosidade e felizmente achei um meio
de mandar montá-lo, de forma que ele pode ser consultado com facilidade (...).
Muito me honra o conceito que V. Sa. Faz de minha modesta nota sobre a vegetação
do rio Purus.
Para finalizar, volto à cartografia da ciência mencionada por Naylor. Em
1906, o rio Purus surge recriado no discurso do diplomata-engenheiro e do
cientista, incorporado ao território nacional, objeto de intervenções
governamentais destinadas ao povoamento e à navegabilidade, espaço aberto à
coleta de fragmentos do mundo natural, ao teste de hipóteses e à formulação
de teorias científicas. Nesse sentido, as expedições do Museu Paraense e da
Comissão Mista Brasileiro-Peruana, com seus respectivos cientistas-intelectuais,
podem não apenas ser vinculadas às demandas políticas da Primeira República,
como a demarcação de fronteiras e a exploração do território, mas também a
um processo mais amplo de construção de uma imagem edênica da Amazônia,
fundamental para a própria consolidação das ciências naturais e para os projetos
de intervenção do poder político.
75
Intelectuais e discurso
FROM BASEL TO THE AMAZON: THE TRANSNATIONAL
CAREER OF JACQUES HUBER (1867-1914) AND HIS WORK ON
THE AMAZONIAN RAINFOREST
Nelson Sanjad1
Abstract
The Swiss botanist Jacques Huber is a widely recognised pioneer in Tropical
Research. His oeuvre comprises plant taxonomy, biogeography and ecology.
Before moving to Belém, in Northern Brazil, in 1895, Huber had studied in
Basel (1884-1889) and worked in Montpellier (1889-1893) and Geneva (18931895). In his research he turned from the studies on Mediterranean and Alpine
algae and lichens that he had carried out in Europe, to Amazonian plants,
especially fruit, wood and rubber trees. Although he had changed the objects of
his studies, Huber’s theoretical approach remained the same; it was strongly
linked with the plant geography and sociology developed in Basel, Montpellier
and Geneva during the last decades of the 19 th Century. Huber’s exceptional
scientific production presented in essence the first ecological gaze upon the
Amazonian Rainforest. This drew the attention of scientists from around the
world, and resulted in an extensive correspondence with colleagues in South
and North America, Europe and the Far East about the world’s biggest tropical
forest – and its biodiversity.
1. For historians of science one of the most interesting questions is: why and
how has science developed in each single context? We may find a reasonable
answer if we consider science, since its origins, as a global enterprise – or a
complex multi-node system which changes continuously through space and
time. Since the 16th Century this science-system has quickly spread throughout
the world as more and more people, objects and ideas moved around the planet,
taking root in each place, but with diverse characteristics. Social structure,
professional organizations, instruction, religion, practical problems, war, trade,
economic and political demands, environment, among others, played an
important role in shaping scientific traditions in the places where science was
developed. In other words: what are the local, national and international factors
that lead to the development – or not – of science in a specific
institution/city/country? I have asked this question to myself for over 15 years,
Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI. Programa de Pós-Graduação em
História/UFPA.
1
76
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
since my first studies on the institutionalization of natural sciences in the
Amazon in the 19th and early 20th centuries. During that period many foreign
naturalists and explorers visited the Amazon region. But the Amazon region
was also a stage and scenery for innovative scientific experiences – with local
traces.
In 1866 the Museu Paraense was founded in Belém, State of Pará, as the first
scientific institution of the Amazon. Nowadays, known as the Goeldi Museum,
it is the second largest museum of natural history in Brazil (the first is the
National Museum in Rio de Janeiro). The Goeldi Museum holds one of the
most important collections of the Neotropical world with nearly five million
specimens and artifacts. In the time between the founding moment and today,
something happened to that museum, which enabled its development and
consolidation, and actually its survival for almost a century and half in a country
with little scientific tradition: the so-called Swiss-German Years.
In 1894 the zoologist Emil Göldi, from Sankt Gallen, was hired by the
Government of the State of Pará to direct the Museu Paraense. He undertook
a complete renovation of the institution. He created a zoo-botanic park. He
reorganized the collections and exhibitions, and installed new laboratories,
created a publishing program, and defined a scientific project with international
links. Göldi also hired a good team of European scientists. The botanist Jacques
Huber, citizen of Basel, was the first to be hired in 1895. He became the closest
partner of Göldi. While the Director managed all matters concerning to
zoology, Huber was engaged with botany.
Although both professional careers were built up together, I will not give
many details about Emil Göldi. I here present something new, which, however,
emerged from my former research, and which I have summarized in two books
and articles. My current project is devoted to the professional career and oeuvre
of Jacques Huber, one of the foremost biologists involved in the study of the
Amazonian forest, and considered by many among the pioneers of South
American tropical research. Huber’s biography is to be studied not only in the
context of Brazilian-Swiss relations, but also within the wider framework of
intellectual exchanges. He was certainly one of the passeurs culturels who
contributed, by means of a transnational trajectory, to the genesis of a global
scientific culture.
My new project on Jacques Huber has been in development for two years.
Since its beginning, I have surveyed 23 archives, 6 herbaria and 2 private funds
in six countries. A set of almost 3000 letters, 100 notebooks, 500 photos, more
drawings, maps and printed texts, was put together as the source for historical
analysis. This material is directly related to Jacques Huber’s life and work – and
I am sure this is for some time to come, a treasure trove but also a challenge for
any historian.
77
Intelectuais e discurso
2. Belém was founded in 1616 as the main Portuguese colonial center in the
North of South America. Its strategic geographical position in the mouth of the
Amazon River allowed the city to control trade and military actions for the
conquest of a vast region. The immense rivers offered a wide system of natural
paths for the movement of commodities and goods from and to Belém. The
centrality of this city survived until the second half of the 19 th Century, when
rubber replaced leather as the main raw material for industries in North America
and Europe (together with iron and steel, of course). The new global powers
then controlled the financing of rubber extractivism and also the trade,
navigation, and transformation of this commodity – the so-called Black Gold –
in a myriad of further goods, instruments and equipment.
At the same time, the rubber extractivism was deeply rooted in the culture
of Amazonian people. Rubber is processed from the sap of a big tree named
seringueira or Hevea brasiliensis. The first records about rubber use by indigenous
groups date from the 18th Century. The Omagua, an early Indian nation, already
used the sap of that tree to waterproof artifacts or manufacture malleable
objects. We also have records about the Portuguese trade and small industry of
rubber, but the turning point that allowed the expansion of production and
trade of rubber was the invention of the vulcanization process by Charles
Goodyear in 1839. This improved the physical properties of rubber, specially
its resistence and impermeability.
Despite being far from the Brazilian capital, Belém became a major port and
an international trading center around 1850, providing 80% of all rubber
produced in the world. The so-called Rubber Boom led the deployment of a
modern urban infrastructure and the immigration of thousands of workers to
the extractivism, agriculture and fledgling industry. The local elites were very
concerned with their own image and started building monuments to represent
their modernity, civility, high instruction, and cosmopolitism. Among these
monuments I can show the Opera House, the Public Market and the Municipal
Palace of Belém. The other well-known city of the Amazon region, Manaus,
was also very rich, but played a significantly lesser role at the time.
The renovation of the Museu Paraense after 1894 occurred in the same
context — the Rubber Boom. Economic development and a positive valuation
of science and instruction among the local elite fostered Göldi’s plans for the
museum and also the quick expansion of the only scientific institution in the
Amazon. Göldi and his colleagues took part in a wider political program
designed to project the State of Pará in the global exchanges and were
encouraged to connect the Museu Paraense to its counterparts from abroad,
specially the academic world of Central Europe (Switzerland, Germany and
Austria). So, the Swiss-German Years in the Museu Paraense can be
78
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
characterized mainly by the strong international exchanges, the formation of
large collections and a huge scientific production, published mostly in German,
French and English by a cohesive group of researchers.
This point is important for understanding the connections that made the
Amazon an international scientific frontier. Our argument lies in the belief that
Göldi and Huber, in the political and economic frame of the Rubber Boom,
built the first significant program for the scientific knowledge of the Brazilian
Amazon, with clear goals and priorities, and mainly based on taxonomic
inventories and biogeographic, evolutionary, ecological and applied studies.
The analysis of the transnational career of Jacques Huber will permit to
deepen this program – which we should consider as an important part of the
world’s science-system construction. Many science historians have dedicated
themselves to biographies of scientists as connectors towards the analysis of
wider processes, such as the circulation of ideas, the transmission and
adaptation of institutional models and the creation of scientific networks at local
and international levels. What we propose as novel here is the leading role of
the Swiss researchers in the construction of scientific knowledge with regards
to the Amazonian region at the turn of the 19 th to the 20th century.
3. The professional trajectory of Jacques Huber should be investigated in
Switzerland, France, and Brazil. He was born as a citizen of Basel in Schleitheim,
Canton Schaffhausen, on October 13, 1867. His parents, Pfarrer Johann
Emanuel Huber and Sophie Catherine Vetter moved to the city of Schaffhausen
two years later. In this city Jacques Huber spent his school years as one of the
best pupils in his classes. He graduated in Natural History at the University of
Basel. In 1889, Huber went to Montpellier, France, where he studied with
Charles Flahault, a phytosociologist who developed fundamental concepts to
the science of Plant Ecology. Flahault founded the Institute of Botany at the
University of Montpellier in 1890.
According to the lists of foreign students at the University of Montpellier,
as compiled by Flahault, Huber studied at the Faculty of Sciences from 1890 to
1893, and was Assistant (Préparateur) in the Laboratory of the Institute of Botany
from June 1892 until he left for Geneva in 1893. In the first semester of 1893,
Huber was responsible for training the students in “Practical works” (Travaux
pratiques) at the Laboratory. He became part of the staff of the Botany course,
among well-known names: besides Flahault, I might mention Louis Planchon
and Lucien Courchet.
These years were extremely important in Jacques Huber’s professional
training. In Montpellier he acquired great experience in herborization and
laboratory work. He also started working with the new paradigm of Plant
Sociology developed by Flahault in his studies on the vegetation of
79
Intelectuais e discurso
Mediterranean region. Flahault developed the idea that vegetation responded to
three major environmental factors: climatic, edaphic, and biological. In this
sense, his major contribution was the concept of plant association – considered
as an ecological unity, i.e., a set of different species with a uniform
physiognomy, growing in common environmental conditions. According to
Flahault, many plant associations – especially the forests – are composed of
diverse strata and layers, for example, herbaceous, shrub and trees. The
physiognomy of each stratum can change during the year and is limited by the
distribution of the taxa, so plant sociologists must also consider seasonal
variations and dominant species when they determine biogeographical
territories.
This theoretical approach increased the complexity of botanical studies and,
together with physiology at the cellular level, established new branches for the
development of the natural sciences. Jacques Huber was well acquainted about
these possibilities and considered Flahault as his most important teacher — one
could also say: as his mentor. Later, Huber would apply – for the first time in
history – this new theory to the most complex plant association on the planet:
the Amazonian Rainforest. Far away from there, Flahault followed the career
of his former student, noting his main steps and personally reviewing the papers
published by Huber.
Huber developd his Doctorate Thesis in Montpellier, but presented it at the
University of Basel in 1893. The thesis is a study on endophytic and epiphytic
algae, i.e. algae that live inside or on the outside of other plants. His thesis
supervisor was Georg Klebs, teacher of Botany since 1887, and Dean between
1892 and 1893, the same period in which Huber finished his work. Klebs was
already recognized mainly as a plant physiologist, and had developed important
research on algae and the reproduction of plant cells. Later, he devoted his
attention to variations in plant growth caused by external factors, what he called
“arbitrary evolutionary change”, a concept used by Huber in his research on coevolution of ants and plants in the Amazon basin (although Huber’s studies had
focused on the development of ecological relations in time, rather than on the
cellular level).
After finishing his thesis, Huber continued working with Flahault. In a letter
to Robert Chodat, Professor at the Faculty of Sciences of the University of
Geneva, dated February 7, 1893, Flahault mentions one of his Préparateurs: “a
young Doctor from Basel, son of a Pfarrer of Schaffhausen”. This was not an
innocent comment. In that letter Flahault stated his alliance to Chodat, i.e., he
underlined the agreement between the schools of Montpellier and Geneva, with
the aim to strengthen the exchange of students and to organize joint botanical
congresses by their universities. Both, Flahault and Chodat, planned to make
their own universities the main centers of botanical training in France and
80
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Switzerland, respectively. They worked with similar themes and shared similar
ideas. This alliance allowed Jacques Huber to apply for a position of Assistant
in Geneva: in a letter dated August 9, 1893, Huber asks Chodat’s help due his
“modest situation” in France.
In the same year, Huber settled in Geneva as Assistant in the Laboratory of
Systematic Botany of the University. We found out that he was also PrivatDocent at the Faculty of Sciences from 1894 to 1895, where he taught two
courses: “Parasitisme et symbiose dans le règne végétal” and “Cytologie
végétale”. There he continued the studies initiated in Basel, on algae and lichens.
He published six papers on these researches, four of them with Chodat. He also
developed his first experiences with photography. This technology was being
rapidly absorbed by scientists and substantially expanded the capacity of
representing phenomena in science. It was, indeed, an important resource for
phytosociologists, so they could visually record the physiognomy of a plant
association. While watercolor and engraving remained as the ideal techniques
for taxonomic inventories, photography emerged in the late 19th Century, as the
main tool for landscape analysis.
The years between 1890 and 1895 were very important to Botany in
Switzerland. Following the creation of the Institute of Botany in Montpellier,
Chodat also founded an Institute in Geneva and joined another alliance, that
composed around the Schweizerische Botanische Gesellschaft by Eduard
Fischer in Bern, Hermann Christ in Basel, and Carl Schröter in Zürich, among
others. Due to the meetings and agreements regarding a national association of
botanists in Switzerland, Schröter met Huber – at the exact moment when Emil
Göldi was looking for a young, single and talented Doctor for the Botany
Section of the Museu Paraense. Göldi and Schröter were friends, and the latter
suggested Huber for this position. More than that: Schröter had to convince the
young Doctor to leave Geneva and move to the far-away, unknown and exotic
Amazon. When Huber finally accepted this possibility, Schröter wrote to Göldi
on the 20th of January 1895: “Viktoria!” According to Schröter, Huber was “eine
vortreffliche Acquisition”. Two months later, i.e., in March 1895, another letter
of Schröter to Göldi announced the “enthusiasm” of the young Doctor. In fact,
it seems that Schröter was anticipating the answer of Huber. Huber confirmed
his travel to Belém on May 17 only, when he wrote to Göldi about his interest
and desire to see the Amazon River.
4. Jacques Huber arrived in Belém on the 1 st of July, 1895. He found a city
under modernization, good conditions of work, and a large field of oportunities,
despite some difficulties with the cost of living and scientific facilities. At the
Museu Paraense Huber developed most of his valuable work. He extensively
inventoried the Amazonian flora, analyzed the geographic distribution of many
81
Intelectuais e discurso
tree species, described plant associations and recorded geomorphological
processes related to the vegetation development. This confirms what Huber
wrote on that letter of May 1895: his travels were concentrated in the course of
the Amazon River and in the Amazonian coast. This is a particularly interesting
area for Botanists, Zoologists and Geologists owing to its geological formation,
the dynamism of the landscape and its influence on the distribution of plants
and animals. Each travel — and he undertook about two excursions into the
virgin forest every year, a few of them led him close to the continental divide
— each such excursion resulted in works on plant diversity and, in the cases of
the Purus River, Marajó Archipelago, and Amazonian coast, also in deep
geobotanic analyzes. Besides the published works, these travels also may be
studied in the 45 field notebooks of Huber and letters posted along the trips to
Göldi and Huber’s family.
I could not start their analysis yet, but during the last year I was able to
complete the inventory of Huber’s oeuvre. The only previous attempts to
organize his complete works have been made by Gustave Beauverd in 1914 and
John Briquet in 1940. However, their published lists are incomplete and contain
some mistakes. So, we did not have a complete list – until now, 100 years after
Huber’s death. According to the data now available, Huber published 106 texts,
especially scientific articles. These works were published in 16 journals in Brazil,
Switzerland, France, Germany and the United States, which at the time meant
in four languages. Here we might highlight among these journals the “Boletim
do Museu Paraense” in Brazil, and journals based in Geneva.
Huber also published five books. The four issues (with ten plates each one)
of “Arboretum Amazonicum”, printed in Zürich and released between 1900
and 1906, were considered by experts in the history of scientific photography
among the 50 most important illustrated books of Botany published in the 19th
and early 20th Century. This series was one of the first to present high quality
photographs taken in the field to illustrate descriptions of plants and landscapes.
Because of them, Huber has a prominent place among the researchers who
innovated the scientific communication with photography. The same
innovative pattern – both scientific and graphic – can be seen in “Zwischen
Ocean und Guamá”, released in 1900, co-authored with the German geologist
Karl von Kraatz-Koschlau. This book is a remarkable effort to link botany,
ecology and geology in the Amazonian studies, at the right moment of deep
transformation in these sciences.
The only map in the list is also noteworthy. It brings together in a single
graphical part, all the knowledge available in the early 20th Century on the
geographical distribution of Amazonian rubber trees. Organized by José
Picanço Diniz and Jacques Huber, this large colorful map was presented at the
82
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
Rubber Congress of New York, in 1912. A copy translated into Portuguese was
published in the following year.
During his 19 years in Brazil, Huber gave birth and managed the botanical
garden of the Museum Paraense, assembled collections, mounted exhibitions,
lectured, wrote popular science texts and was one of the most influential
advisers to the Government of Pará on matters related to international rubber
trade. Huber was an active propagandist of Amazonian rubber in international
meetings. His ability to move between different fields – ranging from science
to diplomacy, from politics and economics to public education – reveals the
commitments, skills, professional identity and ideological alignments of this
universal scientist.
The physical and cultural environment which he found in Brazil was totally
different from that known in Switzerland and France, but even so Huber
became actively involved with the research and the administrative routine of the
Museum Paraense. His main assistant Adolf Ducke was the first to notice how
the social environment had changed the interests of Huber; originally he had
intended to study algae, mosses and lichens in the Amazon (as he did in
Europe). Huber even published a note on the diversity of saprophytes in Pará
(i.e., plants that do not have chlorophyll and take their nutrition from the soil).
But Huber then found that many of the local trees had not yet been described
by science or were wrongly classified. One can therefore say that Huber
changed his initial object of research toward higher plants, especially from the
families Leguminosae and Euphorbiaceae. Huber studied, either for personal
reasons or because of political and economic demands, the rubber, fruit and
timber trees. He described almost 150 new species of plants, whose herbarium
is mainly preserved at the Goeldi Museum.
In 1900 Huber was the highest authority on Amazonian rubber trees. He
was part of a select group of botanists who argued heatedly about the taxonomy
of the group as well as the potential for trade and the industrial application of
latex. In 1911 and 1912 he traveled through many countries of the Far East to
check in loco the plantations developed by English and Dutch growers. Just a
glance on the report of this world-famous voyage and also on the papers
preserved in Brazilian and Swiss archives reveals that every letter, every inquiry,
every exchanged idea, place him in an international network populated by
scientists and also by people in the rubber industry. For example, Huber
invented a knife to improve rubber taping, which was patented and
manufactured in England. At the same time, he was the only scientist from
outside the United States and England to participate in the Nomenclature
Committee gathered at the Third International Rubber Exhibition held in 1912
in New York City. On that occasion, he submitted the list of classification of
the genus Manihot, which was approved by consensus.
83
Intelectuais e discurso
Apart from research on rubber and cautchuc, Huber turned his interest to
cocoa trees, arguing that the cultivation of Theobroma in combination with Hevea
was better suited for tropical lands and could generate alternative income to the
State of Pará. In 1908, he predicted the disaster for the Amazon economy with
the commercialization of rubber produced by England in the Far East.
According to Huber, it was necessary to stimulate the “agricultural renaissance”
of the region. Within this framework, just as he had done with the rubber tree,
he began to study the world production of cocoa, the causes of abandonment
of this crop in Pará, the pests, harvesting and processing. He also recommended
to the state government to set up a support service for the cocoa growers,
which, however, started operating in 1914 only.
Although the political and economic context has been important in shaping
the work of Huber, the training years in Basel and Montpellier were
fundamental to define how he studied the Amazon forest. One of Huber’s most
valuable works clearly demonstrates his theoretical affiliation to the School of
Plant Sociology. In 1902 he published “Contribuição à geografia física dos furos
de Breves e da parte ocidental de Marajó”, in which he defended a forgotten
hypothesis formulated in the decade of 1870 by the North-American Herbert
Smith. According to this hypothesis, the rise of the Marajó Island did not divide
the mouth of the Amazon River in two courses, the first flowing to the North
and the second in direction of the Tocantins mouth, as many authors have
argued in the late 19th Century. Huber, following Smith, properly stated that the
Southern part of the Marajó Archipelago was formed by the deposition of
sediments carried by the current of the Amazon, the daily tides and the seasonal
water flows. But, according to Huber, the complex hydrological system of the
Archipelago had not been described yet, including the areas of ‘watersheds’, also
called areas of ‘water parting’, i.e. areas where the draining occurred into
different rivers. The same lack of knowledge was affecting the understanding
of the ecological processes responsible for the formation of the tide-lowlands
and the geographic line that distinguishes the vegetation in the mouth and the
low course of the Amazon River.
Huber developped these ideas in 52 pages, illustrated with maps and
pictures. He first located the main channels and its tributaries, as well as the
watersheds, called by him as “zones of neutralization of ebbs and flows”. Then,
he proposed two kinds of islands, according to their geologic origins: the oldest,
whose constitution was similar to the oceanic cost of Pará, and the recent ones,
the alluvial islands. Finally, Huber described in detail the role of the vegetation
in the formation and consolidation of the latter islands, since the pioneer
colonies of aninga or aturiá – plants that can root in submerged soil – followed
by the installation and expansion of mangroves, i.e., an ecosystem of transition
84
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
between flooded and terrestrial areas, and finally to the development of higher
trees and palm-trees so important to the physiognomy of floodplains.
Another little-known aspect in the work of Huber is his research on
evolution, especially on myrmecophily, i.e. the interspecies associations
between ants and a variety of other organisms such as plants. Huber’s interest
in this subject was quite encouraged by his institute director Göldi. In 1900 the
Italian Luigi Buscalioni and Huber theorized that the various kinds of domatia,
i.e. morfological structures under the leaves of some plants that house
arthropods, originated in the geological past in periods of far more extensive
flooding of the Amazon basin, during which ants would have sought shelter
and selected plants with structures amenable to this purpose. Their theory did
not survive to more recent research and fieldwork, which proved that
myrmecophytes are linked to a poor soil, humid or not, and survive by a
supplementary nitrogen supply. But the main question proposed by Buscalioni
and Huber, about the mechanism of the appearance of the domatia, remains
valid.
I would like to finish this lecture by quickly presenting the scientific network
of Jacques Huber. We produced five cluster maps from almost 1500 letters.
They are reliable sources for understanding the connections and exchanges
sustained by Huber. The analysis of these connections is not concluded, but
one may say already now that they rely on three points: first, taxonomic
information, including exchanges of plant specimens; second, on rubber trees;
and third, on publications and photography. These connections were active
until February 18th, 1914, the day, when Huber died of appendicitis.
Regarding the legacy of Jacques Huber, his studies were the basis on which
many generations of researchers worked until well into the 20th century. They
also motivated the future development of the Goeldi Museum and contributed
to establishing science in the Amazon. His role in developing scientific culture
must be investigated and remembered by those interested in the human
adventure of knowledge.
85
Intelectuais e discurso
EDUCAÇÃO, MANUAIS DIDÁTICOS E HISTÓRIA PÁTRIA NO
PARÁ REPUBLICANO (1900-1920)
Wanessa Carla Rodrigues Cardoso
Resumo
A pesquisa analisa as relações imbricadas entre República, Educação, Manuais
didáticos e Ensino Pátrio no Pará. Essas relações serão analisadas a partir da
revista Escola: Revista oficial de ensino (1900-1905) e o O Ensino (1911-1919) do
livro Educação na Nacional de José Veríssimo (1985). No Pará republicano, a
escola e a instrução serão apropriadas pelo regime republicano. Intelectuais
como Teodoro Braga, José Veríssimo, Vilhena Alves, Virgílio Cardoso de
Oliveira, e muitos outros, produziram e pensaram a República no Pará,
assumindo um projeto de modernização da sociedade por meio do ensino.
Assim a instrução torna-se uma das bandeiras desses intelectuais e da Primeira
República, e a escola e os manuais didáticos um veículo importante de
transmissão das novas ideias que configurariam a nova nação republicana.
Palavras- chave: Pará; Intelectuais, República; Educação; Manuais Didáticos.
Nesse contexto, vivia-se entre o governo e a intelectualidade a crença nos
avanços da ciência. Diante da missão de fortalecer a nação e construir uma
identidade nacional, esses homens ofereceriam alternativas e modelos seguros
de superação do atraso do país, acreditando-se no potencial modernizador do
regime republicano, no Brasil e no Pará. As discussões sobre a formação do
povo brasileiro estavam na ordem do dia entre os intelectuais, visto que vários
fatores tornaram oportuna a reflexão sobre nossas origens. Diante do
cientificismo Europeu, conceitos de nação, raça e povo imbricavam-se levando
à crença de que os males vividos pelo país era consequência de nossa formação
étnica ou à falta de patriotismo.
Esse debate intelectual acerca da formação étnica brasileira durante no final
do século XIX e primeiras décadas do XX, também teve grande influência no
campo educacional. Intelectuais como o paraense José Veríssimo Dias Matos,
um dos mais importantes intelectuais do período, discutiu a necessidade de uma
educação para o desenvolvimento da nação. Para ele, a instrução para todos era
condição indispensável para o progresso, promovendo o gosto pela cultura
civilizada e o aprendizado das virtudes cívico-morais, condições para superar a
degradação causada pelo processo de colonização, que deixou marcas indeléveis
na população brasileira. Os vícios e defeitos do povo brasileiro, que deveriam
86
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
ser corrigidos pela educação, estão indubitavelmente ligados ao nosso passado
histórico, nossa origem colonial e a formação do povo brasileiro por três raças
distintas. Assim formou-se um povo indolente, passivo e apático diante dos
acontecimentos políticos.
Mole pelo clima, mole pela raça, mole por esta precocidade das funções genésicas,
mole pela falta de todo o trabalho, de qualquer atividade, o sangue pobre, o caráter
nulo ou irritadiço e, por isso mesmo inconsequente, os sentimentos deflorados e
pervertidos, animado, indisciplinado, mal criado em todo o rigor da palavra - eis
como de regra começa o jovem brasileiro a vida1.
Partindo dessas ideias, a República era vista como indispensável a nossa
evolução social, fruto de uma evolução natural, e traria em seu bojo princípios
para acelerar o progresso e trazer a civilização para o país, para isso, seria
necessária mudanças de hábitos e adaptação do indivíduo ao meio natural, e
essa coesão só seria possível com a educação. Portanto educação, progresso e
República são indissociáveis.
O Pará, mais propriamente Belém no final do século XIX, já passava por
mudanças significativas, políticas, financeiras e também em sua fisionomia
urbana, necessidade que ia se impondo na medida em que crescia sua
importância econômica, se tornando principal porto de escoação da borracha
para o mercado internacional, ao lado de Manaus. O controle da população e a
necessidade de se criar uma moral educadora eram pressupostos para o
reordenamento e embelezamento do espaço urbano e para inserir Belém no
mundo moderno, resolvendo problemas graves como da insalubridade, para tal
eram usados mecanismos diversos no intuito de impor a ordem, como a
fiscalização, a intervenção da polícia Municipal e os códigos de Postura
Municipal. A República chegou ao Pará neste contexto múltiplo da Belle
Époque paraense2.
Em busca de um equilíbrio sócio-político, uma das ocupações da República
brasileira e paraense foi a construção de um corpo simbólico através das festas
cívicas, da renomeação de ruas, dos monumentos a heróis republicanos, do
hino, da bandeira e do brasão, fortemente influenciados pelo positivismo e pelo
aparato cívico-pedagógico da terceira República francesa3.
VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,1985, p
69.
2 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a belle-époque (1870-1912).
3ª Edição .Belém: Paka-Tatu, 2010.
3 CARVALHO, José Murilo de . A Formação das Almas. O Imaginário da República
no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 20ª edição, 2011; COELHO, Geraldo Mártires.
No Coração do Povo: O monumento da República em Belém. Belém: Paka-Tatu, 2002.
1
87
Intelectuais e discurso
O novo regime assume como foco principal conduzir o país rumo ao
progresso e a civilização e a educação torna-se bandeira da primeira república.
Ampliam-se o número de grupos escolares, de produção de livros ou manuais
didáticos, e de estratégias de ensino e formação ou homogeneização do
professorado aos novos preceitos, com vias a superar o atraso e a degradação
herdada do Império4. A educação republicana tinha essencialmente uma
preocupação com a formação moral e cívica da população, que resultaria na
formação do caráter nacional e do cidadão patriótico, este homem instruído,
com independência e liberdade de ações, e que estivesse qualificado para
contribuir e disseminar o progresso.
A reforma do ensino primário esteve entre as primeiras iniciativas dos
governos rrepublicanos no âmbito educacional, engendradas pelo governo
provisório (1889-1891) de Justo Chermont do qual José Veríssimo fora Diretor
da Instrução Pública. Segundo os estudos empreendidos por Moraes (2011), já
neste primeiro momento implementa-se “uma concepção político educacional
republicana”, pois “se empreendeu a reforma completa do ensino primário, a
descentralização da administração da instrução pública, a modificação curricular
do ensino primário, a adoção de novos métodos de ensino e a preocupação com
a formação dos professores primários”.5.
José Veríssimo, como Diretor de Instrução Pública no período de 1890 e
1891, implementou a primeira reforma no âmbito educacional no Pará
republicano, através do decreto 149 de 7 de maio de 1890, com o intuito de
modernizar a educação e de deixar para trás os males herdados do Império,
responsáveis pelo fracasso educacional brasileiro, segundo a crença de
republicanos históricos como Justo Chermont e Lauro Sodré.
José Veríssimo, em sua administração, reformulou as orientações
pedagógicas e os métodos de ensino, reestruturou o currículo de acordo com
os pressupostos da Pedagogia moderna, incluiu no ensino primário a Geografia
Pátria e a História Pátria, o professor ganhou importância como grande
concretizador das transformações no ensino e reforçou a fiscalização. Como a
reformulação curricular e dos métodos de ensino fora feita na administração de
Veríssimo, o governo de Lauro Sodré (1891-1897), preocupado com uma
instrução popular que atenda as necessidades do regime e esteja dentro dos
TAMBARA, Elomar; ARRIADA Eduardo . Civismo e educação na primeira República
- João Simões Lopes Neto História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13,
n. 27 p. 279 -292, Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe, p.
279,280.
5 MORAES, Felipe Tavares de. A educação no Primeiro Governo de Lauro Sodré (1886-1897):
os sentidos de uma concepção político-educacional republicana/Felipe Tavares de
Moraes.UFPA/PPGED.2011, p. 86.
4
88
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
preceitos da Pedagogia moderna, vai reorganizar instituições educacionais
importantes, implementando a reforma do Lyceu Paraense, da Escola Normal,
do Instituto Paraense e cria o Lyceu Benjamim Constant. Outras instituições
com fins educacionais e científicos também foram reorganizadas, como a
Biblioteca Pública e o Museu Paraense, hoje Emílio Goeldi6.
Gradativamente, ao longo do processo de consolidação da República no
Pará, houve uma ampliação do número de vagas no ensino público, graças a
inúmeras inaugurações e reformas de vários estabelecimentos de ensino.
Reformas como a do Lyceu Paraense, já nesse momento equiparado ao Ginásio
Nacional, e da Escola Normal, passam a ser um símbolo da modernização da
cidade e da instrução pública no Estado, como via principal de regeneração
social e elevação moral. Segundo Theodoro Braga, ao discorrer sobre a Evolução
das escolas primárias no Pará, já havia em 1906 em torno de “565 escolas primárias,
e no anno seguinte 27 grupos com um total geral de 23.327 alumnos de
frequência”.7
Essas ideias circulavam entre a intelectualidade local e permeavam as revistas
pedagógicas do início do século, em que muitos intelectuais transitavam com
defesas calorosas a favor da instrução pública e contra o analfabetismo e o
obscurantismo, como nos mostra Antônio Maçal, diretor do Instituto Lauro
Sodré, nas primeiras palavras de inauguração da revista o Ensino diz.
A revista apparece no momento preciso para combater o analphabetismo e divulgar
os meios de defesa da saúde, estabelecendo as grande leis da hygiene do corpo e da
alma- mens sana in corpore sano. Os dias que vivemos são de duvidas e de marguras
[...]. A crise é tremenda. [...] A Sciencia a soldo da Barbaria é a fallencia do direito.
[...] O ENSINO reenceta a campanha do bem: as batalhas que tem de pelejar são
de extermínio do obscurantismo e de destruição do mal de qualquer maneira que se
manifeste, procurando deixar reflectir no espelho da nossa consciencia a imagem
sagrada da pátria integra e forte. 8.
No fragmento acima, de 1918, percebemos a permanência do discurso
salvacionista da educação, a crença republicana no poder da educação como
elemento formador e conformador dos indivíduos, e como o meio mais eficaz
BARROSO, Wilson da Costa. Educação e cidadania no republicanismo paraense: a instrução
pública primária nos anos de 1889-1897. 2005. 134 f . Dissertação (Mestrado) – Programa
de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal do Pará,
Belém, 2005
7 BRAGA, Theodoro. Apostilas de História do Pará. Belém: Imprensa Official, 1915,
p.47
8 MAÇAL, Antonio. O Ensino. O Ensino: revista mensal de pedagogia e literatura.
Oficinas Instituto Lauro Sodré. nº 1- 2ª fase, 30 de junho, 1918, p. 1 e 2
6
89
Intelectuais e discurso
na formação moral e intelectual de um povo. A Educação na República passa a
ser uma estratégia de ação que é atrelada e imprescindível à ideia de cidadania e
a formação do cidadão, dai o grande foco e importância da instrução primária.
A escola republicana seria a via privilegiada de incorporação não só de
conhecimentos, mais de hábitos e normas de conduta socialmente aceitas. A
educação, nesse momento, especialmente para as classes populares, com um
padrão de comportamento mais flexível, era uma forma de salvaguardar os
princípios da moralidade e da “conduta decente”, incorporando-as rumo ao
progresso nacional. “Revela-se bastante nítida a correlação estabelecida entre
instrução e virtude: a escola como agencia de moralização”. 9
Tendo como ideal a nacionalidade, a educação republicana preocupava-se
com a formação integral do indivíduo, indo muito além da simples transmissão
de informações, ocupando-se especialmente da aprendizagem da disciplina
social, das virtudes morais e dos valores cívico-patrióticos. O patriotismo,
especialmente, torna-se condição essencial e indispensável à cidadania e ao
cidadão desejoso pela República, e sua formação é responsabilidade da família,
da escola e do professor. Como Virgilio Cardoso de Oliveira evidencia em
discurso proferido ao Conselho Superior de Instrução Pública do Pará
publicado na revista A Escola10.
Não resta dúvida que a celebração das grandes datas, a explicação dos grandes feitos
por que passou a pátria são a mais bella lição que se pode dar a mocidade.O
patriotismo nasce com o homem, porém cresce e alimenta-se ao contato social. O
homem torna-se apto para grandes empresas si desde o seu berço não vê ao redor
de si senão o amor do bem e da virtude. É na casa paterna, portanto, que começa a
BOTO, Carlota. A escola primária como tema do debate político às vésperas da República.
Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 19, n 38, pp. 253-282, 1999,p 270.
10 A revista A Escola foi a porta voz do discurso do Estado direcionada a mão de obra
docente, que tinha que adquirir a revista em caráter obrigatório. Esse periódico estava
previsto no Regulamento Geral da Instrução Pública do Estado do Pará de 1899, com
o objetivo de estabelecer o modelo de bom mestre, responsável pelo desenvolvimento
da nação. Com conteúdo diverso, suas sessões focavam temas de interesse do
professorado, tais como: seu papel e relevância para o futuro do país, a moral e a higiene
dentro da escola, a importância da instrução pública, seu histórico e atos de governo,
biografias de pessoas importantes, exercícios escolares, além da publicação de atos
administrativos e legislativos. A revista, pelo seu caráter oficial, tentava imprimir uma
visão homogeneizadora, e de exaltação da República e da instrução pública no Estado,
o que nem sempre era possível, pelo público a qual estava destinada e pela diversidade
de intelectuais e políticos que por ela transitavam. Sendo seu público alvo os
professores, por vezes seus articulistas tinham que reconhecer os baixos salários e as
péssimas condições dos edifícios escolares. Os volumes da Revista A Escola referente
aos anos de 1904 e 1905 não foram utilizados, estando sem condições de manuseio.
(COSTA, 2011)
9
90
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
formar-se o patriota e o cidadão, sob a influencia do
sorriso materno, mas é
na eschola que esta formação si decide e completa. É
lá que, aos 10 ou 12
annos, começa a criança a fazer-se homem e procurar o
modelo que deve
imitar durante todo o correr de sua existência; é ahi, portanto, que o professor deve
procurar incutir no coração dos seus alumnos o verdadeiro amor á pátria e todas as
virtudes que lhe fazem cortejo.11
O professor, segundo visão da intelectualidade local, é o sujeito que vai
desencadear o processo civilizatório, imbuído de uma missão regeneradora do
povo brasileiro, encaminhando o indivíduo para a vida nacional. Como grande
missionário da pátria, sua formação torna-se essencial para as mudanças sociais
em curso.
Penso convensidamente,depender o levantamento da instrução primária neste
Estado, principalmente, essencialmente da creação do professor. [...] O professor
ignorante, ou mesmo mal preparado deante de um programa de ensino bem
desenvolvido, primoroso, permite-me a comparação, é como tosco desenhista, que
na posse do pincel e finas tintas procurasse copiar um quadro de Murillo. O mestre
é o pivot da instrução, a alma grandiosa d`esse mechanismo melindroso. 12
Imbuídos de uma missão civilizadora e moralizadora, o professorado deveria
ter uma moral ilibada e ser exemplo de conduta decente, e esses princípios se
exacerbavam em relação às professoras. Responsável em transmitir esses
ensinamentos morais aos seus alunos, a professora, deveria provar a todo
momento que estava em condições de assumir esse papel, assim sendo, o menor
desvio de conduta colocava sua credibilidade e seu papel de missionária da
pátria em xeque. Lúcia Muller nos aponta os ensinamentos que deveriam ser
direcionados pela professora primária, como “vestal da pátria”, e transmitidos
ao alunado e futuro cidadão desse país. “O bom comportamento na casa e na
rua, respeito e consideração aos outros; amor ao trabalho; amor ao dever, o
amor aos pais; o sentimento de caridade; a aversão a mentira; a aversão aos
jogos; a aversão aos vícios e da bebida e do fumo etc. “13
OLIVEIRA, Virgilio Cardoso. Conselho superior de instrução pública. 19ª sessão
ordinária, em 30 de janeiro 1901. A Escola: revista official do ensino no Estado do Pará.
Belém, Imprensa oficial. Anno 2, num. 16, Maio de 1901, p 796.
12 OLIVEIRA, Virgilio Cardoso. Discurso-programa- para os membros do conselho de
Instrução Pública. A Escola: revista official do ensino no Estado do Pará. Belém,
Imprensa oficial. Anno 1, num.1, Maio de 1900, p 14.
13 MULLER, Lúcia. As construtoras da nação: professoras primárias na Primeira
República. Niterói, Intertexto, 1999, p 111.
11
91
Intelectuais e discurso
Os republicanos no Pará e no Brasil viam na escolarização a via essencial
para o alastramento de seus ideais e a escola como lugar central para mudanças
necessárias a realidade nacional. Assim, era imprescindível a disseminação dos
ideais cívico-patrióticos no intuito de “nacionalizar” o povo brasileiro,
formando o verdadeiro cidadão nacional. Com esse desígnio é que ganha
importância o ensino de História e Geografia na Primeira República, reforçando
sentimentos e valores de pertencimento a nação, e legitimando, através da
instituição de uma memória, determinados grupos políticos, mais
especificamente o republicano14.
Assim, uma das vias de nacionalização do indivíduo e disseminação do
projeto educacional republicano no Brasil e no Pará, foi por meio dos livros e
manuais escolares, representados neste momento especialmente pelos
chamados livros de leitura. Direcionados, sobretudo, ao ensino primário os
livros de leitura eram utilizados para o ensino da leitura e da escrita, e continham
em seus conteúdos ensinos condizentes com a moral cívico-patriótica dos
Estados republicanos. Por meio do Conselho Superior de Instrução Pública e
pela Diretoria Geral de Instrução Pública, o Estado selecionava os livros a
serem utilizados e os disponibilizava gratuitamente para a população mais pobre
das séries iniciais 15.
Vale ressaltar, que a produção nacional de livros ou manuais escolares
iniciou no Império, e se desdobrou de forma decisiva no projeto educacional
republicano, com as massivas propagandas em favor da instrução, da escola, e
do ensino primário, e com as campanhas cívicas em prol da modernização da
imagem do país. Inculcando valores responsáveis pela uniformização do
modelo de sociedade pretendido.
Dada a finalidade nacionalizadora do ensino primário, o Estado passa a
controlar a adoção dos livros e manuais escolares, com a necessidade de
padronização do ensino e adequação aos programas e currículos, definidos polo
próprio Estado. Sobre o controle e a relevância dos livros de leitura na Primeira
República Razzini afirma:
Outro fator relevante do controle estatal na adoção de livros didáticos era o
estabelecimento de que só os livros de leitura deveriam ser destinados ao uso dos
alunos, restrição que, de saída, eximia o governo paulista de fornecer livros didáticos
das demais matérias, às quais ficariam a cargo da “palavra do mestre”. Sem
ABREU, Daniela Cristina Lopes de. A institucionalização da escola primária na
Primeira República. Educação e Fronteiras On-Line, Dourados/MS, v.2, n.4, p.156168, jan/abr. 2012.
15 RAZZINI. Márcia de Paula Gregório. A livraria Francisco Alves e a expansão da
escola pública em São Paulo. I Seminário Brasileiro sobre o livro e História Editorial, Rio de
Janeiro, 2004.
14
92
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
menosprezar as implicações econômicas, o que explica, em parte, a determinação
oficial do uso exclusivo dos livros de leitura para os alunos é que a leitura havia se
tornado uma prática escolar hegemônica nos quatro anos do curso primário, não só
porque o ensino de língua materna detinha a maior carga horária do currículo, mas
também porque se tornara a base do modo simultâneo e do ensino de outras
matérias. Tal escolha explica também a multiplicidade de temas relacionados às
outras matérias do currículo que passaram a fazer parte do corpus de textos dos
livros de leitura. A precedência do ensino de língua materna sobre as demais
disciplinas do currículo e a proeminência da leitura como sua principal atividade,
ambas reforçadas pela determinação oficial de que os livros de leitura eram os únicos
adequados para uso dos alunos, dimensionam a importância que os livros de leitura
assumiram na formação do cidadão republicano, mobilizando diversos temas e
conteúdos (morais, cívicos, científicos, higiênicos, geográficos, históricos,
cotidianos, infantis, etc) com o objetivo de forjar uma educação moderna e
civilizada, comprometida com a “ordem” e com o “progresso” da nação16.
Deste modo, os livros de leitura indicados como mais adequados pela
oficialidade, passavam a ser porta voz de diversos conteúdos e disciplinas, na
formação do cidadão republicano, nos mais diversos Estados. No Pará,
Theodoro Braga, ao falar sobre os livros didático e literários pedagógicos assegura:
Volumosa é a bagagem litteraria que tem servido à mocidade paraense para a sua
educação e instrução elementar servindo muitas das obras publicadas para seus
estudos superiores. E o Pará um dos Estados da União Brazileira que mais tem
produzido livros didácticos para a infância, no porfiado empenho de lhe facilitar e
aperfeiçoar o ensino, tornando-o ao mesmo tempo proveitoso.[...] E assim, o
Estado do Pará, fazendo evoluir a instrução pública, concorre poderosamente para
o decrescimo do analphabetismo. Para esse benéfico resultado, num concurso
harmônico e isochono, actua, de um lado, a sábia orientação do Governo, tomando
medidas acertadas, e de outro, a coadjuvação dos collegios e escolas de iniciativa
particular, contribuindo todos para o alevantamento moral e intellectual dos seus
habitantes17.
A preocupação do Estado do Pará com o uso de manuais e livros didáticos
para fomentação da instrução da mocidade paraense, expressa por Theodoro
Braga em 1915, e sua regulação, já é uma necessidade no ano inicial da
República, como nos mostra o artigo 214 do Regulamento Geral da Instrucção
Publica e Especial do Ensino Primario do Estado do Pará, decretado em 1890 pelo
governador Justo Chermont, documento que vai servir de base para a posterior
16
17
Idem, p. 3
Idem, p 76.
93
Intelectuais e discurso
regulação sobre o ensino primário, implementada por José Veríssimo neste
mesmo ano18.
Art. 214º - Nenhum livro será admitido no ensino primário ou officialmente
recomendado para o secundário ou technico, sem ser aprovado e aceito pela
direcção geral, ouvido o conselho superior da instrucção publica, devendo, para
merecer essa approvação, estar de accordo com os programmas circunstanciados
do ensino publico do Estado e com os progressos da litteratura escholar. (PARÁ
(Estado), 1890).
O Professor Vilhena Alves, em seu Misselanea Literária, escreve um artigo
intitulado Livros Escolares, tecendo análises, reflexões e orientações, sobre as
condições para se escrever um bom livro escolar. Cita no decorrer de suas
reflexões, o discurso feito por José Veríssimo ao Conselho Superior de
Instrução Pública, no qual ressalta a preocupação, do então diretor de Instrução
Pública do Estado, com a adequação dos livros aos preceitos da Pedagogia
moderna, na tentativa de assemelhar o livro e a instrução brasileira, a de países
“mais adiantados que nós”.
Segundo o Sr. Commendador José Veríssimo, que adopta neste ponto as opiniões
dos melhores mestres “de trez ordens são as qualidades que devem distinguir um
livro para os ensino primário: pedagógicas, hygienicas e economicas. Deve ser bem
feito, deve ter um aspecto agradável, e deve ser barato”. E, desenvolvendo essas
ideas, accrescenta:
1. Que seja composto com clareza, correcção, precisão e methodo.
2. Que seja feito de accordo com as lições mais acceitas da pedagogia moderna e
segundo os melhores modelos em pratica nos povos mais adiantados que nós.
3. Que estejam de conformidade com os nossos programmas de ensino , ou que a
elles se possam adaptar sem dificuldade.
4. Que sejam impressos em bom papel, com typo graúdo, segundo as preocupações
da hygiene escolar.
5. Sempre que for possível, sejam copiosamente illustrados,com boas gravuras,finas,
nítidas e de accordo com o texto.
6. Que o seu preço seja o mais módico possível, podendo o poder competente fazer
depender a appreciação do preço maximo que fixará.
7. Que sejam sempre postos á venda cartonados e brochados.
O documento citado, elaborado pelo Diretor de Instrução Pública de então, José
Veríssimo, encontra-se na Biblioteca Artur Vianna: Direção Geral da Instrucção Publica.
Ensino primario:regulamento escolar, programmas, horários e instrucções pedagógicas para as escolas
do Estado do Pará, 1890. Neste regulamento, o artigo 15 reafirma: “Art. 15- Nenhum
livro ou brochura, impressos ou manuscriptos, estranho ao ensino, poderá ser
introduzido na escola sem a autorisação escripta do Director Geral”.(1890, p.9).
18
94
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
(Exposição feita ao Conselho Superior da Instrução Pública pelo Diretor Geral1890.). 19
José Veríssimo como homem público, como Diretor de Instrução pública
no Pará, traça os primeiros encaminhamentos no sentido de colocar em prática
muitas ideias que permeavam seu pensamento educacional, por exemplo, a
ênfase no ensino primário e a inclusão no ensino do Pará republicano de
disciplinas como Cultura moral e pátria, Geografia Pátria e História Pátria.
Em seu livro Educação Nacional20 ressalta a importância dos livros de leitura
para esses ensinamentos, defendendo a necessidade de sua nacionalização. No
que concerne ao ensino de História Pátria, sugere como essa formação, ou esse
programa, deveria ser delineado na escola:
Na escola primária, este ensino pode começar desde o segundo livro de leitura pelo
menos. É preciso que o livro de leitura entre nós se reforme completamente e que
tudo fale do Brasil e de nossas coisas. Os primeiros livros devem conter contos e
cantos populares e pequenas histórias em que se reflitam a nossa vida e os nossos
costumes. Só assim interessarão à criança. Entremeados com estes assuntos, virão
pequenas cenas de História Pátria mesmo legendárias. A história do caramuru, por
exemplo, sendo falsa, ensina entretanto à criança que eram selvagens os primeiros
habitantes do Brasil, que devoravam os seus prisioneiros e que não conheciam o
uso da pólvora. Um resumo bem feito da cândida narração de Caminha a D. Manuel
sobre os gestos dos selvagens, perante os portugueses da armada de Cabral, cuido
eu que se gravará na memória, fará trabalhar as imaginações dos jovens ouvintes e
será uma excelente lição da etnografia pátria. O fato de Amador Bueno, alguns
episódios dos bandeirantes, a vida dos primitivos colonos, a descrição de uma
missão, as biografias dos homens notáveis - eis outras tantos quadros próprios para,
mediante o livro de leitura, ensinar, e bem, a História Pátria. A narração destes fatos
ir-se-á paulatinamente desenvolvendo nos sucessivos livros de leitura que poderão
também conter extratos de alguns cronistas, adequada a linguagem à inteligência dos
escolares, e versos de poetas brasileiros sobre feitos da História Pátria [...] o
ALVES, Francisco Ferreira de Vilhena. Miscellanea Litteraria.Pará: R.L. Bintecourt &
Cia, 1900, p 176,177.
20 Publicada no Pará 1890, ano após a proclamação de república, A Educação Nacional, é
considerada a mais importante obra da vertente pedagógica de José Veríssimo, onde
apresenta uma defesa da Educação Nacional, como condição primordial ao progresso
e a grandeza do país. Tecendo críticas ao sistema educativo de então, propõe mudanças
necessárias a serem implementadas pelo regime republicano. Por diversas vezes ressalta
o descontentamento e o ceticismo com o tipo de república implantado no país, com o
sistema geral de instrução pública, e com as reformas introduzidas no primeiro governo
Republicano por Benjamin Constant, descontentamento explicitado na introdução da
edição de 1906, publicada no Rio de Janeiro pela Livraria Francisco Alves.
19
95
Intelectuais e discurso
compêndio especial da História do Brasil virá completar e sistematizar esse ensino,
já nas classes superiores da escola21.
Veríssimo é um árduo defensor de que a educação nacional não se pode
fazer senão pelo estudo da pátria, fazendo-se necessário uma reforma urgente
neste ponto de nossa instrução pública. O ensino de História Pátria deve ser
inserido desde os primeiros níveis de ensino, já no ensino primário, com o
objetivo de despertar na mocidade o sentimento de brasilidade, o verdadeiro
espírito nacional, aprendendo sobre suas gentes, sua história e sua constituição
como nação. Assim, é necessário que o ensino de História Pátria seja inserido
gradativamente nos livros de leitura, e só depois em Compêndios de História
do Brasil, completando sua formação cívico-patriótica.
Em uma República, segundo o autor, era indispensável o conhecimento da
pátria e de suas instituições para que a sociedade pudesse se desenvolver e se
aperfeiçoar plenamente. A educação cívico-patriótica deveria permear todos os
saberes ensinados na escola, só assim ela iria cumprir sua verdadeira missão,
servir ao aperfeiçoamento moral, intelectual e a nacionalidade.
O ensino adequado de matérias, como a Geografia Pátria e História Pátria,
com compêndios, museus, monumentos, mapas, globos adequados a nossa
realidade histórico e geográfica, o culto aos heróis e seus feitos, os cantos
patrióticos, a comemoração das grandes datas nacionais nas escolas, a
elaboração de um calendário patriótico, a utilização de livros ilustrados com
gravuras históricas, são de fundamental importância para criação da ideia de
pertencimento a uma nação, para criação do sentimento de unidade nacional
em detrimento dos interesses individuais.
Todo o ensino tem um fim– o da História Pátria é dar-nos pelo conhecimento da
origem comum, das dificuldades em comum sofridas, e em comum vencidas, da
marcha e evolução dos mesmos costumes, das mesmas leis e da mesma organização,
dos progressos, custosa, lenta, mas seguramente adquiridos, a noção exata da
solidariedade nacional, e com ela o amor da pátria que nos legaram nossos
antepassados e o desejo firme de continua-los, para legá-las as gerações vindouras
sucessivamente melhorada.22
O ensino de História Pátria, nos mais diversos âmbitos da sociedade,
superaria a profunda indiferença que o brasileiro tem pelo seu passado, e o vago
conhecimento de sua origem e suas instituições políticas. A ausência desses
repertórios simbólicos (estátuas, monumentos, museus, comemoração
21
22
Idem, p 113, 114.
Ibdem, p.113.
96
Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos
patriótica) seria uma das causas da ignorância da História Pátria pelo povo
brasileiro e a falta de sentimento nacional.
Desta forma, esse ensino ganhava espaço nos programas do curso primário
com o regime republicano, tornando-se essencial para a formação da
consciência nacional, e na inculcação de valores moralizantes, como obediência
e respeito à ordem e a hierarquia, e o reconhecimento das ações exemplares de
grandes heróis. Segundo Coelho M. 23, com claros intuitos de formação do
cidadão nacional, essa formação completava-se com palestras de fortalecimento
do sentimento pátrio, direcionada pelo professor. Abordando assuntos diversos
de História Pátria, as palestras escolares, eram ministradas nos grupos escolares,
e ganhavam espaço especial nas páginas das revistas pedagógicas.
Entre as orientações para o ensino dava-se ênfase as biografias dos homens
notáveis, insistindo no progresso que trouxeram para o país, nas datas e fatos,
articulados de modo a ressaltar o progresso em contraposição aos fatos
passados. O professor que além das: “prelações orais, dar as explicações por
meio da leitura, pela comemoração escolar das grandes datas nacionais; levar os
alumnos aos mapas geográphicos, assignalando ou fazendo esses assignalarem
as localidades em que os acontecimentos históricos se deram.”24
Considerando o exposto, intelectuais como Teodoro Braga, José Veríssimo,
Vilhena Alves, Virgílio Cardoso de Oliveira, citados neste capítulo, e muitos
outros, produziram e pensaram a República no Pará. Assumindo um projeto de
modernização da sociedade, esses intelectuais, como caracterizou Gomes25,
participavam de “múltiplas redes de sociabilidades”, transitavam entre diversos
campos de atuação social e política, e entre diversos saberes, inclusive no campo
da História, ainda em construção, como historiadores de ofício, assentados nas
cadeiras do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Segundo a autora, os
intelectuais da Primeira República, especialmente do período pré-20, se
“engajam em diversificadas estratégias de ação e intervenção social, e
mobilizam, para sustentá-las, os valores da moderna ciência de sua época”26.
Levando os pressupostos científicos para dentro da esfera do Estado,
legitimavam, por sua vez, as ações do Estado, por meio da ciência. Logo, o
COELHO, Maricilde Oliveira. A escola primária no Estado do Pará (1920-1940).
Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
24 Programas de Ensino - organizados e mandados adotar pelo Conselho Superior do
Ensino Primário em 1919. Portaria de 25 de Abril de 1919. O Ensino: revista mensal de
pedagogia e literatura. Oficinas Instituto Lauro Sodré. nº 11- 2ª fase, 1919, p.186 e 187
25 GOMES, Ângela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte, MG:
Fino Traço, 2009; GOMES, Ângela de Castro. História, ciência e historiadores na
Primeira República. In: Ciência, Civilização e República nos Trópicos/Alda Heizer, Antonio
Augusto Passos Videira (Org.)- Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2010.
26 Idem, p.15.
23
97
Intelectuais e discurso
pensamento educacional, desses intelectuais, não estava desvencilhado da esfera
de atuação política e social, no exercício de cargos públicos, nas redações de
periódicos e jornais, ou em associações como o Instituto Histórico e Geográfico
do Pará. No âmbito das transformações sócio, político e educacional da
Primeira República no Pará, e que a História Pátria ganha destaque como parte
importante para o projeto civilizatório desses intelectuais.
98
Download