VerSUS Fortaleza 2016 RELATÓRIO DE VIVÊNCIA Marcos Felipe Costa Mauriz Acadêmico de Fisioterapia UFPI FORTALEZA CE, 2016 A chegada (Dia 01) Aproximadamente oito horas da manhã, todos os viventes haviam chegado e fomos conduzidos à Escola Nacional Florestan Fernandes-NE. Assim que foram distribuídas as mochilas, iniciou-se uma apresentação conduzida pela Vera Dandas (Verinha) e Jair que de forma lúdica, com cantoria ao som do tambor, fomos apresentando-nos uns aos outros, informando o curso que fazíamos e de onde éramos. Somos 42 viventes e três facilitadores, sem contar com a Comissão Organizadora (CO). A maior parte é de Psicologia, seguida por Enfermagem, Educação Física, Serviço Social, Fisioterapia (três, incluindo eu), Medicina, Terapia Ocupacional, Nutrição, Biomedicina, Odontologia e Administração. Na sequência, foi feito uma linha do tempo sobre os fatos marcantes para a construção do SUS. Falou-se do uso de ervas medicinais, conhecimento advindo dos ancestrais indígenas. Foram destacadas as consequências do imperialismo como a segregação de miseráveis das cidades, além da diminuição da população indígena e escravidão. As lutas pelo fim da escravidão e Nova República criam novos momentos na Saúde no Brasil. A imigração (principalmente de japoneses e europeus) foi preceptor do movimento trabalhista/operário culminando em Reformas previdenciárias, entre outros. O Ensino Popular em Saúde nas academias também foi importante, assim como outros movimentos, na Reforma Sanitária. Outros momentos da história do Brasil foram importes e são de conhecimento mais amplo entre os viventes como, por exemplo, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, a criação do SUS e do PSF e dos ACS. No turno da tarde iniciou-se uma discussão sobre Reforma Sanitária, fizemos a leitura da Carta do CEBES (Centro Brasileiro de Estudos em Saúde) para a XV Conferência Nacional de Saúde (2015). Esse espaço foi facilitado por João Antônio de Almeida, médico com formação em Cuba, da Residência em Saúde e Comunidade. Então foram feitas uma série de divisões e pactuações para o transcorrer adequado da vivência. Meu Núcleo de Base Dois (Zefa da Guia – oito pessoas) e o VAN Um (quinze pessoas). Diante de tantas equipes diferentes foi possível interagir com diferentes pessoas formando laços de amizade e respeito, com oportunidade para saber sobre como foi o dia, lugares vivenciados e percepções de cada um. Às 16 horas fomos para o Assentamento do MST, no município de Itapipoca – CE. O Assentamento (Final do dia 1 e Dias 2 e 3) Chegamos ao assentamento à noite, no qual jantamos e nos instalamos numa escola também do MST. Por sinal, ampla e com boa estrutura, para quebra de paradigma de cara, ou um “vrá” como dizem os amigos cearenses. O dia dois se iniciou com a leitura de “A Flor e o Militante” pelo João Paulo, integrante da CO. Fomos apresentados à Escola, situada no Assentamento Maceió, município de Itapipoca CE, pelo Flávio que é diretor da mesma. A escola oferta o Ensino Médio, para uma população de mais de 500 famílias, de acordo com as diretrizes do PRONERA – Programa Nacional da Educação na Reforma Agrária. Com ensino diferenciado atendendo tanto a necessidade do conhecimento do campo (cultivo, plantação, mudas) quanto a básica (matemática, geografia, ciência) além da história e organização do MST. Depois do latifúndio, a educação é cerca de brigada do movimento. Ao contrário do que a mídia (sustentada também por ruralistas - grandes empresários, em sua totalidade) difunde, o MST é um movimento organizado e tem como visão “terra é de todos”. Com origem no movimento camponês no Rio Grande do Sul, em 1984. No Ceará existem 11 comunidades e cinco acampamentos ligados ao MST atualmente. O Assentamento Maceió tem origem com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (com a teoria da libertação) e tem em sua história muitos conflitos com a agroindústria local (Duporco, nas décadas de 70 e 80; carcinicultura e pesca marítima de grande porte; e mais recentemente com as Usinas Eólicas – devido ao impacto social). Um ponto alto no dia 2 foi entender a diferença entre os termos invasão e ocupação. A imagem que nos vinha à cabeça ao falar sobre Movimento dos Sem Terra era de pessoas desocupadas, armadas de instrumentos na terra ou mesmo armas de fogo brigando por terras de outras pessoas. “Vagabundos”, como diriam pessoas de meu convívio. O que evidentemente não é verdade. Na verdade, a luta pela terra que o Movimento faz acontece geralmente em terras não produtivas pertencentes a grandes latifundiários que oprimem uma população que habita o local previamente. Ocupando uma terra que é de todos, esses limitantes, organizados, formados cientifico-ideológico-politicamente buscam a Reforma Agrária e a Justiça Social. Dona Graça nos falou mais sobre o assentamento. Ela contou que o mesmo conta com duas UBS e um CRAS. O MST chegou ao assentamento em 2003, o que foi um avanço para o desenvolvimento do território, tanto na Educação quanto na Saúde e até na Economia. Essa voltada para práticas com menos impacto ambiental, como a plantação sem uso de agrotóxico, agroindústria do coco, mandioca, caju e castanha. Além de atividades socioculturais e desportivas como a Regata (anualmente em julho). Durante a tarde foi muito apropriado discutirmos capitalismo versus socialismo com auxílio de Sara Ortins. “Quem trabalha é rico” é uma mentira disseminada, o que acontece é que a massa trabalhadora é explorada, recebendo uma remuneração TOTALMENTE injusta e desproporcional. O pensamento é simples: suponha que numa indústria de bens de consumo um trabalhador produz em um dia uma quantidade de bens que custam o seu salário em dinheiro. Evidentemente, todo o restante do mês ele está trabalhando para o dono da indústria, sem ganhar nada por isso. Porém é complicado desconstruir o capitalismo, já que não se trata apenas de um sistema econômico (mais uma mentira espalhada por aí), ele envolve tudo, hábitos de vida e estilo, cultura de consumo, política, educação... Enfim, tudo ao nosso redor. O texto “Se os tubarões fossem homens” e o vídeo “A história das coisas” foram interessantes para alimentar o debate entre os viventes. “Vamos acordar/ O dia já raiou/ Levante da cama e venha viver!” Foi a música que o NB Revolucione-se nos acordou na manhã do terceiro dia. Naquela manhã descobrimos um pouco mais o que havia em nossas cabeças, ao discutirmos gênero. Com auxilio do membro da CO Fernando e Karoline Oliveira, montamos um mural com descritores para homens e mulheres. No geral, as palavras para os homens consistiam em Opressor/Forte/Músculos e para mulher Mãe/Carinho/Cabelo Longo. Obviamente nem todos os homens e mulheres apresentam ou não esses descritores, que podem ser até comuns para ambos. Desde sempre, mas hoje em dia principalmente, tudo é relativo. A identidade de gênero (sou homem/sou mulher) está na cabeça. Daí que se chama mulher trans aquela que nasceu biologicamente com o sexo masculino, mas se identifica mulher e homem trans na mesma linha de pensamento. Disso eu nem sabia, devo admitir. A expressão de gênero é como o corpo se diz (características visuais como calça/saia, cabelo curto/cabelo longo, com maquiagem/sem maquiagem, entre outros). A orientação sexual está relacionada a afetividade (heterossexual – bissexual – homossexual). Então conversamos sobre papeis de gênero e feminismo. A partir da leitura do texto “Direitos reprodutivos, saúde feminina e sexualidade” pode-se ter conhecimento do Movimento Feminista e conquistas. Um grande avanço na Saúde da mulher no Brasil foi a assistência deixar de ser no parto-puerpério e passou a ser durante todo seu ciclo de vida, muito além da gestação e parto. No mundo contemporâneo a mulher (em muitos lugares) assume liberdade em sua vida, atribuindo a opção de ter ou não família. Ainda sim, muita coisa ainda está para ser conquistada na luta feminista, como igualdade salarial, aborto e outras causas. Esses primeiros dias, ou dias de formação como a CO nomeou, foram muito importantes para a construção da vivência por 1) contribuir fomentando o discurso na mente dos viventes, 2) permitir espaços de debates de ideias sobre questões que eu e muitos outros ainda não tinha um conceito bem formado e 3) diminuição da tensão ao expor meu posicionamento sobre algo, quer fosse no momento da plenária, quer fosse no NB ou VAN. Além muros da escola (Dia 04) Voltamos para Fortaleza ainda no dia 18 de janeiro. No dia seguinte fomos ao Hospital Mental de Messejana (HMM), e bem... lá foi tenso. Fomos recebidos por Augusta, Assistente Social na instituição há 12 anos. Uma breve introdução ao hospital: tem sua fundação em 1963. Conta hoje com quatro unidades (duas masculinas e duas femininas), corpo profissional de 443 funcionários e é o único no estado a atender emergências. “O hospital presa pela limpeza [...] unidades limpas e banhos frequentes” ainda causa certo sentimento ruim ao reler e relembrar essa parte. Não que seja mentira, o HMM é muito limpo mesmo o que pode ser até louvável, se não fosse obrigação básica de todo e qualquer hospital. Duas vezes por semana, os pacientes internados, são acompanhados por psiquiatras, a equipe de enfermagem é constante e atendimentos de Terapia Ocupacional e Psicologia acontecem cerca de uma vez por semana, por unidade. Assim as terapêuticas ofertadas nessa instituição são: medicamentosa, psico e socioterápica. Os casos no HMM de fato são os mais graves. O abandono por parte da família é frequente, por esse e outros motivos existe uma lotação grande de pacientes moradores, ou seja com mais de um ano de internação. Segundo Augusta a faixa etária predominante é entre 30-40 anos, mas existem jovens e idosos internados também, e por ausência de alas específicas se misturam ao adultos. A internação pode ocorrer de três formas: voluntária – quando o paciente admite a necessidade de internação; involuntária – outra pessoa se responsabiliza quando o paciente não consente com a internação ou não está em condições de decisão; e compulsória – acontece por meio de ordem judicial (e a alta também). A visita as unidades foi bem rápida. As unidades masculinas e femininas têm estrutura parecida: muros altos uma pequena área de espaço aberto com alguns bancos, algumas plantas, existe uma mesa bem grande com muitas cadeiras – onde ocorrem as refeições. Há também os quartos –coletivos- e uma estrutura central que é a enfermaria. Todos os pacientes estão vestidos com a mesma roupa, que mais parece de presídio. Alguns estão pintando (parece que é a única atividade que fazem). Não tivemos contato muito próximo com os pacientes, principalmente as pacientes, porque segundo dona Augusta elas podem ser agressivas. As unidades são interligadas por largos corredores e cada unidade está encerrada em si por portões. É inegável a igualdade semelhança com um presídio. Seguimos para a o ambulatório infantil, depois para a emergência e por fim o hospital dia. Augusta nos falou de algumas atividades culturais que ocorrem anualmente como o São João e Natal que envolve todas as unidades e outras datas comemorativas como o Dia das Mães, dos Pais e das Crianças que ocorrem em unidades específicas. E finalmente a visita acabou. Na sequência fomos ao CAPS III de Fortaleza. Quem nos recebeu foi Itana, coordenadora daquele equipamento E bem... lá foi mais interessante. A população de abrangência é de mais de 250 mil pessoas. Tem funcionamento nos três turnos (único em Fortaleza), com quatro leitos masculinos e seis femininos. Existe também uma sala de dose supervisionada, onde são distribuídos remédios e possui dos leitos de observação para caso o paciente ao receber a medicação sinta mal estar. Atualmente não tem prédio próprio e precisa de mais estrutura para melhor funcionamento. Existem parcerias com a UFC e uma indústria de jeans para uma oficina de corte e costura. Além disso, existem grupos em diversas práticas: dança, massoterapia e aromoterapia, acupuntura e cromoterapia. O plantão psicológico é novidade para 2016. Itana nos falou que existe um bom diálogo entre os profissionais, havendo reuniões semanais para discussão e estudos de caso (algo que se tem sido estimulado no grupo profissional – pesquisa científica). Os desafios são envolver e atender uma população tão grande em atividades fora muro. Lar Torres de Melo Gostaria de relatar a grande oportunidade que foi poder ir até esse lugar. Quem nos recebeu lá foi a enfermeira Lídia e fomos conduzidos dentro do equipamento por nossa Facilitadora Renata Alcântara, que desenvolve estágio lá e por isso conhece e é muito querida pelos residentes daquela instituição. São cerca de 240 idosos atualmente, distribuídos em ambientes diferentes de acordo com o nível de independência e estado de saúde. A primeira parte é alocada pelos pacientes com o maior nível de dependência, em duas enfermarias: uma masculina e outra feminina. Existem cuidadores voluntariados que auxiliam na alimentação, higiene, e medicação desses pacientes. Boa parte deles sofrem de doenças como Alzheimer e Parkinson, além de AVEs. Na sequência fomos até a outra parte do Lar, que consta com refeitórios, praça, bazar, quadra de eventos, salão de beleza e vários apartamentos compartilhados ou não. Lá residem os idosos com menor nível de dependência e os independentes de cuidadores. Por onde passamos fomos recebidos por sorrisos e cativantes conversas, como a de uma senhora que viveu na Inglaterra e falou em inglês com a gente. Renata nos conta que muitos deles vivem no lar há muitos anos, décadas. Com ou sem família próxima eles gostam de estar lá e vivem bem. Existem muitos laços de amizade no lar, seja entre os residentes quanto na relação residente/cuidador como no caso de Renata que transmite muito bem esse afeto para com os idosos que pudemos acompanhar. Uma amizade verdadeira. No turno da noite, com todos os viventes reunidos, foi discutido em plenária Saúde Mental com Rafael Baquit da Rede Cearense de Redução de Danos e Bruno Garcia da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial). Essa conversa rendeu alguns pontos interessantes: O CAPS não é um modelo de Atenção em Saúde Mental, mas faz parte da transição do modelo manicomial para um modelo melhor. O CAPS pode apresentar-se como manicômio, ao servir apenas pra distribuição de medicamento, no qual o paciente vai de tempos em tempos, em busca do remédio. Comunidades Terapêuticas vêm se apresentando como novos manicômios no tratamento de dependentes químicos. O desafio em tratar o paciente mental no mesmo hospital que se trata de diversas especialidades médicas como cardiologia, neurologia, traumatologia etc. O desafio também em existir uma mesma ambulância do SAMU para pacientes de todas as demandas, inclusive a mental e não ambulâncias separadas. A hegemonia do sistema biomédico venda/tapa a percepção do profissional de saúde da influência dos determinantes sociais no processo saúde-doença do indivíduo. Além disso, esse sistema propicia a classificação do sujeito e a personificação da situação. A pessoa perde a identidade como humano e é rotulado como a patologia – “depressivo”, “drogado” e “esquizofrênico” e “vagabundo” exemplificam bem isso. Serrinha (Dia 05) No quinto dia de vivência acompanhamos o senhor Alencastro, ACS na microárea 276 (Rampa) do município de Fortaleza, mas ele também é bacharel em história e psicopedagogo. E uma pessoa muito iluminada também. Ele pertence a equipe vermelha (no território) da Unidade Básica de Saúde Luis Albuquerque Mendes. Três viventes (contando comigo) e uma facilitadora acompanharam um dia de territorialização feita por Alencastro. Foi feita a visita domiciliar em três casas. Essas visitas (feitas pelo ACS acontecem toda quinta). “De três em três meses ocorre a visita com uma equipe maior” (médicx,enfremeirx, tecnicx em enfermagem e ACS). Fomos à casa de dona Antônia, aparenta ter 50 anos, diabética, amputada de terço distal do pé direito, conta com auxílio da Irma para realização de algumas atividades. Lá Alencastro verifica como esta a recuperação do pé amputando (fechamento da cirurgia – recente), a medicação de Antônia e como ela está se sentido. Nesse momento foi interessante porque descobrimos que o território que Alencastro cobre como ACS é o mesmo território onde está localizada sua casa. Por isso, ele conhece cada pessoa pelo nome, o que é um diferencial na visita. Na Rampa existem 194 famílias (uma população de aproximadamente 920). A segunda casa onde fomos foi para distribuição de medicamento e na terceira casa não havia ninguém. Então fomos a uma quarta visita, dessa vez com a ACS Fátima, também da equipe vermelha, para entregar medicamento a uma senhora. Fátima nos falou que a microárea dela é um pouco maior que a do Alencastro (328 famílias, aproximadamente 1200 pessoas). Porém, é um lugar com o nível de criminalidade altíssimo, como ela mesma destacou: “(As drogas) virou uma doença aqui”. Ela fala que assaltos são frequentes, e que ela nunca sofreu um por ser conhecida na comunidade, mas mesmo assim tem medo. Voltamos para a UBS no turno da tarde. Dessa vez em uma roda de conversa com o conselho de saúde, residentes, ACS e coordenação daquele equipamento. Alguns pontos foram destacados: A espera por uma visita familiar com toda a equipe chega a ser de seis meses. Distribuição do atendimento a partir de demandas espontâneas (consultas no posto) e demandas marcadas (visitas domiciliares), e a diminuição da carga horária de trabalho têm complicado a situação do posto, haja vista que o na demanda espontânea ou se está muito mal ou não se é atendido; o deixam de existir consultas para a prevenção de doença, como consultas de rotina; o uma menor carga horária impede que existam mais visitas familiares. Existe um problema de comunicação dentro das Redes de atenção, principalmente na Secundária. Exemplo: quando o paciente não consegue atendimento no posto ele segue para a UPA, onde pode ou não receber atendimento, mas na UPA ele não pode ser encaminhado para um serviço especializado e por isso ele retorna para o clínico geral da UBS. Duas frases ditas pelos ACS me chamaram atenção: “(os usuários) são nossos vizinhos” e “o que vou levar para minha comunidade” mostrando a indignação por não poderem ofertar a comunidade um atendimento que é direito dela. Justamente por serem tão próximos dos usuários a falta de medicamento, a ausência de profissionais e tantos outros problemas machucam os ACS que por isso, entram na luta por um SUS de todos. O corredor do cuidado (Dia seis) O dia 21 de janeiro amanheceu com uma chuva muito forte. E então fomos ao Terreiro da Mãe Valéria, um terreiro de Candomblé. Enquanto estávamos no VAN fiquei imaginando como seria lá... se teríamos que pular ao som do tambor enquanto os espíritos baixavam na Mãe de Santo. Na verdade o local é comum, localizado num bairro habitacional, não muito grande. Por fora não tem indicações, parenta mesmo uma casa qualquer com um portão. Por dentro pode-se ver um espaço rico em esculturas bem expressivas, alguns animais e plantas. No fim do corredor existe um galpão grande e coberto que é onde os cultos acontecem, e para lá fomos. Quem no recebeu foi a própria Valeria e um rapaz que diz ser seu filho. E então se iniciou tudo de que eu não tinha imaginado no trajeto até lá. É inegável a gentileza de nos ter recebido e respondido os diferentes questionamentos. Eles nos contaram sobre a história do Candomblé, a diferença em relação a Umbanda (que faz o mal para o povo – despachos), sobre a questão de orientação sexual e a religiosidade (não existe nenhum preconceito com casais homoafetivos, que são bem comuns entre eles). Por fim fomos a um Museu onde foi interessante observar a representação de diferentes orixás. À tarde fomos ao Ekobé (palavra do tupiguarani e significa vida) espaço localizado na Universidade Estadual do Ceará – UECE. Fomos recebidos pelo coordenador do projeto, senhor Edvan que nos falou das práticas que acontecem ali e o que é o espaço. Trata-se de um espaço baseado na permacultura, ou seja, com o menor impacto ambiental possível. Baseado na ecologia, sustentabilidade e solidariedade. Sua estrutura é formada de uma sequência de salas individuais para práticas de massoterapia e Reike, um almoxarifado, uma copa, um grande salão coberto por palha e uma área verde bem grande com plantações de ervas medicinais e frutíferas. Alem de uma horta sobre o telhado. No espaço acontece a formação em massoterapia e Reike, além de biodança e Ensino Popular em Saúde. As pessoas podem se inscrever para participar do curso e em troca de dispõem para ajudar o espaço seja praticando o que foi aprendido (como uma espécie de estágio) ou se voluntariando ao projeto. Depois dessa introdução, fomos apresentados a algumas plantas medicinais e foi bem interessante tentar fazer o reconhecimento através do cheiro, além de saber as indicações de algumas delas. Na sequência Edvan nos orientou a formar um corredor (éramos em cerca de 40 pessoas) com uma pessoa frente a outra e um a um entraria no corredor, de olhos fechados, para receber cuidados das outras pessoas. A orientação era “que todo toque seja de cuidado, ofereça aquilo que gostaria de receber” no final do corredor cada pessoa era recebida com um abraço da última que havia passado pelo corredor. Posso dizer que foi uma experiência muito legal, porque pude sentir de fat o toque de cuidado de tantas pessoas, que nem sabia quem era e o abraço no final do corredor transmitiu um amor muito grande entre todos os que participaram. Alguns não eram nem viventes. Foi muito legal mesmo. Já no alojamento, fomos convidados a fazer uma colcha de retalhos. Cada vivente e facilitador receberam um pedaço de pano e fomos orientados a, de forma livre, colocar o que nos tinha marcado até o momento. Descrevi sobre nossa conversa com os ACS e o conselho de saúde que havíamos feito no dia anterior, destacando uma frase que também citei nesse texto. O resultado foi maravilhoso como se pode observar na imagem que segue. Metade do caminho (Dia 7 de um total de 13) Saímos cedo naquela manhã. Nosso destino era a tribo indígena Pitaguari. E lá estava eu pensando como seria a aldeia, já conseguia ver a gente pulando e cantando músicas para o sol, a terra, para Tupã e tal... Até que essa parte eu não errei muito não. O lugar é lindo tem muitas serras e um lago. Fomos recebidos por Neto (índio, acadêmico de enfermagem) sua mãe Fátima (índia, ACS da comunidade) e por Francisco Daniel (cacique da tribo) que nos preparam um café com tapioca. Eles nos falaram um pouco sobre o território. Existe um posto de saúde, uma escola de ensino fundamental, uma igreja católica e duas igrejas evangélicas. A terra da aldeia já foi demarcada, porém, ainda não é registrada em cartório, o que é um problema, haja vista que invasões são frequentes. Existe uma pedreira próxima a aldeia e eles lutam contra o avanço da mesma. Em relação à saúde, os profissionais de saúde que atendem no posto adaptaram bem a nomenclatura das doenças além do cuidado próprio da cultura indígena com o uso de ervas e raízes medicinais. A população elogia muito o serviço e diz está satisfeita. Até mesmo em caso de emergência eles contam com carros próprios que os conduzem aos hospitais. Uma questão sensível na aldeia são as igrejas e a espiritualidade. O cacique relatou que as igrejas disseminam a descrença entre os fieis da eficácia da medicina tradicional e que algumas práticas indígenas são “coisas do demônio” como o uso de tabaco e outras drogas. Apesar de na constituição estar claramente proibida a construção de templos religiosos nas aldeias elas continuam lá porque os líderes comunitários são em sua maioria os mesmos líderes nas igrejas. A questão de religiosidade é complicado de se discutir na realidade indígena nesse território porque o que se observa que até aqueles que criticam estão intimamente ligados a praticas católicas, evangélicas e a Umbanda, e por isso guerreiam entre si. Depois desse momento, fomos distribuídos em grupos para conversar com membros da comunidade. Conversamos com A. M., que nos respondeu algumas perguntas. Mãe de seis filhos, esposa do Pajé (autoridade máxima na comunidade), mora em outra aldeia - a Munguba. Ela elogiou muito o posto de saúde “(o posto) é quase um hospital”, local onde se pode fazer todo acompanhamento pré-natal e a marcação de consultas é eficiente. Usa-se muito o conhecimento popular para tartar de enfermidades como ela relatou “o fumo corta o efeito do veneno da cobra”. Os conhecimentos são passados de geração para geração, exemplo disso é o esposo dela que irá ensinar o filho Cairan (signifia “rei dos pássaros”) a pescar e caçar, que são as atividades que ele sabe fazer. Infelizmente, com o tempo eles perderam a língua deles, o que acarretou outras perdas como religiosidade própria, valores e identidade indígena. Algo que foi debatido depois entre o NB e gerou considerações interessantes entre a gente ao refletir sobre o que esperávamos e o que encontramos, e melhor, o que de fato é ser índio. Na aldeia não existem projetos de turismo. O açude é de uso apenas dos indígenas. Caso alguém de fora use o açude a policia é chamada para retirá-los. As pessoas podem entrar no território desde que com a permissão de alguém ou acompanhados. No turno da tarde fomos conhecer a Casa de Saúde do Índio e o posto de saúde. São estruturas ótimas que atendem a população de forma eficiente. Na sequência, acompanhados do Cacique fomos a um local sagrado: um local onde há muitas mangueiras, onde no passado morreram muitos índios em brigadas pela terra. Lá agradecemos a Tupã pelo dia e cada um fez uma oração pessoal, depois oramos o Pai Nosso de mãos dadas e finalizamos a visita com uma dança entre as mangueiras. Quatro banhos (Dia 08) Essa atividade foi bem interessante. Pela manhã fomos a Sabiaguaba para o banho dos quatro elementos. Primeiro fizemos o banho com o elemento terra, por meio de passarmos argila no corpo uns nos outros. Depois foi o ar, a partir de exercícios de respiração, trazendo calma e paz de espírito. O elemento fogo teve sua relação com o fato de estarmos no sol e termos a consciência ecológica de retirar o lixo da praia e por onde passamos. E então partimos para o mangue, na travessia sem emoção mais curta, porém bem difícil e divertida. Terminamos o percurso no encontro do rio com a praia com o banho com o último elemento: água. E Foi bem merecido. No fim da tarde alguns viventes e facilitadores foram ao bloco Doido é Tu e fizemos um momento cultural a noite. Um sentimento estranho já invadia nossos corações... acho que era porque a vivência estava mais perto de acabar. Quatro dias antes (Dia 09) Pela manhã fizemos uma sessão de biodança. À tarde falamos sobre humanização com a Luciana Mesquita. A conversa foi muito produtiva falamos sobre a PNH que trata sobre o reconhecimento da nossa humanidade. Essa política aplica-se a gestão, aos usuários, a atenção e aos profissionais de saúde. Algumas considerações iniciais foram importantes: As pessoas não buscamm seus referencias nos coletivos sociais, mas em si mesmos. As pessoas estão sempre reagindo (vida corriqueira), não dá para refletir sobre suas ações. Vivemos uma cultura nascísica – culto ao corpo e sociedade do exibicionismo. A PNH surge e vai de encontro com a luta antimanicomial, o movimento feminista e contra a violência institucional em busca, por exemplo, do parto humanizado. O profissional de saúde deve somar suas competências técnicas/tecnológicas às competências étnicas e de relacionar-se com outro “um em função do outro”. Uma questão interessante levantada em nossa conversa foi que o profissional não pode justificar o não cuidado por ter péssimas condições de trabalho (salário baixo). A humanização enquanto política significa menos o que fazer e mais como fazer. Por meio dessa da PNH surgem espaços de fala como ouvidoria, equipes de referência, grupos de humanização. Atividades voltadas para o fazer coletivamente. Humanização não é fazer um mural e colocar a data de aniversário do funcionário e o diretor ir parabenizar. Na relação entre os profissionais, os espaços promovidos pela PNH, são base para o exercício da gestão participativa e da transdisciplinariedade. Na humanização todos fazem e pensam o SUS. Isso inclui desde o profissional de serviços gerais no hospital até o diretor. Durante a noite assistimos ao documentário “O caldeirão de santa cruz do deserto” e foi legal por conhecermos um pouco mais sobre saúde, reliogidade e política no interior do Ceará, mais especificamente na região de Juazeiro do Norte em meados do século passado. Três dias antes (Dia 10) Pela manhã fomos a Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE) fomos recebidos por Amanda que nos falou da RIS – Residência Integrada em Saúde, composto por 10 programas de Residência Multiprofissional e 1 programa de Residência em Enfermagem Obstetrícia. A RIS é um programa de 2 anos de duração com carga de 5760 horas (60 horas semanais). A Residência é um programa de pós-graduação que apresenta vantagens em relação a Especialização por exemplo, por ser mais prática do que teórica, porque o SUS financia a formação dos profissionais (ao passo que a Especialização apresenta a mesmice da graduação e em sua maioria são pagas e com poucas práticas). 22 cidades no Ceará são pólos da RIS, que envolve cerca de 1400 pessoas, entre residentes e preceptores. O objetivo da Residência é formar lideranças técnicas, científicas e políticas na Saúde Pública. Ainda conversamos sobre o avanço e aumento no número de vagas em relação com as residências médicas (que são separadas das multiprofissionais).Na medicina a realização de residências após a graduação é praticamente obrigatória e existe uma quantidade grande de vagas em relação as outras 13 profissões da saúde. E isso deve ser cada vez mais incentivado. No turno da tarde visitamos o Hospital Infantil Albert Sabin cuja missão é “Prestar assistência à criança e ao adolescente, de forma segura e humanizada, sendo instituição de ensino e pesquisa” fomos recebidos Noêmia - assistente social e alguns residentes da RIS. Fizemos a visita às dependências do hospital, e foi possível identificar que algumas enfermarias encontravam-se com hiperlotação, e assim muitos pacientes estavam no corredor. Na sequência fomos ao CPC – Centro Pediátrico do Câncer que é administrado pela Associação Peter Pan. Trata-se de um prédio com ótimas instalações que oferece um atendimento integral à criança/adolescente com câncer e tem diversos projetos em parceria com as mais variadas instituições. Abaixo, uma foto nossa em um dos projetos, o ABC+Saúde, onde as crianças vão fazer suas atividades escolares e/ou atividades recreativas. Durante a noite conversamos sobre Privatização do SUS com Lucia Conde/UECE, e foi interessante relembrar que antes do SUS só tinha direito à saúde aquele que contribuía com a previdência, ou seja, aqueles que trabalhavam. Depois da Constituição de 1988 e do surgimento do SUS, começam a também uma infinidade de planos de saúde que curiosamente oferecem em sua maior quantidade de volume serviços de atenção secundária (atendimento especializado e exames), que por serem em grande quantidade geram lucro substancial a esse mercado. A atenção primária não interessa ao setor privado porque não gera lucro e a atenção terciária e quaternária porque são caras demais e por isso, ninguém consegue pagar. Ficando esses atendimentos essencialmente fornecidos pelo SUS. A terceirização do serviço surge no contesto da Economia Neoliberalista, em que o governo interfere menos na vida das pessoas, e que pode existir um serviço público que não seja estatal como as organizações sociais (exemplo: SINE – Sistema Nacional de Empregos). O problema na terceirização é o grande volume de gastos em relação ao serviço/bem que é adquirido. Isso é bem comum por parte das empresas que comrar em distribuem os medicamentos dentro da rede. Dois dias antes (Dia 11) Pela manhã fomos aos CUCA – Centro Urbano de Cultura, Artes, Ciência e Esporte, localizado na Barra do Ceará, em Fortaleza. É um espaço bem amplo que contém: quadra de esportes, piscina, anfiteatro, cinema, espaço para realização de eventos, biblioteca, salas para outras práticas como dança aulas de música, salas da coordenação e outros espaços. Existem atividades para o público jovem que esteja em busca de lazer, de encontrar amigos “construção de laços e reconhecimentos de identidade” como está escrito na placa de inauguração. Existem ações de redução de danos em alguns espaços como nos shows do antiteatro. À tarde fomos ao Centro POP do bairro Benfica um ambiente com uma população de alta vulnerabilidade. Tivemos a oportunidade de acompanhar o trabalho de um pedagogo com um grupo de pessoas em situação de rua, eles estavam conversando sobre a música brasileira, mais especificamente o samba. Foi bem divertida a conversa e percebi que todos na roda interagem com o profissional que em palavras simples e alegres trazem algumas questões comum à eles, como história de vida e profissão. Na sequência falamos com a coordenação do equipamento e assim ficamos por dentro do funcionamento (de segunda a sábado) e as práticas que ali acontecem: diminuição de danos, rodas de conversa, alimentação e entrega de roupas e outros materiais, identificação e documentação, entre outros. Pode acontecer também restabelecimento de vínculos. Fomos informados de que é meio complicado o não funcionamento do serviço nos fins de semana, haja vista que muitas pessoas em situação de rua não conseguem se alimentar de forma mais básica possível e podem sofrer com a violência urbana. O número desses equipamentos em fortaleza é insuficiente (apenas dois, para uma demanda grande). No turno da noite conversamos com a professora Leiliane sobre o SUAS – Sistema Único de Assistência Social. Pudemos destacar os seguintes pontos: Os equipamentos de assistência social são precarizados. Existe uma confusão por parte do usuário entre favor e direito pelo serviço recebido, por isso ele pouco recorre a melhorias. Os equipamentos não dialogam. É complicado a reinserção no ambiente de trabalho,no caso de pessoas em situação de rua, porque existe entre elas uma baixa formação técnica e qualificada e a política de trabalho é muito excludente. Pouco mais de 24 horas antes (Dia 12) No último dia de vivência propriamente dito fomos à Secretaria Municipal de Saúde, especificamente junto a Coordenadoria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde, conhecer um pouco sobre gestão dos serviços de saúde. Fortaleza é uma cidade que é formada por seis regiões e tem 101 UAPS – Unidades de Atenção Primária à Saúde, oito hospitais de Atenção Secundária e o Instituto José Frota que é um equipamento de Atenção Terciária. Existem articulações com diversas instituições de ensino superior para realização de estágios e projetos – Universidades Públicas têm prioridade. Quando questionamos sobre a insuficiência de profissionais na Atenção Primária, fomos informados que a situação irá melhorar com a contratação de mais profissionais. No turno da tarde houve uma pequena reunião com a Comissão Organizadora que nos comunicou a necessidade de fazermos uma devolutiva à algum equipamento que havíamos visitado (grupo do VAN), de forma livre a partir de uma faixa de pano, que seria colocada no local escolhido. Optamos pelo lar Torres de Melo cuja visita foi especial para todos e por termos sido muito bem acolhidos por todos ali. A foto abaixo mostra o resultado. Nossa última plenária foi sobre Gestão em favor do SUS Caio Cavalcanti da ESP/CE. Uma afirmação bem interessante foi o SUS como face institucional da Reforma Sanitária. A distinção entre Saúde Coletiva (foco na saúde – promoção) e Saúde Pública (foco na doença – prevenção) também foi um ponto alto na noite. Cada município gasta no mínimo 15% do seu orçamento em saúde, acontece que muitos municípios no Brasil não tem uma pequena arrecadação, necessitando dos repasses federais e estaduais para a manutenção de todos os gastos municipais. Assim ocorre desses municípios não terem uma adequada assistência à saúde da população. Outros municípios por ter uma quantidade exorbitante de usuários não conseguem atender a todos e também necessita de repasses financeiros. O dia 13 Pela manha fizemos a devolutiva no Lar Torres de Melo e a tarde foi feita a avaliação da vivência e Comissão Organizadora. E então nos despedimos, foi doloroso e demorado. Alguns dias depois Gostaria de relatar só mais um pouco (risadas). O VerSUS foi uma experiência ímpar, primeiro porque tudo foi novo para mim. Outra cidade que não a minha, a qual nunca havia ido sequer ao estado. Conhecer muitas pessoas, algumas de lugares distantes assim como eu, de diferentes formações, movimentos e cursos foi muito importante para alimentar debates, construir e desconstruir ideias e conceitos. No VerSUS foram formados laços de respeito e amizade entre pessoas tão diferentes mas que continham em si um mesmo propósito: lutar por um SUS de todos e para todos. Para finalizar achei legal deixar uma frase, capturada no Centro POP juntamente com duas fotos daqueles que construíram essa vivência. AbraSUS! “A mão que ajuda é mais sagrada do que a boca que reza”