MEMÓRIA E IDEOLOGIA: A CONCRETICIDADE DA VIDA COTIDIANA Roney Gusmão do Carmo Doutor em “Memória: linguagem e sociedade” Professor adjunto do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas – CECULT Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB [email protected] RESUMO: Foi no desenvolver de pesquisas interdisciplinares no campo da memória e das representações sociais que surgiram preocupações em torno da relevância acadêmica de estudos que debrucem sobre a materialidade do cotidiano. É no percurso epistemológico da investigação, que pesquisadores são confrontados com a relação dialética arbitrariamente traçada entre a ordinariedade da vida comum e a amplitude da totalidade. Assim, o presente artigo se empenha em compreender as variáveis que contornam a relação, por vezes obscura, entre pesquisa científica e a concretude da vida cotidiana, especialmente quando esta última é objeto de análise daquela primeira. PALAVRAS-CHAVE: Memória, ideologia, cotidiano. Introdução O presente texto é resultado de preocupações metodológicas suscitadas no decorrer de pesquisas científicas de pós-graduação em ciências sociais que desenvolvemos nos últimos anos. Em nossa experiência, ao debruçarmos sobre a vida cotidiana das pessoas comuns como substância investigativa, sempre éramos confrontados com situações extremas: ou constrangia-nos a sensação de desnudar o senso comum com vista à aplicação de um método dialético, pretensamente erudito, ou inquietava-nos a relevância científica de uma investigação que tenha representações sociais da vida cotidiana como objeto de uma pesquisa. Foi como pesquisadores do campo interdisciplinar da memória e das representações sociais que tais sensações vieram à tona. Partimos do pressuposto de que o conjunto de representações são delineadas sobre uma base concreta da existência social. É nesse campo da cotidianidade, definida porKosik (2010) como peseudoconcreticidade, que os sujeitos esboçam e compartilham significados capazes de dar sentido à sua Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 existência corriqueira. Inevitavelmente, intencionalidades hegemônicas pairam nas relações sociais, polarizam perspectivas, fomentam fantasias e sugestionam condutas, penetrando assim a subjetividade das pessoas, sem fazer extinguir as individualidades brotadas em cada trajetória irrepetível de vida. Ora, se as memórias e representações são, evidentemente, permeáveis às ideologias hegemônicas que as interpenetram, como então validar estudos que sistematizem a vida comum de pessoas e os pensamentos nela construídos? Como também garantir a validação científica de pesquisas que tenham as representações comuns como objeto de interesse? Pois bem, é reconhecendo a permeabilidade da memória social e das representações de homens comuns, que propusemos esta análise, cujo objetivo é compreender a materialidade da vida cotidiana, reconhecendo sua interconexão com as manobras ideológicas hegemônicas. Com isso, não pretendemos perder de vista a peculiaridade dos significados esboçados na vida corriqueira que munem pesquisadores com material rico, capaz de dar sentido a pesquisas preocupadas com a dialética que liga o senso comum a uma totalidade histórica. Memória, ideologia e a vida cotidiana Toda representação social possui, inevitavelmente, posicionamentos ideológicos associados às condições concretas dos sujeitos. Por meio dessa ideia, torna-se então necessário reconhecer que não há como dar significado à vida sem acionar componentes socialmente compartilhados para legitimar o significado de um dado objeto ou fenômeno para o mais comum cotidiano das pessoas. Esse processo não ocorre dentro de um idealismo descolado da vida concreta, pelo contrário, é um fenômeno subjetivo, amarrado à materialidade da vida social. De todo modo, se lembrarmos que essas condições concretas são mutáveis em função do próprio metabolismo do sistema capitalista, então, chegamos à constatação de que as representações das coisas comuns estão inscritas no movimento dialético da história. As representações comuns e as experiências dos sujeitos estão inscritas numa história em ininterrupto movimento, percepção ilustrada por Hobsbawm ao fazer a leitura do “itinerário de um ser humano, cuja vida não poderia ter ocorrido em Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 qualquer outro século.” (HOBSBAWM, 2007, p. 12). Nesses termos, dissociar as representações do contexto histórico que cerca os indivíduos é negar as condições materiais e sociais que participam ativamente na construção do mundo de significados. Estando inseridos socialmente, os indivíduos representam as coisas, o que implica produzir e reproduzir significados retroalimentados por ideologias que orientam formas de pensar. As representações construídas pelos sujeitos estão postas na concreticidade, e possuem uma natureza simbólica, manifesta na ação, no discurso e nos produtos culturais. Nesse raciocínio, a representação comum é um construto pessoal, dado sua peculiaridade, mas é, sobretudo, inscrita no contexto social que lhe atribui dinamismo e amarra as representações mais íntimas ao contexto coletivo. Ao externarmos as representações comuns, enfatizando sua dinâmica social, reconhecemos também sua maleabilidade e mutabilidade, ou seja, admitimos que tais representações transitam na história e, pelo senso de identidade com o grupo, se perpetuam entre gerações e adquirem vida através das relações sociais. Nesse percurso, a memória nada mais é do que as representações das coisas no passado demonstrando refrações no presente, tudo num processo de conservação/mutação que torna o senso comum, não apenas um discurso amorfo, mas representações dialeticamente associadas a um presente contínuo. Nessa dinâmica de vínculos sociais postos numa história em curso, as representações ora se mesclam, ora são reconstruídas, ora são conservadas. Os fatores que vão determinar os caminhos das representações são múltiplos, complexos e específicos de cada grupo social em consonância com a temporalidade e trajetórias vitais, não apenas resumidas a uma interpretação cronológica convencional, mas peculiar a cada metabolismo social. Essas experiências, então, ganham mobilidade no decorrer da história e entre gerações através da memória que, esboçada no e pelo presente, solicita significações do passado, conservando ou remodelando-as segundo os interesses daqueles que acionam as representações. Evidentemente, ao concordarmos com Halbwachs (2006), que compreende a memória como um construto social efetuado no presente, estamos reconhecendo que os significados e valores contidos no objeto memorado está completamente Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 sujeito à manipulação decorrente do próprio caráter seletivo da memória. Através dessa percepção, entendemos que a memória, como qualquer outra ideia suscitada no interior das relações sociais, contém posicionamentos ideológicos, é uma construção parcial e comprometida com interesses implícitos na própria seletividade da memória social. Para Halbwachs (2006), existem tantas memórias quantos grupos sociais existirem, de todo modo, muito embora o autor não mencione claramente a memória como espaço de disputa de significados entre os grupos, pode-se deduzir que em todas sociedades existem aquelas memórias robustecidas pelo poder hegemônico e aquelas marginalizadas na sociedade, ao que Pollak (1992) entende por memória subterrânea. A relação dicotômica esquecimento/conservação implícita na memória social, se torna ainda mais agravada quando nos referimos à sociedade capitalista, onde distintos grupos possuem desiguais formas de inserção. São valores múltiplos com diferentes possibilidades de se fazerem subsistir, o que inevitavelmente resulta na prevalescência de interesses hegemônicos, sustentados a partir de uma máquina pública altamente submersa numa ideologia. Ao compreender o teor ideologizado da memória implícito em sua seletividade, pode surgir o questionamento: por que estuda-la? Qual é a contribuição que esta análise geraria para superação das condições atualmente existentes? Antes de discutir sobre essas indagações, é necessário chamar atenção para alguns debates sugeridos por Halbwachs no início do século XX. Discorrendo sobre memória coletiva, o autor sinaliza que, embora a história se demonstre compartimentada por períodos, eras estanques, tal fragmentação é puramente esquemática, pois no decorrer de diferentes períodos, Halbwachs (2006, p. 104) afirma existir um “fio da continuidade” entre os grupos. Segundo o autor, mesmo em diferentes momentos da história, a memória coletiva faz transcorrer ideias, que são, para ele, “não apenas os fatos, mas os modos de ser e de pensar de outrora que se fixam assim na memória” (HALBWACHS, 2006, p. 85). Através desse caminho teórico, entendemos que a memória faz transitar representações acerca dos fenômenos no decorrer do tempo, superando diferentes momentos da história, e arrastando significados mantidos nas relações sociais. Essa realidade nos leva a entender que investigações acerca da memória coletiva solicita Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 perceber os meios materiais e sociais que propiciaram sua conservação e, para tal análise, torna-se necessário deflagrar as condições materiais que geraram distintas formas de inserção entre os grupos que compõem a prática social. Nesse processo investigativo, a percepção da relação dialética entre memória e esquecimento é meio crucial para produção da consciência, afinal “el poder de crear y estabilizar la memoria es de hecho signo de poder en general a todos los niveles de laorganización social.” (JEDLOWSKI, 2000, p. 127). Por fim, cabe salientar que entender a memória solicita compreender as condições sociais e históricas em que os significados são construídos, é também compreender a sociedade como um todo orgânico, composto de contradições produzidas e reproduzidas segundo a dinâmica impressa pela história na sociedade. Noutros termos, o campo da memória implica em temporalização de vivência dos homens e mulheres que compõem o todo dialético de uma sociedade inscrita na história e em ininterrupto movimento. A memória, nesse sentido, não se traduz apenas como conservação, mas é o está posta na relação difusa, dicotômica e flexível entre a produção e a reprodução de significados a partir de um metabolismo social altamente dinâmico. A concreticidade da consciência comum Quando tratamos da memória, recorremos, antes de tudo, ao que chamamos de representação comum, cuja formação se estabelece dentro de um campo concreto de relações sociais. Mas como se formam essas representações? Dado seu grau de subjetividade, que a torna elemento mais corriqueiro do senso comum, qual é a pertinência do seu estudo para a comunidade acadêmica? É exatamente na cotidianidade que brotam sistemas de valores e representações que dão sentido ao olhar dos sujeitos sobre sua práxis. É sabido que, no viés teórico marxista, todo homem é sujeito histórico e, sobretudo, posto numa totalidade dialética, exposto a signos advindos da dinâmica sociometabólica do sistema. Por conseguinte, o senso comum é suscitado do mais trivial cotidiano de homens e mulheres históricos, contudo, a representação comum do dia-a-dia se torna exaustivamente repetitiva e involuntariamente reproduzida, perpetuando valores, simbologias e representações. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 Por meio dessa constatação, fica claro que a automaticidade de valores e ações não só compõem a prática social dos homens, como é condição para sua inserção e identidade com seu espaço concreto de sobrevivência. É, pois, nessa base concreta que se constroem os homens, permeáveis de valores, representações, objetivações, fato que permite deduzir que “o homem é antes de tudo aquilo que o seu mundo é” (KOSIK, 2010, p. 85). A inevitabilidade da condição social do homem faz criar “representações das coisas e elaborar todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade” (KOSIK, 2010, p. 14). Os sujeitos estão ancorados numa teia de relações sociais que, por sua vez, se acoplam dialeticamente a uma totalidade histórica e, no convívio social, os indivíduos introjetam significados advindos da obviedade do senso comum, que penetram a consciência, estabelecendo o que Kosik entende por “pseudoconcreticidade”. Essa “pseudoconcreticidade” nada mais é do que os significados mais vulgares do senso comum, internalizados em indivíduos que, em posição ativa, absorvem, elaboram e, até, reproduzem nebulosas representações que lhe foram compartidas. É também necessário salientar que a cotidianidade não se opõe, necessariamente, ao “mundo oficial”, pelo contrário, estabelecem entre si uma relação de retroalimentação que se complementam. Nesse sentido, se pensarmos na história, esta se interpenetra à cotidianidade, podendo estabelecer uma relação de complementariedade e, não necessariamente, de oposição. Em suma, podemos encontrar na história explicações para fatos nebulosos da vida cotidiana, bem como podemos também encontrar na vida cotidiana signos que ratificam e corroboram para a amplidão da pesquisa histórica. Em Marx, as representações das coisas aparecem em sua relação dialética com o modo de produção da vida material, sendo que “as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias” (MARX, 1986, p.56). Para Marx, a “maneira de pensar” é fruto das condições concretas de existência do homem histórico e, como tal, estão fetichizadas pela ideologia dominante (LÖWY, 2006). Nesse sentido, ao contrário dos hegelianos, Marx entende a base material como condição para o desenvolvimento do homem em suas dimensões social, política e intelectual. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 Evidentemente, o materialismo histórico-dialético, considera não apenas as bases materiais na formulação de significados, como também entende esta relação dentro da história. Por resultado, as características sociais, políticas, econômicas inerentes a um período histórico contribuem na construção de representações sobre as coisas, por efeito, “a imaginação, a representação, que esses homens determinados fizeram de sua práxis real transforma-se na única força determinante e ativa que domina e determina a práxis desses homens”. (MARX, 1986, p. 45). Em suma, as representações dos indivíduos sobre as coisas são “um claroescuro de verdade e engano” (KOSIK, 2010, p. 89) por que se misturam ao caráter fetichista da cotidianidade, ordinarizam-se por ser parte constituinte do mais elementar convívio social. Com a ressalva de que, para fazer uso dessa consciência comum, há que acoplá-la a uma totalidade sócio-histórica que constitui a vida humana, hoje totalmente sujeita à inferência de significados de ideologias circundantes no convívio social. Reatando a discussão O percurso que trilhamos permite gerar algumas considerações acerca do debatido. Primeiro, foi possível observar que as relações concretas de vida têm por resultante inevitável, a absorção de significados, que Kosik (2010) entende por consciência comum. Essas representações contêm elementos advindos da pseudoconcreticidade, que permitem ancorar o pensamento comum a uma totalidade dialética e, por extensão, aos trâmites sugestionados pelo sistema na atualidade. Evidentemente, no discurso dos sujeitos essa pseudoconcreticidade se demonstra superficial, vulnerável à aparência dos fenômenos. O senso comum não contém suficientemente conteúdo útil para investigação científica, nesse sentido, cabe ao pesquisador, ancorá-lo dialeticamente ao cenário sócio-histórico, de modo a visualizar os componentes ideológicos dispostos no discurso superficial do senso comum, dando o trato solicitado pela problematização da pesquisa. A consciência comum, vulgar por sua trivialidade, torna-se meio de compreensão da forma como a ideologia hegemônica invade as representações e perspectivas de homens e mulheres históricos, pois revela as conflituosas relações postas num contexto de ambiguidades. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 Havendo reconhecido a existência de uma pseudoconcreticidade resultante do mais trivial convívio entre os sujeitos, podemos então supor que as pessoas, em sua convivência cotidiana, elaboram e compartilham significações – fetichizadas, por assim dizer – sobre a dinâmica que toca suas relações sociais. Essas representações, inevitavelmente, se encontram carregadas por ideologias, fato decorrente do próprio caráter social de qualquer condição de existência humana, tanto que não há desprovimento de posicionamentos ideologizados sobre o mundo, há sim representações contagiadas por visões importadas da convivência. Por esse motivo, reconhecemos que as representações não se mantêm cimentadas a um presente imóvel, mas podem ser arrastada no curso da história pelo que chamamos de memória social. É pelas relações sociais que homens e mulheres compartilham significados e, pelo senso de identidade, que herdam valores, assim, mesmo que carregada por uma visão ingênua e fetichizada, as representações sociais inevitavelmente levam consigo componentes advindos da realidade sócio-histórica onde se formam. Se as representações são permeáveis ao contexto e possuem caracteres adquiridos, dado seu caráter eminentemente social e histórico, logo a memória também o é. Através dessa constatação, optamos por privilegiar os conceitos em torno das representações e memória social porque entendermos que é no discurso dos sujeitos que são presentificados e sedimentados elementos da ideologia, capazes de sinalizar – mesmo que de modo superficial – as transformações advindas dinâmica social desenvolvida no curso da história. REFERÊNCIAS HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. HOBSBAWM, E. Tempos interessantes: uma vida no século XX. Trad.: S. Duarte. 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