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METATEATRO, MONODRAMA E O PAPEL DO DRAMATURGO EM
UM PROCESSO COLABORATIVO
Arthur Amorim Diniz
Orientador: Prof. Dr. Antonio Hildebrando
RESUMO
Neste artigo, que procura situar o lugar do dramaturgo e a sua relação com o processo
de criação de espetáculos em geral e do espetáculo Aqui Jaz um Homem de Teatro, em
particular, são analisados três elementos de especial relevância para dramaturgia do
referido espetáculo: o Processo Colaborativo, o Metateatro e o Monodrama.
PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia. Metateatro. Monodrama. Processo colaborativo.
Quem é capaz de dedicar toda sua vida à humanidade e à paixão
existentes nestes metros de tablado, esse é um homem de teatro.
Paulo Autran
1. O papel do dramaturgo em alguns momentos da História do Teatro.
Os primeiros dramaturgos, dos quais se tem registro no Ocidente, foram os
tragediógrafos e comediógrafos gregos. No teatro grego, o dramaturgo normalmente
acumulava a função de ensaiador, mas o cerne do teatro na Grécia antiga eram os textos
e os atores eram considerados, principalmente, como um instrumento para levá-los ao
público. O objetivo principal era transmitir a fábula, que passaria uma mensagem e
produziria a catarse, e não emocionar ou encantar o público com as habilidades dos
atores em cena.
E assim foi em várias ocasiões históricas: os espectadores iam aos teatros
para “ver” os textos de Shakespeare, de Molière, dentre outros. Não que a performance
do ator não interessasse, mas a ideia principal era transmitir exatamente o texto do
dramaturgo do jeito que ele imaginara.
À parte desse teatro existiram manifestações teatrais nas quais a arte do ator era
o cerne da questão e não a fábula. A Commedia Dell'arte é um exemplo desse
fenômeno, pois se utilizava da improvisação e tinha como texto prévio apenas os
chamados canovaccios, pequenos roteiros com indicações cênicas que informavam o
que deveria acontecer em cena. Mas, mesmo com essas exceções, o texto dramático e,
por consequência, o dramaturgo ocuparam, na maior parte da história do teatro, o lugar
mais elevado na hierarquia teatral.
Como propõe Antonio Hildebrando (2009, p.8)
Houve época em que o dramaturgo era o “criador” por excelência e fazer
com que as “suas idéias”, a sua visão de mundo, enfim, com o que ele “quis
dizer” e com que suas criaturas, os seus seres de papel, se corporificassem
frente ao público era a responsabilidade dos outros artistas da cena. Assim,
cabia ao autor do texto teatral, espécie de soberano absoluto, o papel de
protagonista ou, pelo menos, de deflagrador do complexo processo de criação
teatral.
O surgimento da figura do encenador, no começo do século XX, começou a
“enfraquecer” a figura do dramaturgo. Era agora a visão do encenador que vinha à cena
e era sua a palavra final sobre tudo no espetáculo. Mas, ainda assim, os primeiros
encenadores buscavam trazer à cena "a ideia do dramaturgo". Como esclarece Bernard
Dort,
O advento do encenador provoca no exercício do teatro o aparecimento de uma nova
dimensão: a reflexão sobre a obra. Entre esta obra e o público, entre um texto “eterno” e
um público que se modifica, submetido a condições históricas e sociais determinadas,
existe agora uma mediação (DORT, 1977, p. 68).
Com o avançar dos anos os encenadores foram-se distanciando cada vez
mais da "ideia original do dramaturgo" e imprimindo suas leituras e interpretações ao
espetáculo. De acordo com Hildebrando:
Com o advento do encenador, a percepção de que o texto é mais um, e não o
mais importante, entre os muitos elementos constitutivos do fenômeno
teatral, tornou se cada vez mais forte. Com o passar do tempo, a busca por
colocar em cena um sentido – acreditava-se – já estabelecido pelo
dramaturgo perdeu espaço para a consciência do caráter polissêmico dos
textos e, assim, o encenador passou a imprimir livremente a sua leitura aos
textos. O cetro trocou de mão e a assinatura do encenador passou a ser a
marca fundamental de muitos espetáculos, mesmo que utilizassem um texto
previamente escrito como ponto de partida ou como fonte de inspiração.
(HILDEBRANDO, 2009, p. 8)
A partir de meados do século XX, começou a surgir o que seria chamado de
teatro pós-dramático, no qual a fábula pode ser dispensada. Como é dito por Sérgio de
Carvalho na apresentação do livro "Teatro Pós-Dramático" de Hans-Thies Lehmann:
Teatro Pós-Dramático parte da hipótese de que a partir dos anos 1970 ocorreu
uma profunda ruptura no modo de pensar e fazer teatro. Algo que já estava
anunciado pelas vanguardas modernistas do começo do século XX - a
valorização da autonomia da cena recusa qualquer tipo de "textocentrismo" se desenvolve mais radicalmente, a ponto de assumir um sentido modelar
como contraponto da arte ao processo de totalização da indústria cultural.
(CARVALHO in LEHMANN, 2007, p. 07)
Embora a encenação possa ter um texto prévio como ponto de partida, como
é o caso do espetáculo que abordaremos neste artigo, a dramaturgia é resultado do
próprio processo de construção do espetáculo. O texto inicial sofre muitas alterações e
não pode ser desvinculado da montagem da peça, pois ocorre a via inversa do que se
dava tradicionalmente, de tal forma que algumas indicações ou falas do texto partem da
encenação para então passarem a constituir o texto dramático. Como define JeanJaques Roubine no seu livro "A Linguagem da Encenação Teatral":
O Escritor profissional não é absolutamente excluído das novas formas de
escrita que se impuseram. Ele pode entrosar-se no trabalho coletivo [...] Ele
proporá então, não tanto textos, mas soluções textuais aos problemas que se
apresentam; [...] ou ainda, adaptará, transformará tal texto adotado como
ponto de partida. (ROUBINE, 1998, 79)
Já no principio do século XXI, mesmo quando se detecta a presença da
fábula, esta se estrutura de forma diferente daquela do período "textocêntrico” e, assim
como houve uma mudança na forma como a fábula se apresenta, houve também uma
mudança na função do dramaturgo e na sua relação com a construção do espetáculo e
com aqueles envolvidos nele, pois,
Hoje, o processo de construção de um espetáculo teatral a partir de um texto
previamente escrito é apenas uma das muitas possibilidades. Adaptações e
transcriações de textos que originalmente não foram escritos para o palco ou
textos que surgem das improvisações dos atores e/ou, ainda, das discussões
geradas durante o processo de montagem são cada vez mais frequentes.
Assim, a via de mão única: do texto à cena torna-se uma via de mão dupla.
Estabelece-se um movimento de vai e vem entre a escrita e/ou a seleção
prévia de textos que vão para a cena e a escrita, a fixação na letra, do material
produzido a partir das improvisações dos atores e/ou das sugestões dos
diversos criadores envolvidos
(HILDEBRANDO, 2009, p.8)
no
processo
de
montagem
teatral.
Atualmente talvez se possa falar de um retorno do interesse pelo texto
escrito para o teatro – basta ver o crescente número de “oficinas de dramaturgia” – , mas
tais textos ocupam claramente um lugar diferente do qual eles costumavam ocupar. O
dramaturgo, via de regra, não escreve o texto em seu gabinete para ser montado
exatamente conforme ele imaginou. Hoje, na maioria dos casos, o texto é feito e refeito
durante o processo de montagem do espetáculo junto ao diretor/encenador, aos atores e
aos outros artistas envolvidos no espetáculo.
Assim, mantendo o diálogo com Hildebrando (2009, p.8):
A concomitância de diferentes modos de produção no teatro que se faz hoje
exige do dramaturgo uma grande flexibilidade para se adaptar a diferentes
processos criativos. A sua criação tanto pode surgir na solidão do escritório
quanto na sala de ensaios; tanto pode significar um papel claro, e de certa
forma privilegiado na divisão do trabalho, quanto o exercício compartilhado
de uma função e, neste caso, se torna mais evidente a importância de todos os
que “arrastaram os blocos” 1com os quais se construiu o espetáculo.
2. O processo colaborativo, o metateatro e o monodrama.
Dentre as várias formas assumidas pelo fazer teatral atual, encontra-se o
chamado Processo Colaborativo. Nele o dramaturgo age/cria em conjunto com o
diretor/encenador, com os atores e com os outros profissionais envolvidos na montagem
do espetáculo. É importante ressaltar, como faz Clóvis Domingos dos Santos em sua
dissertação de Mestrado, ao citar Miriam Rinaldi, que
Não é apenas o lugar do dramaturgo que se altera, mas também o do diretor e
do ator, ocasionando uma espécie de descentralização das importâncias, não
havendo, portanto, uma instância primordial: o texto não é mais importante que
a atuação, que não é mais importante que a encenação. Consequentemente, há
o surgimento de lideranças individuais no lugar de uma liderança totalitária.
Nesse sentido, o que caracteriza a dinâmica do Processo Colaborativo é a
circulação de conceitos, procedimentos e materiais entre dramaturgo, ator e
diretor (RINALDI Apud SANTOS, 2010, p.30).
1
Em seu texto, Hildebrando propõe um diálogo com Brecht ao utilizar como epígrafe os seguintes versos
do poema do autor alemão “Perguntas de um trabalhador que lê”: Quem construiu a Tebas de sete
portas?/ Nos livros estão nomes de reis. / Arrastaram eles os blocos de pedra? (BRECHT, 2000, p.166).
Como se verá mais adiante, essa “circulação” apontada acima, será de
grande importância para o processo de montagem de Aqui Jaz um Homem de Teatro,
espetáculo no qual as funções de dramaturgo e a de ator são desempenhadas por um
mesmo indivíduo.
É relevante atentar, ainda, para a diferença entre o Processo Colaborativo e a
Criação Coletiva. Ainda que, em ambas as formas, o dramaturgo não seja mais uma
figura incontestável que escreve os seus textos em um gabinete e os envia para o diretor
e os atores, na chamada criação coletiva não há funções determinadas para cada figura.
Sendo assim, na Criação Coletiva todos os envolvidos no processo têm o mesmo espaço
propositivo e, pelo menos teoricamente, sem funções definidas. Por sua vez, no
Processo Colaborativo, mesmo havendo a abertura da “voz criativa” para todos os
envolvidos no espetáculo, não ocorre a anulação das funções específicas de cada um.
Vistos alguns pontos importantes do chamado processo colaborativo,
passamos a uma breve explanação sobre o Metateatro que, como o próprio nome sugere,
é aquele teatro que tem como assunto o próprio fazer cênico. Patrice Pavis o define
como:
Teatro cuja problemática é centrada no teatro que "fala", portanto, de si
mesmo, se "auto-representa" [... ] A encenação não se contenta em contar
uma história, ela reflete (sobre) o teatro e propõe sua reflexão sobre o teatro
integrando-a, mais ou menos organicamente, à representação. (PAVIS: 1999,
240)
Podemos citar como exemplo de Metateatro a famosa peça de Pirandello
Seis Personagens à Procura de um Autor, na qual os personagens de um drama
invadem um teatro em busca de um diretor que leve à cena suas histórias e de atores que
lhes deem vida.
É comum confundir-se o Metateatro com o que Patrice Pavis chama de
Teatro Dentro do Teatro. Neste caso é necessário que dentro da peça apresentada os
personagens encenem outra peça. Os exemplos mais célebres desse tipo se encontram
nas peças de Shakespeare, como, por exemplo, em Sonhos de Uma Noite de Verão,
drama no qual, como trama secundária, um grupo de teatro amador encena uma peça
para o casamento de um duque.
A diferença entre ambas as formas é que no Teatro Dentro do Teatro, como
visto em Sonhos de Uma Noite de Verão, o teatro não constitui o assunto principal do
drama, senão apenas mais um artifício para trazer o tema principal à tona; já no
Metateatro, como visto em Seis Personagens à Procura de um Autor, o próprio fazer
teatral da época e as suas problemáticas constituem o tema principal da peça. Ainda
segundo Pavis, no caso do Metateatro,
Não é necessário – como para o Teatro dentro do teatro – que esses
elementos teatrais formem uma peça interna contida na primeira. Basta que a
realidade pintada apareça como já teatralizada: será o caso onde a metáfora
da vida como teatro constitui o tema principal. Assim definitivamente, o
metateatro torna-se uma forma de antiteatro onde a fronteira entre a obra e a
vida se esfuma. (PAVIS, 1999, p. 240)
Esse “esfumar” da fronteira entre a obra e a vida é uma característica fundamental da
dramaturgia do espetáculo Aqui Jaz um Homem de Teatro, como será visto mais à
frente.
Outro elemento que pela presença em Aqui Jaz um Homem de Teatro
merece uma explanação, ainda que breve, é o Monodrama, considerado como "a peça
centrada na figura de uma só pessoa da qual se exploram as motivações íntimas, a
subjetividade ou o lirismo" (PAVIS, 1999, 246). Ou seja, é um tipo de peça na qual
todos os signos chegam, para o espectador, mediados pela ótica de um personagem.
Novamente com Pavis, quando ele aborda a obra do encenador russo Evreinoff:
Trata-se, para ele [Evreinoff], de "um tipo de representação dramática na qual
o mundo que rodeia a personagem aparece tal e qual a personagem o vê em
todo momento de sua existência cênica.". Através desse mundo ambiente, o
público é que deve tornar-se parceiro do protagonista. (PAVIS: 1999, 247)
O Monodrama tradicionalmente se apresentava como monólogo, mas esta
ligação não se faz obrigatória, pois o que caracteriza o monodrama não é a
singularidade de atores ou vozes, mas sim uma singularidade de visão. Joseph Danan,
ao tratar de autores simbolistas, diz que "o monodrama, num gesto paradoxal,
emancipa-se do monólogo e torna-se "drama de um só", mas com várias vozes".
(DANAN in SARRAZAC, 2012, 113). Por isso, o mesmo estudioso alerta para a
existência de um monodrama polifônico.
Essa visão do Monodrama não perpassa apenas a dramaturgia como também
a encenação. Um célebre exemplo disso é a montagem de Hamlet em 1912, em que
Stanislavski resolveu fazer a peça toda sob a ótica do próprio personagem título e,
assim, nenhum personagem é visto como “é na realidade”, mas como é visto por
Hamlet.
3. Breves apontamentos sobre o metateatro, o monodrama e o papel do
dramaturgo em Aqui Jaz um Homem de Teatro.
A peça Aqui Jaz um Homem de Teatro foi baseada em outra pré- existente,
intitulada Ato Final, que foi produzida originalmente no ano de 2010. O personagem é
um ator que, no estilo Brás Cubas (com a liberdade que apenas o túmulo permite, como
diria Machado de Assis), vai ao seu próprio velório fazer suas considerações finais. Na
ocasião, o texto foi levado à cena praticamente sem elementos cenográficos, deixando
que apenas o ator e a iluminação ficassem em foco. Desde a época dessa primeira
montagem havia um desejo de que esse trabalho fosse revisitado no futuro.
Após estudos do texto e do chamado "trabalho de mesa", chegou-se à
conclusão que de 2009/2010, quando se iniciou o outro processo de montagem, até o
presente, o modo de pensar e o fazer artístico do dramaturgo e ator protagonista havia
mudado muito. Por isso a peça precisava ser alterada para satisfazer a essas mudanças e
cabia ao dramaturgo/ator fazer com que ela se adequasse a ele e a esse novo momento.
Outro problema é que o texto era quase exclusivamente narrativo e monológico, carecia
de ação.
Para o dramaturgo, logo ficou claro que a entrada de outros personagens,
mesmo que brevemente, ajudaria muito na questão da falta de ação, além de em outros
pontos da encenação. Assim, o texto deixou de caracterizar-se estritamente como um
monólogo, pois outros atores entrariam em cena, mas continuou sendo um monodrama,
porque apesar das várias vozes que entrariam em cena, a visão que o público teria de
tudo que seria mostrado cenicamente seria "filtrado" pela ótica do personagem-ator,
protagonista do espetáculo.
Feitos os convites e formada a equipe, instaurou-se o chamado processo
colaborativo, que se deu da seguinte forma: primeiro o dramaturgo escrevia um esboço
do discurso que cada um dos personagens apresentaria e, em seguida, os atores
improvisavam uma cena que era apresentada à diretora, que a modificava em prol do
espetáculo. Somente então o dramaturgo refazia o texto. Esse processo foi repetido
quantas vezes se fizeram necessárias e, assim, a dramaturgia e o espetáculo foram sendo
criados: com as idas e vindas entre a escrita e reescrita do texto, junto ao trabalho de
improviso e direção de cena.
Um dos primeiros pontos levantados durante o processo dizia respeito a
quais seriam os personagens que estariam na peça, quer eles aparecessem ou não em
cena. Quem viria ao enterro do ator e quem cuidaria de seus assuntos póstumos por ele?
Nesse contexto, o dramaturgo levantou de sua própria história, e também de uma
pesquisa com sua equipe, algumas possibilidades de personagens que poderiam
responder à pergunta em questão. Foi decidido que cada um dos personagens iria
aparecer como se viesse ao velório para fazer seu discurso fúnebre, além disso, em todas
as cenas haveria três elementos: o discurso em si, uma música e uma relação
diferenciada com o personagem principal.
Tínhamos agora uma peça feita por pessoas do teatro e sobre pessoas do
teatro e se determinou, então, que seria levado para cena um pouco de cada um. Assim a
partir de características pessoais e competências dos membros da equipe poderiam
surgir novas cenas. Um bom exemplo disso é a cena do personagem Helena, a ex esposa e mãe da filha do protagonista.
A artista convidada para interpretar a
personagem foi a atriz e dançarina Lorena Tófani, formada em dança no Centro de
Formação Artística (CEFAR) e professora de dança. A cena sugerida para ela conteria
um tango, dada a turbulenta história de amor dos dois personagens. Iniciou-se a
construção da cena pela escolha da música: foram analisados três tangos de Carlos
Gardel ("Volver", "Por Una Cabeza" e "Nostalgia"), mas, após algum estudo, optou-se
pela sugestão da diretora Juliana Abreu de utilizar a regravação de Tulipa Ruiz para a
música de Ataulfo Alves "Fim de Comédia", um clássico que ficou famoso na voz de
Dalva de Oliveira. Feita a escolha da música, começou o processo criativo da
coreografia, respeitando os limites do ator/dramaturgo que não tinha experiência ou
conhecimento prévio nenhum sobre o dançar tango. Na medida em que se fazia a cena,
o texto dito pela atriz se adaptava à coreografia e à música, sendo editado quando
necessário.
Um ponto interessante é que o primeiro personagem a surgir, de modo quase
unânime, foi o de quem não viria ao velório. Todos os envolvidos no processo de
montagem apontaram a existência em suas vidas de alguém que os “incentivava” a
desistir da atividade teatral, criticava suas escolhas e estilo de vida e, principalmente,
culpava o teatro por isso, ou seja, um alguém que queria sempre obrigá-los a fazer as
coisas do jeito que ele julgava correto. Esse personagem, que em quase todos os casos
era membro da família, personifica-se no irmão do protagonista, personagem que não
entra em cena, sendo unicamente percebido através da relação que o protagonista
estabelece com ele.
As outras figuras que surgiram foram a da companheira de palco (Diva), a
do diretor (Antônio), a do amigo de farras (Chico). Definidos os personagens,
juntamente com os atores, a diretora e o ator/dramaturgo, as cenas foram sendo feitas e
refeitas em conjunto
Embora a peça se passe em um velório, no qual, além do "público em
geral", aparecem para se despedir ou acertar contas os seus amigos mais íntimos,
companheiros de trabalho, seu irmão, com quem ele é brigado, e sua ex - esposa e mãe
de sua filha, a história do espetáculo nada mais é do que um pano de fundo para tratar
do teatro e daqueles profissionais que dedicam suas vidas a essa arte. Assim, a peça se
torna um exemplo claro de metateatro, ao trazer para a cena um ator que vem discutir
sobre o teatro e sobre os próprios atores. Ele viveu a vida toda em função da arte cênica,
então é natural que tanto ele quanto os que comparecem ao seu velório tragam, direta ou
indiretamente, o teatro como assunto. Apesar de ter como pano de fundo a morte, o seu
lugar de enunciação é muito claro: ele fala de teatro, fala de um ator, de seus problemas,
de suas dificuldades e alegrias em vida. Todas as questões levantadas por/sobre ele têm
relação direta com o teatro, por isso mesmo, se à primeira vista, a temática da morte
salta aos olhos, é na metateatralidade que se escora o espetáculo. Tal característica
assume contornos bastante fortes na cena de prólogo do espetáculo, quando o ator (e
aluno que está apresentando o TCC) vem à cena ele mesmo, sem caracterização ou
personagem, e faz um panorâmico resumo sobre a sua trajetória no teatro e, ainda, nas
cenas em que os personagens Diva, representado pela atriz Isabela Arvelos, e Antônio,
representado pelo ator Lucas Alberto, vêm ao palco. Eles são, respectivamente, uma
colega de companhia de teatro e o diretor desta mesma companhia, e suas presenças e
discursos evocam as memórias de seus trabalhos e, também, a afeição que o
protagonista tem por essas figuras e pelo próprio teatro. Diva relembra das peças que
eles fizeram juntos e a entrada de Antônio evoca a memória dos ensaios da companhia.
Depois de muitas escritas e reescritas, a peça, hoje, divide-se em quatro
partes: a primeira é um prólogo, no qual o ator/formando vem à cena, ele mesmo, para
contar, em uma sequência de microcenas, sua trajetória no teatro. O prólogo é separado
do resto da peça pela entrada do cenário no palco e por um áudio com trechos de
entrevistas da atriz Fernanda Montenegro, do ator Paulo Autran e do encenador José
Celso Martinez Corrêa, na qual eles falam sobre o fazer teatral. Na segunda parte, já no
primeiro ato da peça, o personagem se apresenta ao público e discute alguns fatos de sua
vida e de sua morte; no segundo ato, as figuras da vida do protagonista vêm ao palco
para fazer suas últimas homenagens a ele; no terceiro e último ato ocorre a despedida do
público e, mais especialmente, da "gente de teatro".
4. No fechar do pano.
Como considerações finais, gostaríamos de nos permitir trazer as palavras escritas para
a sinopse do espetáculo:
Eu queria escrever algo trágico, mas não há nenhuma tragédia. Eu queria escrever algo
cômico, mas não há nenhuma comédia. Há apenas eu: um ator, hipocritès.
Há apenas um mortal que veste uma máscara de Dionísio e jura que é um deus; há
apenas aquele que se dedica a eterna arte do efêmero; há aquele que dedicou a vida à
arte do Presente tentando transformá-la em Para Sempre.
Há alguém que se dedicou tanto a essa arte que não consegue mais separar a sua vida do
teatro e, por isso, tem a certeza de que, mesmo que deixe de haver esse ator, enquanto
houver teatro haverá sua vida.
Há apenas isso: eu, um ator, um homem de teatro. E esse é o meu Epitáfio:
"Aqui Jaz Um Homem De Teatro".
5. Referências:
BRECHT, Bertolt. Poemas.1913 –1956. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Editora 34, 2000.
DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. Trad. Fernando Peixoto. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
HILDEBRANDO, Antonio. O Dramaturgo: de Monarca a Construtor.
Letras.
Periódico cultural. Belo Horizonte, 01 abr. 2009, p.8.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação teatral.
Trad. Yan
Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
SANTOS, Clóvis Domingos dos. A Cena Invertida e a Cena Expandida: projetos de
aprendizagem e formação colaborativas para o trabalho do Ator. 2010. 164 f.
Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de
Minas Gerais, 2010.
SARRAZAC, Jean-Pierre (Org.). Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. Trad.
André Telles. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2012.
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