Revista Horizonte Teológico nº 26

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HORIZONTE
TEOLÓGICO
ANO 13 | Nº 26| JULHO - DEZEMBRO 2014
EDUCAR PARA A VIDA PLENA
ISSN 1677-4400
Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 13 | N. 26 | P. 1-149 | 2014
© 2014 - Instituto Santo Tomás de Aquino
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Publicação Semestral
Impressão: Editora O Lutador
H811
Horizonte Teológico / Instituto Santo Tomás de Aquino. v. 13, n. 26
(2º Sem. 2014) - Belo Horizonte: O Lutador, 2014. 149p.
ISSN 1677-4400
Semestral
1. Teologia - Periódicos. 2. Filosofia - Periódicos. I. Instituto
Santo Tomás de Aquino.
CDU: 2:1
Elaborada por Iaramar Sampaio - CRB6/1684
SUMÁRIO
EDITORIAL 5
EDUCAR PARA A VIDA PLENA
Manoel Godoy
FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: 9
contribuição à pastoral familiar
Sebastião Corrêa Neto
ALTERIDADE: Emancipação e humanização 25
Ismael Garcia de Sousa
EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: 45
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
Juan Pablo García Martinez, SCJ - Betharram
EDUCAR PARA A VIDA PLENA 55
Frei Henrique Cristiano José Matos
A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: 75
aberturas filosóficas para a discussão ecológica
José Carlos Aguiar de Souza
ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: 99
“SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO”,
DE UMBERTO ECO
Ronilson de Sousa Lopes
APRESENTAÇÃO 105
RECENSÕES 127
NORMAS PARA COLABORADORES 137
LIVROS RECEBIDOS 139
ISTA - Instituto Santo Tomás de Aquino
Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos
Diretor Executivo: Manoel Godoy
GRADUAÇÃO:
Filosofia (licenciatura)
Coordenação: José Carlos Aguiar
Teologia (bacharelado)
Coordenação: Cleto Caliman
PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu):
Coordenação: Cleto Caliman
Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos - 360 horas / aulas
Janeiro / julho / janeiro
Especialização para Formadores da Vida Religiosa - 360 horas / aulas
Janeiro / julho / janeiro
Especialização em Aconselhamento Pastoral e Espiritual - 360 horas / aulas
Janeiro / julho / janeiro
Especialização Lato Sensu em Direito Matrimonial Canônico - 360 horas / aulas
Julho / janeiro / julho
Mais informações:
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EDITORIAL
Manoel Godoy
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EDUCAR PARA A VIDA
PLENA
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os
homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.” (Paulo Freire)
Quem se dispuser a passear pelos textos deste número da
Revista Horizonte Teológico, terá uma sensação de que o ISTA
provoca em seus colaboradores um universo de temas que, à primeira
vista, podem parecer desconexos. Por isso, ofereço um fio condutor
que os une e dá certa coesão à sequência de artigos: Educar para a
Vida Plena. Da problemática da família à espiritualidade dos irmãos
de vida comum, o que se quer é exatamente isso: Educar para que a
Vida seja plena, marcada por uma espiritualidade que dê um sentido
profundo à nossa existência.
Família sempre foi e será um tema a ser revisitado e, com a
proximidade do Sínodo dos Bispos sobre a Família, em outubro de
2014, o ambiente eclesial se torna campo bastante fértil para tal
abordagem. Sebastião Corrêa retoma as reflexões da Exortação
Apostólica do Papa João Paulo II – Familiaris Consortio – à luz das
conclusões da V Assembleia Geral do Episcopado Latino-americano
e Caribenho, realizada em Aparecida como ponto de referência do
Magistério da Igreja e, por outro lado, os conceitos da psicologia de
Erik Erikson, traçando caminhos para o cuidado pastoral das famílias.
Dessa forma, emerge a metodologia calcada na interdisciplinaridade
como forma de abordagem consciente de uma das instituições que
mais vêm sofrendo com as crises da sociedade hodierna.
Vivemos sob o fogo cruzado das intolerâncias e da pluralidade
crescente. É paradoxal. Hoje, há uma consciência mais aguçada
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.5-7, jul/dez. 2014.
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EDITORIAL
da presença do outro como condição para a firmação da própria
identidade. Porém, cresce também o número dos que se sentem
invadidos frente à irrupção do outro e dos outros, nesta sociedade
plural. Considerar a alteridade como caminho para a emancipação e
humanização é muito oportuno e abre um leque de possibilidades de
realização do eu frente ao outro. O professor Ismael de Sousa parte
de um contraponto muito pertinente entre os conceitos de alteridade
em Buber e Levinas, destacando a liberdade e a responsabilidade nas
relações humanas.
Desde que o método histórico crítico foi introduzido na
exegese bíblica, o Evangelho segundo Marcos tornou-se alvo de
muitas leituras interessantes, ressaltando a originalidade do gênero
bíblico – evangelho – atribuída a esse evangelista. Com isso, Marcos
passou a ser considerado o primeiro evangelho, e não mais Mateus.
Além disso, mergulhar na questão do messianismo de Jesus pode
jogar luz aos messianismos atuais, tão em voga. Juan Pablo, com seu
texto sobre o Evangelho de Jesus, Filho de Deus: as linhas mestras
do Evangelho de Marcos, nos ajuda a mergulhar nesse debate onde
o segredo messiânico e o discipulado ganham status de temas
fundamentais nesse evangelho.
Antes do Concílio Vaticano II, a Igreja no Brasil lançou um Plano
de Pastoral em âmbito nacional, sob o título de Plano de Emergência.
Nele, um dos destaques é, na linguagem de então, a renovação dos
educandários. Como entrada, apresenta a escola católica caracterizada
por dois princípios fundamentais e complementares: espírito de
família e espírito missionário. Com a declaração conciliar Gravissimum
Educationis, temos o aprofundamento dessas características tão bem
tratadas no artigo do Frater Henrique, relatando um encontro da
Associação Nacional de Educação Católica do Brasil – ANEC.
Frater Henrique enfrenta com pertinência o intrigante
questionamento: o que pretendemos com um colégio católico?
Numa articulação muito interessante entre documentos da Igreja e a
situação atual da educação católica, ele justifica com muita precisão o
título de sua reflexão: Educar para a Vida Plena.
O trabalho de José Carlos Aguiar de Souza, Marco Aurélio do
Nascimento Alves e Rafael Lourenço Navarro sobre “A Hermenêutica
desmondiana: aberturas filosóficas para a discussão ecológica”
nos ajuda a explorar problemas e condicionamentos filosóficos que
envolvem questões ecológicas e ambientais. O texto, assim, pretende
explorar as possibilidades de outro modo de (bio)narrativa, que não
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.5-7, jul./dez. 2014.
Manoel Godoy
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tenha o ser humano como centro de referência.
Por meio de uma resenha muito interessante, Ronilson de
Sousa nos leva a passear na obra de Umberto Eco – “Seis Passeios
pelos Bosques da Ficção” –, onde o tempo aparece como destaque no
método de interpretação de uma obra literária de tal gênero. Emerge
a necessária conclusão de que ler uma obra de ficção é superar a letra
e dar asas à imaginação, realizando assim um verdadeiro pacto com
o autor.
O ISTA teve a alegria de ser o espaço de lançamento do
livro Imitação de Cristo: caminho de crescimento espiritual, do seu
eterno colaborador e ex-professor Frater Henrique Cristiano José
Matos. Depois de tantas versões dessa obra que caracteriza tão
bem o movimento laical denominado de Devoção Moderna, da
passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o que poderíamos
esperar ainda de novo? Nos tempos atuais, em que tanto se fala
de crises institucionais, a Igreja Católica não ficou ilesa. Porém, a
espiritualidade cristã continua provocando um fascínio muito grande
nos homens e mulheres de hoje; por isso, retomar a obra de Tomás
de Kempis, da forma que o fez Frater Henrique, é contribuir com uma
resposta profunda a tal fascínio, ajudando a dar sentindo real à vida.
Vale a pena ler o artigo que retrata como se deu tal evento, onde o
próprio autor apresenta o livro, a professora Silvia Contaldo, doutora
do pensamento de Agostinho, relaciona o caminho espiritual de
Tomás de Kempis com o do bispo de Hipona e Paulo César Barros,
SJ, amplia nosso olhar sobre “A influência da ‘Imitação de Cristo’ em
Inácio de Loyola e na espiritualidade inaciana, no contexto da Devotio
Moderna”.
Finalmente, Nei Brasil Pereira nos oferece uma excelente
resenha do último livro do Frater Henrique C. J. Mattos: Preso estou,
livre serei. Pastoral carcerária: fundamentos, inspiração, atuação,
da Ed. O Lutador. O livro preenche uma grande lacuna na área. Que
sua leitura nos estimule um novo olhar para a situação carcerária no
Brasil: um olhar de misericórdia.
Pe. Manoel Godoy
Diretor Executivo do ISTA
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.5-7, jul./dez. 2014.
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ARTIGOS
Sebastião Corrêa Neto
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS:
contribuição à pastoral familiar
Sebastião Corrêa Neto
Resumo
Ao acompanhar e orientar pessoas, faz-se necessário ajudá-las a
se localizar dentro da etapa de vida em que se encontram. Muitas
crises vividas estão relacionadas com as etapas do desenvolvimento
psicossocial que Erikson elaborou. Ao falar das oito etapas ou idades
do ser humano, aliando o crescimento biológico, psíquico e social,
Erikson oferece um mapa para quem escuta pessoas em suas crises.
Além disso, pode-se colaborar para que cada acompanhado, em sua
etapa de vida, descubra as habilidades ou disposições e também as
dificuldades que a etapa lhe oferece e lhe chama a viver. Sem dúvida, a
reflexão eriksoniana lança luzes consistentes para o acompanhamento
de um projeto de vida pessoal, de modo integral.
Palavras-chave: Erik Erikson. Etapas evolutivas. Ciclo de vida.
Desenvolvimento psicossocial. Acompanhamento e orientação
pessoal.
1 INTRODUÇÃO
Um dos tesouros de nossos povos e valor importante
na constituição de nossas sociedades, a família, como todas as
instituições, sofre com as transformações sociais dos últimos
tempos. A Igreja, em sua missão, vem refletindo sobre tais impactos
e acompanhando-os. Para tal se organiza, através de suas instâncias
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014.
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO À PASTORAL FAMILIAR
pastorais, o acompanhamento e assistência para o crescimento e
diversos momentos críticos da vida em família.
O presente artigo tem como objetivo aprofundar tal
acompanhamento, focalizando-o sobre a ótica das diversas etapas
da vida da família. Quer, assim, avaliar os processos pastorais à luz
dos eventos críticos da família. Para isso, além do Magistério, o texto
dialoga com as reflexões de Erik Erikson.
Autor da psicologia do desenvolvimento, Erikson pode
contribuir na compreensão de tais momentos críticos da família.
A linha de abordagem, portanto, centra-se numa perspectiva
psicossocial, com enfoque biográfico. Ou seja, deseja refletir os
sucessivos momentos da existência da família e contribuir para o
acompanhamento nesses casos.
2 CUIDADO PASTORAL DA FAMÍLIA NA IGREJA
Para a reflexão do cuidado pastoral da família na Igreja,
tomam-se aqui dois textos de referência: a Exortação Apostólica
Familiaris Consortio (FC) e o Documento de Aparecida (DAp). A
Exortação Apostólica Familiaris Consortio apresenta em seus números
65 a 85 etapas, estruturas, responsáveis pela pastoral familiar. Mais
ao fim apresenta situações especiais que a pastoral é desafiada a
acompanhar.
Sublinha-se, portanto, uma vez mais a urgência da intervenção
pastoral da Igreja em prol da família. É preciso empregar todas
as forças para que a pastoral da família se afirme e desenvolva,
dedicando-se a um setor verdadeiramente prioritário, com a
certeza de que a evangelização, no futuro, depende em grande
parte da Igreja doméstica. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 65).
A exortação continua apontando as etapas da pastoral familiar
e direcionando para o compromisso da Igreja de acompanhar a família
em seu caminhar. Assim, destaca a preparação para o matrimônio,
a celebração e a pastoral pós-matrimonial. Pode-se dizer que o
acompanhamento se estende desde a infância (preparação remota),
passando pela preparação próxima do matrimônio, sua celebração,
até a chegada dos filhos, quando se realiza a constituição final da
família. “A ação pastoral da Igreja deve ser progressiva, também no
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014.
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sentido de que deve seguir a família, acompanhando-a passo a passo
nas diversas etapas da sua formação e desenvolvimento”. (JOÃO
PAULO II, FC, 1982, n. 65).
Já o Documento de Aparecida (CELAM, 2007, p. 431-475),
dentro de uma ótica mais ampla e integral, fala de família, pessoas
e vida. Não somente refere-se à família como uma instituição, mas
trata de pessoas dentro de tal realidade. Apresenta as diversas
etapas da vida: as crianças, os adolescentes e jovens, os idosos, a
dignidade da mulher e a responsabilidade do pai de família. Por fim,
na perspectiva mais integral, apresenta a defesa da vida e o cuidado
do meio ambiente.
O Documento afirma claramente que a família é um dos
tesouros para os povos latino-americanos. E, por isso, a preocupação
com ela deve ser um dos eixos transversais da evangelização. Ou seja,
em todas as ações pastorais, nas mais diversas perspectivas, deve-se
ter esse olhar para a realidade familiar. Assim, requer-se uma pastoral
intensa e vigorosa para:
a)
proclamar o evangelho da família;
b)
promover a cultura da vida;
c)
trabalhar para que os direitos das famílias sejam
reconhecidos e respeitados.
Defronte a tal demanda, como acompanhar os processos
familiares em relação aos desafios dos tempos atuais? Uma das ações
elencadas pelo Documento de Aparecida é “Estudar as causas das
crises familiares para encará-las em todos os seus fatores”. (CELAM,
2007, n. 437h), Assim, a partir de agora, coloca-se a realidade de
acompanhamento gradual da família. Entende-se, ante tantas outras
realidades presentes na vida da família, a necessidade de compreender
seus eventos críticos. Porém, antes de entrar diretamente em tais
etapas, faz-se necessário compreender o desenvolvimento do
conceito de gradualidade no Magistério da Igreja e, depois, conhecer
a reflexão de Erik Erikson, que será suporte na compreensão dos
eventos críticos da família.
3 O ITINERÁRIO MORAL DOS ESPOSOS: O PRINCÍPIO DA
GRADUALIDADE
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR
O conceito de gradualidade¹ , no Magistério, ganha abertura
a partir do pontificado de João XXIII (1963). A partir do confronto
com o mundo moderno, abre-se caminho por considerar o ser
humano como ser que se constrói progressivamente, ser de história
e com dinamismo histórico. Em seguida, já com Paulo VI (1967), em
sua Encíclica Populorum Progressio, ao falar da vocação humana ao
crescimento, entende a gradualidade como um dinamismo posto
pelo criador. Mas tais aberturas serão condensadas no Sínodo dos
Bispos de 1980. Na Exortação Familiaris Consortio, João Paulo II
(1982), acolhendo as contribuições do Sínodo, assume a demanda de
uma pedagogia gradual. De maneira forte, tal realidade aparece no
número 34: 1
É sempre muito importante possuir uma reta concepção
da ordem moral, dos seus valores e das suas normas: a
importância aumenta quando se tornam mais numerosas e
graves as dificuldades para as respeitar. Exatamente porque
revela e propõe o desígnio de Deus Criador, a ordem moral não
pode ser algo de mortificante para o homem e de impessoal;
pelo contrário, respondendo às exigências mais profundas
do homem criado por Deus, põe-se ao serviço da sua plena
humanidade, com o amor delicado e vinculante com o qual
Deus mesmo inspira, sustenta e guia cada criatura para a
felicidade. [...]. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 34).
Já se percebe aqui a necessidade de uma pedagogia que
leve em conta a realidade da pessoa. Ou seja, trata-a de maneira
personalizada como cada subjetividade acolhe a ordem moral. A
ordem moral está a serviço das pessoas para levá-las à felicidade. Fica
claro a ideia de caminho a ser feito. E continua:
Mas o homem, chamado a viver responsavelmente o plano
sapiente e amoroso de Deus, é um ser histórico, que se constrói,
dia a dia, com numerosas decisões livres: por isso ele conhece,
ama e cumpre o bem moral segundo etapas de crescimento.
Também os cônjuges, no âmbito da vida moral, são chamados
a um contínuo caminhar, sustentados pelo desejo sincero
1 Cf. (BOTERO G., 2009, p. 110-113).
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e operante de conhecer sempre melhor os valores que a lei
divina guarda e promove, pela vontade reta e generosa de
os encarnar nas suas decisões concretas. Eles, porém, não
podem ver a lei só como puro ideal a conseguir no futuro, mas
devem considerá-la como um mandato de Cristo de superar
cuidadosamente as dificuldades. Por isso a chamada «lei da
graduação» ou caminho gradual não pode identificar-se com
a “graduação da lei”, como se houvesse vários graus e várias
formas de preceito na lei divina para homens em situações
diversas. Todos os cônjuges são chamados, segundo o plano de
Deus, à santidade no matrimônio e esta alta vocação realiza-se
na medida em que a pessoa humana está em grau de responder
ao mandato divino com espírito sereno, confiando na graça
divina e na vontade própria. Na mesma linha, a pedagogia
da Igreja compreende que os cônjuges, antes de tudo,
reconheçam claramente a doutrina da Humanae Vitae como
normativa para o exercício da sexualidade e sinceramente se
empenhem em pôr as condições necessárias para a observar.
[...]. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 34).
Sem abrir mão da gradação da lei moral, o Magistério
reconhece o caminho histórico do ser humano, seu caminhar em
etapas e procura fazer uma ponte entre a realidade e o ideal. À
medida que as etapas e crises da vida vão acontecendo e, em cada
uma delas seu amadurecimento, as condições para a internalização
do bem moral vão se dando. Reconhece-se que a resposta à ordem
moral deve levar em conta uma gradação a partir da etapa de vida em
que a pessoa ou a família se encontra. E continua assim falando dessa
pedagogia e caminho:
Esta pedagogia, como sublinhou o Sínodo, compreende toda
a vida conjugal. Por isso a obrigação de transmitir a vida deve
integrar-se na missão global da totalidade da vida cristã, a qual,
sem a cruz, não pode chegar à ressurreição. Em semelhante
contexto compreende-se como não se possa suprimir da
vida familiar o sacrifício, mas antes se deva aceitá-lo com o
coração, para que o amor conjugal se aprofunde e se torne
fonte de alegria íntima. Este caminho comum exige reflexão,
informação, instrução idônea dos sacerdotes, dos religiosos
e dos leigos que estão empenhados na pastoral familiar:
todos eles poderão ajudar os cônjuges no itinerário humano
e espiritual que comporta em si a consciência do pecado,
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR
o sincero empenho de observar a lei moral, o ministério da
reconciliação. Deve também ser recordado como na intimidade
conjugal estão implicadas as vontades das duas pessoas,
chamadas a uma harmonia de mentalidade e comportamento:
isto exige não pouca paciência, simpatia e tempo. De singular
importância neste campo é a unidade dos juízos morais e
pastorais dos sacerdotes: tal unidade deve cuidadosamente
ser procurada e assegurada, para que os fiéis não tenham que
sofrer problemas de consciência. O caminho dos cônjuges
será, portanto, facilitado se, na estima da doutrina da Igreja
e na confiança na graça de Cristo, ajudados e acompanhados
pelos pastores e pela inteira comunidade eclesial, descobrirem
e experimentarem o valor da libertação e da promoção do
amor autêntico, que o Evangelho oferece e o mandamento do
Senhor propõe. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 34, grifo nosso).
Assim, contando com a graça e o acompanhamento da Igreja,
os cônjuges buscarão, em cada etapa da vida, crescer na vivência
da moral divina. Nos dias atuais, o Papa Francisco, na sua Exortação
Evangelii Gaudium (EG), dentro de um contexto em que fala da missão
que se encarna nas limitações humanas, retoma o número 34 da
Familiaris Consortio e diz:
Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso
acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas
de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após
dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser
uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor
que nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno
passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais
agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem
transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A
todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico
de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para
além dos seus defeitos e das suas quedas. (JOÃO PAULO II, FC,
1982, n. 34, grifo nosso).
Assim, na trilha da missão pastoral da Igreja e percebendo
a realidade do acompanhamento das etapas de crescimento das
pessoas, passa-se agora ao conhecimento de alguns elementos da
vida e da obra de Erik Erikson, no intuito de uma posterior reflexão
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014.
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sobre as etapas críticas da família, na perspectiva do desenvolvimento
humano.
4 ERIK ERIKSON E AS ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Erik Erikson nasceu em 1902 e morreu em 1994, com 92 anos
de idade, nos Estados Unidos. Viveu a primeira parte da sua vida na
Europa. Foi criado na Alemanha. Iniciou a vida profissional como
pintor de retratos e logo ganhou reputação de artista, especialmente
por seus retratos de crianças. Depois de pintar o retrato da filha de
Freud, recebeu dele o convite para estudar psicologia e ser analista de
crianças. Aceitou o convite, deixou as viagens e a pintura e assumiu
compromisso com a psicologia. Como ele mesmo diz: “Vim da arte
para a psicologia...” (ERIKSON, 1971, p. 14). Fez parte do círculo
íntimo de Freud em Viena.
Com a ascensão do nazismo na Alemanha, emigrou para os
Estados Unidos. Foi o primeiro psicanalista infantil de Boston. Aí, além
da prática psicanalítica, engajou-se em vários estudos antropológicos
sobre a infância e o desenvolvimento humano em outras culturas.
Testou a utilidade de suas formulações teóricas com estudo de
biografias. Desenvolveu significativa carreira universitária.
Erikson aprofundou seus estudos no momento em que o
contexto da psicologia do desenvolvimento humano se ampliava.
Nesse mesmo tempo, os estudos sobre o desenvolvimento do adulto
se avolumavam, talvez pelo fato de a população de idade superior a 60
anos ter crescido. Com o desdobrar das pesquisas, há uma mudança
na análise do desenvolvimento humano. Aos poucos, percebe-se que
não somente os traumas vividos na infância influenciam a história de
vida do sujeito. (CÓRIA-SABINI, 1993, p. 105-107).
Nessa corrente, Erikson, apesar de beber fortemente das ideias
de Freud, contrasta com ele ao estabelecer que, apesar da importância
das experiências infantis, os eventos dos estágios ulteriores podem
contrapor-se às experiências negativas da infância e superá-las. Ou
seja, o que se constrói na infância, em termos de personalidade, não
é totalmente fixo e pode ser modificado por experiências posteriores.
Além disso, ao considerar sempre o ser humano como ser social,
Erikson amplia o “drama freudiano da família nuclear, para incluir
mais consistentemente a interação da pessoa com as instituições e os
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR
símbolos culturais da sociedade.” (FOWLER, 1992, p. 48). Distinguese, assim, da teoria freudiana, por enfatizar a influência social mais do
que a predominância biológica sobre a personalidade.
Suas duas principais obras são: Infância e sociedade (1950)
e Identidade, juventude e crise (1968). Na primeira, examina os
aspectos da infância, ainda ligado ao caminho traçado por Freud.
Para isso, estuda tribos indígenas, a educação e a sociedade norteamericana. Desenvolve o diferencial de sua reflexão ao perceber, sem
ignorar Freud, que a sociedade tem papel decisivo na constituição da
identidade das pessoas. Assim, aliam-se psicanálise e história. Para
ele, o método psicanalítico é, essencialmente, um método histórico e
o psicanalista é um novo tipo de historiador.
Na obra Identidade, juventude e crise, ele analisa os
sistemas totalitários e seus efeitos sobre a adolescência. O centro
é a adolescência e a crise que ela desperta. Erikson avalia a vida de
personalidades para perceber os efeitos da adolescência. Assim, ele
conclui que esta não é uma doença, mas uma etapa da vida que,
naquele momento, ganhava um corpo todo especial na sociedade. O
eixo da investigação sobre a adolescência gira em torno do ciclo vital
como epigênese da identidade. (ERIKSON, 1976, p. 90). Para tal passo,
ele aprofunda a ideia de crise de identidade que já havia aparecido há
vinte anos, em sua primeira grande obra. Partindo de uma amplitude
e complexidade presentes no uso do termo identidade, ele procura
delimitar melhor seu sentido e seu significado.
Ao longo dessas obras, Erikson explana as etapas do
desenvolvimento. Em um primeiro momento, na era moralista da
infância, acontece a internalização de normas e são colocadas para
a pessoa as expectativas culturais, de acordo com o ensinado pelos
pais, outros adultos e pelos relacionamentos construídos. Tal era
corresponde a quatro fases: a infância inicial, duas idades lúdicas e
a idade escolar. Surge então a adolescência, como um momento da
vida no qual é possível captar o bem universal em termos ideológicos.
Resolvida a crise de identidade adolescente, a ética adulta surge
possibilitando relações de desvelo, generatividade e transmissão da
sabedoria para com os outros. Estas últimas são as etapas da primeira
idade adulta, a adultez em si e a velhice.
Alguns conceitos da reflexão de Erikson devem ser esclarecidos
anteriormente. Um primeiro conceito é o de “ciclo vital”. Para Erikson,
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ser humano é um ser que cresce através de sucessivas crises. Ou seja,
“Uma criatura que evoluiu com um ciclo vital específico, adaptado à
sua espécie de meio modificado – e isso só pode significar um potencial
de adaptação vital permanentemente renovada.” (ERIKSON, 1976, p.
234).
“É certo que cada família tem uma ‘biografia’ que lhe é própria,
mas a maioria passa por etapas relativamente comuns a elas.”
(CARVALHO, 1998, p. 19). Assim como o ser humano, no sentido
individual, a família também tem seu ciclo. O desafio são sempre os
impasses e arranjos no ciclo individual e familiar.
Outro conceito é o de “evento crítico”. Sugere um
acontecimento, uma crise que modifica a organização familiar
constituída até então e exige uma nova adaptação. De um ponto,
aparentemente negativo, traz instabilidade. Mas junto carrega a
possibilidade de novo amadurecimento pessoal e familiar. Para
Erikson, “a palavra crise é usada aqui num sentido de desenvolvimento
para designar não a ameaça de catástrofe, mas um ponto decisivo, um
período crucial de crescente vulnerabilidade e potencial; e, portanto,
a fonte ontogenética da força e do desajustamento generativo.”
(ERIKSON, 1976, p. 96).
A cada momento do ciclo vivenciado, a crise produzida traz ao
indivíduo e, aqui no caso, à família, novas tarefas ou incumbências. A
cada momento exige-se desenvolvimento pessoal e nova adequação
nas relações familiares.
5 A FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS
Agora se apresentam quatro eventos críticos. (CARVALHO,
1998, p. 19-25). Em cada um será dada a contribuição de Erikson e a
visão a partir da realidade do acompanhamento da Pastoral Familiar.
a)
A chegada do primeiro filho2
Um momento vital que, simbolicamente, diz da constituição
2 “É tão acertado dizer que os bebês controlam e criam suas famílias, como o inverso.
Uma família só pode educar um bebê sendo educada por este. O seu crescimento consiste
numa série de desafios aos membros da família, para que esta sirva às recém-criadas potencialidades de intenção social do bebê.” (ERIKSON, 1976, p. 96).
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR
da família. Duas realidades. (CARVALHO, 1998, p. 20-22). O casal de
um lado e a jovem mulher grávida, que não tem companheiro, de
outro. No primeiro caso, entra toda a perspectiva de ajustamento
do casal de estarem “grávidos”. No segundo, vem toda uma série de
demandas, que, além do crítico de ser mãe, recaem sobre a jovem
grávida.
Segundo Erikson, na etapa do jovem adulto, que ele chama
de “intimidade”, a instituição social que a ampara tem a ver com a
regulação dos padrões de relação. Ou seja, com o organizar eticamente
os relacionamentos. Assim se expressa Erikson:
À medida que as áreas de responsabilidade adulta são
gradualmente delineadas, quando o encontro competitivo, o
vínculo erótico e a inimizade irredutível são diferenciados uns
dos outros, elas acabam ficando sujeitas àquele sentimento
ético que é a marca do adulto e que sucede à convicção
ideológica da adolescência e ao moralismo da infância.
(ERIKSON, 1976, p. 137).
A resolução da fase inicial da vida adulta concede ao jovem
adulto a virtude do amor. Supõe devoção mútua entre os parceiros
que escolheram compartilhar suas vidas, ter filhos e favorecer o
seu desenvolvimento saudável. Além disso, envolve também a
interpenetração mútua de emoção e vontade na amizade, assim como
outras situações de proximidade baseada em comprometimento.
E assim se expressa o próprio Erikson ao dar uma formulação para
a realidade surgida com a intimidade: “nós somos o que amamos.”
(ERIKSON, 1976, p. 138).
Em geral, o acompanhamento da Pastoral Familiar se dá tendo
como núcleo a celebração do matrimônio. Por isso, todos os esforços
estão na preparação dos noivos e a celebração nupcial. Ou seja, o centro
de constituição da família gravita na celebração nupcial. No entanto,
o texto provoca questionamentos e novos direcionamentos ao
marcar a constituição simbólica da família no nascimento do primeiro
filho. E, nesse sentido, em tal evento crítico, há pouca presença no
acompanhamento da Pastoral Familiar. Esse pode ser o momento de
maior tensão familiar e, no qual podem acontecer muitas separações.
É uma grande mudança na vida do casal e assunção de novos papéis.
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No caso das jovens grávidas, sem a ajuda de um companheiro,
as chamadas “mães solteiras”, quase nada se tem feito. Além de
lidarem com a situação crítica própria da gravidez, ainda têm que
enfrentar toda uma carga de estigmas.
b)
Família com filhos pequenos
“É nessa fase que se estrutura o mundo interior, por meio do
vínculo afetivo com a mãe e o pai”. Do bebê, passando à “meninice”
até a idade escolar, Erikson irá desenvolver uma série de realidades
desafiantes para o desenvolvimento humano, através do processo
psicossocial. Nessas etapas, “virtudes” como a esperança, força de
vontade, determinação e destreza surgem e vão ser fator importante
na vida do futuro adulto. Assim, o processo familiar e educacional se
torna fundamental para a boa resolução dessas etapas. “A infância,
hoje em dia, deve ser destinatária de uma ação prioritária da Igreja,
da família e das instituições do Estado. Tanto pelas possibilidades
que oferece como pela vulnerabilidade a que se encontra exposta.”
(CELAM, DAp, 2007, n. 438).
Segundo Erikson, aos pais cabe desenvolver a “generatividade”.
Ou seja, a preocupação de adultos maduros com o estabelecimento
e a orientação da nova geração. Prevendo o desaparecimento
progressivo de suas vidas, as pessoas percebem a necessidade de se
envolverem na continuidade da vida.
A evolução fez do homem um animal tanto ensinante como
aprendiz, visto que dependência e maturidade são recíprocas;
o homem maduro necessita ser necessitado e a maturidade
é guiada pela natureza daquilo que deve ser assistido. A
generatividade é, pois, de modo primordial, a preocupação em
estabelecer e orientar a geração seguinte. (ERIKSON, 1976, p.
138).
A realidade dos casais novos, que em geral se afastam da
dinâmica da comunidade para cuidar do “ninho” e da prole, exige
aproximação e escuta atenta. Por vezes se quer somente o serviço
desinteressado deles. Mas corre-se o risco, após seu distanciamento
por causa da falta de tempo e disposição pela necessidade de cuidado
“intrafamiliar”, de serem relegados como desertores.
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR
c)
Famílias com filhos adolescentes
A adolescência é tempo de autoafirmação, quando os pais
deixam de ser a referência. A “aventura” do agora adolescente domina
a cena. Acontecem ritos de separação e de agregação a outros grupos.
Processo de emancipação da adolescência.
Na perspectiva de Erikson³ , dois conceitos precisam ser
ressaltados aqui: moratória psicossocial e identidade. Quanto ao
primeiro, moratória psicossocial, Erikson o entende como período de
adiamento, um intervalo que a sociedade oferece, de certa forma, ao
adolescente, para resolver seu conflito de identidade.
Por moratória social psicossocial entendemos um compasso de
espera nos compromissos adultos e, no entanto, não se trata
apenas de uma espera. É um período de tolerância seletiva
por parte da sociedade e uma atividade lúdica por parte do
jovem; entretanto, conduz também, frequentemente, a um
empenho profundo, ainda que amiúde transitório, do jovem –
3
terminando com uma confirmação mais ou menos cerimonial
desse compromisso pela sociedade. (ERIKSON, 1976, p. 157).
A moratória pode ser então experimentada ou como um
período de aprendizado, aventuras e delinquências, ou entendida como
um “empenho profundo”, um sentimento de grande compromisso e
seriedade em relação a uma causa, mas que, depois, o adolescente
descobre que tal caminho era apenas um período de transição.
Já o conceito de identidade, para Erikson, é a resposta da
pessoa quando responde à pergunta: “quem sou?”, construída a
partir da socialização nas etapas infantis em conjunto com as etapas
psicológicas e biológicas. Na infância, já se lança o que se espera do
adulto. De um lado, o dado pela educação, o sonho projetado sobre a
pessoa. De outro lado, quando da crise da adolescência, a possibilidade
3 Para Erikson, a “adolescência é a idade da determinação final de uma dominante identidade positiva do ego. É então que um futuro próximo participa do plano consciente da vida.
É então que surge a questão de se o futuro foi ou não antevisto nas expectativas anteriores.
[...] A grande preocupação do adolescente é quem e o que são aos olhos de um círculo mais
amplo de pessoas significativas, em comparação com o que eles próprios chegaram a sentir
que são; e como relacionar os sonhos, as idiossincrasias, os papéis e as habilidades, cultivados anteriormente, com os protótipos ocupacionais e sexuais da época.” (ERIKSON, 1971, p.
284-285).
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de escolher o futuro: a pessoa se projeta.
A identidade é o processo de recapitulação das crises da
infância: quais forças a pessoa adquiriu? Quais fracassos? O que
a sociedade e a educação ofereceram? Mas é também projeção e
antecipação ao futuro: com quem estará? Em que gastar a vida? Ela se
forma à medida que as pessoas resolvem três questões importantes:
a escolha da ocupação, a adoção de valores nos quais acreditar e
segundo os quais viver, e o desenvolvimento de uma identidade
sexual satisfatória4. (ERIKSON, 1976, p.157).
Os pais precisam redirecionar o exercício da autoridade e a
fixação de limites. Há certa frustração por parte deles, por não verem
os filhos realizarem os projetos que eles elaboraram. E as relações
tendem a ser tensas, pois os filhos questionam a autoridade dos pais
e os consideram ultrapassados. Duas saídas podem ser apresentadas
aos pais: tentar se adaptar e criar abertura às mudanças ou firmar
em seus valores e fechar-se ao diálogo. Eles têm que elaborar a
possibilidade de não dependência dos filhos.
Aqui entra o trabalho dos segmentos relacionados à
evangelização e ao cuidado com a adolescência e a juventude. Em
muitos casos, tem-se conseguido colaborar com os pais nessa etapa.
Muitas vezes, a participação em um grupo de jovens é um processo
seguro de emancipação. Falta ainda maior integração com a Pastoral
Familiar.
Tem-se que pensar aqui a complexidade da adolescência hoje.
Há os adolescentes que queimam etapas e são lançados no mundo do
trabalho por necessidade da família. Mas há também os jovens que
não querem deixar o “ninho” familiar, pois não precisam. Há tantos
outros desafios, como a violência e o extermínio dos jovens, as drogas,
a sexualidade. Tudo isso exige uma atenção e ações efetivas.
d)
O envelhecimento dos pais e a saída dos filhos
Em geral, o envelhecimento5 dos pais e a saída dos filhos
4 Confrontar com as tarefas específicas apontadas por Erikson no processo adolescente.
5 “Não é fácil envelhecer em um país de jovens e com uma forte tendência cultural para
valorizar o presente e o novo, como acontece em nosso país.” (CÓRIA-SABINI, 1993, p.112).
Além disso, há toda uma perspectiva de cultura jovem que domina a cena.
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coincidem. Nesta etapa é necessário que os pais se desliguem do
papel assumido durante muitos anos de suas vidas. Novas relações
se instauram: agora tende a acontecer entre iguais e não mais como
provedor e dependente.
Percebe-se que esse momento tem sido um dos mais
complexos no que diz respeito a um casamento. Durante anos o casal
dedicou-se aos cuidados dos filhos e agora eles partem. Para criar
os filhos, muitos casais de forma metafórica “se separam”. A mãe se
devota tanto aos filhos que se “esquece” do marido. Ele vira o pai e, de
certa forma, deixa de ser marido. O papel do pai fica em geral como
aquele que dá suporte à vida familiar.
Quando os filhos saem, os pais têm que enfrentar a crise do
vazio deixado. Ou a sensação de “missão cumprida”. Mas e agora?
Qual o sentido da vida, do casamento daqui pra frente? O casal pode
tornar-se mais íntimo. Mas pode vir a se separar, por não conseguir se
ajustar à nova realidade.
6 CONCLUSÃO
A família, como todas as instituições, sofre com as
transformações sociais dos últimos tempos. Ao acompanhar tais
impactos, a Igreja se organiza, através de suas instâncias pastorais,
para o acompanhamento e a assistência para o crescimento, mas
também para servir, em diversos momentos críticos da vida em
família.
O presente artigo teve como objetivo aprofundar tal
acompanhamento, focalizando-o sob a ótica das diversas etapas da
vida da família. Quis, assim, avaliar os processos pastorais à luz dos
eventos críticos da família. Para isso, além do Magistério, o texto
dialogou com as reflexões de Erik Erikson. Viu-se que, nos diversos
momentos da vida da pessoa e da família, novas realidades surgem,
trazendo forças, mas também a possibilidade de um desajustamento.
A vida em família se desdobra em constantes rupturas e
reconstrução da trajetória. Cabe a quem acompanha e, aqui, no caso,
à Pastoral Familiar, entender melhor esses eventos críticos e se fazer
presente a eles. Além disso, o aprofundamento de tais realidades
permite abrir a consciência para o fato das etapas da vida.
O enfoque biográfico, é verdade, não pode ser absolto. Ao lado,
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caminha, em harmonia, o olhar teológico e cultural. Assim, pode-se
integrar uma visão bíblica e magisterial, confrontada com as questões
que marcam a época hodierna e, ainda, como proposto nesse texto,
levar em consideração os aspectos vividos por aquela determinada
família em sua etapa de vida.
Pe. Sebastião Corrêa Neto, padre do clero da Diocese de Oliveira, Minas Gerais.
Graduado em Filosofia e Teologia pela PUC Minas, pós-graduado em Formação
Presbiteral e pós-graduando em Aconselhamento Pastoral e Orientação Espiritual
pelo ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino), em Belo Horizonte. Autor do
livro Juventudes e vocações hoje: caminhos e perspectivas para uma pastoral
vocacional. E-mail: [email protected]
REFERÊNCIAS
BOTERO G., P. J. Silvio. A caridade pastoral: por uma pedagogia da
misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2009.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant. A família e seus estágios críticos.
In: CARVALHO, Maria do Carmo Brant et al. Serviços de proteção
social às famílias. São Paulo: IEE/PUC-SP; Brasília: Secretaria de
Assistência Social/MPAS, 1998.
CELAM. CONSELHO EPISCOPAL LATINO - AMERICANO. Documento
de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado
Latino - Americano e do Caribe.7.ed. Brasília; São Paulo: CNBB;
Paulinas; Paulus, 2008.
CÓRIA-SABINI, Maria Aparecida. Psicologia do desenvolvimento.
São Paulo: Ática, 1993. 168p.
ERIKSON, Erik H. Identidade: juventude e crise. 2. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1976.
ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1971.
FOWLER, James W. Estágios da fé: a psicologia do desenvolvimento
humano e a busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1992.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014.
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FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR
FRANCISCO, Papa . Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o
anúncio do evangelho no mundo atual. Brasília: CNBB, 2013.
JOÃO PAULO II, Papa. Exortação Apóstólica Familiaris Consortio:
sobre a função da família cristã no mundo de hoje. São Paulo: Paulinas,
1982.
JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Pacem in Terris. São Paulo:
Paulinas, 1963.
PAULO VI, Papa. Populorum Progressio: carta encíclica. Petrópolis:
Vozes, 1967.
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Ismael Garcia de Sousa
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ALTERIDADE: Emancipação e
Humanização
Ismael Garcia de Sousa*
Profª. Rita de Cássia Cypriano
Valladares**
Resumo
A Alteridade é a condição necessária na distinção e na construção do
ser humano. A presença do outro gera o encontro do inter-humano, e
o encontro resgata no mais profundo do ser uma exigência ética, ou
seja, uma responsabilidade infinita. O outro fundamenta a existência
humana. A relação é essencialmente fundamento da existência. E a
sua base é o diálogo. A palavra é a fonte originária da manifestação
do rosto. Ela é transcendência, não transcendente, ela comunica e
revela a face do outro. Porém, essa forma de comunicar nem sempre
é compreendida e interpretada. No entanto, o outro não só comunica
através de palavras, mas o seu corpo é linguagem e, desse modo,
expressão. O rosto não limita o Eu, mas resgata aquilo que é mais
sagrado nele: sua própria consciência. A Alteridade realiza, constrói e
completa o humano. O outro não é um mero objeto ou um ser inferior
ou uma praga a ser eliminada. Ele é presença inevitável na relação.
É na sua presença que o Eu se torna humano. Quando se diz Tu, a
Alteridade se impõe com sua reivindicação ética: não matarás. Não
matar é a responsabilidade máxima que a Alteridade desperta no Eu.
Palavras-chave: Alteridade. Construção. Diálogo. Emancipação.
Humanização.
1 INTRODUÇÃO
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
A relação é um fenômeno de natureza antropológica. Ela
é o encontro do Eu com o outro. O outro, na sua maneira de ser, é
diferente do Eu. A absurda incompreensão egoísta da Alteridade, ou
seja, da presença do outro, a ausência do cuidado, da compaixão, da
responsabilidade e da solidariedade culminou e culmina na negação
(assassinato, desprezo, rejeição, etc.) do outro – não como objeto, mas
como pessoa. Perante este alarmante fato, faz-se necessário pensar
e refletir a Alteridade como um elemento essencial na formação e
na construção do ser humano. É na presença do outro que o Eu se
reconhece, se humaniza e se emancipa.
Nesta presente reflexão, pretende-se primeiramente
apresentar que a vida humana é marcada essencialmente pela
presença do outro enquanto consciência e, em segundo lugar, mostrar
que essa presença desperta, em ambos, uma responsabilidade
infinita. Além disso, procura-se também apontar que é nesse encontro
que o Eu se reconhece como pessoa. E por último, apresentar que a
Alteridade é uma proposta capaz de modificar, transformar e realizar
o ser humano.
O ser humano está sempre se relacionando. O outro é
presença cotidiana na vida do Eu. O homem se relaciona em sua casa,
no seu ambiente de trabalho, na forma de expressar sua religiosidade,
nas suas horas de lazer, na sua sexualidade, por onde caminha, em
qualquer lugar em que se encontrar, etc. A vida do homem é marcada
pelo encontro dialogal. Por isso, a reflexão sobre a Alteridade deve ser
experiência cotidiana. O encontro é inevitável.
Portanto, não se pode pensar nem refletir sem perceber a
situação concreta da existência. Martin Buber e Emmanuel Lévinas
representam um vínculo de responsabilidade entre a reflexão e a
ação, entre a práxis e o logos. Eles compreendem que as reflexões são
iluminadas pela experiência existencial de presença ao mundo. A fonte
de seus pensamentos são suas vidas e essas são as manifestações
concretas de suas convicções. Este trabalho tem como fundamento
esses dois autores que fizeram de sua vida uma verdadeira reflexão.
A Alteridade é a fonte de realização do ser humano, é o suporte de
emancipação e humanização.
2 ALTERIDADE
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
Ismael Garcia de Sousa
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Para melhor compreensão do termo Alteridade, tanto na obra
de Buber1 quanto em Lévinas2 , faz-se necessário conhecer, nem que
seja sinteticamente, a genealogia dessa palavra. Sobre isso, diz a
Logos Enciclopédia:
O substantivo português alteridade tem por antecedente
próximo o latino alteritas (de alte, outro), [...] no sentido
aproximado de diferença, desunião. Comumente chama-se
Alteridade em ontologia à condição de um ser distinto de outro
no seu modo de ser específico ou no seu facto de ser numérico,
i. é, na sua essência ou na sua existência: contrapõe-se à
identidade de um ser consigo mesmo. A operação intelectual
pela qual reconhecemos a Alteridade é designada distinção; a
existência objectiva da Alteridade traduz-se pelo conceito de
diversidade (SUMARES, 1989, p. 186).
Não se contentando somente com essa definição, Abbagnano
(2000) define a Alteridade desta forma: “Ser outro, colocar-se ou
constituir-se como outro. A Alteridade é um conceito mais restrito do
que diversidade e mais extenso do que a diferença.” (ABBAGNANO,
2000, p. 34).
Portanto, a palavra Alteridade nos chama ao diálogo. A
presença do outro é uma experiência vital. Essa experiência ensinanos a conviver com aquilo que é diferente, a proporcionar um olhar
interior a partir das diferenças. Significa reconhecer o outro em mim.
Não se contentando somente com essa definição, Abbagnano (2000)
1 Aos 8 de fevereiro de 1878 nasce na cidade de Viena, Áustria, Martin Buber. No auge da
juventude, entre seus 15 e 17 anos, sua vida foi profundamente marcada pela filosofia. As
ideias de tempo e de espaço tomaram intensamente seu espírito. “Suas pesquisas se aprofundaram em diversas áreas: estudos sobre a Bíblia, Judaísmo e Hassidismo; estudos políticos, sociológicos e filosóficos” (BUBER, 2004, p.14). Durante toda a sua vida, Buber não se
filiou a nenhum movimento filosófico, pois dizia que a filosofia e o filosofar são puramente
abstração. E enquanto abstração, ela separa o homem da concretude da existência vivida.
Buber, ao adentrar nos estudos místicos, mergulhou então num vazio existencial. E no dia 13
de junho de 1965, em Jerusalém, veio a falecer..
2 Aos 12 de janeiro de 1906, nasceu na cidade de Kaunas, na Lituânia. Sua vida e seu pensar
foram inspirados pela Bíblia hebraica. 1930. Exilado por cinco anos, jamais poderá esquecer
a marca do ódio do homem contra o outro homem deixado pela violência nazista. Por razão
desse horror, Lévinas começa a contruir sua ética da responsabilidade e a escrever suas
obras mais importantes. Depois do cativeiro, dirigiu por dezoito anos (1946-1964) a Escola
Normal Israelita Oriental de Paris e, na época, deu conferências no Colégio de Filosofia. Ele
completou sua carreira acadêmica como professor da Universidade de Sorbone. O legado
filosófico deixado por Lévinas vem despertando cada vez mais interesse no mundo inteiro. A
ética levinasiana é marcada pela responsabilidade para com o outro. O filósofo veio a falecer
bem na manhã de Natal, no dia 25 de dezembro de 1995, em Paris.
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
define a Alteridade desta forma: “Ser outro, colocar-se ou constituirse como outro. A Alteridade é um conceito mais restrito do que
diversidade e mais extenso do que a diferença.” (ABBAGNANO, 2000,
p. 34).
Portanto, a palavra Alteridade nos chama ao diálogo. A
presença do outro é uma experiência vital. Essa experiência ensinanos a conviver com aquilo que é diferente, a proporcionar um olhar
interior a partir das diferenças. Significa reconhecer o outro em mim
O diálogo é capaz de romper as fronteiras do universo humano,
de cessar guerras, de unir nações e antropologicamente de ressuscitar
o homem das garras do medo e da depressão. A obra buberiana Eu e Tu
é a fase mais madura e completa da filosofia do diálogo. Ela, segundo
Buber (2004), “não é simplesmente uma descrição fenomenológica das
atitudes do homem no mundo ou simplesmente uma fenomenologia
da palavra, mas é também e sobretudo uma ontologia da relação”
(BUBER, 2004, p. 29). Para ele, a palavra se apresenta como dialógica,
ou seja, portadora de ser, palavra falante. A palavra é uma ação do
homem na qual se faz homem e se estabelece no mundo com os
outros.
A palavra é princípio, fundamento da existência humana. A
palavra como diá-logo é o fundamento ontológico do interhumano. [...] A ontologia da relação será o fundamento para
uma antropologia que se encaminha para uma ética do interhumano. Diz-se então que o homem é um ente de relação ou
que a relação lhe é essencial ou fundamento de sua existência.
(BUBER, 2004, p. 31).
Segundo Buber (2004), para o homem o mundo é duplo e
sua atitude também é dupla conforme as palavras que ele pode
pronunciar: são duas, e ele as chama de palavras-princípio “Eu-Tu e
Eu-Isso”. Na primeira parte da obra, ele diz:
O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de
sua atitude. A atitude do homem é dupla de acordo com a
dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir. As
palavras-princípio não são vocábulos isolados mas pares de
vocábulos. Uma palavra-princípio é o par Eu-Tu. A outra é o
par Eu-Isso, no qual, sem que seja alterada a palavra-princípio,
pode-se substituir Isso por Ele ou Ela. Deste modo, o Eu do
homem é também duplo. Pois, o Eu da palavra-princípio Eu-Tu
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
Ismael Garcia de Sousa
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é diferente daquele da palavra-princípio Eu-Isso. As palavrasprincípio não exprimem algo que pudesse existir fora delas,
mas uma vez proferidas elas fundamentam uma existência. As
palavras-princípio são proferidas pelo ser. Se se diz Tu proferese também o Eu da palavra-princípio Eu-Tu. Se se diz Isso
profere-se também o Eu da palavra-princípio Eu-Isso. [...] Não
há Eu em si, mas apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu
da palavra-princípio Eu-Isso. Quando o homem diz Eu, ele quer
dizer um dos dois. (BUBER, 2004, p. 53).
Ao compreender que o mundo é duplo para o homem e que essa
duplicidade se dá numa relação recíproca e não violenta, passamos
realmente para o significado de Alteridade. As palavras-princípio são
uma unidade entre o Eu e o Outro (Tu; Isso), porém, o Eu e o Outro são
totalmente distintos. O primeiro está relacionado à subjetividade e o
segundo, à objetividade. Pois bem, o Tu representa o outro homem e
é com este que o diálogo acontece. O Isso representa o mundo e tudo
aquilo que existe nele. Em relação ao Tu, Buber (2004) afirma:
A vida do ser humano [...] não se limita somente às atividades
que têm algo por objeto. Eu percebo alguma coisa. Eu
experimento alguma coisa, ou represento alguma coisa, eu
quero alguma coisa, ou sinto alguma coisa, eu penso em
alguma coisa. A vida do ser humano não consiste unicamente
nisto ou em algo semelhante. Tudo isso e o que se assemelha a
isso fundam o domínio do Isso. (BUBER, 2004, p. 54).
O Tu é definido como o outro homem, ele fundamenta o mundo
da relação. No diálogo ou na relação o Tu não é objeto do Eu nem
vice-versa. São duas consciências que se interagem e que só existem
analogicamente. Para melhor compreender, Buber (2004) diz:
O homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas
quando, estando eu presente diante dele, que já é meu Tu,
endereço-lhe a palavra-princípio. Ele não é um simples Ele
ou Ela limitado por outros Eles ou Elas, um ponto inscrito na
rede do universo de espaço e tempo. Ele não é uma qualidade,
um modo de ser, experienciável, descritível, um feixe flácido
de qualidades definidas. Ele é TU, sem limites, sem costuras
preenchendo todo o horizonte. Isto não significa que nada
mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
luz. [...] o homem a quem eu digo Tu não encontro em algum
tempo ou lugar. Eu posso situá-lo, sou, aliás, obrigado a fazêlo constantemente, mas então, ele não é mais um Tu e sim
um Ele ou Ela, um Isso. [...] Eu não experiencio o homem a
quem digo Tu. Eu entro em relação com ele no santuário da
palavra-princípio. Somente quando saio daí posso experienciálo novamente. A experiência é distanciamento do Tu. A relação
pode perdurar mesmo quando o homem a quem digo Tu não o
percebe em sua experiência, pois o Tu é mais do que aquilo de
que o Isso possa estar ciente. O Tu é mais operante e acontecelhe mais do que aquilo que o Isso possa saber. Aí não há lugar
para fraudes: aqui se encontra o berço da verdadeira vida.
(BUBER, 2004, p. 57-58).
A Alteridade buberiana é relação de reciprocidade que se
encontra na palavra-princípio Eu-Tu, ou seja, uma relação interpessoal, dia-logal, dia-pessoal, relação de subjetividades, de
consciências. É o encontro entre duas consciências que consolidam
o mundo da relação. A relação é um dado antropológico, e só o ser
humano é capaz de conferir-lhe sentido.
2.1
Alteridade em Lévinas
Diferentemente de Buber, Lévinas considera que o diálogo
com o outro é uma ação não recíproca. Ela é uma ação violenta, onde
o outro deixa o Eu totalmente desconcertado, provocando assim
uma mudança. O diálogo me obriga a uma relação transformadora e
desconcertante:
O diálogo com o outro obriga a uma relação que desestabiliza
o Eu transformando-o profundamente e desconcerta a firmeza
do Eu pelo encontro do rosto da Alteridade; esse deslocamento
radical do Eu seria onde começa a verdadeira terra-natal do
homem. [...] Um pelo outro, [...] no que estaria implicado o
envio na direção do outro; o Eu seria a resposta a um apelo que
o precede e esta seria também a sua unicidade. E não haveria
como alguém responder em seu lugar, não há como escapar
a essa responsabilidade pelo outro; não é o Eu que a escolhe
mas ele é como que investido por ela, chegando ao ponto de
substituir o outro e expiar por ele, de tirar o pão da própria
boca e de dar a pele ao outro. (BONAMIGO, 2005, p. 95).
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No entanto, quem seria este outro? O que Lévinas nos falaria
sobre este outro? O outro para Lévinas se revela, vem ao encontro,
se abaixa até o mesmo (Eu). E o Eu – interioridade, profundidade – é
chamado à acolhida, à hospitalidade. Como um estranho, o outro se
revela a uma identidade que é interpelada e a qual, portanto, deve
responder. Daqui a noção de responsabilidade. Se o outro escapa
à definição é porque é ilimitado, indefinível, infinito. Com efeito,
Lévinas afirma:
O Outro metafísico é outro de uma Alteridade que não é
formal, de uma Alteridade que não é um simples inverso da
identidade, nem de uma Alteridade feita de resistência ao
Mesmo, mas de uma Alteridade anterior a toda a iniciativa,
a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma Alteridade
que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria
rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria,
dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro
é Outrem; não faz número comigo. A colectividade em que
eu digo “tu” ou “nós” não é um plural de “eu”. Eu, tu, não são
indivíduos de um conceito comum. (LÉVINAS, 2000, p. 26.).
O outro é aquele que se apresenta com sua infinita Alteridade.
Quando o outro me olha ele se refere a mim, a sua face se manifesta
a mim. “O outro, a Alteridade, é o [...] começo do filosofar, o
fundamento da razão, e mais, o sentido do humano e a possibilidade
de realização da justiça e da paz.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p.
31). O outro é infinitamente outro. Nele se encontra algo de misterioso
e que ultrapassa a sua presença. Essa transcendência que rompe as
barreiras do conhecimento nos remete à ideia do infinito. Mas como o
finito pode pensar no infinito? A capacidade do ser finito de pensar no
infinito deriva justamente da finitude. E a ideia do infinito que tenho
na contemplação do outro é justamente aquilo que está para além
de um simples objeto, isto é, o excesso. Esse excesso, ou melhor, a
expressão do infinito é o rosto. Assim escreve Lévinas:
O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do
Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira não
consiste em figurar como tema sob o meu olhar, em expor-se
como um conjunto de qualidades que formam uma imagem.
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a
imagem plástica que ele me deixa, a ideia à minha medida e à
medida do seu ideatum – a ideia adequada. (LÉVINAS, 2000,
p. 38).
O outro é aquele que tem a mortalidade estampada em sua
face. A proposta de Lévinas de uma relação face-a-face é um apelo
urgente de um novo humanismo que socorra, assista, proteja e acolha
aquele que sofre em sua fraqueza, mas não somente isso, e sim a todo
gênero humano. É no face-a-face humano que irrompe todo sentido.
Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável. “No rosto
do outro, que face-a-face me olha, o infinito enquanto tal revela-se,
vem até mim – como uma ideia que o pensamento não pode produzir
por si próprio – e me fala.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p.32).
3 ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
O outro enquanto outro escapa à fenomenologia do olhar. A
fenomenologia reduz aquilo que se vê a um ente no mundo com um
sentido estabelecido a partir do projeto fundamental, do ser: A visão
não é transcendência. Concede uma significação pela relação que se
faz possível. Contudo a aparição do rosto é a revelação de outro que
exige respeito e acolhida. Segundo Lévinas (2000), é no acolhimento
do rosto que se instaura a igualdade:
No acolhimento do Rosto (acolhimento que é já a minha
responsabilidade a seu respeito e em que, por consequência, ele
me aborda a partir de uma dimensão de altura e me domina),
instaura-se a igualdade. Ou a igualdade produz-se onde o
Outro comanda o Mesmo e se lhe revela na responsabilidade;
ou a igualdade não é mais do que uma ideia abstracta e uma
palavra. Não se pode separar o acolhimento do Rosto de que
ela é no momento. (LÉVINAS, 2000, p. 192).
Por isso é que o aparecimento do rosto no mundo do mesmo
(eu) instaura a exigência ética: “não matarás”! “Matá-lo, ou seja, não
me deixar afetar por ele, seria negá-lo, calar sua voz e negar a minha
própria humanidade.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 33). Matar
significa negar a infinitude do outro, reduzindo-o a um mero ente no
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
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mundo. “O não matarás surge pelo fato de que estou diante de um
maior do que eu e a quem, portanto, devo reverência.” (OLIVEIRA;
SCORALICK, 2006, p. 32). O outro não é apenas um amigo, um
parente ou um familiar. O outro é aquele que se pôs à frente do Eu, ele
é um estrangeiro:
O outro vem a mim como um estrangeiro, um alguém de
uma outra terra. Ele é um estranho. E estranhos são sempre
vistos com desconfiança e desprezo. Mas acolhê-lo, recebêlo em minha casa, em meu ser é inevitavelmente dar início a
uma aventura que não tem fim e nem volta. Na hospitalidade,
sou levado a veredas que o meu coração não seria capaz de
percorrer se permanecesse sozinho e fechado na imparcialidade
silenciosa de seu anonimato. O outro é o meu guia e eu o seu
guardião. Ele me ensina que o mundo não se reduz aos meus
vizinhos, à minha família, aos meus amigos, à minha etnia, ao
meu grupo, nação ou classe social. Ele me ensina, ao devastar
o meu egoísmo e ao chamar-me à responsabilidade, que existe
sempre algo mais para aprender. (OLIVEIRA; SCORALICK,
2006, p..32).
Porém, o outro não é simplesmente um ente entre os outros,
mas um ser que se manifesta infinitamente pela palavra.
O rosto abre o discurso original, cuja primeira palavra é
obrigação que nenhuma “interioridade” permite evitar.
Discurso que obriga a entrar no discurso, começo do discurso
que o racionalismo exige com os seus votos, “força” que
convence mesmo “as pessoas que não querem ouvir” e
fundamenta assim a verdadeira universalidade da razão.
(LÉVINAS, 2000, p. 179).
A linguagem se torna, entretanto, apenas o espaço do encontro
do Eu com o Outro. A linguagem não é uma simples experiência,
nem um meio de conhecimento, mas o lugar do reencontro com o
outro, com o estranho, o desconhecido. No diálogo, o sentido da
palavra nunca é compreendido e interpretado adequadamente pela
hermenêutica3 do Eu. O outro e sua palavra não podem ser reduzidos
a uma psicologia, sociologia ou outro conhecimento qualquer, pois a
3 Qualquer técnica de interpretação. Essa palavra é frequentemente usada para indicar a
técnica de interpretação da Bíblia. (ABBAGNANO, 2000, p. 497).
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
manifestação do rosto transforma e modifica o homem. Porque “o
rosto não se reduz a uma forma plástica, ou seja, uma face. O rosto é
toda a corporalidade. Ele significa a Alteridade do outro, sua infinita
transcendência. É expressão do Infinito.” (OLIVEIRA; SCORALICK,
2006, p.33). Dirá Lévinas (2000) que o Eu se emancipa e se humaniza
na epifania do rosto. O rosto abre a humanidade.
A epifania do rosto como rosto abre a humanidade. O rosto
na sua nudez de rosto apresenta-me a penúria do pobre e do
estrangeiro; mas essa pobreza e esse exílio que apelam para
os meus poderes visam-me, não se entregam a tais poderes
como dados, permanecem expressão do rosto. O pobre, o
estrangeiro, apresenta-se como igual. (LÉVINAS, 2000, p. 190).
E ainda,
A presença do rosto – o infinito do Outro – é indigência, presença
do terceiro (isto é, de toda a humanidade que nos observa)
e ordem que ordena que mande. Por isso, a relação com
outrem ou discurso é não apenas o pôr em questão da minha
liberdade, não apenas a palavra pela qual me despojo da posse
que me encerra, ao enunciar um mundo objectivo e comum,
mas também a pregação, a exortação, a palavra profética. A
palavra profética responde essencialmente à epifania do rosto,
duplica todo o discurso, não como um discurso sobre temas
morais, mas como momento irredutível do discurso suscitado
essencialmente pela revelação do rosto enquanto ele atesta a
presença do terceiro, de toda a humanidade, nos olhos que me
observam. (LÉVINAS, 2000, p. 191).
“No encontro, um novo homem, melhor, surge situado para
além de si-mesmo, pois o rosto do outro retira o eu do seu privilegiado
ensimesmamento egoico, colocando em causa sua existência para si.”
(OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p.33). É a presença do outro que retira
o Eu da sua mais profunda solidão.
Porém, o que a história da humanidade nos mostrou foi
realmente uma história marcada pelo ódio. No entanto, a preocupação
de Buber e Lévinas foi justamente com o humano. Eles propõem a
Alteridade como forma de realização. Buber, após a Primeira Guerra
Mundial, propõe o encontro dialógico. Na Introdução de sua obra Eu e
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
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Tu, são apresentadas duas formas de presença:
Em suma existem dois modos de presença. Sendo originários,
a relação Eu-Tu e o conceito de presença recebem seu
sentido autêntico na doação originária do Tu. No encontro
dialógico acontece uma recíproca presentificação do Eu e
do Tu. No relacionamento Eu-Isso se o Isso está presente ao
Eu não podemos dizer que o Eu está na presença do Isso. A
Alteridade essencial se instaura somente na relação Eu-Tu; no
relacionamento Eu-Isso o outro não é encontrado como outro
em sua Alteridade. Na relação dialógica estão na “presença” o
Eu como pessoa e o Tu como outro. (BUBER, 2004, p. 36).
Mas o Eu-Tu, relação fundamental entre humanos, não foi
concretizado. O que se presenciou foi o surgimento do totalitarismo,
incorporado por Hitler na Alemanha e por Mussolini na Itália.
No entanto, ainda permanece a proposta elaborada e feita na
carne por Buber e Lévinas. A imortalidade deles se encontra nas suas
obras, principalmente em Eu e Tu e em Totalidade e Infinito. Em Buber
(2004) podemos também presenciar em seu pensamento a proposta:
“[...] a humanidade reduzida a um Isso, tal como se pode imaginar,
postular ou proclamar, nada tem em comum com uma humanidade
verdadeiramente encarnada à qual um homem diz verdadeiramente
Tu.” (BUBER, 2004, p.60). A presença se instaura na medida em que o
Tu se faz presente. A humanização do homem se concretiza quando
ele se torna Eu, mas isso só acontece enquanto se relaciona com o Tu.
A relação configura-se na palavra-princípio Eu-Tu. A identidade do Eu
se realiza como reconhecimento do outro enquanto tal.
A relação é possibilidade de atualização do encontro. O diálogo
é, para Buber (2004), a forma explicativa do fenômeno do interhumano. O inter-humano é a realização concreta da vida dialógica.
Nessa situação, uma pessoa se confronta realmente com outra, cada
uma confirmando a outra reciprocamente. Quando se pronuncia Tu,
este não se refere a um objeto, ou melhor, a nenhum, mas alude a
uma pessoa.
Aquele que diz Tu não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde
há uma coisa há também outra coisa; cada Isso é limitado por
outro Isso; o Isso só existe na medida em que é limitado por
outro Isso. Na medida em que se profere o Tu, coisa alguma
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
existe. O Tu não se confina a nada. Quem diz Tu não possui coisa
alguma, não possui nada. Ele permanece na relação. O mundo
como experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A
palavra-princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação. O
mundo da relação se realiza em três esferas: A primeira é a vida
com a natureza. [...] A segunda é a vida com os homens. Nesta
esfera a relação é manifesta e explícita: podemos endereçar e
receber o Tu. [...] A terceira é a vida com os seres espirituais.
(BUBER, 2004, p. 54-55).
No inter-humano não há lugar para aparências, para o simples
lado a lado, para a imposição, ou a falsidade. O dialógico se realiza no
inter-humano como um voltar-se para o outro, bem determinado, e
concreto, e este, ao voltar-se, alicerça o estabelecimento de um Nós
que protege a consciência, a liberdade e a responsabilidade de cada
pessoa.
Portanto, a experiência fundamental e fundadora da pessoa é a
relação Eu-Tu. O que faz o humano ser solidário a outro é a consciência
de si mesmo. É no encontro que o homem toma consciência de si
e de suas ações. O encontro se dá entre duas consciências e, nisto,
se compreende a liberdade. Esta é, na compreensão de Lévinas, a
afirmação do ser enquanto pessoa. Nesse sentido, o Eu é responsável
pela afirmação do outro. A responsabilidade, ou seja, o cuidado
com um ser humano, não enquanto objeto (Isso), e sim enquanto
pessoa (Tu), é essencialmente amorosa. O amor desvenda a natureza
da pessoa. Nele, a relação fundamental faz do homem um ser
consciente, livre, responsável e, portanto, um ser pessoal. De fato,
para que possamos compreender a realização do humano através do
encontro dialógico e da epifania do rosto, faz-se necessário analisar
estes termos: liberdade e responsabilidade.
3.1
Liberdade 4
4 Esse termo tem três significados fundamentais, correspondentes a três concepções que
se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem ser caracterizadas da seguinte
maneira: 1ª) Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a
Liberdade é ausência de condições e de limites; 2ª) Liberdade como necessidade, que
se baseia no mesmo conceito da precedente, a autodeterminação, mas atribuindo-a à
totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substância, Estado); 3ª) Liberdade como possibilidade ou escolha, segundo a qual a Liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita.
(ABBAGNANO,2000,p.605)
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A liberdade é uma dimensão antropológica. Ela é intrínseca ao
ser humano, sendo impossível extingui-la do mundo. “Este, com sua
complexidade cada vez maior, oferece sempre mais oportunidades ao
ser humano do que aquelas que ele pode realizar, durante toda a sua
vida.” (NUNES, 2004, p. 92). Diante das conveniências da realidade
empírica, o ser humano se encontra diante de possibilidades e, por
isso, procura escolher aquilo que o realizará. “A liberdade é sempre
liberdade de escolher; nunca de não escolher; é uma vivência
individual, experimentada no espaço das possibilidades existentes no
mundo.” (NUNES, 2004, p. 94). O autor:
[...] entende a liberdade como medida de possibilidade
portanto escolha motivada ou condicionada. Nesse sentido, a
liberdade não é autodeterminação absoluta e não é, portanto,
um todo ou um nada, mas um problema aberto: determinar
a medida, a condição ou a modalidade de escolha que pode
garanti-la. Livre, nesse sentido, não é quem é causa sui55 ou
quem se identifica com uma totalidade que é causa sui , mas
quem possui, em determinado grau ou medida, determinadas
possibilidades. (ABBAGNANO, 2000, p. 610).
Buber caracteriza a liberdade no princípio do inter-humano. O
estabelecimento da liberdade está ligado à palavra-princípio Eu-Tu.
Somente aquele que sabe da relação e reconhece a presença do Tu é
capaz de tomar decisões. A liberdade não se encaixa na relação EuIsso, pois o reino absoluto da causalidade é o mundo do Isso. Porém,
este mundo não é capaz de atingir o homem. É diante da face que o
homem é livre. Diz Buber:
O reino absoluto da causalidade no mundo do Isso, embora seja
de importância fundamental para a ordenação científica da
natureza, não atinge o homem que não está limitado ao mundo
do Isso e que pode sempre evadir-se para o mundo da relação.
Aí o Eu e o Tu se defrontam um com o outro livremente, numa
ação recíproca que não está ligada a nenhuma causalidade
e não possui dela o menor matiz; aqui o homem encontra a
5 Essa concepção tem estreito parentesco com a primeira. O conceito de liberdade a que
se refere é ainda o de causa sui; contudo, como tal, a liberdade é não atribuída à parte, mas
ao todo: não ao indivíduo, mas à ordem cósmica ou divina, à Substância, ao Absoluto, ao
Estado.
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
garantia da liberdade de seu ser e do Ser. Somente aquele
que conhece a relação e a presença do Tu, está apto a tomar
uma decisão. Aquele que toma uma decisão é livre, pois se
apresenta diante da Face. (BUBER, 2004, p. 84).
A grandeza da dimensão reflexiva baseada no outro e que se
revela na epifania do rosto constitui a relação de transcendência. O
outro transcende em seu rosto o mandamento ético. O outro que se
apresenta a um eu edifica a relação e esta a liberdade. A liberdade é
conhecida na relação. E essa relação é relação de bondade. Lévinas
(2000) coloca a liberdade como forma de contemplar o rosto do outro,
assim ele afirma:
A relação com o rosto produz-se como bondade. A
exterioridade do ser é a própria moralidade. A liberdade,
acontecimento de separação no arbitrário, que constitui o eu,
mantém ao mesmo tempo a relação com a exterioridade que
resiste moralmente a toda a apropriação e a toda a totalização
do ser. Se a liberdade se pusesse fora desta relação, toda a
relação, no seio da multiplicidade, operaria apenas a tomada
de um ser por outro, ou a sua participação comum na razão em
que nenhum ser olha para o rosto do outro, mas em que todos
os seres se negam. (LÉVINAS, 2000, p. 282).
No entanto, “a liberdade é uma questão de medida, de
condições e de limites e, isso em qualquer campo, desde o metafísico,
o psicológico, o econômico e o político.” (ABBAGNANO, 2000, p.
612). A liberdade humana é uma liberdade situada, enquadrada no
real, condicionada e por isso relativa. Entretanto, a liberdade é uma
possibilidade de escolha. Uma possibilidade que pode ser alcançada
por qualquer um nas condições oportunas.
Portanto, os problemas da liberdade no mundo moderno
não podem ser resolvidos por fórmulas simples e totalitárias
(como seriam as sugeridas pelos conceitos anárquicos ou
necessaristas), mas pelo estudo dos limites e das condições
que, num campo e numa situação determinada, podem
tornar efetiva e eficaz a possibilidade de escolha do homem.
(ABBAGNANO, 2000, p. 613).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
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3.2
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Responsabilidade6
É na relação do face-a-face, entre o eu e o outro, que
se estabelece o encontro, cujo sentido primordial e último é a
responsabilidade do eu pelo outro, sem exigência de reciprocidade,
pois se houvesse tal exigência não se trataria mais de uma relação
desinteressada. Nesta responsabilidade constitui-se a subjetividade
do sujeito. Se no âmbito da consciência é impossível ao homem sair
de si mesmo, considera Lévinas que o real contato com a Alteridade
somente é possível a partir do Desejo e da necessidade. O outro é
metafísico e, por ser, a responsabilidade é ilimitada. Desse modo,
como afirma Lévinas:
[...] uma responsabilidade infinita, uma responsabilidade pelo
mundo que nunca se deixa encerrar nas medidas das decisões
livres de uma vontade; trata-se da responsabilidade por tudo e
por todos, da qual não cabe ao homem discutir os termos e as
consequências. (BONAMIGO, 2005, p. 93).
Pela palavra o outro é mestre do Mesmo e lhe ensina, devendo
o eu julgar sua vida a partir da palavra do outro, com a consciência de
que jamais se é justo o bastante. Nesta relação de respeito movida
pelo desejo metafísico estabelece-se a morada em que o eu se coloca a
serviço do outro numa relação de proximidade. O rosto não nega o eu,
mas o eu acolhe o rosto pacificamente, e não violentamente. Pois é a
epifania do rosto que manifesta e me convida a uma responsabilidade
ilimitada. “A minha humanidade reside justamente em minha
responsabilidade, que é insubstituível.” (OLIVEIRA; SCORALICK,
2006, p. 33). O homem é responsável por aquilo com que se relaciona.
O rosto onde se apresenta o Outro – absolutamente outro
– não nega o Mesmo, não o violenta como a opinião ou a
autoridade ou o sobrenatural taumatúrgico. Fica à medida de
quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa apresentação é a
não-violência por excelência, porque em vez de ferir a minha
6 Possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em
tal previsão. Responsabilidade é diferente de imputabilidade, que significa a atribuição de
uma ação a um agente, considerado seu causador. (ABBAGNANO, 2000, p. 855). Lévinas
prefere “responsabilidade” em vez de usar o termo amor, pois o considera mal empregado e
por isso desgastado.
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a. Nãoviolência, ela mantém no entanto a pluralidade do Mesmo e
do Outro. É paz. A relação com o Outro – absolutamente outro
–, que não tem fronteira com o Mesmo, não se expõe à alergia
que aflige o Mesmo numa totalidade e na qual a dialética
hegeliana assenta. O Outro não é para a razão um escândalo
que a põe em movimento dialéctico, mas o primeiro ensino
racional, a condição de todo o ensino. (LÉVINAS, 2000, p. 181).
“A responsabilidade por outrem, aí, é o que de mais substancial
há em mim e que me constitui como humano.” (OLIVEIRA;
SCORALICK, 2006, p. 33). Ser humano é ser responsável por aquele
que tem a mortalidade estampada no seu rosto. E ser Eu é responder
ao apelo ou ser refém do outro. Lévinas leva às últimas consequências
a responsabilidade por outrem. Ser único é ser eleito a responder
por tudo e por todos e, “responder é tornar-se responsável [...].”
(OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 32).
Porém, presencia-se, também em Buber, uma responsabilidade
que evoca dois sentidos: o da resposta e o da obrigação. Para ele,
A experiência de receber a palavra e respondê-la é o âmago
do entre7 ou a revelação vivida pela reciprocidade. Esta
experiência vivida de um vínculo numa situação de apelo e
resposta encerra o fenômeno da responsabilidade em seus
dois sentidos: primeiro, como resposta e, segundo, como a
“obrigação” de responder. [...] a responsabilidade como projeto
do homem na história de viver num nível real e essencial da vida
humana é a resposta ao apelo do dialógico. A responsabilidade
transcendendo o nível moral, para um nível mais amplo, é o
nome ético de reciprocidade. (BUBER, 2004, p. 41).
Porém, como vimos que Lévinas prefere a palavra
responsabilidade em vez da palavra amor, devido ao seu mau uso,
Buber diz que a responsabilidade do Eu para com o Tu tem como base
o amor. O amor é uma força cósmica que une dois seres do mesmo
gênero constituindo uma relação onde eles se realizam. O amor é
7 Buber propõe ao homem a realização da vida dialógica, uma existência fundada no diálogo. Para esta tarefa sobressai de novo o sentido profundo da categoria à qual já aludimos:
o “entre”. Uma das manifestações antropológicas mais concretas da existência da esfera
“entre” é o fenômeno da resposta. Neste nível palavra e práxis se confundem, isto é, no
nível do dialógico, ou em outros termos dia-logos é dia-práxis, já que existe uma inter-ação
“entre” Eu e Tu. (BUBER, 2004, p. 40).
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um movimento contínuo. E para que ele aconteça, necessita-se da
presença do Tu. Buber nos relata que:
Os sentimentos, nós os possuímos, o amor acontece. Os
sentimentos residem no homem, mas o homem habita em seu
amor. Isto não é simples metáfora, mas a realidade. O amor
não está ligado ao Eu de tal modo que o Tu fosse considerado
um conteúdo, um objeto: ele se realiza, entre o Eu e o Tu.
Aquele que desconhece isso, e o desconhece na totalidade
de seu ser, não conhece o amor, mesmo que atribua ao amor
os sentimentos que vivencia, experimenta, percebe, exprime.
O amor é uma força cósmica. Àquele que habita e contempla
no amor, os homens se desligam do seu emaranhado confuso
próprio das coisas; bons e maus, sábios e tolos, belos e feios,
uns após outros, tornam-se para ele atuais, tornam-se Tu, isto
é, seres desprendidos, livres, únicos, ele os encontra cada um
face-a-face. A exclusividade ressurge sempre de um modo
maravilhoso; e então ele pode agir, ajudar, curar, educar,
elevar, salvar. Amor é responsabilidade de um Eu para com um
Tu: nisto consiste a igualdade daqueles que amam, igualdade
que não pode consistir em um sentimento qualquer, igualdade
que vai do menor, ao maior do mais feliz e seguro, daquele
cuja vida está encerrada na vida de um ser amado, até aquele
crucificado durante sua vida na cruz do mundo por ter podido
e ousado algo inacreditável: amar os homens. (BUBER, 2004,
p. 61).
Portanto, o amor é capaz de construir sem limites a
responsabilidade incondicionada pela manifestação da face do outro.
O Outro ou o Tu me convida a cultivar, regar, cuidar de mim mesmo e a
fazer isso por causa e em vista do outro. A exigência ética me chama a
ser responsável pela vida. “A responsabilidade que se instaura a partir
da heteronomia da razão nos indica um novo modo para pensar o
sujeito, estrutura que comporta o outro-no-mesmo, isto é, o outro em
si ou sobre si.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 33).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A nostalgia do humano evoca aquilo que é mais característico
no homem, a sua humanidade. Essa nostalgia envolve uma conversão
que se propõe um projeto de existência a ser realizado e não uma
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42 |
ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
simples volta a um passado. A afirmação do humano não é um
objeto de análises científicas, mas um projeto reflexivo. A filosofia do
diálogo, da relação – liberdade, responsabilidade – transfigura nessa
nostalgia. A presença do outro é encontro e, no entanto, é diálogo,
responsabilidade infinita.
A vida humana é marcada essencialmente pela presença do
outro. A Alteridade é relação, revela o modo de ser especificamente
do Eu. É na presença do outro que o Eu se reconhece. Essa presença
patenteia o mandamento estampado no rosto: não matarás! A
epifania do rosto convida a uma responsabilidade infinita. A uma
cordial responsabilidade pela existência humana. A existência
humana é marcada pelo encontro, pela relação. Esta é presença
autêntica na vida humana, pois o homem se relaciona em todos os
momentos de sua vida. O encontro se realiza entre duas consciências.
A transformação e a realização do ser humano se concretizam no
inevitável encontro. O encontro sugere reflexão, não uma reflexão do
passado, mas do presente.
E é por isso que todo aquele que se propõe a construir uma
reflexão capaz de dar sentido para a vida humana se fundamenta
nos acontecimentos de seu tempo. A reflexão sobre a Alteridade
é fruto de um tempo marcado pelo ódio do homem em direção ao
seu semelhante. Uma relação em que o homem se reconhece com a
presença do outro. Mas o que o século XX mostrou foi uma eclosão de
raiva, de negação, incorporado por um regime de morte. A Alemanha
foi palco de um verdadeiro genocídio. Por causa da Segunda Guerra
Mundial morreram aproximadamente cinquenta milhões de pessoas.
Entre os mortos, a Alemanha, por questões políticas, eliminou da
face da Terra em média de dez milhões. Mas também o século atual
percorre os mesmos caminhos de negação do outro marcados pelo
século passado. Vários abandonos, guerras, atentados, assassinatos,
acidentes de trânsito por imprudência, violência sexual e outros, etc.
Devido a esses dados provocantes, é preciso afirmar a Alteridade
como um elemento essencial da vida humana. A Alteridade convida
todos a uma responsabilidade que não possui limites. A contemplação
do rosto conduz o Eu à ideia do infinito em sua finitude.
Portanto, a Alteridade marca e constitui a liberdade humana.
Ela realiza o ser humano. A Alteridade essencial se instaura na relação.
É na relação dialógica que se encontram o eu e o outro como pessoas.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
Ismael Garcia de Sousa
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Nesta, acontece a experiência e, esta, estabelece um contato na
estrutura do relacionamento. O encontro é um evento que acontece
atualmente. A presença do outro implica um encontro mútuo,
incondicionado. Presença significa presentificar e ser presentificado.
Reciprocidade é a marca fundamental da atualização do fenômeno
da relação. O critério de maior valor repousa sobre a reciprocidade.
Assim a relação de maior valor existencial é o encontro, a relação interhumana. Entretanto, o homem jamais poderá viver sem o mundo,
porém, jamais conseguirá viver só com o mundo, pois aquele que
rejeita a Alteridade antropológica, não é uma pessoa humana. É no
encontro que o homem se realiza infinitamente. O encontro do interhumano amplia a vida intelectual, psíquica e física. Sua emancipação
e humanização se desenvolvem cotidianamente e historicamente na
inter-relação.
* Ismael Garcia de Sousa é leigo. Graduado em Filosofia pelo ISTA (Instituto
Santo Tomás de Aquino). Professor na rede estadual de Minas Gerais na cidade de
Divinópolis. E-mail: [email protected]
** Rita de Cássia Cypriano Valladares, professora do Instituto de Santo de Tomás
de Aquino.
REFERÊNCIAS
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Martins Fontes, 2000.
BONAMIGO, Gilmar Francisco. Primeira aproximação à obra de
Emmanuel Lévinas. Síntese, v. 32, n. 102, p. 77-104, jan./abr. 2005.
BUBER, Martin. Eu e Tu. 8. ed. São Paulo: Centauro, 2004.
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Biblioteca de Filosofia
Contemporânea. Lisboa: Edições 70, 2000.
NUNES, Rizzatto. A liberdade: manual de filosofia do direito: São
Paulo: Saraiva, 2004.
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ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO
OLIVEIRA, Ednilson Turozi de; SCORALICK, Klinger. Emmanuel
Lévinas: Ética e Alteridade. Discutindo Filosofia, São Paulo, v. 1, n. 4,
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REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Emmanuel Lévinas e a
fenomenologia da face do outro. In: REALE, Giovanni; ANTISERI,
Dario. História da Filosofia: de Freud à Atualidade: São Paulo: Paulus,
2003.
SUMARES, Manuel. Alteridade. In: LOGOS Enciclopédia Logos lusobrasileira de filosofia. Lisboa: Editorial Verbo, 1989. v. 1.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014.
Juan Pablo G. Martinez
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE
DEUS: as linhas mestras do Evangelho de
Marcos1
Juan Pablo García Martínez,
SCJ – Betharram*
Solange Maria do Carmo**
Resumo
Este trabalho, que consta de três artigos sucessivos, faz uma leitura
do Evangelho de Marcos a partir da chave hermenêutica fornecida por
Wilhem Wrede no seu célebre livro “O Segredo Messiânico” (1901).
Com os ajustes necessários, a perspectiva de Wrede possibilita uma
percepção mais clara e abrangente da poderosa – e misteriosa –
mensagem de Marcos, expandindo os horizontes do leitor para além
de uma abordagem superficial. Aliás, permite visualizar a intrínseca
relação existente entre o messianismo e o discipulado na teologia do
Segundo Evangelista. De fato, a tese da qual parte o presente trabalho
é que, para Marcos, uma adequada percepção do messianismo
assumido por Jesus não é tão somente uma exigência cristológica, mas
é também condição essencial para uma apropriada compreensão do
discipulado. No primeiro artigo serão apresentadas as linhas mestras
do Evangelho de Marcos; no segundo se aprofundará sua concepção
messiânica e, no terceiro, seu modo de compreender o discipulado.
Palavras-chave: Evangelho de Marcos. Messianismo. Segredo
messiânico. Wilhem Wrede. Seguimento de Jesus.
1 INTRODUÇÃO
1Trabalho financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica(BIC) do
Curso de Teologia do Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS:
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
Durante séculos, o Evangelho de Marcos foi relegado a
um segundo plano, no estudo e também na liturgia. Passadas
sua popularidade e sua difusão iniciais, o Segundo Evangelho foi
praticamente esquecido. A brevidade, o estilo simples e a aparente
incompletude do texto fizeram como que a Igreja preferisse os outros
Sinópticos, especialmente Mateus, mais extenso e didático. O próprio
Agostinho de Hipona chegou a considerá-lo um compêndio de Mateus
(De Consensu Evangelistarum, 1,2). Mas o panorama mudou no século
XIX, quando a teoria das duas fontes advertiu acerca da dependência
de Mateus e de Lucas em relação a Marcos, agora considerado o mais
antigo dos Evangelhos. Em contrapartida às alegrias dessa descoberta,
a nascente teoria caiu numa certa ingenuidade, pois, ao considerar o
Evangelho de Marcos como o mais próximo temporalmente de Jesus
de Nazaré, passou a estimá-lo também quase que como a testemunha
inalterada do Jesus histórico. A teoria foi ganhando consenso até
que, na virada do século, Wilhelm Wrede acendeu o debate com seu
célebre livro O Segredo Messiânico (1901), demonstrando que também
Marcos – e não somente Mateus e Lucas, como já tinham advertido
os teólogos liberais – estava perpassado de ponta a ponta pela fé
messiânica da Igreja. Apesar dos extremos da nova teoria, que acabou
negando todo valor histórico ao texto de Marcos, esta significou um
antes e um depois na leitura do Segundo Evangelho, possibilitando
novas perspectivas e abordagens. (TAYLOR, 1979, p.29).
A chave hermenêutica fornecida por Wrede será, de fato, a
bússola que norteará nossa leitura de Marcos. A razão desta escolha
é simples: a doutrina do segredo messiânico explicita bem a teologia
marcana, ao mesmo tempo em que consegue elucidar um texto
com frequência desconcertante e perpassado pelo mistério. Aliás,
muito mais do que oferecer uma mera ferramenta interpretativa,
entendemos que a doutrina do segredo messiânico consegue
evidenciar a perspectiva a partir da qual foi escrito o Segundo
Evangelho. A tese de Wrede oferece, com as devidas ressalvas, não
somente uma chave hermenêutica, mas também a intuição teológica
marcana, que moveu o evangelista a redigir o texto.
Com base nesta perspectiva, levantaremos três perguntas
fundamentais, dedicando à cada uma delas um artigo específico.
Deste modo, quem quiser completar nossa abordagem do Segundo
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
Juan Pablo G. Martinez
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Evangelho deverá aguardar os próximos números da publicação.
Neste primeiro artigo, a pergunta a ser respondida será: Quais
são os princípios e propósitos teológicos basilares que inspiram o
Evangelho de Marcos? Para respondê-la, desdobraremos a questão
em vários interrogantes: Em que contexto foi escrita a obra marcana?
Quem são seus destinatários? Que propósito persegue o autor ao
escrever o Evangelho? Quem é Jesus para Marcos? De que modo
estrutura-se o texto?
O segundo artigo2 se debruçar sobre o modo como Marcos
compreende o messianismo de Jesus, que – conforme notaremos – é
a de um messias às avessas de toda expectativa davídico-nacionalista.
A pergunta subjacente será: Como entende e apresenta Marcos a
identidade e a missão de Jesus? Como veremos, este será o cerne do
nosso trabalho, pois colocará os alicerces de toda a teologia marcana.
No terceiro artigo3 , estudaremos a concepção marcana
do discipulado. Perceberemos que, na perspectiva do Segundo
Evangelista, o discipulado se resume no seguimento de Jesus, feito
ao longo do caminho. A pergunta que orientará nossa pesquisa será:
Quais as implicações, para Marcos, do seguimento de Jesus? Nesse
ponto da reflexão, indagaremos se há algum tipo de dependência
entre o modo como Marcos entende o discipulado e sua compreensão
do autêntico messianismo – já aprofundada no segundo artigo. Em
outras palavras, o fato de Marcos compreender Jesus como o messias
às avessas, ou seja, o messias inesperado, influencia no tipo de
discipulado proposto?
Essa é, de fato, a tese fundamental da qual partimos: no
Segundo Evangelho, o seguimento de Jesus – o discipulado – está
intrinsecamente relacionado com o tipo de messias que o evangelista
compreende que Jesus é. Procuraremos mostrar que, para Marcos,
uma apropriada percepção do messianismo assumido por Jesus não
é tão somente uma exigência cristológica, mas é também condição
essencial para uma adequada interpretação do discipulado. Nossa
intuição se baseia em Mc 8,34-38, onde se adverte, bem às claras,
que o destino de Jesus é, ao mesmo tempo, o destino do seguidor
(SMITH, 1996, p.523-539). Sendo assim, a pergunta pela natureza do
2 VAI PARA TRÁS DE MIM: A questão messiânica no Evangelho de Marcos
3 TAL MESTRE, TAL DISCÍPULO: O discipulado no Evangelho de Marcos.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS:
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
messianismo na obra de Marcos é, necessariamente, uma questão
prévia à sua concepção do discipulado.
2 DATA, LUGAR DE COMPOSIÇÃO E AUTORIA
Conforme uma antiga tradição testemunhada no início do
século II por Pápias, bispo de Hierápolis, o Segundo Evangelho foi
escrito em Roma por volta do martírio de Pedro (aproximadamente
65 dC.). Além do testemunho de Pápias, conservado na Historia
Eclesiástica de Eusébio de Cesareia (III, 39-15), outras fontes
extrabíblicas, como o Adversus Haereses de Ireneu de Lyon (III, 1.2) e o
Prólogo Antimarcionita (da Vetus Latina), também localizam a redação
do Evangelho nesse contexto.
Pápias atribui a obra a Marcos, de quem informa que não
conheceu pessoalmente a Jesus, senão através de Pedro, cuja
catequese teria colocado por escrito. Quem será este Marcos a quem
se atribui o Segundo Evangelho? Difícil dizer ao certo, mas devemos
recordar que o nome não era incomum na época. Provavelmente,
trate-se de uma alusão ao Marcos do livro dos Atos dos Apóstolos,
“de sobrenome João” (ou simplesmente “João Marcos”), associado a
Pedro, Paulo e Barnabé (cf. At 12,12.25; 13,5.13), que em At 15,36-41
aparece simplesmente como “Marcos” e, em Cl 4,10, como “primo de
Barnabé”. Também na Primeira Carta de Pedro se faz referência a um
tal Marcos (cf. 1Pd 5,13).
Quanto ao momento da escrita, mais confiáveis do que a
tradição referida parecem ser os indícios internos do texto, em
particular as possíveis alusões à Primeira Guerra Judaica (66-73
dC.) e à destruição de Jerusalém (70 aC.), presentes, sobretudo, no
denominado discurso apocalíptico (cf. Mc 13), que parecem confirmar
a datação sugerida por Pápias. Nessa mesma linha, a estimativa dos
exegetas geralmente oscila entre uma data mais remota, 65-70 dC., e
outra mais próxima, 70-75 dC. (BARBAGLIO, 1990, p. 428).
No tocante à autoria atribuída a Marcos, alguns se inclinam
pela sua historicidade, pois a tendência da tradição cristã sempre foi
atribuir a autoria dos Evangelhos a algum dos apóstolos. Não sendo
Marcos um dos Doze, dificilmente teria sido considerado autor sem
motivo suficiente. (TAYLOR, 1979, p. 50). Outros – de cujo ponto
de vista participamos – entendem que o autor quis deixar sua obra
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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anônima. Quando o escritor recebeu o querigma, sua personalidade
se apagou diante da autoridade da mensagem a ser comunicada, o
Evangelho. (MARGUERAT, 2009, p. 58).
3 DESTINATÁRIOS E PROPÓSITO TEOLÓGICO-PASTORAL DO
EVANGELHO
O texto de Marcos, primeiro do gênero literário Evangelho, foi
elaborado para encorajar e esclarecer a fé daqueles que, amedrontados
pela tribulação, experimentavam a tentação de um cristianismo sem
cruz. Diante do perigo que isso representava para a fé da comunidade,
o evangelista lhes anuncia novamente o querigma, lembrando-lhes
que seguem a Jesus, o Servo Sofredor, que caminha para Jerusalém
acompanhado de seus discípulos.
Se a datação mais aceita for correta (década de 60 ou de 70
dC.), quando o Evangelho de Marcos foi escrito, as comunidades
cristãs existiam há trinta ou quarenta anos. No momento em que as
testemunhas oculares de Jesus estavam desaparecendo, percebendo
o risco de que o essencial do querigma se perdesse, a segunda
geração de cristãos assumiu a tarefa de conservar a memória escrita
da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo para a terceira e
as ulteriores gerações.
Quais seriam, pois, estes leitores imediatos do texto de
Marcos? A falta de uma reflexão profunda sobre a Torá – ao contrário
do Evangelho de Mateus –, assim como a explicação de usos e
costumes judaicos aparentemente desconhecidos pelos leitores
(cf. Mc 7,1-4, sobre os rituais de purificação), leva a pensar numa
comunidade, ao menos em parte, de origem pagã. As numerosas
incursões de Jesus fora da Palestina parecem apontar nessa mesma
direção. (MARGUERAT, 2009, p. 62).
Sabemos que os Evangelhos nascem no seio de comunidades
concretas, historicamente situadas, e para elas são originariamente
escritos, levando em consideração as circunstâncias e as necessidades
do destinatário. O Evangelho nos faz pensar em uma comunidade
que procurava seguir a Jesus, o Crucificado, mas que estava
escandalizada e confusa diante da própria tribulação. A Igreja de
Marcos atravessava, possivelmente, tempos de perseguição, e não
havia entendido ainda que estava associada ao mesmo destino do seu
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS:
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
Senhor. Consequentemente, não dava conta de anunciar a Boa Nova
da ressurreição (cf. Mc 16,8). (TILLESSE, 1992, p. 80). A insistência
do evangelista na necessidade da paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32;
10,32-34) e na persistente incompreensão dos discípulos (cf. Mc 4,13;
6,52; 9,32), aparentemente imunes às reiteradas explicações que
recebem de Jesus “em particular” (cf. Mc 4,34; 9,29), sugerem essa
problemática.
Certamente – podemos concluir –, a comunidade de Marcos
já tinha sido evangelizada, mas encontrava-se necessitada de uma
nova evangelização. Marcos lhe anuncia outra vez o querigma,
levantando para isso uma pergunta fundamental, que só pode ser
respondida na dinâmica do seguimento: “Quem é Jesus?” (cf. Mc
8,29). Concomitantemente, diante do desânimo e da incompreensão,
faz questão de deixar às claras as consequências do seguimento: “Se
alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e
siga-me!” (Mc 8,34).
4 O MESSIAS INESPERADO E O SEGREDO MESSIÂNICO
Neste contexto de incompreensão e cruz, o evangelista anuncia
que Jesus é o messias, mas não segundo as expectativas terrenas de
sua comunidade. O Jesus de Marcos é um messias diferente, que
ultrapassa os esquemas puramente humanos de restauração davídiconacionalista e resiste a se encaixar neles4 . É o messias inesperado,
e seu messianismo é o do Servo Sofredor, humilde, que entrega sua
vida pela humanidade (cf. Is 52-53). Ele é o Filho do Homem (cf. Dn
7,13), o protótipo de todo homem, aquele que, em tudo, age segundo
a vontade divina (cf. Mc 3,35) e precede à humanidade nos caminhos
de Deus.
Precisamente pelo inesperado desta compreensão messiânica
e visando preservar o Evangelho de toda interpretação triunfalista
– incompatível, portanto, com o caminho da paixão –, Marcos se
vale do que os exegetas denominaram de “segredo messiânico” –
4 Isto não significa excluir da tradição judaica a possibilidade de um messias sofredor, até
porque Marcos se inspira claramente nos cânticos (judaicos) do servo do Segundo Isaías. No
entanto, os destinatários de Marcos parecem imbuídos de uma noção messiânica triunfalista – sem cruz –, e é precisamente essa concepção deturpada o objeto da preocupação
marcana e o alvo da sua catequese (cf. Mc 8,34-38).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
Juan Pablo G. Martinez
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ao qual dedicaremos o próximo artigo5 . No esquema do Segundo
Evangelista, a identidade e a missão de Jesus serão reveladas, mas
isso só acontecerá plenamente no momento decisivo da cruz quando,
aniquilado, Jesus será finalmente reconhecido como Filho de Deus (cf.
Mc 15,39).
Entretanto, sua realidade mais profunda deve ser guardada
em segredo. Este se expressa no mistério que envolve a pessoa e
a atividade de Jesus e se concretiza nas frequentes exortações ao
silêncio que dirige a todo aquele que o proclama – ou meramente o
declara – como messias. Assim, os discípulos são advertidos para que
não contem nada a ninguém, logo depois da profissão de fé petrina
(cf. Mc 8,30). Também os demônios, conhecedores de identidade de
Jesus, devem guardar silêncio: Jesus lhes proíbe terminantemente
dizer quem ele é. Em outras ocasiões, até mesmo os beneficiários de
milagres devem se calar, pois os milagres constituem manifestações
parciais da glória e do poder messiânicos. A mesma circunspecção
permeia as cenas do batismo e da transfiguração, momentos cume
da revelação messiânica, ora reservados ao próprio Jesus – “Tu és o
meu Filho amado” (Mc 1,11) –, ora reservados a um reduzido número
de testemunhas – “Este é o meu Filho amado” (Mc 9,7).
Na dinâmica do segredo messiânico, Jesus é caracterizado
pelo seu extremo poder, onde se vislumbram sua identidade e sua
missão. O Jesus de Marcos é, assim, violentamente “sobre-humano”.
Ele faz os cegos ver, os surdos ouvir, os paralíticos caminhar; expulsa
demônios; acalma tempestades; faz a figueira secar. (TILLESSE, 1992,
p. 61). Por isso, ele surpreende, suscita admiração e, eventualmente,
desperta o desejo de se aproximar dele, para fazer-lhe perguntas e
conhecê-lo.
Mas, ao mesmo tempo, Marcos apresenta um Jesus
profundamente humano e próximo de nós. Ele é simplesmente “o
carpinteiro, o filho de Maria” (Mc 6,3). Nenhum outro evangelista
fala tanto sobre suas emoções: fica “entristecido” pela dureza do
coração dos fariseus e passa sobre eles “um olhar irado” (Mc 3, 5);
quando lhe põem à prova, dá “um suspiro profundo” (Mc 8,12); diante
da incredulidade dos nazarenos, “se admirava” (Mc 6,6); perante o
5 No próximo artigo explicitaremos as funções do segredo messiânico na teologia marcana,
a saber: função catequético-pedagógica e função lógico-histórica..
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS:
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
leproso e ao ver a grande multidão, “encheu-se de compaixão” (Mc
1,41; 6,34). Somente Marcos nos diz que Jesus olhou para o rico que
queria segui-lo “com amor” (Mc 10,21) e, só em Marcos, Jesus toca
o leproso com a mão (cf. Mc 1,41). O Jesus de Marcos também sente
fome (cf. Mc 11,12), conhece o cansaço e procura descanso (cf. Mc
6,31). (MATOS, 1997, p. 112).
Também as parábolas se articulam cuidadosamente em torno
do segredo messiânico, já que, na teologia do Segundo Evangelho,
elas não tornam a mensagem mais clara, mas, ao contrário, a
obscurecem (cf. Mc 4,11-12). A concepção marcana das parábolas
é, consequentemente, oposta à suposição habitual, segundo a qual,
enquanto representações concretas tiradas da realidade quotidiana,
seriam narrativas destinadas a facilitar o entendimento. (BURKILL,
1956, p. 246). Ao contrário, na perspectiva de Marcos, elas cumprem
a função de provocar os interlocutores, cuja posição Marcos delimita
segundo a atitude assumida diante da incompreensão que segue
à parábola. Alguns se aproximam de Jesus e lhe fazem perguntas
(cf. Mc 4,10), dando, assim, o primeiro passo do discipulado. São os
“de dentro”, o grupo dos “com Jesus” que convive com ele. Outros
permanecem na incompreensão, sem mudar nem procurar respostas;
ou compreendem a parábola, mas rejeitam a dinâmica do Reino (cf.
12,1-12). São os “de fora” (cf. Mc 4,11), sejam estes a multidão (cf. Mc
4,33-34), os adversários (cf. Mc 12,1-12) ou a própria família biológica
de Jesus (cf. Mc 3,31).
4 ESTRUTURA BIPARTIDA DO EVANGELHO
Nos escritos antigos, as primeiras palavras costumavam dar o
título à obra, caracterizando ao mesmo tempo seu conteúdo. Se isto
vale para vários escritos da Bíblia (para os livros do Pentateuco, na
Bíblia Hebraica), resulta particularmente certo no caso de Marcos, o
único dos quatro Evangelhos canônicos a colocar já no seu prólogo o
termo “Evangelho” (Boa Notícia) e o fundador desse gênero literário.
A sua mensagem é, de fato, uma Boa Notícia para a sua comunidade,
abalada pela adversidade e por sua própria incompreensão acerca do
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
Juan Pablo G. Martinez
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seu sofrimento.6
Marcos começa o texto bruscamente. Não há nele genealogias
nem relatos da infância, como em Mateus e em Lucas; não há prólogo
sobre a pré-existência do Verbo, como em João. Seu começo abrupto
e despojado permite, porém, vislumbrar já no primeiro versículo
toda a sua estrutura literária e seu propósito teológico. O versículo
“Inicio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1) é, de fato,
programático, antecipando desde cedo a estrutura teológica da obra.
Nesse ponto, os exegetas enfrentam o problema de determinar
a autenticidade da expressão “Filho de Deus”. Embora a mesma
apareça na maioria dos manuscritos, em alguns – como o Sinaiticus, do
séc. IV – só se lê “Evangelho de Jesus Cristo”. As regras da crítica textual
mandam seguir o texto mais curto, pois dificilmente um copista teria
tido a ousadia de reduzir o original. Pelo contrário, seria mais usual
que um copista piedoso tivesse acrescentado sua própria profissão
de fé. Mas a expressão “Filho de Deus” corresponde de maneira tão
profunda e rigorosa com a mensagem teológica de Marcos, que boa
parte dos exegetas e tradutores a conserva7. (TILLESSE, 1992, p. 147).
A estrutura da obra marcana se manifesta – seguindo a
fórmula mais extensa – através de duas grandes inclusões. Mediante
o recurso literário da inclusão, típica da literatura judaica, uma palavra
ou expressão usada no começo de um texto é retomada no fim do
mesmo. Dessa maneira, são marcados os limites da narrativa, ao
mesmo tempo em que sua unidade estilístico-temática torna-se
explicitada. (MOULTON apud GOPEGUI, 1982, p. 279-300).
O esquema marcano pode ser assim representado como uma
escada de dois lances ou partes, cada um respondendo a uma questão
fundamental: 1- Quem é Jesus? (primeira inclusão; cf. Mc 1,1–8,30);
2) Que tipo de messias é Ele? (segunda inclusão; cf. Mc 8,31–15,39). O
patamar entre os dois lances é ocupado pela proclamação petrina: “Tu
és o Cristo” (Mc 8,29), a partir da qual o segredo messiânico começa
a enfraquecer. Por sua vez, o segundo lance conduz aos pés do Servo
Sofredor, onde o centurião romano proclama: “Na verdade, este
6Nos livros canônicos, o termo “evangelho” é introduzido por Paulo, que o utiliza sessenta
vezes, embora seja Marcos quem inaugura o Evangelho como gênero, dando um “rosto”
concreto ao Cristo das Cartas Paulinas.
7Peter Head é a favor da fórmula mais curta (HEAD, Peter. Text-Critical Study of Mark 1.1
`The beginning of the Gospel of Jesus Christ´. New Testament Studies, Cambridge, v.37,
p.621-629, 1991).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS:
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39), encerrando assim a segunda
grande inclusão. Eis o final do segredo. (SILVA, 1989, p. 13).
Significativamente, em Mc 8,31, primeiro versículo da segunda
parte, afirma-se que Jesus “começou a ensinar-lhes”. Bem diferente
do anterior ensinamento, caracterizado pela linguagem simbólica
das parábolas, o objeto do novo ensinamento é comunicado
“abertamente” e com clareza: “era necessário o Filho do Homem
sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e
escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8,31). A
nova modalidade de ensino e o processo desencadeado pela profissão
de Pedro constituem, para Marcos, um autêntico recomeçar, após o
começo de Mc 1,1. Com Mc 8,31 inicia-se a segunda grande inclusão,
que culmina no desfecho da cruz, na qual fica exposto, à vista de todos,
o genuíno messianismo de Jesus. Só então pode ser confessada sua
identidade mais profunda (cf. Mc 15,39). (TERRA, 1997, p. 7-8).
5 ESTRUTURA DO CAMINHO
Por cima dessa estrutura bipartida, que tem como cume
as proclamações de fé de Pedro (cf. Mc 8,29) e do centurião (cf. Mc
15,39), o Evangelho apresenta uma outra estrutura, mais visível e
existencial: a do caminho8. Para Marcos, a intimidade com Jesus
e o conhecimento de seu messianismo se darão no caminho, para
aquele que se põe atrás do Mestre. Através desta dinâmica, as duas
proclamações de fé, embora já antecipadas no prefácio (cf. Mc 1,1),
não chegam ao leitor de maneira pronta e desencarnada, mas como
fruto de um longo itinerário que tem a cruz como destino.
Por isso, o caminho deve ser entendido, fundamentalmente,
como caminho a Jerusalém, ou seja, como caminho que leva à paixão
(cf. Mc 10,32.46.52; 11,8) e que deve ser percorrido, não somente por
Jesus, mas também pelo discípulo. A tal ponto a questão é central
que o discípulo que não acolher o caminho de sofrimento de Jesus e
8 A simbologia do caminho é particularmente rica em significados, tanto bíblicos quanto
antropológicos. Ela remete à experiência de Israel, povo de origem nômade (cf. Gn 12,1),
caminhante e protagonista de uma longa peregrinação espiritual, a da Torá, que é, fundamentalmente, caminho sempre aberto à comunhão com Deus. A itinerância é também a
experiência da Igreja, originalmente conhecida como “Caminho” (cf. At 9,2; 19,9.23; 22,4;
24,14; 24,22), e da humanidade toda, que percorre o caminho da vida ao longo de sua
história. (KONINGS, 1994, p. 7).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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que não o assumir como seu único caminho pessoal compromete sua
mesma permanência no discipulado. (GNILKA, 1986, p. 15).
Após o batismo no rio Jordão, Marcos situa Jesus no deserto
(cf. Mc 1,12-13), lugar de provação (cf. Êx 15,25), de encontro com
Deus (cf. Êx 3,1-6; 19,3) e de preparação para os tempos messiânicos
(cf. Is 40,3-5). Lá são localizados o batismo (cf. Mc 1,9-11), as tentações
(cf. Mc 1,12-13) e, previamente, a pregação de João Batista (cf. Mc
1,4-8). Como um novo Josué, Jesus sai do deserto e entra na Galileia
proclamando a Boa Nova do Reino de Deus. A missão de Jesus começa
assim no preciso momento em que a do Batista é concluída. O “mais
forte”, que João tinha anunciado (cf. Mc 1,7; Is 9,5), se faz presente em
Jesus.
Uma vez na Galileia, tudo sucede vertiginosamente,
“imediatamente” (cf. 1,18.20; 1,42; 3,6; 5,29; 6,27; 7,35; 9,24). O Reino
de Deus tem pressa de acontecer, pois o tempo da espera acabou (cf.
Mc 1,15; Is 30,19). Na Galileia Jesus chama os primeiros discípulos e
institui Doze dentre eles. Lá é também o lugar por excelência dos
sinais messiânicos anunciados por Isaías (cf. Is 26,19; 29,18; 35,5; 61,1):
curas, milagres e exorcismos se sucedem um após o outro, suscitando
a surpresa de todos. O evangelista faz questão de salientar que
todos ficam “admirados” pelas suas obras e pela autoridade de seu
ensinamento (cf. Mc 1,22.27; 2,12; 5,20; 9,15; 10,26; 12,17; 15,5.44).
Curiosamente, Marcos não diz qual é a natureza desse ensinamento
(cf. Mc 1,22; 2, 2,13; 6,1.6.34). É que, ao contrário de Mateus (cf. Mt 5–7)
e de Lucas (cf. Lc 6,17-49; 15–16), o Segundo Evangelista se preocupa
muito mais com a prática de Jesus do que com seu discurso. Para
Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Ele ensina
fazendo, o que causa grande admiração em todos. (BELO apud SILVA,
1989, p. 12). À admiração, com frequência, segue-se a pergunta pela
identidade de Jesus: “Quem é este?” (Mc 4,41). Mas é só no caminho
que esta pergunta pode achar resposta, pois só aos “com Jesus” são
confiadas as chaves do segredo messiânico (cf. Mc 4,11). (TILLESSE,
1992, p. 137).
Em alguns momentos, o caminho acontece em território
pagão: Gerasa, Tiro, Sidônia, a Decápole (cf. Mc 5,1; 7,24.31). Os sinais
messiânicos chegam também em terra estrangeira, pois a salvação
ultrapassa os limites do judaísmo. A partir de Mc 10,1, Jesus se põe a
caminho da Judeia e inicia a subida a Jerusalém, passando por Jericó.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS:
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
Finalmente, no capítulo 11, Jesus e os discípulos chegam à Cidade
Santa, onde a oposição a ele se radicaliza. Em várias oportunidades,
o grupo se traslada à Betânia, mas volta sempre a Jerusalém, onde o
Filho do Homem abraça seu destino trágico (cf. Mc 8,31; 9,31; 10,3334).
Marcos tinha começado o Evangelho quase que de repente,
sem referência ao nascimento nem à infância de Jesus, que aparece já
adulto, sendo batizado no Jordão. E da mesma forma, abruptamente,
termina a obra, diante do sepulcro vazio, onde “em tremor e fora
de si” (Mc 16,8) as mulheres (ou a comunidade de Marcos) recebem
um anúncio esperançoso: “Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o
vereis, como ele vos disse!” (Mc 16,7). Para Marcos, não há necessidade
de aparições pascais. A tradição posterior considerou incompleto
o relato e acrescentou-lhe fragmentos – também canônicos – que
compendiam as aparições pascais relatadas nos outros Evangelhos9.
A tentativa de completar o relato originou-se numa incompreensão
da mensagem poderosíssima de Marcos, para quem a crucifixão é
a cristofania definitiva que prova aos olhos do mundo que Jesus é
realmente o Filho de Deus. (TILLESSE, 1992, p. 98).
Em síntese: o relato do batismo é a primeira manifestação de
Jesus em Marcos; a crucifixão, ou seja, seu batismo de sangue, traz a
última imagem, dando a entender que o destino messiânico de Jesus
– e também o destino da Igreja – se consuma na cruz10. Por sua vez, a
imagem do túmulo vazio, que encerra o relato, remete ao modo como
a Igreja de Marcos experimentava a presença do Jesus pós-pascal:
como ausência. (TILLESSE, 1992, p. 96).
O final do Evangelho em 16,8, porém, não significa o final do
caminho, que continua na Galileia. Ali, onde tudo começou (cf. Mc 1,9),
tudo começa de novo. O retorno à Galileia é o retorno do discípulo
ao território do anúncio inicial do Reino (cf. Mc 1,14-15), dos sinais
messiânicos, das primeiras perguntas e das incipientes respostas. O
9 O trecho de 16,9-20, embora faça parte das Escrituras inspiradas, falta nos manuscritos
mais antigos, como o Vaticano e o Sinaítico. Contudo, já no séc. II, era conhecido de Taciano
e de Santo Ireneu, e aparece na maioria dos manuscritos gregos e em outros (Nota da Bíblia
de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973 e MATOS, 1997, p. 110).
10 Na verdade, todo o Evangelho de Marcos (e não só os oito versículos de Mc 16,1-8),
enquanto relato de fé nascido da experiência pascal, deve ser lido à luz do Ressuscitado. Em
outras palavras, “toda a atividade de Jesus é projetada como a presença entre nós do Filho
de Deus, que a morte não pode engolir, aquele Filho em que Deus se compraz; e portanto,
aquele que vive.” (MARTINI, 1997, p. 94).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
Juan Pablo G. Martinez
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preceder do Ressuscitado é que possibilita a experiência sempre nova
do seguimento. Este se faz no trilho desse caminho, com todas as
suas implicações e consequências. Volta-se, enfim, à Galileia, porque
o caminho do discípulo deve sempre recomeçar. (AZEVEDO, 1989, p.
30).
6 CONCLUSÃO
O Segundo Evangelho foi escrito como Boa Notícia dirigida
a uma comunidade específica, a Igreja de Marcos, a fim de animá-la
e de revitalizar sua fé em tempos de provação. Diante da tentação
de um cristianismo sem cruz – o que comprometeria a essência do
querigma –, o evangelista anuncia Jesus, o messias inesperado. Ele
não é, de fato, um messias “bem sucedido”, mas, ao contrário, o Servo
Sofredor, o justo iniquamente condenado.
Exatamente pelo caráter inesperado da identidade e da missão
de Jesus, o anúncio não pode ser feito subitamente, mas deve ser
realizado de modo paulatino. Para isso, o evangelista elabora um
artifício literário conhecido como segredo messiânico. Na perspectiva
do segredo devem ser entendidos: os relatos de milagres e de
exorcismos – com suas enigmáticas ordens de silêncio –; as parábolas,
cujo sentido, a princípio, permanece oculto; e a própria estrutura do
Evangelho. Como vimos, Marcos organiza o texto mediante duas
grandes inclusões – sugeridas já no começo do Evangelho (cf. Mc 1,1)
– que são delimitadas através da confissão de fé petrina (cf. Mc 8,29)
e da proclamação do centurião romano (cf. Mc 15,39). Aliás, com base
neste esquema bipartido, Marcos configura a proposta fundamental
do seu Evangelho, que é o seguimento de Jesus no caminho, isto é, o
discipulado.
Como podemos observar, tudo no Segundo Evangelho
depende do segredo messiânico, de modo que não é possível
aprofundar na teologia marcana sem estudá-lo cuidadosamente. Isso
justifica e exige que lhe dediquemos o próximo artigo.
* Juan Pablo García Martínez nasceu na Província de Buenos Aires,
Argentina. É religioso da Congregação do Sagrado Coração de Jesus de Betharram,
advogado (2001) pela Universidade de Buenos Aires (Argentina) e estudante de
Teologia (sétimo período) no Instituto Santo Tomás de Aquino, em Belo Horizonte,
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS:
as linhas mestras do Evangelho de Marcos
onde reside.
** Solange Maria Do Carmo, orientadora da pesquisa, licenciada em Filosofia,
bacharel em Teologia (FAJE), mestre em Teologia Bíblica (FAJE) e doutora em
Catequética (FAJE), professora do ISTA e do Instituto de Filosofia e Teologia Dom
João Resende Costa (PUC-Minas).
REFERÊNCIAS
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A força pedagógica da articulação global do Evangelho de Marcos.
Estudos Bíblicos, São Bernardo do Campo, n. 22, p. 23-30, 1989.
BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os
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NovumTestamentum, Leiden, v. 1, p. 246-262, 1956.
GNILKA, Joachim. El Evangelio según San Marcos. Mc 8,27–16,20.
Salamanca: Sígueme, 1986, v. 2.
GOPEGUI, Juan Ruiz de. O Evangelho de Marcos: um roteiro inspirador
para a catequese. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v.14, n.34,
p.279-300, 1982.
HEAD, Peter. Text-Critical Study of Mark 1.1 `The beginning of the
Gospel of Jesus Christ´. New Testament Studies, Cambridge, v.3 7, p.
Para melhor compreensão do termo Alteridade, tanto na obra
KONINGS, Johan. Marcos. São Paulo: Loyola, 1994.
MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura e
teologia. São Paulo: Loyola, 2009.
MARTINI, Carlos Maria. O itinerário espiritual dos Doze. São Paulo:
Loyola, 1997.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
Juan Pablo G. Martinez
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MATOS, Paulo Félix de. Títulos de Jesus no Evangelho de Marcos.
Revista de Cultura Bíblica, São Paulo, v. 21, n. 81-82, p. 110-116, 1997.
SILVA, Airton José da. Ele caminha à vossa frente. O seguimento de
Jesus pelo Evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, São Bernardo do
Campo, n. 22, p. 11-21, 1989.
SMITH, Stephen H.. The function of the Son of David tradition in
Mark´s Gospel. New Testament Studies, Cambridge, v. 42, p. 523539, 1996.
TAYLOR, Vincent. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad,
1979.
TERRA, João Evangelista Martins. Cristo no Evangelho de Marcos.
Revista de Cultura Bíblica, São Paulo, v. 21, n. 81-82, p. 3-18, 1997.
TILLESSE, Caetano Minette de. Evangelho segundo Marcos: nova
tradução estruturada, análise estrutural e teológica. Fortaleza: Nova
Jerusalém, 1992.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014.
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Henrique Cristiano J. Matos
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EDUCAR PARA A
VIDA PLENA
Frater Henrique Cristiano José Matos
Em fins de janeiro de 2014 houve, em Igarapé, na grande
Belo Horizonte, um encontro de dois dias, organizado pela ANEC
(Associação Nacional de Educação Católica do Brasil), do qual
participaram vários diretores e diretoras de colégios católicos da
capital mineira com suas respectivas assessorias.
Dom José Maria Pires (1918), arcebispo emérito da Paraíba
(João Pessoa), com seus quase 96 anos, esteve presente o tempo
todo, brindando os participantes com reflexões muito originais sobre
o tema: “A educação antes e depois do Concílio Vaticano II”. Seu
testemunho de vida falou ainda mais alto do que as sábias palavras
pronunciadas. O momento mais significativo de sua colaboração foi,
sem dúvida, a Eucaristia que presidiu no sábado à noite, encontro
fraterno de intensa espiritualidade e de partilha espontânea.
A mim foi confiada uma reflexão sobre o tema “Educar
para a vida plena”, tendo como pano de fundo o artigo 2º, inciso II, do
Estatuto Social da ANEC, onde se lê: “[A ANEC tem como finalidade
precípua] Promover a educação cristã evangélico-libertadora,
entendida como aquela que visa à formação integral da pessoa
humana, sujeito e agente de construção de uma sociedade justa,
fraterna, solidária e pacífica, segundo o Evangelho e o ensinamento
social da Igreja”. Durante a palestra usei um esquema, espécie
de aide-mémoire, que, mais tarde, foi transformado no texto aqui
apresentado. Não se trata de uma exposição sistemática sobre
‘educação católica’, mas de uma simples contribuição de um religioso
que dedicou praticamente todasua vida ao trabalho educativo em
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
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EDUCAR PARA A VIDA PLENA
instituições católicas de ensino.
Quando fui convidado para discorrer sobre o tema indicado,
procurei os diversos lemas que colégios católicos de Belo Horizonte
costumam colocar junto ao logotipo de sua instituição. Encontrei,
entre outros, os seguintes dizeres: “Educar é libertar pela verdade”;
“Educar para a paz”; “Vence quem se vencer”; “Educando para a vida
plena”. Parecia-me que o lema contendo as palavras “vida plena”
estava mais diretamente em sintonia com o ideário de uma “educação
cristã evangélico-libertadora” de que fala o documento-base da ANEC.
Não é difícil localizar a segunda parte da frase; encontramo-la em Jo
10,10: “Eu vim – diz Jesus – para que tenham a vida e a tenham em
abundância.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM). A paráfrase do texto bíblico é
precedida pelo verbo “educar”.
Começamos nossa reflexão com a interpretação do termo
“educação”
Trata-se de um processo que, no caso específico de uma escola,
envolve toda a comunidade escolar, numa dinâmica de participação,
diálogo, criatividade e espírito crítico. Refere-se, concretamente, aos
cuidados dispensados para alguém poder desenvolver plenamente
sua personalidade, na convicção de que o próprio educando é o sujeito
principal de seu desenvolvimento que, para ser “pleno”, deve ser
integrado e não unilateral. Temos aqui uma tarefa básica e permanente
do ser humano em qualquer faixa etária. No mundo competitivo em
que vivemos é grande a tentação de sermos dominados pelo ter, a
posse de algo em proveito próprio. Com acerto, Padre Libânio, SJ,
afirmou que “o ‘ter’ se nos agrega, enquanto o ‘ser’ nos constitui.”
(LIBÂNIO, 2002, p. 84).
No contexto do sistema escolar a tarefa principal do educador ou
professor não é ensinar, mas ajudar a aprender e, mais especificamente,
‘aprender a ser’, na perspectiva de um processo personalizante de
autorrealização humana. Este ‘aprender a ser’ é, na realidade, uma
dinâmica de humanização, com dimensão tríplice: a pessoa em si; sua
convivência com os outros e com o mundo; sua relação com Deus.
Paulatinamente começa a entender a si mesmo como alguém dotado
de potencialidades a serem desenvolvidas, mas, igualmente, toma
consciência de suas limitações e contradições. Experimenta que
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.25, p.61-74, jul./dez. 2014.
Henrique Cristiano J. Matos
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não está sozinho no mundo, mas chamado a conviver com seus
iguais e com a Natureza, numa relação de solidariedade, respeito
e partilha. Por fim, descobre que é uma criatura que tem Deus por
Pai com quem, em Jesus Cristo, pode relacionar-se no amor e na
liberdade de um filho. O equilíbrio dessa tríplice experiência é que
abre o horizonte de uma “vida plenificada”.
A educação – na visão cristã – procura formar na pessoa este
ideal de vida, unindo a utopia à realidade. Dois extremos devem
ser evitados: uma insana autorreferencialidade e um complexo de
inferioridade. “O ser humano vive entre limites e possibilidades.
A atitude realista consiste em perceber o que é limite e o que é
possibilidade. Dentro dos limites, desenvolver o máximo das
possibilidades. Evitam-se o sonho do irreal e a acomodação da
mediocridade. Deixa-se de lado o amargor de quem não aceita
a realidade concreta e vive nas asas da ilusão. Empenha-se na
valorização dos talentos pessoais, segundo o ensinamento da
parábola, e das chances históricas, lidas como graças exteriores
que o Senhor coloca em nossas vidas. É um realismo que conserva
uma pitada de utopia, de esperança, de superação de si. Porque
também isso pertence ao ser humano.” (LIBÂNIO, 2001, p. 66).
No processo de amadurecimento humano, o educando
aprenderá que sem solidariedade e responsabilidade social ele
não cresce como pessoa. E também se convencerá de que sem
disciplina não conquistará a tão sonhada liberdade.
Uma escola de qualidade contempla, no seu projeto
pedagógico, as diversas dimensões aqui apontadas, fixando
objetivos, políticas e estratégias que se tornarão operacionais
mediante programas detalhados e iniciativas concretas. Alguns
elementos merecem nossa atenção pela importância que têm no
conjunto do processo educativo: despertar no aluno a capacidade
de maravilhar-se, sendo este o princípio de toda verdadeira
aprendizagem; desenvolver nele, igualmente, o gosto pela beleza,
porta de entrada do amor. Conhecida é a frase de Santo Agostinho
(+430): “Que coisa é o belo? E que coisa é a beleza? Que coisa nos
alicia e nos afaga nas coisas que amamos? Se não houvesse nelas
decoro e beleza, de modo algum nos atrairiam.” (AGOSTINHO,
1999, livro IV, n. 13).
Educação nunca é imposição; ao contrário, uma ação
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
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EDUCAR PARA A VIDA PLENA
autenticamente educativa leva o educando a pensar, ele mesmo, com
lucidez, criatividade e liberdade. Supérfluo dizer que o ensino escolar
não pode constar apenas de conhecimentos teóricos e soltos. Estes
devem ser integrados em conjuntos maiores com significado para a
vida da pessoa. Muito pobre é uma escola orientada maiormente para
resultados imediatos do ponto de vista quantitativo e pragmático. São
colégios que fazem propaganda no mercado e medem seu ‘sucesso’
apenas pelas aprovações dos alunos no ENEM ou cursos superiores.
São imbuídos do espírito mercenário, cujo objetivo – duro dizê-lo – é
‘ganhar dinheiro’, reduzindo seus alunos a objetos de valor comercial.
Frequentes vezes, são portadores de uma mentalidade utilitarista, na
ótica de uma cultura massificante, vulgarizada e banalizada. Refletem,
na realidade, os imperativos capitalistas que visam ao máximo de lucro
com o mínimo de investimento e isso no mais curto prazo possível. O
que determina sua atuação é, antes de tudo, eficácia, funcionalidade
e racionalidade. Escolas desse tipo são um retrato vivo do ideário pósmoderno que fabricou um ser humano unidimensional!
Padre Johan Konings, SJ, introduziu uma distinção
significativa no conceito “educação”, falando de qualificação (para a
vida profissional, o mercado de trabalho, uma função na sociedade)
e aquilatamento, uma educação que enriquece a pessoa, a enobrece
e constrói por dentro. Não se trata de apenas formar (ou deformar!)
jovens ‘aproveitáveis’ no sistema econômico, mas de formá-los de tal
maneira que atinjam plenamente sua vocação de pessoa. “O próprio
‘meio’ (a finalidade intermediária que é a qualificação) é influenciada
pelo fim ‘final’ que se propõe, o aquilatamento da pessoa. Estruturas
boas se fazem com pessoas boas. Se nosso ensino continuar
dominado pelo pensamento da utilidade, vai continuar produzindo
pessoas-máquinas, que não pensam nem sentem. Só se o ensino se
empenhar em produzir personalidades bem informadas, conscientes,
livres e solidárias, elevará realmente a qualidade da sociedade e da
humanidade”. (KONINGS, 2013).
Num colégio que se diz ‘católico’, o educando deve adquirir
a capacidade de colocar diante de si perguntas sobre o sentido
da vida, sua origem e destino, seus valores e desafios. São,
efetivamente, interrogações existenciais que tocam a razão de ser da
condição humana. Já dissemos que o estudo escolar deve ser útil à
compreensão da vida e, nesse sentido, a escola deve incentivar uma
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
Henrique Cristiano J. Matos
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verdadeira ‘cultura de estudo’, elemento primordial da autoformação
do educando. Nunca é demais insistir na importância de boas leituras,
que vão além de informações fugazes da internet. O corpo discente
recebe forte estímulo nesta direção pelos exemplos de seus próprios
mestres. De fato, são os professores que, com seu testemunho e
entusiasmo, abrem os olhos dos educandos para eles perceberem a
beleza dos diversos saberes e o sentido mais profundo da vida humana.
O exemplo convence muito mais do que recomendações verbais. São
Gregório Magno, que viveu na segunda metade do século VI, já dizia:
“Temos autoridade para ensinar quando, antes, praticamos o que
falamos. O ensino perde a garantia quando a consciência contradiz o
que foi verbalizado!”.
Diversas vezes referimo-nos à ‘educação católica’ e agora
queremos aprofundar, mesmo em linhas globais, esta temática. Há
50 anos o Concílio Vaticano II (1962-1965) publicou a Declaração
Gravissimum Educationis (28-10-1965), afirmando: “Entre todos os
meios de educação, tem especial importância a escola, em virtude de
sua missão, enquanto cultiva atentamente as faculdades intelectuais,
desenvolve a capacidade de julgar retamente, introduz no patrimônio
cultural adquirido das gerações passadas, promove o sentido dos
valores, prepara a vida profissional e criando entre alunos de índole
e condição diferentes um convívio amigável, favorece a disposição à
compreensão mútua.” (CONCÍLIO VATICANO II, GE, 1965, n. 5).
No período que se seguiu ao Concílio, houve na Igreja um
sério esforço de especificar o papel de uma ‘escola católica’. A CRB
(Conferência dos Religiosos do Brasil) publicou, em 1976, a tradução
portuguesa do Documento 23 da CLAR (Confederação LatinoAmericana de Religiosos) sobre o religioso educador1. Ainda hoje vale a
pena reler este texto rico em conteúdo e inovador em suas propostas.
No prefácio da edição brasileira, Padre Marcello de Carvalho Azevedo,
SJ, na época presidente da CRB-Nacional, esclarece que o Documento
é um roteiro sugestivo e completa que, mais do que ensinar, ajuda a
descobrir e aprender. Depois de lê-lo, será difícil não se interrogar”,
conclui Padre Marcello.
1 Uma síntese deste documento, em forma de esquema interpretativo, encontra-se em:
MATOS, Henrique Cristiano José. Herança de um magistério. Belo Horizonte: [s.n.] 2012, p.
160-164.
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EDUCAR PARA A VIDA PLENA
A pergunta que mais nos intriga é: o que pretendemos com
um colégio católico? Qual é a sua razão de ser? Quando examinamos
as origens de colégios inicialmente fundados e dirigidos por
religiosos ou religiosas, verificamos, quase sempre, que seus
iniciadores tiveram objetivos bem definidos: queriam evangelizar
mediante o trabalho educacional da juventude em escola própria.
A preocupação para com a qualidade do ensino e a escolha
criteriosa de professores tinham um objetivo mais largo e profundo:
a formação cristã integral de crianças e jovens, sua preparação
para serem bons cidadãos e autênticos cristãos, conscientes de seu
lugar na sociedade e na Igreja, dispostos a darem sua contribuição
na construção de um convivência humana mais justa, solidária
e compassiva. Aqueles que iniciaram essas escolas estavam
persuadidos que “a formação acadêmica é realmente importante,
mas muito mais importante é que os educandos cheguem a encontrar
o sentido da vida à luz de sua fé e que sintam um ideal de fraternidade
cristã. Somente assim estariam dispostos a compartilhar com outros
o que são e o que têm; teriam sensibilidade social; respeitariam
a todos e sairiam – enfim – da escola com decisão de promover
a justiça, na sociedade da qual participam”. (CLAR, 1976, p. 62).
Via de regra constatamos que, uma vez assegurada a qualidade
do ensino e estabelecida uma infraestrutura correspondente,
os colégios católicos fundados no século passado procuraram,
desde seus primórdios, empenhar-se seriamente na sua missão
evangelizadora, dando testemunho do amor de Cristo, a cuja
imagem pretendiam formar seus alunos, a fim de que neles surgisse
o ‘homem novo’, em busca da plenitude de sua maturidade humana
e cristã. No fundo, se convenceram de que o peso maior não é a
instituição em si, com suas realizações materiais, mas o espírito
que a anima por dentro e que dá direção ao trabalho desenvolvido.
Também sustentaram a tese de que numa escola “em estado de
evangelização” não podem faltar ‘tempos fortes’ de reflexão,
diálogo e convivência. Em circunstâncias diversas explicitaram
que “autêntica educação libertadora exige o anúncio explícito da
Palavra de Deus, através de uma comunidade serviço-testemunho,
partindo sempre de situações concretas.” (CLAR, 1976, p. 56).
“Partir de Cristo” é o imperativo de uma identidade cristã e
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
Henrique Cristiano J. Matos
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católica, pois Ele constitui o centro de uma educação integral.
Evangelizar é humanizar e, por sua vez, quem humaniza de
verdade é que evangeliza! Daí que identidade nunca pode ser imposição
de uma determinada confissão religiosa ou Igreja. Recentemente, o
Papa Francisco, falando aos participantes da Plenária da Congregação
Romana para a Educação Católica (13-2-2014), disse: os que atuam na
rede de escolas católicas devem empreender “itinerários educativos
de confronto e diálogo, com uma fidelidade corajosa e inovadora
que saiba promover o encontro entre a identidade católica com
as várias ‘almas’ da sociedade multicultural”, e acrescentaríamos:
multirreligiosa. Apresentar a pessoa de Jesus Cristo como modelo de
uma educação plenificante não é algo forçado ou artificial, ilegítimo
ou desrespeitador, pois toda autêntica evangelização (propor o
Evangelho como ‘caminho de vida’) conduz, necessariamente, a um
aperfeiçoamento de nosso ser-humano. Leonardo Boff expressou
esta verdade em termos inequívocos: O existir humano consiste
num sair-de-si (‘ex’-istir), pois é “saindo de si que o homem fica
mais profundamente em si; é dando que recebe e possui seu ser.
Por isso que Jesus foi o homem por excelência, o ecce homo: porque
sua radical humanidade foi conquistada, não pela dominação e
categórica afirmação do eu, mas pela entrega e comunicação de seu
‘eu’ aos outros e para os outros, especialmente para Deus, a ponto
de identificar-se com os outros e com Deus. Do modo de ser de Jesus
como ser-para-os-outros, aprendemos qual é o verdadeiro ser e existir
do homem. Ele só existe com sentido, caso se entender como total
abertura e como nó de relações para todas as direções, para o mundo,
para com o outro e para com Deus. Seu viver verdadeiro é um vivercom. Por isso, é somente através do ‘tu’ que o ‘eu’ se torna o que é. O
eu é um eco do tu e, em sua última profundidade, uma ressonância
do Tu divino. Quanto mais o ser humano se relaciona e sai de si, mais
cresce em si mesmo e se torna humano. Quanto mais está no outro,
mais está em si mesmo e se torna eu”. (BOF, 1998, p. 145).
A presença da Igreja – cuja missão essencial é evangelizar
(PAULO VI, EN, 1975, n.14) – no campo educacional manifesta-se,
de forma privilegiada, na escola católica. “É próprio dela – lemos da
Declaração Gravissimum Educationis, (CONCLÍO VATICANO II, GE,
1965, n. 8) – criar um ambiente de comunidade escolar animado pelo
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
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EDUCAR PARA A VIDA PLENA
espírito evangélico de liberdade e caridade, ajudar os adolescentes
para que, ao mesmo tempo que desenvolvam a sua personalidade,
cresçam segundo a nova criatura que são graças ao batismo e
ordenar, finalmente, toda a cultura humana à mensagem da salvação,
de tal modo que seja iluminado pela fé o conhecimento que os alunos
adquirem gradualmente a respeito do mundo, da vida e do homem”.
Esta missão, realizada em circunstâncias sempre cambiantes, constitui
a razão de ser de uma escola católica. Acrescenta ainda o mencionado
documento conciliar: “É bela e de grande responsabilidade a vocação
de todos aqueles que, ajudando os pais no cumprimento de seu dever
e fazendo as vezes da comunidade humana, têm o dever de educar nas
escolas. Esta vocação exige especiais qualidades de inteligência e de
coração, uma preparação muito cuidada e uma vontade sempre pronta
à renovação e à adaptação.” (CONCLÍO VATICANO II, GE, 1965, n. 5).
Repetidamente se fala aqui de ‘vocação’ e de ‘ministério’ do
corpo docente, referindo-se a um serviço de inestimável importância
para a sociedade e para a Igreja, no fundo algo impagável pelo fato
de extrapolar, de longe, uma remuneração material. É obra de Deus
e representa um benefício incalculável à sociedade, pois da educação
depende o futuro de uma Nação! Muito além dos conhecimentos
que transmite, o professor-educador dá testemunho de valores
encarnados na sua pessoa, sua linguagem e seu modo de ser. O
exemplo de vida é que fornece credibilidade a seus ensinamentos.
Bem o disse Papa Francisco no documento-programa de seu
pontificado, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (24-11-2013):
“Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa-Nova, não só com
palavras mas, sobretudo, com uma vida transfigurada pela presença
de Deus.” (FRANCISCO, EG, 2013, n. 259).
Diante do ideal esboçado não podemos fechar os olhos para a
realidade em que nos encontramos, hoje, com seus incomuns desafios
na área da educação. Não há necessidade de entrar em detalhes , pois
os fatos são amplamente conhecidos a todos que trabalham na escola.
Apenas apontaremos algumas questões mais prementes, entre as quais
o descrédito do casamento tradicional, a desestruturação familiar, o
reconhecimento de relações homoafetivas, as enormes mudanças
provocadas pela mídia, particularmente a internet, a dependência
química e o generalizado tráfico de drogas entre os jovens. Todos
esses fenômenos arrastam uma série de graves consequências para a
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
Henrique Cristiano J. Matos
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educação. Frequentes vezes a escola é ainda um dos poucos lugares
onde a criança ou adolescente possui um espaço de acolhimento e de
diálogo. Quem trabalha, como voluntário, no sistema prisional sabe, de
perto, a importância de uma escola dentro do presídio. Os educadores
– na realidade a grande maioria são mulheres! – exercem ali um papel
que vai muito além das aulas ministradas. Essas profissionais tornamse as confidentes dos presos, ponto de apoio e de referência humana.
Sua presença materna no submundo do crime, em meio daqueles e
daquelas privados de sua liberdade, mantém acesa a tênue chama da
esperança, que é a possibilidade de um futuro diferente e a certeza
de que nem tudo está perdido! Essas heroínas oferecem, pelo seu ser
e agir, o que temos de melhor na sociedade: a educação que, no caso
específico da população carcerária, é um dos poucos elementos de
real ressocialização!
Ser educador é uma das vocações mais nobres e, também,
mais necessárias. Reduzi-la a uma mera tarefa profissional é esvaziála na sua essência. Logicamente, o serviço prestado deve ser bem
remunerado; aliás – é forçoso reconhecê-lo – nunca poderá ser
pago à altura, pois seu exercício extrapola todo cálculo monetário!
Daí que se torna estranho e contraditório quando numa escola tudo
começa a ser avaliado em termos de dinheiro. Qualquer minuto a
mais no atendimento deve ser pago, perdendo-se a dimensão da
gratuidade, inerente a toda obra educacional. Educar é humanizar na
dimensão tríplice de que já falamos. Assim, abrimos para o educando
um caminho de vida plena que – na tradição cristã – se concretiza na
pessoa histórica de Jesus, o Cristo da fé, o Filho de Deus encarnado,
que disse de si mesmo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.” (Jo
14,6).
A imagem de ‘caminho’, de ‘avançar’, de ‘crescer’ e
‘amadurecer’ é singularmente adequada para a ação educativa, tanto
humana quanto espiritual; aliás, as duas dimensões do processo
sempre são inseparáveis.
Ao longo da História do Cristianismo, regularmente houve
momentos privilegiados com orientações seguras, que lançaram
novas luzes sobre a dinâmica do crescimento e amadurecimento do
ser humano e sobre o sentido de sua existência.
Assim, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna,
o Espírito suscitou na Igreja um movimento de revitalização do serHorizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
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EDUCAR PARA A VIDA PLENA
cristão, que entrou na História com o nome de Devoção Moderna.
Em torno da figura de Gerardus Grotius (1340-1384) formaramse grupos de homens e mulheres que desejavam uma vida cristã
mais ‘interiorizada’ (devota), voltando-se às genuínas fontes do
cristianismo: a pessoa de Jesus de Nazaré, a Sagrada Escritura,
particularmente os Evangelhos, e os ensinamentos dos Santos
Padres (grandes teólogos e pastores dos primeiros séculos). Entre os
diversos ramos da Devoção Moderna merece destaque o dos Fratres
de Vita Communis, os ‘Irmãos da Vida em Comum, leigos que viviam
em comunidade, sob a obediência de um ‘prior’ (o primeiro entre seus
iguais), mas sem votos canônicos (isto é, oficialmente reconhecidos
pela Igreja). Seu apostolado preferido era a educação da juventude.
Os fráteres acompanhavam estudantes, acolhidos nas suas próprias
casas, ou frequentadores de escolas por eles fundadas e dirigidas.
Propagavam o ideal de uma ‘formação integral’, a partir da inspiração
religiosa. E nesses ambientes que terá grande difusão o livrinho
intitulado Imitação de Cristo, composto por Tomás de Kempis (13801471), membro de outro ramo da Devoção Moderna (os Cônegos
Regulares de Windesheim). Trata-se de uma obra constando de quatro
pequenos tratados que, no seu conjunto, oferecem uma pedagogia
de crescimento humano-espiritual, ou seja, um itinerário prático para
alguém chegar a ser cristão de verdade. No decorrer dos séculos,
esse pequeno manual transformou-se num dos maiores clássicos
da espiritualidade cristã. Após a Bíblia, é o livro mais divulgado e,
provavelmente, mais lido, não só por cristãos mas, igualmente, por
pessoas fora de seu âmbito religioso específico. O segredo de sua
popularidade está, sem dúvida, no realismo com que o autor aborda
a dinâmica do amadurecimento ‘em Cristo’. Apresenta, de fato, uma
fina análise psicológica do ser humano ‘em busca de sua realização’.
Descreve o processo de crescimento cristão a partir de experiências
vividas no quotidiano. Esta obra-prima de Tomás de Kempis sobreviveu
os tempos, firmando-se em momentos de esfriamento, forte crise
e contestações. Recentemente houve uma reviravolta quanto à
compreensão e interpretação de estrutura, composição e conteúdo
da Imitação de Cristo. Nos Países Baixos, berço desta obra kempense –
região atualmente em acelerado processo de secularização –, vieram
à luz novas tradições e sólidos estudos que clarificaram seu contexto
histórico e significado, mostrando que se trata do fruto mais maduro
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
Henrique Cristiano J. Matos
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e também duradouro do movimento da Devoção Moderna. Essas
publicações tiveram uma recepção surpreendente e não só entre
especialistas. Notável é uma tradução diretamente voltada a um
público jovem, em linguagem moderna. (VRIES, 2008). Todas essas
iniciativas revelam que esse clássico da espiritualidade conserva,
ainda em nossos dias, uma misteriosa atração e admirável atualidade.
No início de 2014, foi lançado no Brasil um livro que traz o título
“Imitação de Cristo: caminho de crescimento espiritual”. (MATOS,
2014). Oferece ao público de língua portuguesa uma introdução
à conhecida obra de Tomás de Kempis, no que diz respeito ao seu
contexto histórico, linhas inspirativas e significado para nós, hoje.
Contém também uma antologia, em nova tradução, com um índice
temático para facilitar seu uso em circunstâncias e momentos diversos
da vida. O autor adota nesse seu livro-guia a sequência dos quatro
‘livros’ (tratados), conforme o manuscrito original de 1441, seguindo
nisso os resultados das recentes pesquisas realizadas pelo Instituto de
Espiritualidade “Titus Brandsma”, da Universidade de Nimega (Países
Baixos). Aparece, assim, uma visão completamente nova da Imitação,
que, durante séculos, foi vista como um manual ascético-moralista.
As descobertas dos últimos decênios revelaram uma direção bem
diferente. Na realidade, trata-se de uma obra mistagógica, um guia
que, pedagogicamente, nos conduz ‘à vida plena’, ou seja, à união
mística com Deus. Faustino Teixeira, no prefácio do mencionado
livro, comenta: Temos aqui “uma preciosa pedagogia religiosa que
privilegia um caminho interior de crescimento espiritual. Em linha de
sintonia com a inspiração traçada pela Devoção Moderna, a Imitação
de Cristo sublinha a centralidade da interioridade, mas pontuada pelo
seguimento de Jesus. Trata-se de uma ‘interiorização do espírito de
Jesus’ e um convite a uma vida cristiforme que se abre ao horizonte
maior do Mistério de Deus. Ou, como indica o autor, “a busca de
Deus, seguindo o Cristo, na perspectiva da união definitiva no amor
trinitário.” (MATOS, 2014, p. 11).
Longe de ser um livro de espiritualidade intimista, alheia à
realidade, temos em mãos uma obra que apresenta uma orientação
segura para quem pergunta sobre o sentido da existência e está
em busca de Jesus Cristo, indo, com Ele, ao encontro do Pai, a fim
de entrar na ‘vida plena’. Num tempo de radicais mudanças, de
desorientação, crescente subjetivismo e perda de valores, a Imitação
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
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EDUCAR PARA A VIDA PLENA
de Cristo nos conduz à interioridade e, simultaneamente, provoca
um forte questionamento respeito à nossa autorreferencialidade,
abrindo perspectivas de realização pessoal, exatamente pela saída
de nós mesmos ao encontro dos outros e do grande Outro: Deus.
Tomás de Kempis, colocando-nos decididamente no caminho do
seguimento de Cristo, não desconhece suas implicações sociopolíticas
da sequela Christi. Jesus foi um homem que não viveu para si mesmo,
mas doou livremente sua vida para que todos tivessem vida e vida em
abundância (Jo 10,10), privilegiando os pequenos, fracos, pecadores
, marginalizados, doentes e presos, enfim, todos aqueles irmãos e
irmãs que se encontram ‘à beira da estrada’. Mostrou-se, durante
toda a sua vida no meio de nós, um vir misericordiae, um homem
de misericórdia, um Irmão compassivo, que vivia a fraternidade na
partilha e na solidariedade. O processo de transformação interior e
de crescimento espiritual – descrito em detalhes e com realismo por
Tomás – atingirá, por coerência interna, a sociedade em que vivemos
e atuamos. Assim, “Jesus se torna uma referência de permanente
crítica interna, que incomoda. Ele não permite ser domesticado por
nenhum sistema eclesiástico e não fica preso à instituição religiosa,
mas, sim, se deixa amar pela fé libertadora.” (BOFF, 1998, p. 219).
Concluindo: Educar para a vida plena foi o título dessa reflexão.
O processo formativo do ser humano nunca se encerra enquanto
andamos aqui na terra. Ao contrário, entramos conscientemente
num fascinante itinerário de contínuo amadurecimento humano
e espiritual, até chegarmos ao desenvolvimento cabal de todas as
possibilidades presentes em nosso ser. Não é um processo linear, uma
vez que, necessariamente, conhece avanços e recuos. O que importa
realmente é a direção que seguimos, o ideal que cultivamos, o sonho
que acalentamos.
“Aprender a ser é a mais difícil tarefa educativa. Implica uma concepção
integral do ser humano e desenvolver-lhe todas as dimensões. (...)
Aprender a ser inclui uma compreensão ampla. Equilibrada e relacional
do ser humano, para viver na realidade atual e ser capaz de imaginar
realidades futuras. A verdade e a veracidade do próprio ser se constrói
numa relação de liberdade diante da onda consumista de bens. O ‘ter’
ameaça hoje o ‘ser’. Importa ser na verdade de si, autenticamente,
sem perder-se e esconder-se no ter.” (LIBÂNIO, 2002, p. 106-107).
A escola católica evangeliza quando coloca em evidência
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
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os valores do Evangelho, que sempre são valores profundamente
humanos. Que não tenha receio de comunicar publicamente a
mensagem de Jesus e traduzi-la em atitudes coerentes. Na tradição
católica falamos de ‘formar Cristo’ em nós (Gl 4,19), o Homem novo
e integrado por excelência. A partir dEle, o educando começa a
entender-se como filho de Deus, o único Senhor, e como irmão e irmã
dos outros seres humanos, comprometido com a tarefa de instaurar
uma sociedade fraterna, solidária e justa. Gradativamente, mediante
um longo processo de aprendizagem, tomará consciência da presença
do Divino, encarando sua vocação derradeira como uma participação
à ‘vida plena’, quando Deus, Pai querido, se torna ‘tudo em todos.’
(1Cor 15,28).
Este ideário formativo está maravilhosamente traçado na obra
De Imitatione Christi, herança perene da Devoção Moderna, movimento
de revitalização cristã do século XIV, obra-prima de um de seus mais
ilustres representantes. Começa com as palavras: “Quem me segue,
não anda nas trevas (Jo 8,12), diz o Senhor. São estas as palavras de
Cristo, pelas quais somos exortados a imitar sua vida e seus costumes,
se, verdadeiramente, queremos ser iluminados e libertos de toda
cegueira de coração. Seja, pois, nosso principal empenho meditar
sobre a vida de Jesus Cristo.” (Livro 1, capítulo 1,1).
Frater Henrique Cristiano José Matos é religioso da Congregação dos fráteres de Nossa
Senhora Mãe da Misericórdia. Dedicou toda a sua vida à educação. Possui publicações na
área a de História da Igreja e de Espiritualidade. É o responsável pelo Centro Holístico de
Espiritualidade “Vicente de Paulo”, no município de Igarapé-MG. E-mail: fraterhc@terra.
com.br
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os
Pensadores).
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2004.
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o
nosso tempo. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
CLAR. O educador religioso. Rio de Janeiro: CRB, 1976.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
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EDUCAR PARA A VIDA PLENA
CONCÍLIO VATICANO II. Declaração Gravissimum Educationis sobre
educação cristã. Disponível em:< http://www.vatican.va/archive/
hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_
gravissimum-educationis_po.html>. Acesso em: 27 nov. 2013.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium a alegria do Evangelho: exortação
apostólica do Sumo Pontífice ao episcopado, ao clero, às pessoas
consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo
atual. São Paulo: Loyola, 2013.
LIBANIO, J. B. A arte de formar-se. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002.
LIBANIO, J. B. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2001.
KONINGS, Johan.Educação com humanismo.Disponível em:<http://
www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=3977>. Acesso em:
27 nov. 2013.
MATOS, Henrique Cristiano José. Imitação de Cristo: contexto
histórico, inspiração e atualidade. Belo Horizonte: O Lutador, 2014.
MATOS, Henrique Cristiano José. Herança de um magistério. Belo
Horizonte: [s. n.], 2012.
PAULO VI. Evangelii Nuntiandi: exortação apostólica ao episcopado,
ao clero, aos fiéis de toda a igreja sobre a evangelização no mundo
contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1975.
VRIES, Mink de. De Navolging van Christus. Hertogenbosch/
Mechelen: KBS, 2008.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014.
José Carlos Aguiar de Souza
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA:
aberturas filosóficas para a discussão
ecológica¹
José Carlos Aguiar de Souza*
Marco Aurélio do N. Alves**
Rafael Lourenço Navarro***
Resumo
Objetivo deste artigo é explorar problemas e condicionantes
filosóficos envolvendo as questões ecológicas e ambientais. Mais
especificamente, através do pensamento do filósofo irlandês William
Desmond e sua concepção do espaço metaxológico ou intermediário
do ser, iremos explorar as possibilidades de outro modo de (bio)
narrativa, que não tenha a centralidade humana como referência.
Trata-se de nos abrirmos para uma subjetividade benigna, que não
seja concebida em termos da vontade de potência do sujeito moderno.
A generosidade hermenêutica do pensamento desmondiano oferece
uma importante contribuição da filosofia ao debate ecológico.
Palavras-chave: Hermenêutica. Bionarrativa. Metaxologia. Ecologia.
Gestell.1
Abstract:
This article presents a discussion concerning Bionarration from
the perspective of Desmond`s metaxology. Metaxological
1 Este artigo é fruto de pesquisa financiada pela FAPEMIG/FIP: “Hermenêutica e Ecologia:
rumo a uma bionarrativa do meio ambiente como superação da racionalidade instrumental”, em curso desde 2013.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
thoughtpresents a hermeneutic possibility of conceiving of a benign
subjectivity that does not will to power. This hermeneutic generosity
offers an enormous philosophical contribution to the nowadays
ecological debate.
Keywords: Metaxology. Bionarration. Hermeneutics. Ecology.
Gestell.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo uma reflexão filosófica
sobre a questão ambiental. Mais especificamente, iremos nos
deter sobre as possibilidades de uma bionarrativa de plantas e de
animais2, através da interlocução com o pensamento metaxológico
de William Desmond. Muito embora a metaxologia não tenha
discutido, diretamente, a questão ambiental, ainda assim ela oferece
a possibilidade de uma hermenêutica genuinamente respeitosa da
diferença, contribuindo para uma reflexão mais ampla da delicada
problemática da ecofilosofia.
Na primeira parte do artigo, discutiremos os problemas ligados
à constituição da modernidade e da ciência, apresentando, logo após,
a crítica feita por Heidegger à instrumentalidade técnica do mundo
moderno. Em seguida, apresentaremos a contribuição de Derrida
para o debate em torno da centralidade narrativa humana e a solução
que ele propõe. Buscaremos argumentar que Derrida não consegue
de fato superar os limites da racionalidade centrada no cogito. Logo
após apresentaremos, brevemente, os eixos centrais do pensamento
desmondiano, constitutivos da sua “hermenêutica benevolente.” Na
última parte do artigo apresentaremos e discutiremos as questões da
bionarrativa e a contribuição do pensamento de William Desmond
como alternativa hermenêutica viável dessa problemática.
2 MODERNIDADE E CIÊNCIA
Com o advento da modernidade e seu projeto de
2 O interesse pela temática da bionarrativa surgiu do instigante artigo de Peter Scheers
(2007, p. 279-291). Onde o autor interpreta a metaxologia como uma hermenêutica benevolente, capaz de se abrir para a alteridade recalcitrante da natureza.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
José Carlos Aguiar de Souza
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objetivaçãocrescente do ser, o mundo foi perdendo paulatinamente
os signos do mistério e a ambiguidade da sua comunicação. Quanto
mais o ser do mundo e das coisas se torna objetivado, menos ele nos
oferece a matriz capaz de nutrir reverência pela realidade elusiva das
coisas. (SOUZA, 2013, p. 115). O ethos científico moderno concebe o
mundo, em sua pobreza quantitativa, como uma mera res extensa.
O ethos criado a partir do cogito autônomo tem como consequência
a exclusão de qualquer fundamento heteronômico da racionalidade
moderna. A guinada para o self é a implementação do projeto da
razão, que se define como maître e possesseur de la nature. O cogito
cartesiano cria a sua realidade no próprio ato do pensar; de si e para si
o cogito assegura os fundamentos da nova ciência: cogito ergo sum. O
caráter autônomo da razão faz com que a racionalidade moderna seja
autolegitimadora, não necessitando de um princípio externo divino
que garanta a verdade de suas próprias operações como fundamento
último de certeza.
Distintamente das outras épocas, a modernidade corta o
aspecto heteronômico libertando, por assim dizer, a curiosidade
humana de qualquer elo teológico restringente. O cogito cartesiano é
expressão da autonomia do sujeito pensante, que não mais necessita
de uma referência fora da sua própria estrutura autônoma. O cogito
encontra no seu movimento reflexivo o paradigma da verdade. A
primeira certeza do cogito cartesiano é encontrada no próprio ato
de reflexão. A pressuposição subjacente a tal certeza é de que a
consciência não pode ser deduzida de nada além de si mesma. No
processo de reflexão a consciência se torna consciente de si e se afirma
como autoconsciência. O cogito cartesiano não é um objeto a mais no
mundo e por isso mesmo ele pode se colocar como a condição mesma
da própria dúvida e se apresentar como o princípio de certeza fundante
de todo o conhecimento. Tudo o mais pode e deve ser exposto à dúvida.
Através da própria atividade de reflexão, a autoconsciência cria a sua
própria natureza, que é estar consciente. Em outras palavras, o cogito
é tomado como o princípio determinativo de toda racionalidade. Este
momento originador de autorreflexibilidade é o que distingue a idade
moderna de todas as outras épocas anteriores.
Deus, no sistema cartesiano, possui apenas a função de
assegurar a objetividade da realidade, mas o critério da verdade é
dado pelo método: clareza e distinção. A própria ideia de Deus pode
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
ser considerada uma ideia verdadeira por ter sido submetida às novas
exigências da razão. Uma vez assegurada a realidade objetiva do
mundo, a ideia Deus não cumpre nenhuma outra função no sistema
cartesiano. Tudo o que Descartes deseja de Deus era conseguir
estabelecer um lugar para a realidade do mundo dentro do seu
sistema, e então ele não necessitava mais dele.
A racionalidade autoafirmativa se torna na modernidade um projeto
existencial. No princípio normativo do cogito é que encontramos
a estrutura de toda a racionalidade subsequente. A estrutura da
racionalidade moderna pode ser delineada a partir da unificação
dos dois polos constituintes do princípio da autonomia moderna:
autopreservação e autoafirmação-do-sujeito. A racionalidade
moderna é estruturalmente constituída em termos de uma trindade de
componentes, que se delineiam em três momentos paradigmáticos:
identidade, atividade autopreservadora e contradição.
O primeiro momento estrutural, identidade, nos faz confrontar
com um novo sujeito cuja consciência autoafirmativa se coloca como
o princípio subjacente de toda a racionalidade. A consciência se torna
causa sui. (SOUZA, 2005, p. 119)3. O segundo momento estrutural,
de atividade autopreservadora, nos remete a uma atividade que
não está direcionada a nenhuma teleologia ou fim pré-estabelecido,
já que a sua moção visa apenas à preservação-de-si-mesma. Este
princípio de autopreservação foi o responsável pela destruição do
princípio de teleologia que norteou toda a tradição do pensar até a
idade moderna. E por isso mesmo, ele é a inversão de toda e qualquer
teleologia. (SOUZA, 2005, p. 119). Nós encontramos o terceiro
momento estrutural, contradição, de forma bem clara e evidente
na concepção newtoniana do espaço e do tempo. De fato, a Lei da
Inércia de Newton é o ponto central do princípio de autopreservação.
A concepção newtoniana de espaço superou a concepção de que o
telos do movimento é o repouso. Para Newton, a mudança do curso
de um objeto se dá devido a fatores externos ao objeto. Esses fatores
externos contradizem o curso normal de um dado movimento.
(SOUZA, 2005, p. 120).
Em suma, razão advoga uma universalidade neutra. O ethos
3 Ver também (SOUZA, 2013, p. 116).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
José Carlos Aguiar de Souza
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moderno é geométrico e não mais contemplativo. Não existe nada
mais a ser contemplado a não ser a universalidade neutra da razão
geométrica. E o sucesso metodológico da ciência no projeto de
dominar a natureza fez do conhecimento científico o paradigma de
todo o conhecimento. (SOUZA, 2013, p. 116). Assim sendo, todos os
outros possíveis modos de se descrever a realidade não possuem o
suposto grau determinativo da razão científica. A matemática passou
a ter importância ímpar na formação de ideias. E a matemática é
completamente neutra a todas as questões que envolvem valor.
(WHITEHEAD, 1994, p. 38). A noção de explicação mecânica para
todos os processos da natureza finamente adquiriu na modernidade
o status de dogma da ciência por assim dizer. (SOUZA, 2013, p.
117). O mundo nada mais é do que uma sucessão de configurações
instantâneas de matéria: res extensa.
3 HEIDEGGER E A PROBLEMÁTICA DA TÉCNICA
Em “Sobre a questão da técnica” (Die Frage nach der Technik).
publicado em 1954, Martin Heidegger destaca a diferença entre a
técnica e sua essência, passando da noção tradicional de essência
como aquilo que de fato seja, para aquilo que concede à coisa
continuidade em seu Ser. Estabelece-se assim “técnica” e “essência da
técnica” como conceitos distintos. Heidegger assume as perspectivas
“meios para um fim” e “uma atividade humana” como as definições
instrumental e antropológica da técnica e ressalta a diferença entre
o correto e a verdade; para ele o correto constitui-se como uma
proposição que se adéqua a um aspecto daquilo a que se refere
enquanto a verdade busca descobrir a essência do Ser-que-se-dá e
permitir uma livre relação com ele.
Para se compreender a proposta heideggeriana, é preciso nos
determos sobre esta separação entre a verdade entendida como o
correto, como adequatio intellectus et rei, e a verdade desvelada na
clareira (die Lichtung) do Ser como aletheia. Em um escrito sobre a
tarefa do pensar, Heidegger descreve assim a insuficiência da verdade
como adequação:
Na medida em que se compreende verdade no sentido “natural
da tradição como a concordância, posta à luz ao nível do
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
80 |
A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
ente, do conhecimento com o ente; mas também na medida
emque a verdade é interpretada a partir do ser como a certeza
do saber a respeito do ser, a aletheia, o desvelamento como
clareira, não pode ser identificada à verdade. Pois a verdade
mesma, assim como ser e pensar, somente pode ser o que é,
no elemento de clareira. Evidência, certeza de qualquer grau,
qualquer espécie de verificação da veritas, movem-se já com
esta no âmbito da clareira que impera. (HEIDEGGER, 1989, p.
79).
Dentro da perspectiva do filósofo alemão, a verdade é dizer
do Ser. Dizer aqui é a tradução de sagen, verbo que no idioma alemão
pode ser substantivado para algo que é traduzido por “lenda, saga,
conto” e é o que estabelece o que pode e o que não pode ser dito
no discurso ordinário, suprindo um povo de conceitos e constituindo
assim um mundo Ao nos atentar que dizer (sagen) difere do enunciar
em proposição (aussagen), compreendemos a verdade em Heidegger
como dita de modo poético.
Assim, a essência da técnica moderna, chamada por Heidegger
de Gestell, impede o homem de alcançar a verdade. Tal influência
ameaça a existência humana enquanto Dasein, ser-aí possuidor da
possibilidade de hermenêutica do Ser. Buscamos, então, compreender
como o homem pode se relacionar com a técnica moderna sem ter de
assumir riscos desnecessariamente.
Tomando a doutrina das quatro causas de Aristóteles,
Heidegger destaca a demasiada importância dada à causa motora ou
eficiente pela técnica moderna, que se preocupa apenas com o modo
de fazer as coisas desconsiderando frequentemente o que e para que
é feito. Ao buscar o entendimento helênico das causas, Heidegger
visa ressaltar o fato de causa indicar o processo de revelação do efeito
em clara oposição à noção técnica de causa como criação pela causa
motora, já que o processo de revelação vale-se da causa motora
bem como das outras três; material, formal e final. Este processo de
revelar-se do Ser o pensamento grego entendia por aletheia, desvelar, tornar-se presente; nós modernos ignoramos o que é dito do Ser
e chamamos de verdade o que é falado em proposições e usualmente
entendemos como a adequação da ideia à experiência como veritas.
Valendo-se da classificação aristotélica dos modos de
conhecimento, Heidegger relaciona a técnica com uma atividade de
revelação da verdade. Esta relação descaracteriza a técnica como mero
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
José Carlos Aguiar de Souza
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meio para um fim, caracterizando-a como uma maneira de descobrir
a verdade. Techné diz respeito ao conhecimento universalizado em
oposição à mera opinião. Aquele que constrói algo tem o conhecimento
não só do manufaturar, do fabricar, mas também entende o que, para
que e com o que se está manufaturando, compreende todo o processo
que leva algo a se revelar. É neste aspecto de compreensão e não no
de confecção que a técnica é um descobrimento.
Todavia, a característica marcante desse descobrimento da
técnica é a definição daquilo que se revela, pois a técnica moderna
encara o mundo sob o ponto de vista da ciência moderna. Deste modo,
aletheia revela o Ser em seu sentido mais originário enquanto veritas é
apenas um falar restrito sobre o algo no mundo. Dito de outro modo,
as ciências exatas encaram o mundo como passível de universalização
estéril de sentido. “O procedimento matemático tornou-se, por assim
dizer, o ritual do pensamento. Apesar da autolimitação axiomática, ele
se instaura como necessário e objetivo: ele transforma o pensamento
em coisa; em instrumento, como ele próprio o denomina.” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1984, p. 37). A ciência moderna, por sua vez, entende
o real como um conjunto de leis gerais e estabelece à tecnologia uma
forma de se relacionar com a natureza, que implica em só reconhecer
nesta fontes de recursos à disposição. Ora, ao entender a natureza
como mera relação entre fórmulas matemáticas, a técnica moderna
desconsidera outras significações da coisa definida pelas leis gerais
da ciência moderna e passa a se relacionar com essas coisas apenas
no tocante à dependência que se tem delas enquanto recursos para
alguma atividade humana.
Desta maneira, um rio deixa de ser um marco geográfico,
que influencia a vida ao longo de seu leito, para se tornar apenas
fonte de energia das turbinas de uma usina hidrelétrica. Entretanto,
diferentemente de um moinho, que usa o vento para impulsionar suas
hélices e gerar a força com a qual trabalha, a técnica moderna não
apenas utiliza o recurso, mas o estoca, para que ele esteja à disposição
a qualquer momento que se faça necessário. À natureza, encarada
desta forma pela técnica, Heidegger dá o nome de Estoque (Bestand).
Porém, apesar deste compreender definidor e fixo em aspectos
específicos do mundo, que se revela lhe propiciar um controle sobre
a utilização destes recursos, o homem não tem controle sobre o desvelamento em si mesmo. Tal des-velamento apresenta-se sempre que
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
chama o homem aos modos de descobrir pertinentes à humanidade.
Esta atividade de trazer adiante, revelar o real, num modo
de ordenação de suprimentos, é nomeada Gestell. Esta palavra, cuja
forma substantivada traduz-se como quadro, também é grafada por
Heidegger como Ge-stell para ressaltar o verbo stellen. Este verbo
pode significar colocar no lugar, ordenar, arranjar, suprir, entregar...
Stellen engloba uma família de verbos como bestellen (ordenar,
comandar), vorstellen (representar), sicherstellen (proteger), verstellen
(bloquear, disfarçar), herstellen (colocar aqui, apresentar), darstellen
(apresentar, exibir). Ao apresentar a essência da técnica, o pensador
germânico nos chama a prestar atenção à característica nociva dela,
ao seu perigo oculto. Em que consiste o perigo da técnica?
Ao encarar o real apenas no âmbito do identificável pela
ciência e manipulável pela técnica, o homem desconsidera outros
significados do Ser-que-se-dá, acaba por apreender a natureza apenas
como estoque (Bestand). e passa a considerar o real apenas naquilo
que lhe é possível manipular. Sob tal perspectiva, o homem passa a
enxergar no real só o fruto de sua interferência. Neste modo alienado
de ver o mundo, o homem tende a ver a humanidade como parte
desta natureza dominada e manipulada a seu bel prazer, como mero
recurso humano. Daí sua essência de Ser-aí, aquele que interpreta o
mundo, perde-se na ilusão de que ele se encontra em todo lugar a todo
instante, relacionando-se somente com os produtos de sua atividade.
Revela-se, pois, o perigo inerente à essência da técnica
moderna, que incita o homem ao modo de descobrimento que define
o real como estoque. Entretanto, Heidegger invoca Hölderlin para
nos lembrar que “lá onde cresce o perigo, cresce também o poder
de salvação.” Daí compreender o que Heidegger estabelece com
Gestell permitirá descobrir ali a salvação, a proteção a este perigo,
já que ainda mais nocivo que a ameaça oculta é a ameaça que, uma
vez conhecida, é ignorada por se acreditar ter sido anulada. Deste
modo, as propostas de um mero “desenvolvimento sustentável” não
dão conta do problema ecológico, pois não conseguem perceber
o problema. Um mundo digno de ser entendido como tal possui a
natureza como parte atuante. Entretanto, a tecnologia moderna, em
seu controle, cala o dizer da natureza, a transformando em jardins
para a exploração humana.
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4 A RELAÇÃO ENTRE HUMANO E NÃO HUMANO:
A ANÁLISE DESCONSTRUCIONISTA DE JACQUES DERRIDA
A tradição ocidental caracteriza-se pelo lógos (racionalidade e
linguagem). o qual é considerado um “próprio do homem”. A leitura
desconstrutora da razão, feita por Derrida, avalia que a maneira
pela qual a filosofia, em seu conjunto, a partir de Descartes, tratou a
questão do animal não humano demonstra um forte logocentrismo.
Trata-se de uma tradição não homogênea, mas hegemônica, cujo
discurso é o de domínio. Entretanto, o que resiste a essa tradição é o
fato de existirem seres vivos, entre os quais alguns não advêm daquilo
que esse grande discurso acerca dos viventes pretende lhes atribuir.
(DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 82). Mesmo que, desde os tempos
antigos, tenha sido exercida a violência contra os demais seres vivos,
Derrida tenta mostrar a especificidade moderna e o axioma do
discurso que a sustenta e pretende torná-la legítima.
O conceito moderno de direito é dependente do momento
cartesiano do cogito, da subjetividade. “Um certo conceito do sujeito
humano, da subjetividade pós-cartesiana está, por ora, no fundamento
do conceito dos direitos do homem.” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004,
p. 83). Portanto, reconhecer direitos aos não humanos é uma maneira
implícita de confirmar o moderno axioma de gesto repressivo, a
interpretação do sujeito humano, o qual proporcionou a pior violência
com relação aos viventes não humanos. (DERRIDA; ROUDINESCO,
2004, p. 84).
Derrida para evitar a filosofia do sujeito critica a teoria do
significado de Husserl. Este postula a favor da esfera da consciência
pura contra o “domínio intermédio da comunicação linguística”,
confere o significado à esfera da essencialidade ideal e do inteligível
com o objetivo de livrá-lo dos traços da expressão verbal. A expressão
linguística representa o seu significado de uma maneira diferente, ela
possui significado na base de um contexto ideal e não por força da
associação. (HABERMAS, 1998, p. 162-164).
Jacques Derrida pretende tornar válido o entrelaçamento do
inteligível com o signo e até o primado transcendental do signo ante
o significado, argumentando contra a platonização do significado
e interiorização da expressão linguística. O autor não parte do
princípio que considera a identidade do significado dependente da
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
práticaintersubjetiva do emprego de regras semânticas. Para ele, o
fato de Husserl ter conectado os significados linguísticos a expressões
objetivas, às quais se referem à verdade e destinam-se a estarem
adaptadas à função cognitiva, é indício de um logocentrismo antigo
e que não pode ser sanado apenas pela análise da linguagem. Esse
logocentrismo confere à razão o poder de limitar a linguagem. Husserl
teria se deixado cegar pela ideia fundamental da metafísica ocidental.
(HABERMAS, 1998, p. 166-169).
Na medida em que a força transcendental da origem passa da
subjetividade criadora para a produtividade anônima e instituidora
da história da escrita desconstrução derridiana opera uma inversão
do fundacionismo husserliano. É significativo o fato de que Derrida
durante esse movimento do pensamento não rompe em momento
algum com a persistência do fundacionismo da filosofia do sujeito. O
que para essa filosofia era considerado fundamental, o autor modifica
em algo dependente de um fundamento ainda mais profundo, de um
poder originário condensado temporalmente. Segundo Habermas,
“não é a história do ser que define o início e o fim, mas sim uma
imagem enigmática [...] e Derrida persiste na ideia vertiginosa de um
passado que nunca foi presente.” (HABERMAS, 1998, p. 172).
Portanto, Derrida não escapa às cadeias do paradigma da
filosofia do sujeito, não se desvencilha da estrutura aporética do
acontecer da verdade desprovido de toda e qualquer validade de
verdade. Enquanto participante do discurso filosófico da modernidade,
ele herda as fragilidades de uma crítica da metafísica que não se
afasta da intenção da filosofia da origem. Conserva pressupostos da
filosofia do sujeito ao buscar um sentido na história, no tempo. Ao
privilegiar a escritura que cria estruturas sem sujeito, Derrida não vê
que o significado depende do uso intersubjetivo de regras semânticas.
Para Habermas, ao limitar a filosofia à tarefa de decifração pela
crítica literária, livre de qualquer amarra a uma disciplina científica,
apaga a necessária fronteira entre ficção e filosofia. Embora haja
uma modificação do gesto, “também ele desconecta o pensamento
desconstrutivo da análise científica, desembocando na exortação,
em fórmulas vazias, uma autoridade indeterminada.” (HABERMAS,
1998, p.162; 174).
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5 A HERMENÊUTICA DESMONDIANA
A filosofia desmondiana tem como ponto focal o “ser entre”
(being between). como a matrix existencial que nutre o seu projeto
filosófico. (DESMOND, 2000, p. 117-118). Desmond cunha o termo
metaxológico, que é derivado do grego “metaxu” e significa “meio”,
“intermediário”, “entre”; e “logos”, que significa discurso, palavra, fala
articulada racionalmente. O sentido metaxológico do ser diz respeito
ao logos do metaxu, ou seja, um discurso do “entre” (between),
do “meio” (middle). Desmond desenvolve o sentido metaxológico
em relação aos sentidos unívoco, equívoco e dialético. Os quatro
sentidos do ser se revelam extremamente complexos. O sentido
unívoco se encontra associado à ciência moderna e sua pretensão de
determinação total do ser através da matematização e quantificação
das coisas. (DESMOND, 1995, p. 67). O sentido lógico da univocidade
perpassa todos os herdeiros de Aristóteles com a afirmação de que
ser inteligível é ser determinado tode ti. A consciência unívoca possui
uma abordagem englobante em que apenas a identidade é percebida.
O sentido equívoco está mais identificado com Wittgenstein e os
jogos de linguagem. (DESMOND, 1995, p. 80). A oposição dualista
do sentido equívoco do ser é vista como justificativa para uma
compreensão atomista do ser.
A consciência equívoca aponta para zonas de tensão e
ambiguidade no ser e no pensar que não permitem uma simples
redução à unidade unívoca. Entretanto, se permanecermos nesta
equivocidade, o suposto pluralismo que venhamos a defender não
constituirá, de fato, uma comunidade, mas algo fragmentado. Já o
sentido dialético busca mediar entre a univocidade e a equivocidade
através de uma totalidade sintética, que Hegel denomina de espírito
absoluto. Entretanto, o pensamento dialético não consegue se abrir
para uma alteridade genuína, permanecendo ainda na concepção de
um pensamento circular que medeia apenas consigo mesmo.
Desmond afirma que existe uma perplexidade primeira,
fundante, que inicia o próprio pensar filosófico. Para Desmond, a
consciência filosófica não se inicia e muito menos termina com/
ou em um argumento. O ser é perplexidade, admiração e sem esta
perplexidade originária não haveria a própria consciência (mindfulness)
filosófica. Para Desmond, o Ser é admiração e esta afirmação não
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
pode ser entendida como um argumento a mais. Somos, por assim
dizer, jogados nesta admiração. A nossa existência está dominada
pela tensão entre a identidade (eu) e a alteridade (que é outro ao
eu). O ser possui um excesso que resiste a qualquer tentativa de
conceitualização completa e determinada da metafísica ocidental
cujo voo mais ambicioso é encontrado no espírito absoluto de Hegel.
Aristóteles exprimiu de modo lapidar o excesso do ser ao
afirmar: to on legatai pollachos. (ARISTÓTELES, 2004, n. 1003b5).
Muito embora o ser seja dito de muitos modos, isso não significa que o
esforço de se pensar o ser de modo mais determinado seja um exercício
que possa ser negligenciado. O “excesso” do ser se apresenta em uma
pluralidade de modos e somente discernindo essas diversas facetas
é que poderemos conseguir uma maior clareza do pensar no que se
refere à questão do ser. Tal clareza é denominada por Desmond de
“atenção-plena-metafísica” (metaphysical mindfulness). (DESMOND,
2000, p. 43-44).
Em suma, o sentido metaxológico é uma intermediação que
envolve a mediação entre a pluralidade de totalidades mediadas por
si mesmas (self-mediated wholes). A multiplicidade de instâncias de
identidade é colocada lado a lado de tal maneira que a identidade
reconhece não apenas a alteridade daqueles que lhe são outros,
como também reconhece a si mesma em sua própria exemplificação
de alteridade. É exatamente esta interação dinâmica que leva a
consciência metafísica para além da mediação-de-si para uma
intermediação na qual a atenção-plena metafísica é uma participante
dentre uma pluralidade de participantes, na comunidade do ser.
6 AS IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO METAXOLÓGICO
O mundo objetivado da ciência não é mais uma matriz
capaz de nutrir uma reverência para com a natureza, para além da
vontade de potência do sujeito moderno e seu projeto de domínio
e maestria do mundo. A modernidade ocidental testemunhou a
atenuação do espírito de sutileza e prevaleceu o espírito geométrico
e o seu movimento de matematização e quantificação das coisas.
(DESMOND, 2005, p. 7).
O ideal científico é concretizado pela ciência moderna com a sua
pretensão de dar uma resposta unívoca ao ser das coisas. Entretanto,
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
José Carlos Aguiar de Souza
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o pensamento metaxológico explora temas que se encontram no
limite da compreensão mais sistemática do pensar,forçando a filosofia
a se abrir para perplexidades outras à determinação do pensamento
autônomo moderno. A filosofia neste espaço intermediário tem que
estar plenamente-atenta à frágil ambiguidade do ser ao mesmo tempo
em que é levada para os limites do pensamento mais sistemático ao
tratar de temas que exigem mais do que o espírito geométrico pode
alcançar. Um novo modo de se olhar para a natureza demanda um
espírito de sutileza que vá além do sentido moderno de teoria, que
parte da hipótese instrumental, que nos oferece entendimento e
domínio da realidade. e domínio da realidade.
A possibilidade de olharmos para a natureza numa perspectiva
outra que a da centralidade humana só pode ser abordada por um
espírito de sutileza capaz de se abrir para a porosidade do mistério
elusivo das coisas, para além de uma teoria analítica ou da clareza
geométrica da ciência. A univocidade da teoria científica não é capaz
de penetrar a matriz ambígua do ser, que excede o caráter meramente
autodeterminativo do pensamento geométrico. A filosofia,
segundo Desmond, tomada como mera tecnicalidade puramente
argumentativa, não consegue abarcar o caráter excessivo do ser de
plantas e de animais. Desmond argumenta que foi uma admiração
primeira que precipitou a própria perplexidade filosófica. Tratase de algo que não pode ser passível nem de objetivação e nem de
subjetivação como concebidas pela modernidade. (DESMOND, 1995,
p. 31). O caráter excessivo das coisas aponta, segundo Desmond,
para as “hipérboles do ser”, que se colocam em excesso à completa
determinação finita do pensamento, para além da objetivação e da
subjetivação. Eles devem ser pensados tanto como algo íntimo que ao
mesmo insinuam algo universal. (DESMOND, 2005, p. 13).
A filosofia tem que se mover para além do “postulado
finitista” e seu enunciado básico de que ao pensar o ser como finito
e nada mais do que finito, então, não se é possível pensar nada além.
(DESMOND, 2005, p. 25). A questão de uma bionarrativa para plantas
e animais não pode emergir dentro do ethos do pensar que não
considera nada outro do que o postulado meramente quantitativo
permite. O questionamento desmondiano é direcionado às filosofias
da imanência radical, que fecham o pensamento para tudo o que
é outro a ele. Ao advogar a pobreza da filosofia, a metaxologia
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
força os filósofos a se abrirem para além das autossatisfações do
conhecimento mais sistemático da filosofia tradicional. Assim, novas
porosidades do pensar podem aflorar de modo mais rico e promissor
do que o exercício da filosofia enquanto pensamento que se pensa
apenas a si mesmo.
7
A
ALTERNATIVA DESMONDIANA NO DEBATE DA
BIONARRATIVA
Desmond propõe uma alternativa viável, que foi denominada
de “teoria de interpretação ou hermenêutica benevolente.”
(SCHEERS, 2007, p. 279). Desmond desenvolveu uma das mais
impressivas contribuições contemporâneas para um sentido benigno
de hermenêutica da alteridade. Não se pode apelar apenas para a
tecnologia para resolvermos a crise ecológica. Temos que superar um
niilismo cego para qualquer valor intrínseco do ser.
A questão central, levantada ao longo deste artigo, é a
seguinte: é possível formularmos um sentido de bionarrativa para
plantas e animais? Para Scheers, muito embora não sejam idênticos a
nós, a estória de vida encontra-se de algum modo presente no mundo
animal e vegetal. (SCHEERS, 2007, p. 288).
Desde Descartes, a ontologia reinante tem sido científicotecnológica, na qual o ser (On). é substituído pelo fazer (techne). O
ideal contemplativo da racionalidade antiga cede lugar à racionalidade
instrumental ou poética (poiesis). com a guinada da modernidade.
Isso significa o fim da ciência aristotélica e a busca da causalidade
final das coisas, substituída por um novo modelo de ciência cujo
objetivo é a causa eficiente: maître et possesseur de la nature. Como
vimos, a concepção cartesiana do sujeito isolado e independente,
definido como res cogitans, influenciou de modo decisivo o ethos da
modernidade.
O projeto da ciência moderna busca de algum modo
responder a todas as questões essenciais ligadas à existência humana
e à exterioridade da natureza. As coisas perdem o seu caráter
elusivo, cedendo o seu mistério à vontade determinativa da ciência
e à instrumentalização tecnológica. O processo de objetivação da
natureza significa que o ser em sua inteligibilidade emerge de um
processo de determinação científica do qual nós somos em última
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instância a fonte.
O antropocentrismo exarcebado colocou a humanidade no
centro e todos os outros seres são vistos numa relação de dependência
e subordinação. Contudo, é possível conceber outro modo de
antropocentrismo, que situe a humanidade no espaço metaxológico
como os seus outros. O antropocentrismo concebido, sobretudo, a
partir da ciência do século XVII tenta univocalizar a natureza à nossa
imagem e semelhança, ou então, concebe um modo de equivocidade
no qual a natureza é um outro na medida em que o seu sentido se
torne para nós
Para Desmond, o ser na comunidade metaxológica não pode
ser reduzido a nenhum dos dois extremos. Ele propõe um modo de
intermediação aberta e plurivocalista que preserva todos os termos
de sua mediação. A intermediação metaxológica evita a tendência
da dialética hegeliana de suprassumir a singularidade idiótica das
coisas num todo universal e racional. Enquanto logos (discurso) do
metaxu (meio), o pensamento metaxológico nos protege de um
modo de antropocentrismo exacerbado, ao afirmar a nossa condição
ontológica no meio e não no centro, como senhores e dominadores
da natureza.
Em suma, o projeto da modernidade tem na afirmação-do-self
um dos seus eixos centrais. A crítica contemporânea se volta contra
a concepção da afirmação absoluta do self. A crítica é direcionada
contra um modo de antropocentrismo exacerbado, que coloca a
humanidade no centro. Todavia, é possível conceber outro tipo de
antropocentrismo ou afirmação-do-self, que situa a humanidade na
intermediação com os seus outros. Como vimos, o primeiro modo
de antropocentrismo busca univocalizar a natureza à nossa imagem
ou, então, concebe um modo de equivocidade no qual a natureza é
tida como um mero em-si, sendo que o seu sentido se torna para nós,
enquanto fonte de valoração das coisas.
Evidentemente, o ser humano, diferentemente de plantas e
animais, tem o seu ser e o seu mundo a serem construídos. O meioambiente construído envolve mais o elemento antropocêntrico do
que o meio-ambiente espontâneo de plantas e animais. As teorias
instrumentalistas veem a existência do meio-ambiente espontâneo
apenas para servir à humanidade. Para Desmond, a modernidade,
enquanto uma nova era, se pensou como uma renovação ou renascer
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
do que é natural em distinção ao sobrenaturalismo medieval. Mas,
depois das revoluções filosófica e científica da modernidade, o self
moderno não se encontra em casa com a natureza e busca assegurar
seu próprio ser através da vontade de potência tecnológica sobre a
alteridade do mundo, concebido como mera res extensa. (DESMOND,
2000, p. 275). A guinada moderna deveria relacionar o homem com a
natureza e não com o sobrenatural. Mas, ao invés de nos reconectar
com a natureza, a racionalidade moderna terminou nos colocando em
oposição ao mundo, de tal modo que a natureza se torna um outro
que a humanidade tem que negar.
Por que a modernidade seguiu nessa direção? O sujeito
cartesiano pode nos oferecer algumas pistas. O self é visto como algo
abstraído de tudo aquilo que não seja ele mesmo. Se eu sou apenas eu
mesmo, então eu não sou você. Desse modo, eu também não sou uma
árvore ou um animal. Consequentemente, a humanidade é colocada
à parte da natureza. Na medida em que o self é concebido como
autônomo, sem nenhuma referência heteronômica, e a natureza é
vista como governada por leis mecânicas, então a humanidade livre
toma posse da natureza mecânica e o modo mais adequado para se
estabelecer o domínio consiste em tomar posse das leis da natureza.
O projeto da modernidade está alicerçado na pura
autoidentidade do cogito. O pensamento é idêntico à negação ou
dúvida. O que eu nego ou coloco em dúvida não sou eu. Na medida
em que eu duvido eu sou: cogito ergo sum. O self cartesiano, ao
ser simplesmente ele mesmo, é indeterminado, abstrato e vazio.
Transposto para a sociedade todos somos indivíduos separados que
temos na separação o único elo que nos une. Assim a univocidade é
transposta para a equivocidade social.
Se a terra nos pertence, mas nós não pertencemos a ela,
podemos construir um verdadeiro lar aí? Com este questionamento,
Desmond tece uma crítica sutil à racionalidade ou mente instrumental,
que vê a terra como algo externo e meramente explorável, sem
nenhum valor intrínseco: a terra é uma coisa entre outras coisas.
Em contraposição à mente instrumental, Desmond propõe
uma plena-atenção capaz de reconhecer a bondade inerente ao ser,
para além das posições subjetivista e instrumental. O metaxológico
não é a busca de uma totalidade racional abrangente como o absoluto
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
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hegeliano. Ao invés da lógica racional, a metaxologia nos oferece
uma sabedoria idiótica (idios-íntimo). Essa sabedoria reconhece que
muito embora as coisas estejam intimamente relacionadas, esse
relacionamento não significa nenhuma determinação do e pelo self.
Trata-se do reconhecimento de uma unidade anterior (Prior unity),
uma fonte supradeterminada e por isso mesmo indeterminável.
Desmond advoga uma sabedoria que se alegra com a ideia de que o
ser é, que a atenção-plena foi dada a todos, que o ser é um excesso.
Para a questão “por que o ser ao invés do nada?”, Desmond oferece
uma não-reposta: no lugar de uma resposta, o mais importante é
“que” o ser é. O “que” é excessivo justamente por que ele excede
nossa capacidade de uma resposta determinada.
Pensar a natureza em termos da sabedoria idiótica faz com
que esta deixe de ser uma mera coisa para se tornar uma fonte ou
plenitude indeterminável. Para Desmond, a instrumentalização das
coisas é sinônimo de niilismo ontológico. Um niilismo silencioso que
não prega a morte dos valores, da moral, da sociedade ou de Deus.
Não se trata de um niilismo político, mas de um niilismo cego para
qualquer valor intrínseco do ser. (DESMOND, 1995, p. 508). Se o valor
é criado pela humanidade é, portanto, totalmente instrumental.
O “espanto” ou “maravilhar-se” pela presença (Thereness)
do ser, e que não pode ser capturado por conceitos, é simplesmente
ignorado pela racionalidade moderna. A natureza é tomada como um
agregado de forças e materiais sem nenhum valor intrínseco (Valueless)
a ser valorada extrinsecamente pela humanidade. (DESMOND,
1995, p. 510). Ao atomizar tanto a natureza quanto a nós mesmos,
nos separamos da ordo naturalis. Colocar questões referentes ao
relacionamento do meio ambiente construído com biomas originais,
focando apenas na ciência, tecnologia e causalidade eficiente é perder
o ponto central da problemática. Precisamos redirecionar a nossa
abordagem em relação à natureza; não se pode apelar apenas para
a tecnologia para resolvermos a crise ecológica. Precisamos nutrir o
debate atual com uma reflexão sobre a nossa relação com a natureza.
Esta não se encontra apenas fora de nós na medida em que somos
parte dela.
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
8 CONCLUSÃO
Desmond propõe um conceito de intermediação que nunca
poderá ser totalmente controlada, seja pelo self, seja pela alteridade.
Assim sendo, ele abre a possibilidade de uma generosidade
hermenêutica não-instrumental: uma hermenêutica agápica. Segundo
Desmond, se buscarmos o bem no outro não poderemos definir esse
bem simplesmente em termos de sua congruência conosco.
A generosidade hermenêutica implica benevolência da parte
do self que interpreta; ela pede também meios interpretativos
autênticos de encontro com o outro em sua alteridade genuína.
Segundo Scheers, a metaxologia desmondiana aponta para o
princípio hermenêutico da similaridade, segundo o qual os seres
humanos e os animais partilham um mesmo mundo. (SCHEERS,
2007, p. 283). Humanos, animais e plantas, somos todos criaturas da
terra e pertencemos a um mesmo planeta. As coisas são expressão do
processo da natureza naturando (Nature naturing). Desmond se refere
a uma afinidade ontológica entre o eu e a alteridade real dos seres.
Segundo Desmond, “o eu humano, mesmo em seu caráter distinto,
não precisa estar alienado do restante da criação. Um profundo
parentesco com as coisas esta gravado em nós. Isso poderia ser
motivo de alegria, de respeito ético.” (DESMOND, 2000, p. 286.). Nós
não somos a medida da verdade das coisas. A mente agápica concebe
um valor inerente ao outro. A negação do valor intrínseco nos permite
destruir e transformar a alteridade. Baseados na teoria desmondiana
de interpretação benevolente, é possível interpretar plantas e animais
como entidades de sentido e de valor intrínseco e, assim, contrapor as
concepções reducionistas e produtivistas radicais. (SCHEERS, 2007, p.
284). O self se encontra situado no meio (Middle). com os outros seres.
Nós somos seres entre outros seres. A metaxologia desmondiana
nos oferece um senso de intermediação que permite que tanto o self
quanto a alteridade possam florir. A pluralidade positiva do meio não
pode ser completamente determinada nem pelo self nem pelo outro.
O processo de interpretação não é uma questão de um intérprete
controlar subjetivamente tudo, enquanto que o objeto permanece
mudo. A quantificação exclusiva do mundo não pode ser um caminho
a seguir.
A intermediação metaxológica não é uma relação na qual o
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sujeito ultrapassa o outro, imprimindo sua própria marca sobre todo
o processo de conhecimento, nem a questão do outro deixar suas
configurações sobre o sujeito. Pelo fato da alteridade possuir uma voz
ativa no campo hermenêutico de intermediação, a interpretação se
torna algo mais do que uma aventura solipsista. A intermediação não
pode ser fechada por nenhum dos lados. (DESMOND, 1995, p. 451).
Para além da ordem humana o real exibe uma ordem que não fomos
nós que fizemos. (DESMOND, 2000, p. 395). O sentido de estrutura
não determinada pelo humano permite a formulação de um princípio
de resistência. Nossas interpretações e preconcepções se encontram
confrontadas por resistências que ultrapassam o nosso controle
pessoal. A imersão dos seres humanos na comunidade do ser dos
seres pode gerar um estado de espírito para além do privilégio dado à
autodeterminação do sujeito sem o senso de bondade ontológica do
outro. O Ser se encontra envolvido pelo perfume do bem. O intérprete
benevolente aceita a universalidade da bondade ontológica não
humana. Segundo Desmond, trata-se “de um respeito ativo pelo
outro, uma cortesia para com o seu ser, um engajamento com uma
alteridade não dominadora. ” (DESMOND, 2000, p. 189-190).
Os intérpretes humanos possuem capacidades interpretativas
e morais para explorar possibilidades para além da soberania erótica:
o sentido desmondiano de benevolência interpretativa. Desmond
está atento às complexidades envolvidas na concepção de mente
agápica. Nós precisamos usar as coisas do mundo. Precisamos comer
para sobreviver. Isso implica inevitavelmente no papel existencial
da mente erótica. Por isso mesmo, a plena-atenção agápica
permanecerá sempre, num certo sentido, um ideal a ser alcançado. O
mais importante para os seres humanos é explorar as possibilidades
oferecidas pela soberania agápica, para além da moldura restrita da
autodeterminação da soberania erótica e descobrir o sentido e o valor
originais das coisas.
A versão metaxológica de um modo de antropomorfismo
benigno oferece uma celebração de animais e plantas em sua
alteridade recalcitrante. Para Galileu, apenas a leitura unívoca
matemática do livro da natureza faz sentido. Sem a matemática
estaríamos vagando num labirinto escuro. Para Desmond, é possível
entoar um canto para além do cálculo matemático que nos permite
compreender algo da natureza enquanto processo de devir e das
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014.
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A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica
coisas em suas singularidades idióticas, que possuem o seu próprio
valor. Para deixarmos as amarras da crise ecológica e a apropriação
violenta da natureza é importante buscar interpretações de plantas e
animais que levem em conta a riqueza e a bondade original bem como
o sentido das coisas e dos processos para além da humanidade.
* José Carlos Aguiar de Souza é doutor em filosofia e professor do ISTA, da PUC Minas e pesquisador da FAPEMIG. Desenvolve pesquisas nas áreas de Metafísica,
Filosofia da Ciência, problemas da Modernidade e ecofilosofia. E-mail: jc-aguiar@
ig.com.br
** Marco Aurélio Alves é graduando em filosofia e bolsista do FIP-Puc Minas no
projeto de pesquisa “Hermenêutica e Ecologia: rumo a uma bionarrativa do meio
ambiente como superação da racionalidade instrumental.”
*** Rafael Lourenço Navarro é graduando em filosofia e bolsista da FAPEMIG no
projeto de pesquisa “Hermenêutica e Ecologia: rumo a uma bionarrativa do meio
ambiente como superação da racionalidade instrumental.”
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ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM:
“SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA
FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO
Ronilson de Sousa Lopes*
Resumo
A questão do tempo na literatura é um dos aspectos centrais para
compreensão e análise de uma obra literária. Assim sendo, este
trabalho tem por objetivo analisar o tempo no livro Seis passeios
pelos bosques da ficção, de Umberto Eco, e traz contribuições que
ajudam a pensar a diferença entre história e enredo, a aceleração e
a desaceleração de uma narrativa, as maneiras de abordar o passado
e o futuro, o tempo em que ocorre a história e o tempo em que a
mesma é contada, bem como os detalhes que não são explicitados na
narrativa e que requerem do leitor um posicionamento imaginativo
para preencher o que falta na leitura.
Palavras-chave: Compreensão. Tempo. Literatura.
1 INTRODUÇÃO
Uma das coisas que mais nos fascinam é o entendimento, a
compreensão daquilo que lemos. Quando compreendemos o que
lemos, melhor degustamos, saboreamos com mais suavidade e mais
enriquecemos o espírito. Para compreendermos as obras literárias,
precisamos de uma fórmula que nos permita decifrá-las. Estas são
denominadas de chaves interpretativas. Existem inúmeras! Porém,
será abordada neste artigo mais uma dessas chaves preciosas, o
tempo.
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ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: “SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA
FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO
2 A IMPORTÂNCIA DA COMPREENSÃO DO TEMPO NA
LITERATURA
Umberto Eco, no livro Seis passeios pelos bosques da ficção,
aborda, entre outras coisas, a questão do tempo na literatura. Pelo
menos no que tange aos quatro primeiros capítulos. O que nos faz
pensar: qual a importância de se estudar e compreender o tempo
numa obra literária? Aparentemente a resposta é simples. Não
há nenhuma relevância, visto que muitos leitores já leram uma
quantidade numerosa de livros, sem necessariamente analisá-los do
ponto de vista do tempo, e os compreenderam relativamente bem.
Porém, analisar uma obra literária a partir da compreensão do
tempo que se vislumbra nela mesma, a maneira como o autor lida com
o tempo e os aspectos temporais é, sem sobra de dúvida, fascinante
e enriquecedor, pois possibilita uma interpretação sistemática e
profunda da literatura.
No tempo cronológico, seres humanos são guiados e
orientados a todo instante por um relógio. Rígido, inflexível, que lhes
lembra constantemente as vinte e quatro horas do dia e que neste
intervalo eles têm inúmeros afazeres. Entre eles, ler. Poucos se deram
conta de que, para iniciar a leitura de uma obra literária, existe a
necessidade de se fazer um pacto muito importante, o qual Coleridge
citado por Umberto Eco (1994) chama de suspensão da descrença:
A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é
a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo
ficcional, que Coleridge chamou de “suspensão da descrença”.
O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma
história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o
escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o
autor simplesmente, finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo
ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu.
(ECO, 1994, p. 81).
No caso, o leitor deve aceitar que o tempo na literatura pode
ser flexível. Daí a importância de se estudar e compreender o tempo
para melhor saborear o que se está lendo. E no que se refere à obra
de Eco, embora muito densa, serão destacados cinco pontos, os quais
são os mais relevantes para a compreensão do assunto em questão.
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O primeiro ponto é a distinção entre história e enredo. O
primeiro equivale a dizer que é a história narrada de forma ordenada
temporalmente, já o segundo se refere à maneira como a história
aparece na superfície. Exemplo: a história de Édipo Rei, que começa
com a cidade de Tebas sendo ameaçada por muitas pestes, o que leva
o rei Édipo a pesquisar a causa das pragas que a assolavam; com isso a
história vai se desenvolvendo de maneira que ele vai desvelando fatos
precedentes. Ou seja, o primeiro aspecto com que nos deparamos
é um acontecimento perto do final da história, e não com o início
cronológico que seria, no caso, o oráculo predizendo ao rei Laio
que seu filho Édipo o mataria e se casaria com sua esposa Jocasta.
O leitor se depara, primeiramente, com o enredo, só depois que vai
reelaborando a história de forma temporal.
O segundo ponto importante, no que se refere ao tempo,
é aquele que ocorre quando o autor está contando uma história e
começa a fazer digressões, nas quais relembra o passado ou se projeta
rumo ao futuro. Para o primeiro, Eco utiliza a palavra flashbacks e para
o segundo, flashforwards. E nos dá um exemplo belíssimo de como
esse recurso funciona:
Todos usam essas técnicas ao descrever fatos passados: “Ei,
escute só isto! Ontem encontrei o John – quem sabe você
se lembra, é aquele sujeito que corria todas as manhãs, dois
anos atrás [flashback]. Pois bem, ele estava muito pálido, e
devo confessar que demorei um pouco para entender por
que [flashforward], e ele disse – ah, esqueci de contar que
quando o vi ele estava saindo de um bar, e eram só dez horas
da manhã, entendeu? [flashback] – mas, enfim, o John me
falou – Ah, meu Deus, você nunca vai adivinhar o que ele me
falou [flashforward]...”. Espero não ser tão confuso no resto
desta exposição. Mas, com maior senso artístico, Nerval
certamente nos confunde em Sylvie com um jogo estonteante
de flashbacks e flashforwards. (ECO, 1994, p. 36).
As palavras utilizadas não são traduzidas para o português, no
entanto o exemplo deixa bem claro sua utilidade e importância como
ferramentas que, bem utilizadas, são capazes de tornar um texto mais
belo. Não as palavras, mas o recurso que elas significam, de retornar
no tempo para abordar algo acontecido no passado ou se lançar ao
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ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: “SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA
FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO
futuro para falar de algo que ainda não aconteceu ou simplesmente
para retomar um acontecimento mais à frente do passado referido no
flashback.
O terceiro ponto se refere à distinção entre tempo da história
e tempo do discurso. Ora, tempo da história é aquele que remete à
duração em que ela ocorre, enquanto o tempo do discurso refere-se
ao tempo em que o primeiro item foi narrado, ou mesmo lido.
O tempo da história faz parte do conteúdo da
história, se o texto diz que “mil anos se passam”,
o tempo da história são mil anos. Mas, no nível
da expressão linguística, ou no nível do discurso
ficcional, o tempo de escrever (e ler) a frase é muito
curto. É por isso que um tempo do discurso rápido
pode exprimir um tempo da história bastante longo.
Naturalmente, o contrário também pode acontecer:
vimos na conferência anterior que Nerval precisou
de doze capítulos para nos contar o que aconteceu
em uma noite e um dia; e, depois, em dois capítulos
curtos nos contou o que aconteceu no decorrer de
meses e anos. (ECO, 1994, p. 60).
Evidentemente que há casos em que os dois tempos coincidem,
como é o caso da música.
O quarto ponto diz respeito à questão da aceleração e da
desaceleração. Um autor pode resolver, numa história normal,
descrever algo que ocorre em dez anos em apenas um parágrafo, ou
seja, de forma bastante acelerada. Ao contrário, escrever algo que
aconteceu em três segundos em uma descrição prolongada que ocupe
mais de dez páginas. Isto seria uma maneira de prolongar a história.
Esse último ponto é muito importante, segundo Umberto Eco, para
que o leitor possa fazer passeios inferenciais. Ou seja, para dar tempo
para o leitor pensar.
O quinto e último ponto de nossa análise referente ao tempo
diz respeito ao próprio preenchimento ou não preenchimento de um
texto, em outras palavras, certas informações que podem ou não ser
explicitadas no texto. No caso, por vezes, um autor muito descritivo,
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez.2014.
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que preencha todas as informações de um texto, corre o risco de
ser redundante e cansativo por ser demasiadamente prolixo. Já no
segundo caso, permite que o leitor complete as informações que já
estão de modo implícito no texto.
Por enquanto, só quero dizer que qualquer narrativa
de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao
construir um mundo que inclui uma multiplicidade
de acontecimentos e de personagens, não pode
dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede
ao leitor que preencha toda uma série de lacunas.
Afinal (como já escrevi), todo texto é uma máquina
preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de
seu trabalho. Que problema seria um texto tivesse
de dizer tudo que o receptor deve compreender –
não terminaria nunca. Se eu ligar para você e disser:
“Vou pegar a estrada e dentro de uma hora estarei
aí”, você não há de esperar que eu acrescente que
vou de carro pela estrada. (ECO, 1994, p. 9).
Na Bíblia há um caso que exemplifica bem isso que está
sendo dito, na narração em que se conta que o apóstolo Paulo caiu
na estrada de Damasco. Todos que leem esse relato dizem que ele
caiu do cavalo. Há até quadros famosos que retratam essa passagem
bíblica, no entanto o texto não fala em momento algum que ele tenha
caído de um cavalo.
Após discorremos sobre esses cinco pontos, podemos
afirmar que: perceber uma obra literária em seus aspectos temporais
constitui uma beleza infindável, e acima de tudo, é de fundamental
importância para enriquecer as noções de estética e compreensão.
Por isso mesmo, agora que você aprendeu a observar esses pontos, é
convidado a correr à biblioteca, apanhar um livro e lê-lo, analisando-o;
e, evidentemente, há muitos aspectos do tempo que não foram
abordados aqui. Fica também o convite para ler Eco e aprender muito
mais.
* Ronilson de Sousa Lopes é licenciado em filosofia pelo Instituto Santo
Tomás de Aquino – ISTA. Cursa Gestão Pública pela Universidade Estadual do
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez. 2014.
ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: “SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA
FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO
Amazonas UEA e Pós-graduação em Educação Ambiental pela UNICID. É autor do
livro Contos do Meu Sertão, lançado pela Editora O Lutador. E-mail: lopespav@
yahoo.com.br
REFERÊNCIA
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez. 2014.
APRESENTAÇÃO
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APRESENTAÇÃO
Apresentação
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MATOS, Henrique Cristiano José. Imitação de Cristo: caminho de
crescimento espiritual: contexto histórico, inspiração e atualidade.
Belo Horizonte: O Lutador, 2014. 237 p.
Recentemente alguém me perguntou: qual foi sua intenção ao
escrever sobre a Imitação de Cristo, aquele livro clássico que já temos
em tantas versões, mesmo na língua portuguesa? Pensei um pouco
e respondi com algumas referências à minha própria experiência de
vida.
Sempre me intrigou o fato de o Fundador da nossa Congregação
ter dado a denominação de frater aos membros da Família Religiosa
por ele fundada em 1844. Não chamou seus religiosos de irmão
(broeder, em holandês; bruder, em alemão; brother, em inglês), mas
usou expressamente a palavra latina frater. Existe uma hipótese
interessante – ainda a ser confirmada com argumentos documentais
convincentes – que remete a uma informação de o Fundador ter
desejado perpetuar no nome frater a preciosa herança espiritual da
Devoção Moderna, aquele notável movimento laical de revitalização
cristã, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Como
estudioso da História da Igreja, essa questão sempre me interessou
particularmente. Afinal de contas: o que é a Devoção Moderna?
Há outros motivos. Nos meus estudos sobre Santa Teresa
de Lisieux e o Beato Charles de Foucauld – ‘dois luminares místicos
de nosso tempo’, na expressão de Yves Congar –, que eram,
simultaneamente, contemporâneos e conterrâneos, encontrei
diretamente várias indicações sobre a influência da Imitação na
sua vida. Especialmente Santa Teresinha menciona explicitamente
nos nos seus escritos que esse livro foi decisivo no despertar de sua
vocação à vida no Carmelo. (MATOS, 2014, p.16).
Também recordo-me vivamente que, nos meus anos de
formação inicial, fomos obrigados a escutar, diariamente, um trecho
da Imitação de Cristo, que sempre precedia a leitura de mesa durante
o almoço. Já na época – estamos naqueles longínquos anos 50 do
século passado! – nós, jovens, questionávamos aquele costume por
considerá-lo antiquado, mas os superiores não abriam mão dessa
leitura espiritual. Tivemos de ouvir os textos, não uma, mas muitas
vezes, no decorrer dos anos, até quase sabê-los de cor.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez.
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Apresentação
amou igualmente minha atenção que ‘gente de peso’ nos campos
de filosofia, ciência, política ou literatura mostraram uma curiosa
predileção por esse livrinho da tardia Idade Média. Cito apenas
algumas figuras: o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que
era também cientista, matemático e diplomata; André-Marie Ampère
(1775-1836), entre outros o inventor do primeiro telégrafo eletrônico;
Dag Hammerkjöld (1905-1961), sueco, que foi secretário-geral da
ONU entre 1953 e 1961, a quem John Kennedy chamou de ‘o maior
estadista do nosso século’; Dietrich Bonhoeffer, teólogo luterano que
morreu no campo de concentração nazista, em 1945; Pierre Teilhard
de Chardin, SJ (1881-1955), o grande intelectual, cientista e pensador,
com suas inovadoras ideias sobre a teoria evolucionista; Aldous
Leonard Huxley (1894-1963), escritor inglês que viveu nos EE.UU.,
autor do conhecido romance Brave New World; Robert Schuman
(1886-1963), renomado político democrata e primeiro presidente do
Parlamento Europeu, entre 1958 e 1960; o Papa, hoje, Santo João
XXIII (+ 1963), e ainda muitos outros. Por que eles se apaixonaram por
um livro tão antigo, cujo conteúdo estava, aparentemente, em boa
parte superado?
Sabemos que a Imitação conheceu, no mínimo, quatro
mil reimpressões, em mais de 90 idiomas. Ainda hoje aparecem
regularmente novas traduções, para não falar de reedições. Basta
ver o caso da versão da Editora Vozes. (MATOS, 2014, p. 230-231, n.
61). Não é segredo que, após a Bíblia, foi (e talvez ainda seja) o livro
mais lido no mundo cristão, ultrapassando, inclusive, as fronteiras
confessionais. Mais uma vez surge, espontaneamente, a pergunta:
como se explica o misterioso fascínio desse livro?
Como conseguiu (e consegue ainda) cativar pessoas de
tendências e religiões tão diferentes?
Na publicação que tenho o privilégio de apresentar hoje,
procuro dar uma resposta a essas interrogações. Confesso que,
nos últimos anos, eu mesmo li inúmeras vezes esse clássico de
espiritualidade, em versões diferentes e mesmo em idiomas diversos.
A edição que mais me impressionou pelo aparato crítico adotado e a
beleza e atualidade da tradução foi a versão elaborada pelo carmelita
Frei Rudolf van Dijk, professor emérito do renomado Instituto de
Espiritualidade ‘Tito Brandsma’, ligado à Universidade de Nimega,
nos Países Baixos. Este Instituto tem como um de seus grandes temas
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014
Apresentação
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de estudo científico o fenômeno da Devoção Moderna, movimento
dentro do qual deve ser situado o livro De Imitatione Christi.
Já que tocamos em Devoção Moderna, é oportuno especificar
melhor de que se trata. O termo indica uma corrente espiritual de
renovação evangélica, na passagem da Idade Média para a Idade
Moderna. Estamos numa época de grandes turbulências sociais e
políticas e, igualmente, eclesiásticas. Na realidade, acenam a radicais
mudanças na sociedade e, nesse sentido, há um impressionante
paralelo com o momento histórico atual. Recordo aqui alguns
fatos: as grandes descobertas que alargam, consideravelmente,
o conhecimento da terra e colocam diante dos europeus enormes
desafios; uma impressionante difusão do medo entre o povo
comum, entre outros provocada pela ‘peste negra’ que dizimou um
terço da população europeia; o dramático ‘Cisma Ocidental’ que
dividiu internamente a Igreja com dois e até três papas reinando
simultaneamente; o surgimento dos nacionalismos e sinais evidentes
de uma crescente secularização da sociedade; fortes críticas ao poder
temporal dos pontífices romanos, questionamentos levantados, a viva
voz, por João Quidort e Marsílio de Pádua. Por fim, os prenúncios de
grandes mudanças de mentalidade, com destaque para o emergente
subjetivismo. Sentimos já as dores de parte de um novo período
histórico que começará com o Renascimento e o Humanismo do
século XVI. Nas bases do cristianismo percebemos nessa época um
abandono do ‘fiel comum’ por parte do clero, misticismos, confusões
na compreensão da fé, incertezas e tendências heterodoxas. No
fundo, há um grito por autenticidade, transparência e simplicidade.
De toda parte vêm interrogações sobre a essência do ser-cristão e o
sentido da própria Igreja. Muitos se perguntam: como harmonizar
tantas contradições no Corpo de Cristo? Existe, indubitavelmente, um
incontido desejo por reformas ‘in capita et membris’, tendo em vista,
particularmente, os pastores da Igreja em seus diversos níveis.
Esse pano de fundo é indispensável para entendermos o
surgimento da Devoção Moderna. O termo diz respeito à busca
de uma maior ‘interioridade’ (ser devotus) do ser-cristão, mas
sintonizada com os novos tempos que estavam começando (daí o
adjetivo moderna). No contexto dessas aspirações, amplamente
difundidas, situa-se a figura do diácono Gerardo Grotius (1340-1384),
que é considerado ‘o pai do movimento da Devoção Moderna’ Não
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
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Apresentação
irei aqui entrar em detalhes sobre a biografia e as obras dessa figura
ímpar, apenas quero salientar sua insistência na necessidade de
‘volta às fontes’ do cristianismo, o que significa, concretamente, a
redescoberta da Sagrada Escritura, da pessoa histórica de Jesus e da
Tradição viva da Igreja, especialmente dos Santos Padres. O grande
ideal de Grotius era formar, no meio do povo, ‘células vivas’ de vida
cristã, que se inspirassem nas comunidades cristãs de que falam os
Atos dos Apóstolos. Com a sua morte aos 44 anos, seus seguidores
deram continuidade aos ideais por ele propagados. Uma das mais
significativas iniciativas foi o surgimento dos Fratres da Vita Communis,
grupos de leigos que viviam em comunidade, partilhavam seus bens,
sem emitir oficialmente votos religiosos. Escolhiam entre si um prior
para ser o elo de união entre os irmãos. Adotavam um estilo de vida
muito simples e frugal. Em suas casas recebiam jovens para serem
acompanhados em seus estudos e em sua formação humana e cristã.
Os Frateres abriram também escolas próprias e numa delas entraria o
jovem Martinho Lutero, o futuro líder do movimento que conhecemos
como ‘Reforma Protestante’. Interessante o dia a dia desses Irmãos.
Em comunidade praticavam o ‘colação’ (collatio) e cada um organizava
para seu próprio uso um rapiarium. Para seu sustento material muitos
deles dedicavam-se a copiar manuscritos, de modo particular a Bíblia,
que colocavam à venda.
A partir da experiência laical dos ‘Irmãos da Vida Comum’,
desenvolve-se uma forma de vida claustral no espírito da Devoção
Moderna. É conhecida na História como os ‘Cônegos Regulares de
Windesheim’. Johannes, o irmão de sangue de Tomás de Kempis, seria
o prior do mosteiro de Santa Inês, a primeira fundação fora do mosteiromãe. Os Cônegos seguiam a Regra de Santo Agostinho, considerada
por eles como expressão fiel daquilo que os ‘devotos’ aspiravam: viver
unânimes, tendo uma só alma e um só coração ‘orientados para Deus’
(artigo 3º). Um traço marcante da regra agostiniana é exatamente o
apaixonado desejo de um encontro íntimo com Deus, a unio mystica. As
‘Exortações finais’ da Regra (artigos 48-49) não deixam dúvida sobre
esse propósito, quando lemos: “Que Deus lhes conceda observar tudo
isso movidos pela caridade, como apaixonados da beleza espiritual, e
exalando em seu trato o bom odor de Cristo, não como servos sob a
lei, mas como pessoas livres sob a graça”.
Durante os 71 anos em que Tomás viveu no Mosteiro do
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Apresentação
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Monte Santa Inês, foi-lhe confiada a formação dos jovens religiosos.
E em primeira instância para eles elaborou um ‘guia espiritual’ que
entraria na história como ‘Imitação de Cristo’. Na realidade, é o fruto
de um longo e paciente exercício de seleção, ordenação, redação
e revisão, que ocupou nada menos do que 20 anos de trabalho. Na
sua elaboração muito serviram os dados recolhidos nos rapiaria
que possuía. Formaram-se quatro libelli, livrinhos ou, melhor dizer,
quatro pequenos tratados que constituem uma unidade, no sentido
de oferecer, num conjunto internamente articulado, uma ajuda para
o crescimento e amadurecimento da fé. O manuscrito definitivo foi
entregue ao editor pelo próprio Tomás de Kempis, em 1441. Hoje
este precioso documento encontra-se na Biblioteca Real de Bruxelas,
na Bélgica. A ordem dos quatro tratados na grande maioria das
traduções em uso hoje é diferente da ordem do manuscrito original.
Foram trocados de lugar os dois últimos, de modo que o livro 3 (Do
Sacramento do Altar) passou para o quarto lugar e o livro 3 (Da
consolação interior) para o terceiro lugar. Esse procedimento teve
grandes consequências. Invés de ‘guia mistagógico’, a obra-prima de
Tomás começou a ser vista como um livro ascético-moralista, o que
empobreceu enormemente seu alcance espiritual. Grande mérito
cabe aos estudiosos do Instituto ‘Tito Brandsma’, que recolocaram os
livros na ordem do manuscrito de 1441, empreendendo, igualmente,
um ingente trabalho de reinterpretação de todo seu conteúdo. O
resultado foi surpreendente! Nasceu algo completamente novo,
fascinante, atual e inspirador. A publicação que hoje apresento
é uma popularização desse ingente esforço. Dividi o livro – bem
jesuiticamente – em três partes (capítulos); a contextualização da
Devotio Moderna; origem, composição e caráter místico da Imitação
de Cristo; uma antologia bilíngue, com o texto latino original e uma
nova tradução portuguesa. Considero a terceira parte como a mais
rica e inspiradora pelo fato de ir diretamente à fonte. Um ‘índice
temático’ facilita a procura de determinados temas específicos da
espiritualidade da obra. Digo com toda a simplicidade: esta publicação
me deu uma satisfação interior muito grande. Veio ao encontro de
um desejo longamente acalentado. Confesso que, há anos, leio,
diariamente, um trecho da Imitação, melhor dizer, fico ‘ruminando’
uma das lições espirituais do místico Tomás de Kempis. Trata-se de
uma mística ‘com os dois pés no chão da vida’, nada de abstrato
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
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Apresentação
ou aéreo. O que encanta na obra é exatamente a transparência, o
realismo, o fino trato psicológico, a verbalização de uma experiência
vital, o testemunho de alguém que colocou no papel o que viveu no
quotidiano de sua existência. Há algo de perene nessa obra, pois toca
o que é profundamente humano: o fato de estar sempre ‘em busca’,
o nosso estado de ‘transeunte’, o intenso desejo de ‘ter vida’ e vida
que se eternize. No fundo, é para o cristão aquele forte e irresistível
desejo de poder encontrar-se pessoalmente com Deus, unindo-se a
Ele no abraço definitivo do amor na comunidade trinitária, nosso lar
definitivo e plenificante. Jesus é o caminho; Nele temos a vida e é Ele
que aponta a verdade derradeira: não apenas somos ‘chamados’ filhos
de Deus, mas o somos ‘de verdade’ e, por isso, seremos acolhidos
amorosamente na Casa do Pai, gozando a plenitude da vida.
A Imitação de Cristo traça para nós, discípulos e discípulas de
Jesus, um caminho de amadurecimento espiritual que não é sujeito aos
caprichos da moda, contendo em si aquilo que é duradouro: a busca
incessante e o desejo permanente de união com Deus. No fundo, a
obra-prima de Tomás de Kempis traduz, em termos existenciais, o que
São João afirma no Evangelho do 5º Domingo da Páscoa: “Senhor,
mostra-me o Pai e isso nos basta... Quem me viu, viu o Pai...” Vamos
ao Pai! (cf. Jo 14,8-9.12).
Para concluir, ainda uma ligeira referência à pessoa mencionada
na dedicatória. O texto – projetado na foto de uma capela do Parque
Nacional Particular do Caraça, este ‘Santuário místico’ confiado à
Congregação da Missão, Lazaristas – diz: “Para Amália Kátia Ferreira
Mendes, que, na rotina da vida escolar, sempre mantém aberta a
janela da transcedência numa perspectiva mística, dando ao seu labor
educativo uma dimensão espiritual de singular profundidade”.
Como é gratificante termos em nosso meio educadores e
educadoras, mestres e mestras, que no seu ensino vão além da
materialidade de sua respectiva disciplina, tendo a capacidade de
apontar dimensões mais profundas da vida, que, afinal de contas,
constituem a razão de ser de nossos trabalhos e cansaços: a união
íntima com o Senhor da Vida. Obrigado, Amália; obrigado, professores
e professoras deste querido e estimado Instituto de Filosofia e
Teologia ‘Santo Tomás de Aquino’, cujo nascimento pude assistir e,
depois, ajudar no seu desenvolvimento, servindo-o durante tantos e
tão felizes anos.Belo Horizonte, terça-feira, dia 20 de maio de 2014.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
Apresentação
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Frater Henrique Cristiano José Matos, cmm
A IMITAÇÃO DE CRISTO E A TRADIÇÃO AGOSTINIANA
Quero fazer uma confissão preliminar. Ao longo da minha vida
vi, por várias vezes, um exemplar do livro Imitação de Cristo. Com a
minha avó materna, muitas vezes. Ora em seu criado, ora em sua mão
em algum final de tarde, quando ela sentava-se conosco na varanda
da avenida do Contorno, cuja paisagem nos enchia os olhos de belos
horizontes. Depois, uma vez aqui outra ali, em alguma gaveta da minha
mãe. Naquelas gavetas de mãe, onde a gente vai procurar – com
bastante frequência – tudo que sumiu, sempre me deparava com um
pequeno livro, capa amarelada, sem muito apelo... Confesso: vi, mas
nunca li.
Como nossa memória é um grande palácio e tudo está lá
devidamente arquivado – escondido, diz Agostinho –, assim que recebi
o convite do Pe. Cleto Caliman para participar desta mesa, a imagem
daquele exemplar na gaveta da minha mãe me reapareceu. Fui à sua
procura e aqui está!
Imitação de Cristo, tradução de texto latino, nova edição de
1943. Na capa, o nome do tradutor, Pe. J.- I. Roquette e a seguinte
informação: ‘acompanhada de piedosas reflexões no fim do capítulo’.
Logo compreendi o que Frater Henrique, que agora nos
apresenta essa belíssima edição, expôs na Introdução, na página 15:
sua geração, dos anos 60 e 70, sentia certa aversão por aquelas coisas
que soavam como ‘ascese, mortificação, fuga mundi, desprezo dos
bens materiais, desconfiança do corpo’ e que vinham de fora, pela
força da autoridade.
Preconceitos à parte, o fato é que nosso autor descobriu – e
isso é contado com maestria – a ‘riqueza que está escondida nessa
obra’.
E de onde brota tanta riqueza? O diamante que reluz precisa
de longo processo de lapidação. Parece ter sido esse o trabalho do
Frater. Lapidar, acertar arestas, recortar, restaurar, decompor para
reconstituir a totalidade dessa pedrinha preciosa. Dessa garimpagem
quero destacar um viés: a chamada Devoção Moderna e sua relação
Lendo, agora sim!, a Imitação de Cristo, percebem-se claramente
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
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Apresentação
raízes agostinianas nessa corrente espiritual.
Pergunto: que fio condutor é esse que ligou épocas tão distintas
– Agostinho é um pré-medieval – entrelaçou contextos e permitiu
alguma primavera quando tudo era só outono1 ?
Obviamente a formação religiosa de Tomás de Kempis (13801471) conta muito. Veja-se o item 2.1 da segunda parte da obra (que
trata da questão da autoria) na qual o Frater nos detalha o percurso
formativo do autor. Na Regra de Santo Agostinho, do primeiríssimo
artigo espelha-se seu itinerário espiritual: “Antes de tudo, irmãos
caríssimos, amai a Deus e depois ao próximo, pois estes são os
principais mandamentos que nos foram dados2” (BOFF, 2009, p. 23).
Ao longo de toda a obra, e de acordo com a disposição dos
quatro livros que compõem essa nova edição da Imitação de Cristo,
pode-se dizer que a tônica agostiniana da interioridade perpassou
e moldou os temas da devoção moderna. Sabemos, Agostinho foi
o grande ‘descobridor’ da interioridade do homem. Sua famosa
interpelação, na obra Da Verdadeira Religião, “Não saias de ti, mas volta
para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem3” ,
parece ressoar no livro I da Imitação de Cristo: “Vigia sobre ti, animate e admoesta-te. Vivam os outros como vivem, não te descuides de
ti mesmo (IC, 1,25).
Revolvendo a própria intimidade, Agostinho descobre que
não se conhece, que é um mistério para si mesmo: “tornei-me uma
questão para mim mesmo” é o que Agostinho pode dizer de si, com
alguma certeza. O ‘acesso à interioridade’ é um longo processo e não
é feito sem algum sofrimento. Quanto mais se volta para dentro de si,
mais o homem percebe os próprios limites porque «o mais das vezes,
no discurso é abundante a indigência da inteligência humana, porque
o procurar fala mais que o encontrar» 4
1 (Cf. MATOS, 2014, p. 43). “Em suma, dentro da Europa, no outono da idade Média e na
passagem para a Idade Moderna, a Devoção foi a representação mais significativa de uma
Igreja em vias de renovação e reforma, a partir das Bases.”
2 “Ante omnia, frateres carissimi, diligatur Deus, deinde proximus, quia ista praecepta sunt
principaliter nobis data”. (Cf. BOFF, 2009, p. 23).
3“Noli foras ire; in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas: et si tuam naturam mutabilem inveneris, transcende et te ipsum; sed memento cum te transcendis, ratiocinantem
animam te transcendere. Illuc ergo tende, unde ipsum lumen rationis accenditur” (De vera
Religione. xxxix, 72).
4 “et ideo plerumque in sermone copiosa este egestas humanae intellegentiae, quia plus
loquitur inquisito quam inuentio et longior est petitio quam impetratio” (Conf. XII, i, 1).
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Com isso, Agostinho está fazendo uma estranha inversão. Para
ele, a existência de Deus e o conhecimento que dele temos acabam não
sendo problemáticos: o problema se encontra no autoconhecimento,
no conhecimento que temos de nós mesmos. É justamente esse
movimento de construção interior e exterior que nos faz pensar, junto
com Agostinho. Em Confissões, no livro XIII, lemos: “Mas o homem
animal, que é como uma criança em Cristo e bebe leite até que ganhe
forças para um alimento sólido e fixe o olhar na contemplação do sol,
não se sinta abandonado na sua noite, mas alegre-se com a luz da lua
e das estrelas.” 5
A procura da verdade, num ‘programa espiritual’ – desde
Heráclito – “A mim mesmo me procurei” (fr. 249) –, depende desse
investimento em si mesmo para justamente sair de si, uma forma
de ascese intelectual que, em Agostinho, mostra-se continuamente
como um modo de deslocamento interior.
Ou em outro trecho do mesmo livro: “Dá-te a mim, ó meu Deus,
devolve-te a mim: eis que te amo, e, se é pouco, que te ame com mais
força. [...] Sei apenas que, sem ti, me sinto mal, não apenasfora de
mim, mas também dentro de mim mesmo, e que toda a abundância,
que não é o meu Deus, é para mim indigência”.6
Por aí percebem-se pontos de intersecção entre Agostinho e
a Devotio Moderna, cujo fundamento está na busca da interioridade.
Caminho espiritual, itinerário, viagem. Enfim, tudo convida
à devoção, entendida como atitude existencial – interrogante,
problematizadora – do que vai pelo coração do homem. São desvios,
desvãos desse mundo que anda precisando mais de ‘imitações’ do
que de simulacros.
Sílvia Maria de Contaldo, professora do Instituto Santo Tomás de
Aquino.
A INFLUÊNCIA DA “IMITAÇÃO DE CRISTO” EM INÁCIO DE LOYOLA
5 “et ideo plerumque in sermone copiosa este egestas humanae intellegentiae, quia plus
loquitur inquisito quam inuentio et longior est petitio quam impetratio” (Conf. XII, i, 1).
6 “animalis autem homo” tamquam ‘paruulus in Christo’ lactisque potator, donec roboretur
ad solidum cibum et aciem firmet ad solis aspectum, non habeat desertam noctem suam,
sed luce lunae stellarumque contentus sit” (Conf. XIII, xviii, 23)
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
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Apresentação
E NA ESPIRITUALIDADE INACIANA, NO CONTEXTO DA DEVOTIO
MODERNA 7
1 INTRODUÇÃO
Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, teve uma
bela e interessante história de conversão. Ferido numa batalha, no
século XVI, viu-se em circunstâncias propícias ao encontro com Jesus,
experiência que lhe proporcionou a transformação radical de sua
vida. Ora, neste processo de descoberta do mistério de Cristo, além
dos evangelhos, Inácio valeu-se da literatura religiosa de sua época
e, entre os livros que o levaram a aprofundar a experiência de Cristo,
encontra lugar de destaque a “Imitação de Cristo”. Neste breve artigo
apresentamos algo da influência da “Imitação” em sua conversão e na
elaboração de dois documentos fundamentais para a Ordem religiosa
fundada pelo convertido de Loyola: o livro dos Exercícios Espirituais e
as Constituições da Companhia de Jesus.
2 CONVERSÃO DE INÁCIO DE LOYOLA
Após ter sido atingido na perna direita por ocasião do cerco
de Pamplona, cidade atacada pelo exército francês no dia 20 de maio
de 1521 − há exatos 493 anos! −, Íñigo8 López de Loyola (1491-1556)
é levado ao castelo de sua família para convalescença. (CARDOSO,
1987, v. 2). Entre agosto e setembro de 1521, tendo pedido a sua
cunhada, Madalena de Araoz, romances de cavalaria para passar o
tempo, consegue dela apenas livros piedosos. Destes, sobretudo a
partir de outubro a dezembro de 1521, Inácio se interessa por dois,
a saber: a Vita Christi (de Ludolfo de Saxônia, o Cartuxo, escrita no
séc. XIV) e o Flos sanctorum (“Legenda áurea”, de Tiago de Voragine
O.P., escrita no séc. XIII). A partir da leitura desses dois livros e de
pensamentos que lhe vêm durante a convalescença no castelo de
Loyola, Inácio experimenta o que, mais tarde, ele próprio chamará de
“discernimento dos espíritos”. Quando imaginava a vida de Cristo e
dos santos, ele experimentava uma alegria que tendia a permanecer.
7 Intervenção por ocasião do lançamento da obra de (MATOS, 2014).
8 Posteriormente, Inácio adotará a grafia latina de seu nome: Ignatius
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
Apresentação
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Porém, quando pensava na glória do mundo, no que poderia
conquistar, ocorria-lhe uma alegria fugaz. Todavia, é algo ainda muito
intuitivo, primitivo, que algum tempo depois será sistematizado no
livro dos Exercícios Espirituais segundo a forma das duas séries de
regras para o discernimento dos espíritos9 .
Nesta fase de convalescença, Inácio adquire o hábito de
elaborar o seu próprio rapiarium: copia frases dos evangelhos e dos
livros piedosos preferidos (Vita Christi e Flos sanctorum), bem como
anotações das experiências provocadas pelos espíritos que agitavam
a sua alma, a saber, as famosas “moções” espirituais. (CARDOSO,
1987, p. 11). Mediante este procedimento, Inácio se mostra homem
típico da Devotio Moderna: elabora um rapiarium e se interessa pelos
movimentos internos ao coração humano.
Em fins de março de 1522, chega a Montserrat; a caminho
dessa localidade, faz voto de castidade. No dia 25 de março de 1522,
pela manhã, Inácio dirige-se a Manresa, lugar em que levará vida
de intensa oração e penitência. Ali, por volta de agosto-setembro
de 1522, viverá a experiência espiritual fundante da assim chamada
“ilustração do Cardoner”: “Indo assim em suas devoções, assentouse um pouco com o rosto para o rio [Cardoner], o qual ficava bem em
baixo. Estando ali assentado, começaram a se lhe abrir os olhos do
entendimento. Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava
muitas verdades, tanto em assunto de espírito, como de fé e letras”10
. (CARSOSO, 1987, p. 30).
Em Manresa, Inácio conhece a “Imitação de Cristo”, certamente
presente de seu confessor e diretor espiritual, o beneditino João de
Chanon. Segundo seus biógrafos, a partir de então, dois livros sempre
o acompanhariam: os Evangelhos e a “Imitação de Cristo”. Como
primeiro Superior Geral da Companhia de Jesus, a partir de 19 de abril
de 1541, esses dois volumes sempre estiveram sobre a sua mesa de
trabalho. A “Imitação de Cristo”, à qual Inácio se referia familiarmente
como o Gersonzito (porque então se atribuía a autoria do livro a João
Gerson, chanceler de Paris, falecido no ano de 1429), recebeu deleum
título elogioso: “a perdiz dos escritos espirituais”. (FERNÁNDEZ
9 Cf. Exercícios Espirituais 313-327 [1ª Semana]; Exercícios Espirituais 328-336 [2ª Semana].
10 Inácio de Loyola experimenta, neste sentido, algo muito diverso da experiência mística
de Agostinho, a saber, a “visão de Óstia”, no ano de 387: cf. Confissões, livro IX, x, 23-25.
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Apresentação
ZAPICO; DALMASES, 1960, p. 431). Para o convertido de Loyola,
tratava-se da mais fina iguaria servida pelos autores espirituais.
A propósito de sua predileção pela “Imitação de Cristo”,
mencionem-se dois testemunhos do Pe. Luís Gonçalves da Câmara,
jesuíta português, muito próximo a Santo Inácio:
[Inácio, na noite de 29 de janeiro de 1555,] disse também que
em Manresa havia lido primeiro o Gersonzito, e que já nunca
mais havia querido ler outro livro de devoção; e o recomendava
a todos com os quais se relacionava, e lia cada dia um capítulo
por ordem; e depois de comer ou em outras horas o abria sem
nenhuma ordem, e sempre encontrava o que tinha no coração
e aquilo de que tinha necessidade. (FERNÁNDEZ ZAPICO;
DALMASES, 1943, p. 584).
Foi Nosso Pai [Santo Inácio] tão amigo deste livro [a “Imitação
de Cristo”] que, quando o conheci em Roma, parecia-me ver e achar
escrito em sua conversação tudo o que nele havia lido. Suas palavras,
movimentos e todas as demais obras eram para ele um contínuo
exercício e para quem com ele se relacionava uma lição viva de
Gerson. E disto posso eu dar bom testemunho, por ser naquele tempo
muito afeiçoado a este livro e conservar uma grande recordação dele
(FERNÁNDEZ ZAPICO; DALMASES, 1943, p. 659).
Em 1523, Inácio faz uma peregrinação à Terra Santa, mais
precisamente a Jerusalém, para conhecer os lugares concretos em
que Jesus viveu e morreu. Ele se interessa, assim, pela vida humana
de Jesus, atitude típica da Devotio Moderna.
Em Barcelona (1525-1526), Alcalá e Salamanca (1526-1527),
Paris (1528-1535) e Veneza (1536), Inácio dedica-se aos estudos em
vista do apostolado, para o qual se sente chamado pelo Senhor. Em
Paris, no Colégio de Monte Agudo (Montaigu), conhece os “Irmãos
da Vida Comum”, uma experiência religiosa nascida no contexto
renovador da Devotio Moderna 11.
Em 1537, Inácio tem uma forte experiência espiritual
nalocalidade de La Storta, a pouco mais de dezesseis quilômetros
11 (Cf. CARDOSO, 1987), Itaici – Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 11, p. 53, 1993. Ver
também (MATOS, 2014, p. 43-46).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
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de Roma. “Estando um dia, algumas milhas antes de chegar a Roma,
numa igreja, fazendo oração, sentiu tal mudança em sua alma e viu
tão claramente que Deus Pai o punha com Cristo seu Filho, que não
teria ânimo para duvidar disto, de que o Pai o punha com seu Filho.”
(CARDOSO, 1987, p. 96). Para o convertido de Loyola, esta experiência
mística representou um vigoroso impulso para seguir a Cristo.
A certa altura de sua experiência de fé, Inácio passa a propor a
diversas pessoas um método de oração ao modo de itinerário pessoal
de busca da vontade de Deus, método este experimentado por ele
mesmo, e que posteriormente se materializaria no livro dos Exercícios
Espirituais. E mais: pratica largamente a conversa espiritual (collatio),
outro indício de sua sintonia com a Devotio Moderna. Por exemplo,
em 23 de outubro de 1550, o duque de Gandia hospeda-se em uma
das casas da Companhia de Jesus, em Roma, onde tem colóquios
espirituais com o Fundador da ordem religiosa.
3 FUNDAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS
O século XVI é marcado pelo surgimento de uma nova proposta
de vida consagrada − a dos clérigos regulares −, que se coloca na
sequência das três grandes formas de vida religiosa: a monástica a
canônica regular e a mendicante. Osteatinos, os barnabitas e os
jesuítas, por exemplo, cada grupo a seu modo, encarnarão este novo
espírito, caracterizado por:
sacerdotes dedicados à cura de almas que abandonavam os
usos dos monges e frades incompatíveis com a pastoral, mas
que abraçavam a vida comum como meio de santificação
pessoal e de assegurar maior eficácia ao apostolado. Não
usavam hábito próprio, renunciavam ao coro, dedicavam-se
prevalentemente à educação juvenil e tinham uma estrutura
mais centralizada. (MONDONI, 2014, p. 69).
No dia 15 agosto de 1534, em Montmartre, Inácio e os nove
primeiros companheiros – grupo que iniciará o processo que será
consumado com o reconhecimento pontifício da Companhia de Jesus,
em 1540 – pronunciam um voto. “Naquele voto prometeram viver em
pobreza e realizar uma peregrinação a Jerusalém. Se, apósesperar um
ano, a peregrinação resultasse impossível, se ofereceriam ao Papa,
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Apresentação
para que ele os enviasse aonde julgasse mais conveniente.” (O´NEILL,
2001, p. 876, v.1).
4 CONCEPÇÃO DO LIVRO DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
Com grande probabilidade, da leitura da “Imitação de Cristo”
ficaram “ideias e até frases de que se ressentem os Exercícios
Espirituais, as Cartas e as Constituições da Companhia de Jesus.”
(CARDOSO, 1987, p. 51).
O livro dos Exercícios Espirituais (EE) consiste num instrumento
a ser usado não por aquele que faz ou recebe os mesmos Exercícios
– o exercitante –, mas por aquele que dá os EE – o “pregador”. Foi
concebido para um período razoavelmente longo (convencionalmente,
um mês), e dividido em quatro etapas – as chamadas “semanas”: a
primeira tem caráter penitencial (meditação e consideração do pecado
dos anjos [EE 50], do pecado de Adão e Eva [EE 51] e do pecado “de
cada um dos que, por um pecado mortal, foram para o inferno…”
[EE 52]); a segunda consiste na contemplação dos mistérios da vida
pública de Jesus; a terceira desenvolve-se na forma de contemplação
da Paixão do Senhor; e a quarta propõe ao exercitante a experiência
da Ressurreição de Cristo.
Na segunda semana dos Exercícios inacianos é que se
verificam mais fortemente os sinais de influência da Devotio Moderna,
particularmente da “Imitação de Cristo”, em Inácio de Loyola. Nesta
semana, a graça a ser instantemente pedida pelo exercitante é o
“conhecimento interno do Senhor […] para que eu mais o ame e o
siga” (EE 104). Inácio propõe ao exercitante que ele se imagine nas
situações vividas pelo Jesus histórico, contemple calmamente o
Senhor a partir destas representações imaginárias e, na sequência
dessa experiência, estabeleça um colóquio com Jesus, com Deus Pai, ou
ainda, dependendo da cena contemplada, com a Virgem Maria. Como
não ver aqui a dinâmica da lectio divina, tão cara à Devotio Moderna:
meditatio (leitura do texto evangélico), contemplatio (contemplação
da cena evangélica, fazendo-se uso da memória e da imaginação)
e oratio (colóquio final com Jesus, Deus Pai, ou Maria)? E ainda, a
importância dada ao Jesus histórico, envolvido nas situações descritas
sobretudo pelos evangelhos sinóticos, é outro traço daespiritualidade
típica da Devotio Moderna. Não por acaso, numa das notas práticas
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Apresentação
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dos Exercícios Espirituais recomenda Inácio: “Para a segunda semana
e as seguintes, é muito útil ler alguns trechos dos livros da ‘Imitação
de Cristo’ ou dos Evangelhos e de vidas de santos.” (EE 100).
Para Inácio, não basta, da parte do exercitante, o conhecimento
superficial, “biográfico”, de Jesus. É necessário aprofundar a
experiência de fé no Senhor, a ponto de se atingir o conhecimento
interno de Jesus: conhecimento íntimo, experiencial, sapiencial, do
Senhor. Ora, este encontro com o Senhor Jesus nas profundezas do
coração humano proporcionará ao exercitante condições de seguir o
mesmo Senhor em sua páscoa para o Pai: paixão, morte e ressurreição
(terceira e quarta semanas).
4.1 A imitação de Cristo nos Exercícios Espirituais
Apresentemos, agora, algumas passagens do livro dos
Exercícios Espirituais em que, explicitamente, Inácio de Loyola
recomenda ao exercitante a imitação de Cristo:
Eterno Senhor de todas as coisas, […] quero e desejo […]
imitar-vos em suportar todas as injúrias e toda ignomínia e
toda a pobreza, […] (EE 98: “O apelo do rei temporal ajuda a
contemplar a vida do Rei Eterno”).
Por fim, se fará um colóquio […] para seguir e imitar melhor o
Senhor Nosso […] (EE 109: Contemplação da Encarnação).
Pedir […] graça para imitar [o verdadeiro Chefe] (EE 139:
“Meditação de Duas Bandeiras”, 3º preâmbulo).
[Pedir a graça de] passar opróbrios e injúrias, para neles
mais imitar [o Senhor Jesus] (EE 147: “Meditação de Duas
Bandeiras”, colóquio).
[…] para imitar e assemelhar-me mais efetivamente a Cristo
Nosso Senhor, […] (EE 167: Três modos de humildade).
[…] pedindo que o Senhor Nosso o queira escolher para esta
terceira maior e melhor humildade, para mais o imitar e servir,
[…] (EE 168) .12
Segundo John O’Malley (2002, p. 134), historiador jesuíta
estadunidense, “Inácio provavelmente derivou primeiro a
categoriaconsolação da Imitação de Cristo, onde é quase um motivo
condutor.”
12 Em todas as citações dos Exercícios Espirituais, o itálico é nosso.
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Apresentação
4.2 A imitação de Cristo nas Constituições da Companhia de Jesus
Na série de motivações a serem observadas naqueles que
se apresentam como candidatos à Companhia de Jesus, Inácio de
Loyola não deixa de indicar, entre elas, a vontade de imitar a Cristo:
“[…] porque desejam parecer-se de algum modo com nosso Criador
e Senhor Jesus Cristo, e imitá-lo vestindo-se do seu traje e usando
as suas insígnias, […] Ele deu-nos o exemplo para que, em todas as
coisas possíveis, com a sua graça, O queiramos imitar e seguir, pois é o
caminho que leva os homens à vida.” (Const. 101).
4.3 O livro da “Imitação de Cristo” na história da Companhia de
Jesus
Vários jesuítas, ao longo da história, traduziram, editaram e
estudaram o livro da “Imitação de Cristo”, discutindo, por exemplo, a
autoria da obra. Assim sendo, passamos a enumerar alguns membros
da Companhia de Jesus que contribuíram para a recepção dessa obra
ao longo dos séculos.
Baltazar HOSTOUNSKÝ (ou HOSTOVINUS), Boêmia 15341600, que foi tradutor da obra. Aquiles GAGLIARDI13 , Itália,
1539-1607, que afirmou: “É tão grande a plenitude de disciplina
do homem interior que nada se pode esperar de melhor, tão
grande a abundância de devoção derivada da sua leitura que
parece a fonte do Paraíso Terrestre a fecundar as almas não
só dos incipientes e proficientes, mas ainda dos perfeitos,
exercitados no sentido de toda sabedoria…” (CHIFFETTI
apud CARDOSO, 1987, p. 52). Inácio CHOMÉ, França 1696
− Bolívia 1768, foi tradutor da “Imitação de Cristo”.JozefHippoliet GHESQUIÈRE, Bélgica 1731 − Alemanha 1802,
discutiu a autoria da obra. Vítor BECKER, Holanda 1841-1898,
também discutiu a autoria da “Imitação de Cristo”. Leonel
FRANCA, Brasil 1893-1948, foi tradutor do livro, e afirmou:
“Nenhum livro, puramente humano, atingiu a universalidade
de influência da Imitação de Cristo. Como nenhum outro,
venceu a ação do tempo e o fastio dos homens. Há cerca de
cinco séculos que nas suas páginas singelas e profundas se
13 Sobre Gagliardi (FRENÁNDEZ ZAPICO, DALMASES, 2001, v. 2, p. 1547-1548).
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alimenta a piedade das gerações cristãs. E todas encontram
aí a nutrição espiritual que lhes tonifica a vida interior. […] No
conhecimento do coração humano [o autor da Imitação de
Cristo] desceu a estas profundezas que atingem a natureza na
sua própria essência e, portanto, numa universalidade que se
sobrepõe às contingências passageiras de uma época, de uma
raça ou de uma cultura. […] A Imitação de Cristo já não tem data
nem pátria; é um patrimônio da humanidade!”14 . (IMITAÇÃO,
1953, p. 9-10).
Karl Rahner (1904-1984), em 1964, publicou um ensaio sobre
a imitação de Cristo, não sobre o livro propriamente, mas a respeito
do seguimento de Cristo no contexto dos Exercícios Espirituais.
15
Apresentamos a seguir alguns trechos deste sugestivo texto do
teólogo jesuíta alemão.
A verdadeira imitação de Cristo na convivência com ele consiste
no reproduzir a ordem interna da sua vida em uma situação
sempre nova e diversa, de pessoa a pessoa. Somente quando
procuramos viver realmente a sua vida e não apenas multiplicála, assumindo em nós somente pálidas deduções, a imitação
de Cristo é digna de ser vivida, encontra a complacência de
Deus e tem o peso de poder conquistar a eternidade com
o Filho do homem que foi elevado à destra do Pai. E esta é
autêntica imitação de Cristo, porque o reviver em tal sentido
a vida de Jesus salva a sua ordem interna, uma vez que se dá
no seu Espírito, na força do Pneuma divino. (RAHNER, 2006,
p. 120). Para reviver a vida de Jesus numa situação sempre
nova e sempre minha é necessário que eu descubra a forma
a cada vez válida para mim. Como não se pode deduzir uma
situação histórica de leis históricas gerais, assim não se pode
deduzir a minha forma de imitação do esquema geral, que,
afinal de contas, existe. Tal busca é sempre decisão individual,
irrenunciável, enquanto é a autorresponsabilidade diante
daquilo que ninguém, nem um tratado de moral, nem um padre
espiritual pode dizer a outra pessoa; é um momento essencial
na imitação de Cristo. Portanto, devemos correr o risco da
14 Este prefácio de Leonel Franca à tradução da “Imitação de Cristo” traz a data de 18 de
janeiro de 1944..
15 Ensaio recentemente editado: “Zur Nachfolge Christi.” In: (RAHNER, 2006, p. 116-124).
Dele há uma versão em italiano: “Sull’imitazione di Cristo.” In: (RAHNER, 1967, p. 175-192).
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solidão em tal decisão existencial e não devemos procurar (o
que frequentemente se esconde por detrás da busca de um
confessor ideal) transferir esta responsabilidade para uma
instância exterior. (RAHNER, 2006, p. 120). Autodecisão e
subordinação não são duas realidades antitéticas na imitação
de Cristo: no fundo ambas representam os elementos
inseparáveis de uma dedicação ao Senhor. Contudo, a relação
entre os dois elementos é polar e dialética. Não é sempre fácil
encontrar uma harmonia entre eles. A tensão entre ambos
é algo típico da existência cristã. Cristo quer uma imitação
radicalmente obediente, mas não quer (o que seria mais
cômodo) que nos limitemos a caminhar atrás dele com passo
pesado. Cada um de nós, em nome de Cristo, tem uma missão
a cumprir, missão da qual ninguém pode se eximir. Um e outro
elemento, a obediência à lei de Cristo universalmente válida e
a coragem da marca pessoal, que por si representa somente
uma forma mais radical de obediência, derivam na mesma
medida da natureza da imitação de Cristo. A dificuldade está
na presença simultânea dos dois elementos, mas é também
esta a grandeza da nossa vida cristã. (RAHNER, 2006, p. 121).
Não devemos ser homens plenos de ressentimentos, não
devemos nos comportar como certos ‘ascetas’ que tornam
fácil a renúncia ao mundo tornando mau aquilo que devem
abandonar. Não devemos ser fanáticos, mas devemos imitar
Cristo com serenidade e alegria. (RAHNER, 2006, p. 123). O
sacerdote, expoente oficial da Igreja, não deve considerá-la
como a Igreja do poder, do progresso civil, da instituição de
um mundo feliz nesta terra, mas como continuação da vida de
Jesus de Nazaré que, por si mesmo, fala só de serviço ao Reino
de Deus, de obediência ao Pai, de carregar a cruz e que, enfim,
não se interessa por nada que não sejam Deus e a salvação
eterna das almas. (RAHNER, 2006, p. 124).
É sugestivo o fato de que a “Imitação de Cristo” pertencia ao
rol de livros recomendados para a leitura nos refeitórios das primeiras
casas da Companhia de Jesus. (O´MALLEY, 2002, p. 548).
4.4 Releituras jesuíticas do livro da “Imitação de Cristo”
Apresentamos a seguir um quadro de correspondência entre
algumas passagens da “Imitação de Cristo” e escritos fundamentais e
atitudes a serem vividas pelos membros da Companhia de Jesus.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
Apresentação
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Com isto, damos alguns exemplos de ensinamentos da “Imitação de
Cristo” que, julgamos nós, foram recebidos pela tradição jesuítica.
“Imitação de Cristo”
“Tradição Jesuíta”
“[…] não são palavras elevadas que fazem o homem
justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a
Deus. Prefiro sentir a contrição dentro de minha alma,
a saber defini-la. Se soubesses de cor toda a Bíblia e as
sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo
isso sem a caridade e a graça de Deus?” (livro 1, capítulo
1,parágrafo 3).
“[…] porque não o muito
saber sacia e satisfaz a alma,
mas o sentir e saborear as
coisas internamente” (EE2).
“Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura” (1,1,4).
“[Inácio] notou esta diferença:
quando pensava nos assuntos do mundo, tinha muito
prazer; mas, quando, depois
de cansado, os deixava, achava-se seco e descontente. Ao
contrário, quando pensava
em ir a Jerusalém descalço,
em não comer senão verduras, em imitar todos os maiores rigores que via nos santos,
não se consolava só quando
se detinha em tais pensamentos, mas ainda, depois de
os deixar, ficava contente e
alegre” (Autobiografia, 8).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
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Apresentação
“[…] porque não o muito saber sacia e satisfaz a alma,
“As muitas palavras
não satisfazem à alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2).
mas uma palavra boa
refrigera o espírito e
uma consciência pura
inspira grande confiança em Deus” (1,2,2).
“Se queres saber e
aprender coisa útil,
deseja ser desconhecido e tido por nada”
(1,2,3).
“[…] prefiro ser tido como néscio e louco por Cristo
[…]”(EE 167:3º modo de humildade).
“Enfastia-me, muita
“[…] porque não o muito saber sacia e satisfaz a alma,
vez, ler e ouvir tantas
mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2).
coisas; pois em vós
acho tudo quanto
quero e desejo” (1,3,2).
“Que mais te impede
e perturba do que os
afetos imortificados
do teu coração? […]
Que mais rude combate haverá do que
procurar vencer-se a si
mesmo?” (1,3,3).
Título do livro dos EE: “Exercícios Espirituais para vencer
a si mesmo e ordenar sua vida, sem determinar-se por
alguma afeição desordenada” (EE 21).
“[…] mais facilmente
acreditamos e
dizemos dos outros
o mal que o bem, tal
é a nossa fraqueza”
(1,4,1).
“Para que tanto aquele que dá os exercícios espirituais
como o exercitante mais se ajudem e aproveitem, há
de se pressupor que todo bom cristão deve estar mais
pronto a salvar a proposição do próximo do que a
condená-la […]” (EE 22).
“Toma conselho com
um varão sábio e consciencioso, e procura
antes ser instruído
por outrem, melhor
que tu, que seguir
teu próprio parecer”
(1,4,2).
Para que alcance bons frutos no retiro inaciano, o exercitante deve ser dócil a quem dá os Exercícios.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
Apresentação
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“Não confies em ti mesmo, mas põe em
Deus tua esperança. Fazes de tua parte
o que puderes, e Deus ajudará tua boa
vontade” (1,7,1).
“Esta seja a primeira regra das coisas a
serem feitas: Confiar em Deus como se o
sucesso dependesse totalmente de ti, e
não d’Ele; agir, pois, como se Deus fizesse
tudo, e tu, nada” (in Thesaurus Spiritualis SocietatisIesu, Romae: Apud Curiam Praepositi
Generalis, 1953, p. 625).
“Ajudam muito […] ao aproveitamento
espiritual os devotos colóquios sobre coisas
espirituais, mormente quando se associam
em Deus pessoas que pensam e sentem do
mesmo modo” (1,10,2).
Santo Inácio prezava a conversa espiritual,
sobre temas religiosos. Já no início de sua
conversão se dedicava a esta prática, à qual
dava caráter de apostolado
“Quem julga os demais perde o trabalho,
quase sempre se engana e facilmente peca;
mas, examinando-se e julgando-se a si
mesmo, trabalha sempre com proveito”
(1,14,1).
No livro dos EE, propõem-se o exame
particular (EE 24-31) e o exame geral de
consciência (EE 32-43).
“De manhã toma resoluções, e à noite
Prática cotidiana dos exames ao final da
examina tuas ações: como te houveste hoje manhã e ao final da noite.
em palavras, obras e pensamentos, porque
nisso, talvez não raro, tenhas ofendido a
Deus e ao próximo” (1,19,4).
5 CONCLUSÃO
Embora o livro da “Imitação de Cristo” tenha sido escrito e
divulgado em tempos já muito distantes dos nossos, não se pode
negar o seu valor como rico e sugestivo subsídio espiritual para o
homem de hoje. Em tempos de comunicação instantânea, que nos
leva irremediavelmente à dispersão e à superficialidade, textos como
a “Imitação de Cristo” podem nos levar a buscar uma experiência
espiritual mais rica e consistente, que induz o coração humano a se
abrir à força criativa do Espírito de Cristo. Pensamos que, nesta direção,
têm muito a contribuir os testemunhos dos santos, entre os quais se
encontra Inácio de Loyola. Mais do que procurar o sentido profundo
da “Imitação de Cristo” em suas páginas, talvez o mais proveitoso
seja reconhecer a influência deste singelo e despretensioso livro nos
autores cristãos de diversas épocas e escolas espirituais, de tal modo
a se verificar a liberdade e a criatividade do Espírito do Senhor que
“sopra onde quer” (Jo 3,8).
Prof. Paulo César Barros SJ, leciona na Faculdade Jesuíta de
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
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Apresentação
REFERÊNCIAS
BOFF, Clodovis. A regra de Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 2009.
CARDOSO, Armando (Org.). Autobiografia de Inácio de Loyola. 3.
ed. São Paulo: Loyola, 1987. v. 2.
FERNÁNDEZ ZAPICO, Dionysius; DALMASES, Candidus de. Fontes
Narrativide S. Ignatio de Loyola et de Societatis Iesu initiis:
narrationes scriptae ab anno 1574 ad initium saeculi XVII. Roma:
Monumenta Historica Societatis Iesu, 1960.
IMITAÇÃO de Cristo. 6. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1953. (Obras completas
do Pe. Leonel Franca, 14).
MATOS, Henrique Cristiano José. Imitação de Cristo: caminho de
crescimento espiritual: contexto histórico, inspiração e atualidade.
Belo Horizonte: O Lutador, 2014.
MONDONI, Danilo. O cristianismo na Idade Média. São Paulo:
Loyola, 2014.
O’MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. São Leopoldo: Unisinos,
2002.
O´NEILL, Charles E. Diccionario histórico de la Compañía de Jesús:
biográfico-temático. Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 2001. v.
1.
RAHNER, Karl. Ignatianischer Geist: Schriften zu den Exerzitien
und zur Spiritualitat des Ordensgrunders. Freiburg: Herder, 2006.
(Samtliche Werke, 13).
RAHNER, Karl. Elevazioni sugli Esercizi di S. Ignazio. Roma: Paoline,
1967.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014.
RECENSÕES
Filosofia e Teologia (FAJE).
RECENSÕES
Recensões
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MATOS, Henrique Cristiano José. Preso estou, livre serei. Pastoral
Carcerária: fundamentos, inspiração, atuação. Belo Horizonte: O
Lutador, 2014. 164p.
Inicio minha recensão citando as palavras do apresentador do
livro, Durval Ângelo: “A presente publicação vem preencher uma lacuna
sentida há muito por todas e todos os que se dedicam à nobre missão
de acompanhar as pessoas em privação de liberdade. Faltava-nos uma
referência que conjugasse três elementos essenciais: primeiro, uma
análise crítica e não superficial da realidade do sistema prisional, das
condições a que são submetidas as pessoas que nele estão inseridas
e suas consequências. Segundo, que retomasse os principais pilares
evangélicos eclesiais e humanitários que sustentam o trabalho com o
encarcerado e, por fim, que oferecesse orientações práticas de como
desenvolver essa tarefa no desafiante cotidiano caótico do sistema
prisional brasileiro.” (MATOS, 2014, p.11). Outra citação, a de Dom José
Carlos de Souza Campos, que se apresenta como Bispo de Divinópolis,
MG, “e (Bispo) também dos que se encontram atrás das grades”: “As
palavras de Jesus, em Mt 25,36, tornam ‘os que estão na cadeia’, sem
nenhuma especificação de conduta ou estado, em ‘sacramentos’ de
Cristo, isto é, como lugares de especial presença do Senhor. [...] Como
o Senhor quis estar presente no pão e no vinho, também escondese naqueles que habitam a escuridão e a insalubridade das celas.”
(MATOS, 2014, p.13).
Bela, a capa. Título expressivo, com letras em branco – “Preso
estou, livre serei” – sobre fundo azul escuro, no centro da capa um
calabouço iluminado pela Cruz gloriosa, foi uma alegria muito grande
ter este livro em mãos. Isto, pouco depois de haver reencontrado o
autor, Frater Henrique, em julho p.p., todo empolgado com o trabalho
iniciado em novembro de 2009, portanto há menos de cinco anos,
no Complexo Prisional de São Joaquim de Bicas, na grande Belo
Horizonte. Frater Henrique é holandês, deve ter os seus 70 anos, veio
bastante jovem para o Brasil, aqui inculturou-se pelo viés do estudo da
História, primeiro a do Brasil, depois a da Igreja, e tornou-se notável
professor universitário e escritor nessas disciplinas. Em seguida,
tendo-se aposentado das aulas e dedicando-se a escrever, descobriu
agora, há pouco, que a Misericórdia, carisma de sua Congregação,
concretiza-se e encarna-se, de modo especial, na pastoral carcerária!
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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Recensões
E este livro é fruto dessa descoberta... que me faz pensar na
frase de Agostinho: “Tarde te amei, Beleza sempre nova, tarde te
amei”... mas ainda em tempo!
Depois de recordar os primeiros passos, as primeiras iniciativas,
inclusive a instalação de um “pequeno Centro de Atendimento ao
Preso” (APC, Apoio à Pastoral Carcerária) e a formação de duas
equipes de visita etc, o autor assim apresenta as “três partes” do seu
livro: “o primeiro capítulo oferece uma visão da ‘realidade da prisão’,
contextualizando-a; o segundo aborda ‘os fundamentos’ de uma
pastoral carcerária; o terceiro oferece uma explanação da ‘estrutura’ e
do ‘desenvolvimento’ do serviço da Igreja junto à população prisional.”
(MATOS, 2014, p. 23).
Quanto à “realidade da prisão”, título do primeiro capítulo,
o autor começa recordando as barbaridades ocorridas no Complexo
Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, no final de
2013: “quatorze decapitados, entre 59 assassinados de janeiro até
perto do Natal”... seguindo-se, nos inícios deste ano, o contraste
“entre o tratamento reservado aos ‘mensaleiros’ condenados e os
outros 10.326 ‘presos comuns’ da Papuda, em Brasília”, “revelando,
mais uma vez, que a justiça não costuma ser ‘cega’ como retratam
suas estátuas nos tribunais: frequentemente ela enxerga de forma
discriminatória pessoas de condições diferentes...” (MATOS, 2014, p.
27-29). Menciona a atual crise do matrimônio e da família, com indícios
tão fortes no sistema prisional, “muitos presos provindo de lares
desfeitos ou de pais que nunca tiveram vínculos de amor duradouro,
frutos de famílias esfaceladas pela migração, pelo alcoolismo do pai
e/ou pela gravidez de adolescentes sem condições de serem mães,
pelo desemprego, pelas drogas...” (MATOS, 2014, p. 30-31). O Papa
Francisco fala de uma ‘globalização da indiferença’, que nos torna
incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, onde
“não há mais espaço para os outros, já não entram os pobres, já não
ouvimos a voz de Deus, já não gozamos da doce alegria do seu amor,
nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem.” (FRANCISCO, EG, 2013, n.
2, p. 33).
Quanto ao “atual contexto sociopolítico e cultural”, escreve o
autor: “Encontramo-nos envolvidos por uma ideologia de mercado
notoriamente pragmática, competitiva, consumista e individualista
.Lucro e especulação financeira funcionam como imperativo
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
Recensões
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inquestionáveis. Divinizam-se eficácia e produtividade, fazendo-se
deles parâmetros quase absolutos, em detrimento da pessoa humana
e dos direitos inalienáveis da Natureza e dos outros seres vivos”
(MATOS, 2014, p. 36-37). Nesse contexto encontra-se o flagelo das
drogas, uma das causas maiores, atualmente, da superlotação das
nossas prisões. Sobre esse flagelo, o autor cita um texto importante
de João Paulo II, na Exortação Ecclesia in America, de 1999: “O
flagelo das drogas não seria, em essência, o mal a ser combatido ou,
pelo menos, o único a ser combatido. Ele seria muito mais o efeito
de outro mal, maior e mais grave, a perda do sentido da vida. Daí a
ênfase necessária na recuperação e prática dos valores básicos da
virtude cristã e a denúncia dos comportamentos e atitudes contrários
à preservação da vida, à solidariedade e amor ao próximo, à justiça
etc. É necessário denunciar, com coragem e força, o hedonismo, o
materialismo e aquele estilo de vida que facilmente induzem à droga.”
(MATOS, 2014, p. 43).
A seguir, o autor fala dos “objetivos aduzidos para ‘justificar’
a privação da liberdade”, objetivos reduzíveis a três: a punição
retributiva, a prevenção de novas infrações, e a regeneração do
condenado. E comenta: “Para quem tem maior conhecimento da
realidade prisional, não é segredo que nenhuma dessas finalidades
é atingida na maioria dos casos. A prisão deveria ter como meta
primordial não a punição nem a intimidação, mas a reabilitação, a
recuperação do infrator.” (MATOS, 2014, p. 43-44).Padre Alfonso
Pastore, grande apóstolo dos presos, falecido em 2000, assim
escreve: “Os cidadãos presos, detidos, encarcerados, falharam,
sim – senão todos, a maioria – mas nós, a sociedade e o governo,
também falhamos contra eles antes do crime e, muito mais, após o
crime. Antes, por todas as causas sociopolíticas e econômicas erradas
e injustas... Depois, por não oferecermos, na quase totalidade das
cadeias, condições de ressocialização e reeducação.” (MATOS, 2014,
p. 44).
Bom número de páginas é dedicado à descrição da “realidade
vivida atrás das grades”: inteira dependência dos outros, atitude
básica de submissão, perda da privacidade, solidão, sujeição às “regras
da cadeia”, carência afetiva, prisões provisórias que se eternizam,
revista vexatória às esposas e mães, deficiente assistência à saúde,
dificuldade em oferecer estudo e trabalho... Infelizmente, como
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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Recensões
se expressa Julieta Lemgruber, ex-Diretora da Administração Prisional
do Rio de Janeiro,“a morosidade da justiça e a burocracia excessiva
contribuem para reduzir vidas humanas a simples peças processuais!
Essa máquina não funciona e é perversa: joga para dentro com muita
facilidade, e tem um funil estreitíssimo do outro lado.” Quanto à
ociosidade no sistema, o autor a qualifica de “maldita,” e conclui, após
várias considerações:
“O trabalho fortifica e regenera, enquanto a ociosidade debilita e
avilta. Em parte alguma, como na prisão, evidencia-se a incontestável
verdade desses princípios.” (MATOS, 2014, p. 55-58).
Quais, então, as “perspectivas de recuperação ou
ressocialização”, num sistema “que, na realidade, fabrica delinquentes
em série, tornando-se um viveiro de ‘profissionais do crime’ pois
estrutura-os no seu ambiente fechado, os solidariza, hierarquiza
e predispõe para futuras cumplicidades”? Pe. Bruno Trombetta,
durante mais de 30 anos coordenador da Pastoral Carcerária no Rio
de Janeiro, assim resume as “consequências negativas da forçada
reclusão”: o preso sofre um “processo de infantilização”, desenvolve
a irresponsabilidade e o complexo de inferioridade, e se torna uma
pessoa “marcadamente dependente.” Assim sendo, é “urgente
substituir a única pena de privação da liberdade por outras, como
trabalhos sociais de interesse coletivo, capazes de restabelecer a paz,
reconstruir a justiça e proporcionar o ressarcimento das vítimas.”
(MATOS, 2014, p. 60-63).
Uma forma alternativa de prisão é a que foi criada em São José
dos Campos, SP, em 1972, conhecida pela sigla APAC, “Associação de
Proteção e Assistência ao Condenado”, e que se tem desenvolvido
em Minas Gerais, inclusive em parceria com o Estado. “Seu método
é fundamentado na valorização humana, à luz do Evangelho e da
experiência de Deus, lidando com condenados nos três regimes
penitenciários – fechado, semiaberto e aberto – e acompanhando
também os que gozam de trabalho externo e os egressos...” Mas as
APACS, continua o autor, “são ainda uma exceção no sistema prisional.
Um privilégio de poucos.” Quanto ao sistema oficial, chegamos a
um beco aparentemente sem saída, como reconhece Juan Ernesto
Méndez, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU:
“A experiência demonstra que, quanto mais se constroem presídios,
mais eles se enchem.” A saída, porém, existe:
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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“O próprio apenado, mediante penas alternativas, deveria ser o
sujeito ativo do processo da sua reinserção na sociedade.” (MATOS,
2014, p. 64-67).
O segundo capítulo, intitulado “fundamentos da Pastoral
Carcerária”, começa expondo seu objetivo: “A PCr existe para prestar
um serviço à pessoa presa. Atua em nome da Igreja, a partir da
gratuidade da mensagem libertadora do Evangelho, tendo em vista
a integridade de quem se encontra privado de sua liberdade, e a sua
reintegração na sociedade.” A seguir, evoca o “modelo da ação pastoral
junto aos presos”, o Senhor Jesus, que se aproximou de nós “movido
pela misericórdia”. Esta, como compaixão evangélica, constando de
“três movimentos básicos: Ver, interiorizar, agir”, segundo o que o autor
expõe mais largamente no seu livro “No Movimento da Misericórdia.”1
Mais “A PCr quer colocar em prática, na realidade prisional, as lições
do Evangelho sobre nossas relações com o próximo. Ela parte da
convicção de que o preso representa a imagem viva de Deus e, por
isso, deve ser amado, ainda que seja inimigo, criminoso ou traidor (cf
Mt 5,43-48).” E ainda: “Estamos diante de uma das maiores surpresas
e aparentes paradoxos do Evangelho: como explicar que a ‘salvação’
é oferecida gratuitamente àquele que mereceria a ‘condenação’?”
(MATOS, 2014, p. 71-74).
Em Matos (2014, p.75), não gostei, no subtítulo, do adjetivo
“religiosas”, pela ambiguidade que esse termo carrega. Pelo conteúdo
que segue, ficaria melhor: “Referências bíblicas e eclesiais”. De fato,
o autor trata do “Jesus histórico, nosso irmão misericordioso” e de
“Maria de Nazaré, nossa Mãe compassiva”. A seguir, relembra algumas
“testemunhas na História da Igreja”, começando por alguns textos do
Novo Testamento. Quanto à História da Igreja, inclusive a partir do
fato de que, em tantas paróquias, verifica-se enorme dificuldade de
reconhecer que a PCr faz parte integrante da ação evangelizadora,
não concordo com a afirmação de que “nunca os encarcerados foram
esquecidos e menos ainda ignorados”. É verdade que a afirmação
seguinte relativiza esse “nunca”: “Sempre houve discípulos/as de
Cristo que se preocuparam diretamente com os presos em nome da
comunidade eclesial.” (MATOS, 2014. p. 80). Isto é, sempre
1 Cf. MATOS, 1996, p. 67-80.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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Recensões
houve “discípulos/as”, a saber, alguns... Na p. 81, senti falta, pelo menos
em notas de rodapé, das fontes documentais onde se encontram os
textos aludidos, inclusive o impressionante texto do Papa Nicolau
II, do séc. IX, contra a tortura para arrancar confissões. Dela,
entretanto, o autor diz que era prática corriqueira “naqueles tempos”:
evidentemente, não só “naqueles tempos”... nossas delegacias que
o digam! Quanto aos “Santos que atuaram na realidade prisional”,
estranhei que apareça em primeiro lugar um santo lendário, do séc. VI,
Leonardo de Noblac, sem qualquer referência documental... seguido
pela figura notável de S. Vicente de Paulo e por um texto atualíssimo
do jurista e chanceler inglês do séc. XVI, S. Tomás Moro. Lembrome aqui de S. Pedro Nolasco, fundador dos mercedários, votados
à libertação dos escravos dos sarracenos no séc. XIII; de São Pedro
Claver, jesuíta dedicado aos escravos negros em Cartagena, no séc.
XVII; de São José Cafasso, dedicado aos condenados em Turim, em
meados do séc. XIX... além das recentes figuras notáveis dedicadas à
PCr em nosso país, que não é o caso de nomear nesta recensão.
Muito úteis, no livro, as vinte páginas de citações dos
documentos papais sobre a PCr (MATOS, 2014, p. 85-105), começando
com os pronunciamentos de Pio XII, um “aos presos da Itália e de
todo mundo”, em 1951, e outro aos juristas, “sobre a ajuda cristã aos
encarcerados”, em 1957. Seguem as palavras paternas de João XXIII,
em plena oitava do Natal, poucas semanas após sua eleição, na visita
aos presos da penitenciária “Regina Caeli”, em Roma; a mesma prisão
foi visitada por Paulo VI, em 1964, com palavras igualmente cheias
de ternura. João Paulo II, na sua primeira vinda ao Brasil, visitou a
Penitenciária de Papuda, em Brasília, deixando ali bela mensagem. De
Bento XVI, o autor cita o extraordinário discurso aos presos do novo
Complexo Penitenciário de Rebibbia, em Roma, poucos dias antes do
Natal de 2011 (MATOS, 2014, p. 95-100). E comenta: “Se é verdade
que a civilização de um país pode ser medida pela condição de seus
cárceres, também é verdade que do calor das visitas aos institutos
penitenciários surge a humanidade de um pontificado” (p.95). Enfim,
do Papa Francisco, em apenas 1 ano e meio de pontificado, temos
uma série de declarações, que retomam o que ele fazia e dizia como
Arcebispo de Buenos Aires. Mais de uma vez Francisco tem confessado
a interrogação que faz a si mesmo, sempre que tem contato com os
presos: “Por que ele está lá, e não eu?... Pois as debilidades que temos
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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são as mesmas, por que ele caiu e não eu?” Aos participantes de um
Congresso Internacional de Juristas, em 39-05 p.p., sobre o tema da
Justiça, afirmou: “É necessário fazer justiça, mas a justiça autêntica
não se contenta simplesmente com castigar o culpado. É necessário
ir além e fazer o possível para corrigir...” (MATOS, 2014, p. 102-103).
O terceiro capítulo, apresentando a “estrutura e organização
da Pastoral Carcerária”, começa expondo sua “dimensão eclesial”.
Depois de vários textos bíblicos, relembra que a PCr é “a presença
institucional da Igreja no mundo dos cárceres. [...] Os que exercem
este ministério o fazem comunitariamente, em nome de Cristo,
em nome da comunidade eclesial, e como enviados pelo Bispo
diocesano.” (MATOS, 2014, p. 110-111). Além disso, não existe PCr
sem o profetismo evangélico: é ‘denúncia’ das situações prisionais
que ferem a dignidade humana e, igualmente, é ‘anúncio’ da boa nova
do Reino: do perdão, da justiça, da solidariedade, da liberdade.
Falando dos integrantes da PCr, da sua motivação e atuação,
escreve o autor: “Frequentemente ouve-se dizer que a resposta à
delinquência deve ser uma repressão mais dura! Infelizmente, o
mundo das prisões é um mundo também marginalizado pela maioria
das comunidades eclesiais!” (MATOS, 2014, p. 115). Por isso, “fazer
parte da PCr pressupõe uma vocação peculiar, requerendo qualidades
humanas indispensáveis para este tipo de serviço eclesial.” (ibid.).
Além da preparação adequada, a equipe de PCr só pode funcionar
satisfatoriamente quando se reúne com regularidade e participa de
encontros específicos, em âmbito diocesano e também regional.
Em relação às visitas nos presídios, garantidas pela Lei de
Execução Penal, de 1984, art. 24, saiu em 2011 a “Resolução n. 8”, com
normas que facilitam esse direito legal1 . Mesmo assim, é comum, na
prática, os agentes da PCr encontrarem obstáculos à visita neste ou
naquele dia, desta ou daquela maneira, sendo necessária paciência
e perseverança. Nas páginas 121-130, o autor apresenta várias
indicações práticas, muito úteis, para os contatos com os presos/as.
Como entender a “assistência religiosa”? Ela não é proselitista, não
vai recrutar para esta ou aquela denominação, não vai “converter”,
mas, antes de tudo, “visitar”. É o que Jesus nos pediu, em Mt 25,36.
1 O texto integral da “Resolução” encontra-se como “Adendo”, no final do livro (MATOS,
20147, p. 157-162).
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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Recensões
Da visita, seguem os outros passos, inclusive momentos de oração,
celebração, caminhada de conversão. (MATOS, 2014, p. 121-130).
Quanto aos “desafios, obstáculos e perspectivas”, o autor
comenta “a violência nos presídios”: é “um eco da violência na rua,
nas casas e no coração das pessoas, enfim, de todo um sistema
sociopolítico baseado em exploração, injustiça e ‘tirar vantagem em
tudo’. Para dizê-lo mais claramente, a alternativa não é ter ‘prisões
menos violentas’, mas ter uma sociedade mais justa e igualitária,
onde se cultivem princípios éticos de convivência humana.” Quanto
à própria PCr: “Participar, como voluntário, da PCr, é, antes de tudo,
assumir uma espiritualidade de serviço desinteressado... É um dos
ministérios mais sublimes na Igreja, embora seja também um dos mais
desconhecidos e, lamentavelmente, pouco apreciados.” (MATOS,
2014, p. 132-133).
Sobre as “linhas de trabalho priorizadas pela PCr no Brasil”, o
autor assim as resume:
a) Evangelização – evangelizar a pessoa encarcerada na sua
totalidade;
b) Diálogo com a sociedade – para formar uma consciência
comprometida com a defesa da vida, denunciando os tratamentos
degradantes;
c) Promoção da cidadania – ajudar o detento a conhecer seus
direitos e deveres e a
conquistar seu lugar na sociedade;
d) Justiça – toda pessoa é digna de respeito e de justiça. A
educação para a justiça passa pela recuperação e pelo exercício dos
valores morais pessoais, coletivos e sociais.” (MATOS, 2014, p. 135136).
Note-se, ainda, esta “profissão de fé” da PCr, segundo o textobase da CF-97: “Cremos, com Jesus, que não se corrige a violência
com outra violência. Cremos também que detestar o pecado não
inclui abandonar o pecador. Cremos, ainda, que se supera a violência
com o amor, a bondade e o perdão.” (MATOS, 2014, p. 139).
Último tópico do livro é a “utopia evangélica”, rejeitada por
“um modelo de sociedade que, em si mesma , mata a utopia” (p.144).
Entretanto, a utopia do Reino, o Reino da Vida, trazida à humanidade
pelo Senhor Jesus , não pode morrer! E disso nós, seus discípulos
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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somos testemunhas: em nosso caso, também no mundo das prisões.
Quanto à oração de Paulo VI, interpretando os sentimentos de um
preso orante, nas pp. 147-148, não me parece “belíssima”, como a
qualifica o autor. Concordo, porém, que é um texto rico em intuições,
sem dúvida. (MATOS, 2014, p. 144-148).
Na conclusão, escreve o autor: “Na realidade, apenas
começamos. Nunca se ‘conclui’ um trabalho de evangelização, a
fortiori tratando-se de pessoas privadas de sua liberdade.” E continua:
“Ser cristão é, por imperativo evangélico, ser misericordioso. Como
servidores/as dos presos, a Igreja nos ‘delegou’ uma obrigação, que é,
ao mesmo tempo, um privilégio: colocar em prática a palavra de Jesus
em Mt 25,36: Estive preso no cárcere, e viestes ver-me. [...] Vale a
pena, sim, engajar-se na PCr, pois o trabalho humanizador no sistema
prisional corresponde, integralmente, à missão que o Senhor confiou
a seus seguidores/as: evangelizar. O sonho de Deus é, efetivamente,
‘uma sociedade sem prisões’!” (MATOS, 2014, p. 151-153).
Quanto à apresentação do texto, muito bem diagramado, é de
agradável leitura. Numa segunda edição, que certamente ocorrerá,
certos detalhes de revisão deverão ser melhorados ou corrigidos,
p. ex. o sobrenome “Trombetta”, que pelo menos duas vezes saiu
como “Trometta”: na nota de rodapé, à p. 63, e na Bibliografia, à p.
156; na citação de Mt 25,36, no Prefácio, à p. 17, houve um erro de
concordância verbal: “Tudo o que fizestes... é a mim que fizestes” (não
“fizeste”); o “segundo objetivo” da pena privativa de liberdade, à p. 43
em baixo e p. 44 em cima, é a “prevenção... através da intimidação”
(não “intimação”) etc. Mas farei um elenco do que anotei, e o mandarei
ao autor.
Terminando, só me resta congratular-me com o Frater
Henrique pelo excelente livro que, a meu ver, prestará grande
serviço à Pastoral Carcerária, tanto para os que já a fazem como
para os que ainda se omitem. Exatamente nestes dias estão, mais
uma vez, pipocando atentados a ônibus, comandados de dentro
dos presídios de Santa Catarina. É uma nova maneira que os presos
encontraram, infelizmente, de fazer ouvir sua voz. Que a reação não
seja simplesmente endurecer, reprimir... mas dar condições, segundo
o que prevê a LEP, Lei de Execução Penal, para que os presos se
recuperem. Este livro é uma valiosa contribuição nesse sentido.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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Recensões
Ney Brasil Pereira, presbítero da Arquidiocese de Florianópolis, é
professor de Exegese Bíblica no Instituto Teológico de Santa Catarina
e coordenador da Pastoral Carcerária em Florianópolis, SC.
E-mail: [email protected]
*
REFERÊNCIAS
FRANCISCO. Evangelii Gaudium a alegria do Evangelho: exortação
apostólica do Sumo Pontífice ao episcopado, ao clero, às pessoas
consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo
atual. São Paulo: Loyola, 2013.
MATOS, Henrique Cristiano José. No movimento da misericórdia.
Belo Horizonte: O Lutador, 1996.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014.
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1 Textos inéditos
A revista Horizonte Teológico (HT) recebe contribuições para
suas seções de artigos, comunicações e recensões. Os textos devem ser
inéditos e serão submetidos à avaliação do Conselho Editorial.
2 Submissão dos textos
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citações com menos de três linhas; usar aspas no próprio corpo
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e) Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo,
nome dos autor(es), resumo, palavras-chave, resumo em língua
estrangeira, keywords, corpo do texto, referências e anexos.
f) Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da
primeira página com fonte 12, tipo de letra Times, em negrito,
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da ABNT. Com fonte 12, tipo de letra Times. Os títulos de seções
são numerados com algarismos arábicos (por exemplo: 1
INTRODUÇÃO, 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA, 3 CONCLUSÃO.
As letras de cada seção devem ser grafadas com caracteres
maiúsculos e em negrito.
138 |
h) Artigos e comunicações devem ter entre 4 mil e 8 mil palavras, incluindo os
anexos; recensões, entre 1 mil e 2 mil palavras.
i) As referências devem ser indexadas pelo sistema (autor, data, página) no
corpo do texto e NÃO em nota de rodapé. Para citar, resumir ou parafrasear
um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Francisco Taborda, a
indexação completa deve ser (TABORDA, 2005, p. 36). Quando o sobrenome
vier fora do parênteses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula.
j) Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico.
Use o itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros.
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com letras maiúsculas, em negrito e centralizado na página. Estas devem
ser apresentadas em uma única ordem alfabética, alinhadas somente à
esquerda, em espaço simples, e espaço duplo entre elas.
l) As referências devem seguir a NBR 6023:2002 da ABNT: os autores devem
ser citados em ordem alfabética, sem numeração, em espaço simples
e separadas entre si por espaço duplo e sem adentramento; o principal
sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e demais nomes do
autor (por exemplo: MATOS, Henrique Cristiano José. Liturgia das horas e
vida consagrada. 4. ed. Belo Horizonte: O Lutador, 2005).
m) Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por ponto
e vírgula.
n) Os elementos essenciais de uma referência são: Autor(es). Título. Edição.
Local. Editora e data de publicação. Para artigos são: Autor(es). Título do
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5 Exemplares dos autores
Os autores de artigos e comunicações publicados receberão três exemplares da
revista ; de recensões, dois exemplares.
LIVROS RECEBIDOS
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EDITORA PAULINAS
www.paulinas.org.br
Concilio Vaticano II
Autora: Euza Helena Abreu
Ney de Souza
Esta obra parte do princípio de que o
legítimo pluralismo é dom do Espírito e é
condição indispensável para a catolicidade.
O Concilio Vaticano II foi uma experiência de
pluralismo, pois mostrou diversas teologias
dentro de uma mesma fé. À luz deste
princípio, esta obra ajuda a refletir o evento
conciliar e questões teológicas e pastorais
que suscitam proveitoso debate entre
teólogos, historiadores e pastoralistas. O
legado do Vaticano II só poderá tornar-se
realidade se compreendido e estudado
com claras chaves hermenêuticas, o que
possibilita ser assumido por todos.
Presença Feminina no Vaticano II
Autor: Adriana Valério
A presença feminina no Vaticano II, da escritora
Adriana Valério, resgata a trajetória das 23 mulheres
que participaram do Concílio Vaticano II, evento
eminentemente masculino e clerical. Na época, a
previsão de muitos padres conciliares era a de que
a participação feminina no Concílio seria simbólica.
Entretanto as dez religiosas e treze leigas convidadas
como auditoras não foram silenciosas e nem as
suas presenças foram simbólicas; pelo contrário,
a participação delas deixou sinais importantes nos
próprios documentos conciliares. A obra reflete sobre
a voz e o papel da mulher na igreja, e está dividida em
duas partes: a primeira relembra os principais eventos
da sociedade que antecederam o Concílio. A segunda
parte do livro apresenta por meio de uma investigação
apaixonante, os rostos e as história de cada uma dessas
“madres conciliares” que souberam encontrar ocasiões
certas para pronunciar palavras eficazes.
140 |
Exegese bíblica
Autora: Maria de Lourdes Corrêa Lima
O panorama exegético atual oferece diversas
propostas metodológicas. Há, contudo,
elementos tão fundamentais que estão, ao
menos de forma implícita, nas diversas óticas
de leitura. Durante o século XX, muitos destes
elementos chegaram a uma sistematização
amplamente aceita no assim chamado método
histórico-crítico. Embora sujeitas a revisões e
novos desdobramentos, suas etapas encontramse na base de diversas metodologias atuais.
O presente livro, após apresentar, na primeira
parte, os fundamentos da Hermenêutica da
Exegese Bíblica, descreve, na segunda parte, as
diversas etapas metodológicas da interpretação
de um texto bíblico. Tudo se inicia com uma
tradução do texto em questão. Em seguida,
chega-se à análise crítica da constituição literária
do texto, assim como de sua forma, de seu gênero
literário, de sua redação e das tradições nele
presentes. Finalmente, podem ser apresentados
os comentários exegéticos que favorecem a
compreensão do que está sendo refletido no
escrito bíblico analisado.
Pobre para os pobres
Autora: Gerhard Ludwig Muler
Pobre para os pobres, fala sobre a missão
libertadora e evangelizadora da Igreja, e
aborda por meio de um olhar contemporâneo,
temas como: a fé, o desenvolvimento humano,
os desafios para a teologia nos dias de hoje,
revendo os eventos conciliares e o documento
de Aparecida: opção pelos pobres. Traz temas
que despertam o leitor para a importância da
missão da igreja como renovadora da fé e dos
verdadeiros valores humanos. A obra faz parte
da coleção Teorama, e traz no prefácio uma
declaração escrita pelo Papa Francisco, que
expressa seu agradecimento pela importante
colaboração que o conteúdo do livro traz aos
católicos “Sou grato a Gerhard Ludwig Müller,
prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, que
com o presente livro quis relembrar-nos tudo
isso. Estou certo de que cada um de vós que ler
estas páginas deixará o seu coração ser tocado
e sentirá surgir dentro de si a exigência de uma
renovação da vida...”.
| 141
O Futuro de Deus na missão da Esperança
Autor: Cezar Kuzma
Ao discernir o Futuro de Deus na missão da
esperança cristã, esta obra enriquece a coleção com
um diálogo maduro entre a Teologia da Esperança
de Jürgen Moltmann e a Teologia Latino-Americana
da Libertação. O futuro, objeto de toda a teologia,
apresenta-nos o gratuito plano de Deus, que é a
nossa salvação, e nos convida a caminhar em sua
direção. Este caminhar decorre de um encontro
com o Deus que vem (Advento) e se revela a nós,
mostrando-nos o seu rosto (Cristo), e depende
também de um aceite da fé (que é a resposta
humana), provocado e vivido na esperança. Este
“seguir” e este “ir” acontecem dentro deste
mundo e com as variantes novas do contexto
onde estamos. Para destrinçar esse caminhar
na esperança cristã, o autor pôs em diálogo as
intuições de Jürgen Moltmann e a profecia da
Teologia da Libertação. Este livro se propõe a um
estudo da Teologia da Esperança de Moltmann em
aproximação com a Teologia Latino-Americana da
Libertação numa perspectiva escatológica. Embora
essas duas teologias tenham suas especificidades,
o autor desvelou com competência seus pontos
convergentes, ressaltando a maturidade por
elas alcançada ao longo das últimas décadas. O
estudo aproximativo aqui oferecido acentua um
novo discurso escatológico da esperança em tom
também libertador. O autor acredita que toda
“esperança é libertadora” e que “toda teologia
que se quer da esperança é da libertação e toda
teologia que se quer da libertação é da esperança”.
Essa convicção permeia todo o trabalho e convida o
leitor a olhar na direção deste futuro de Deus que se
vislumbra na missão da esperança cristã.
142 |
Filosofia da Religião
Autor: Michael B. Willkinson e Hugh N. Campbell
Andrea Riccardi
Este livro é uma introdução a um debate contínuo
em vastas áreas da Filosofia da Religião. Não leva
em conta nenhum conhecimento prévio sobre
o assunto e começa explicando os problemas
subjacentes que os filósofos tentam enfrentar,
dando um esboço básico sobre o que a filosofia
faz. Fornece material para a reflexão, facilmente
identificado, no final de vários capítulos. E permite
que o leitor acompanhe o debate, tendo acesso a
material suficiente para pensar sobre o assunto.
Este livro investiga os recursos e limites da Filosofia
da Religião, quando tenta compreender a Deus
como além da linguagem humana, como sendo
de uma ordem totalmente diferente de qualquer
outra coisa de nossa experiência cotidiana. Mas
há um perigo peculiar nessa abordagem, pois
pode parecer que Deus seja tão elusivo quanto
uma quimera. Se Deus é tão misterioso, de fato,
ele pode, de algum modo, ser? É algo singular à
fé religiosa o fato de nela Deus ser encontrado:
ser claro, ser desconhecido, mas de algum modo
existir. Mas, frequentemente, o Deus da crença
das pessoas pode tornar-se um Deus fabricado.
E, para evitar esse risco, esta obra recua e nos
sintetiza três milênios de debates sobre o tema,
consciente de que nossa própria existência já é um
grande enigma. Na Filosofia da Religião, dizem
os autores, é a profundeza do mistério do ser que
nos confronta e, ao enfrentá-la, esperamos um
vislumbre de compreensão e explicação. A tarefa
de cada um de nós, como filósofos, com nossos
recursos pobres e limitados de mente, escrita e
diálogo, em uma incerteza sem fim, é fazer do
mistério aquilo que podemos. Talvez não seja tudo
em vão. O livro foi pensado como um debate,
que já começa entre os próprios autores. Não é
somente uma lista de argumentos, mas quer que o
estudante reflita sobre eles e se envolva com eles.
Portanto, prepare-se para tentar... discordar dos
autores!
| 143
PAULUS
www.paulus.com.br
Introdução á filosofia do mito
Autor: Luc Brisson
“Desejo falar de como o bispo vive concretamente.
Quero descrever sua relação com as pessoas com quem
tem contato, como passa os diversos momentos de
seu dia, quais são seus principais compromissos, o que
acontece quando encontra as pessoas… Lembro-me de
que, em minha infância, eu considerava o bispo alguém
que estava como em um nicho ou pedestal na Igreja para
ser homenageado pelos fiéis. Neste livro, quero baixá-lo
desse lugar e vê-lo em contato com o povo, como de fato
acontece. Pretendo exprimir algo que dê uma imagem
sua menos nebulosa e hierática, mas viva e sem falsas
pretensões.” O cardeal Carlo Maria Martini propõe uma
reflexão inédita, fruto de sua experiência pessoal, sobre
uma figura institucional muito citada na imprensa, mas
talvez não muito conhecida. Da pergunta “como alguém
se torna bispo?” até a narração das relações amigáveis,
críticas ou polêmicas com crentes e não crentes, chega-se
às características que tornam o bispo capaz de viver e de
anunciar o Evangelho no mundo pós-moderno
João Paulo II - Santo Já
Autor: Andrea Riccardi
Não é fácil canonizar um pontífice contemporâneo,
também devido à complexidade de sua história e às
implicações de suas decisões. João Paulo II, por seu
lado, teve vida complexa e pontificado bastante longo.
O que foi que levou a Igreja de Ratzinger e de Bergoglio
a tomar tal decisão em tão curto tempo? Talvez esse
tipo de decisão queira destacar que João Paulo II foi um
papa profundamente diverso de seus predecessores?
Neste breve ensaio, Andrea Riccardi responde a essas
questões e percorre as articulações e acontecimentos
que conduziram à canonização de João Paulo II.
144 |
Introdução á filosofia do mito
Autor: Luc Brisson
‘Desde a Antiguidade até a Renascença, a transmissão
dos mitos da Grécia antiga e de Roma foi assegurada,
de forma paradoxal, pela filosofia, que, depois de ter
denunciado a incapacidade desses relatos de transmitir
a verdade e de desenvolver uma argumentação,
empenhou-se, graças a esse instrumento exegético
que representa a alegoria, a mostrar como, sob seus
elementos mais surpreendentes e mais escandalosos,
dissimulava-se a significação filosófica mais alta. Neste
livro encontram-se informações históricas, textuais
e doutrinais sobre as metamorfoses que sofreu a
interpretação alegórica dos mitos durante dois milênios.
O conjunto desse relato permite repor em questão
várias ideias simplistas, mas muito difundidas, sobre as
ligações que mantêm mythos e logos, tradição religiosa
e especulação sobre a natureza, teologia e filosofia,
paganismo e cristianismo. Esta nova edição corrigida
leva em conta a maior parte dos novos trabalhos e dos
novos autores sobre a interpretação alegórica surgida
depois de uma dezena de anos.
Sujeitos no mundo e ma Igreja
Autor: João Décio Santos
‘A Nova Evangelização passa pela ação missionária,
que prepara verdadeiros discípulos de Jesus Cristo
no mundo e para o mundo. Nesse sentido, cresce na
Igreja do Brasil o interesse de Dioceses pela criação dos
Conselhos Diocesanos de Leigos, visando aprofundar
sua identidade e atuação. É preciso juntar forças, unirse na mesma ação evangelizadora, partilhando sonhos
e desejos, convocando todos os batizados para uma
reflexão sobre a missão da Igreja não apenas “para” os
leigos, mas “com” os leigos.
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Sonhos na Psicologia Junguiana
Autor: Durval Luiz de Faria/Laura Villares de Freitas/
Marion Rauscher Gallbach
Jung foi um dos pioneiros no estudo dos sonhos.
Pela sua noção de inconsciente e de vida psíquica,
construiu uma maneira própria e original de trabalho
com os sonhos na psicoterapia, que leva em conta
tanto o inconsciente individual quanto o coletivo.
Propôs o método de amplificação simbólica. A partir
de fins do século XX, a Psicologia Analítica lança-se
em novas formas de trabalho com os sonhos, para
além de sua consideração na psicoterapia individual.
Os analistas e terapeutas que aqui se apresentam
ampliam criativamente a ircunscrição do método,
com peculiar ênfase ao trabalho com sonhos e grupos,
à consideração do corpo, à utilização de recursos
expressivos e artísticos e à sua utilização na formação
profissional. Destaca-se também a aplicação em
diferentes contextos, que ampliam o atendimento ao
sofrimento psíquico onde ele ocorra, seja nos centros
de atendimento da rede pública, na saúde mental,
nas casas-abrigo, respondendo, assim, à grande
diversidade de demandas da contemporaneidade.
146 |
PAULUS
www.paulus.com.br
Friedrich Nietzsche Crepúsculo dos ídolos ou como se
filosofa com o martelo
Autor: Friedrich Nietzsche
Este livro representa um radical experimento crítico que
reúne, além dos conhecidos temas, um panorama global
mais específico em torno dos pensamentos da filosofia
madura de Nietzsche em diversos âmbitos: a crítica de
tradições filosóficas e morais, um reposicionamento sobre
a arte, principalmente em relação aos seus conceitos
apolíneo e dionisíaco, o embate com filósofos e escritores,
uma discussão crítica com a ciência e com as culturas
(especialmente alemã e greco-romana antigas), entre
outros.
Pensatas Pedagógicas - Nós e a escola: agonias e
alegrias
Autor: Mario Sérgio Cortella
Os vícios e as virtudes, os princípios e as práticas,
a docência e a essência, as lições e as ações fazem
deste livro a “fina flor” após quarenta anos de prática
educacional de Mario Sergio Cortella. Tal como um
testamento o autor mostra no que acredita, seu
modelo de mestre e de escola e alinhava o futuro
da instituição educacional. E acima de tudo fala de
gente, do cotidiano profissional, da dor e da alegria
de fazer e pensar educação. Mais que uma obra, uma
paixão de ser e de viver educação
| 147
Eu e Deus
Autor: Vito Mancuso
Este livro nasce da consciência da gravidade do momento
presente e da exigência interior de refundar na presença
das perplexidades atuais o pensamento de Deus,
entendido como verdade da vida e do mundo. Por séculos,
no Ocidente, a fundação do pensamento de Deus foi
realizada a partir da Igreja e a partir da Bíblia. Ainda hoje,
a postura dominante segue este duplo caminho, Igreja +
Bíblia ou, no caso do Protestantismo, Bíblia + Igreja.
A ALMA BRASILEIRA LUZES E SOMBRA
Autor: Walter Boechat
Este livro aprofunda sobre uma compilação do
melhor do XXII Congresso da Associação Junguiana
do Brasil, apresentando a “Alma Brasileira” a partir
da Psicologia Analítica ou em diálogo com ela.
Teologia Moral
Autor: Antônio Moser
A Teologia Moral é uma disciplina e um campo
de conhecimento da Teologia que se dedica ao
estudo e à pesquisa do comportamento humano
em relação a princípios morais e ético-religiosos.
“Teologia Moral: a busca dos fundamentos e
princípios para uma vida feliz” analisa rapidamente
o caminho percorrido pela Teologia Moral ao
longo dos séculos, para contextualizar o leitor nos
conceitos fundamentais. Em seguida, sugere uma
mudança de paradigmas focada nos novos cenários
sociais, culturais e eclesiais, na convicção de que
uma teologia distante e desligada da concretude
humana já não responde mais às questões
concretas da vida humana em suas novas faces.
148 |
Maria Madalena na montanha de Sainte-Baume
Autor: Jean-Yves Leloup
Míriam de Magdala ou Maria Madalena é uma
das mulheres com quem o Mestre teve uma das
passagens mais intensas de todo o evangelho e
aparece como a primeira testemunha da ressurreição.
Leloup embasado em estudos sobre essa figura
considerada “apóstolo entre os apóstolos” e apoiado
principalmente na tradição oral mostra o arquétipo
da mulher selvagem e angelical que Maria Madalena
representa e seu lugar ainda ímpar na proximidade
com Yeshua e o cristianismo nascente.
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( ) Depósito Bancário:
Banco Bradesco
Agência 2797-9 - Conta corrente: 15646-9
Titular da conta: ASTA - Associação Santo Tomás de Aquino
(Enviar comprovante de depósito juntamente com cupom)
Bairro
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