HORIZONTE TEOLÓGICO ANO 13 | Nº 26| JULHO - DEZEMBRO 2014 EDUCAR PARA A VIDA PLENA ISSN 1677-4400 Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 13 | N. 26 | P. 1-149 | 2014 © 2014 - Instituto Santo Tomás de Aquino Proibida a reprodução de qualquer parte, por qualquer meio, sem a prévia autorização do Conselho Editorial Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia - MTB: 3039 Conselho Editorial: Antônio Pinheiro, Cleto Caliman, Damásio R. Medeiros dos Santos (UPS, Roma), José Carlos Aguiar, Manoel Godoy, Sílvia Contaldo, William Desmond (KUL, Bélgica), Wolfgang Gruen. Revisão: Helena Contaldo - Conttexto Diagramação: Fernanda Araujo Normalização Bibliográfica: Iaramar Sampaio - CRB6/1684 As matérias assinadas são de responsabilidade dos respectivos autores. Aceitamos livros para recensões ou notas bibliográficas, reservando-nos a decisão de publicar ou não resenha sobre os mesmos. Aceitamos permuta com revistas congêneres. Administração / Redação: Rua Itutinga, 340 Bairro Minas Brasil 30535-640 | Belo Horizonte - MG Tel.: (31) 3419-2803 | Fax: (31) 3419-2818 [email protected] www.ista.edu.br Publicação Semestral Impressão: Editora O Lutador H811 Horizonte Teológico / Instituto Santo Tomás de Aquino. v. 13, n. 26 (2º Sem. 2014) - Belo Horizonte: O Lutador, 2014. 149p. ISSN 1677-4400 Semestral 1. Teologia - Periódicos. 2. Filosofia - Periódicos. I. Instituto Santo Tomás de Aquino. CDU: 2:1 Elaborada por Iaramar Sampaio - CRB6/1684 SUMÁRIO EDITORIAL 5 EDUCAR PARA A VIDA PLENA Manoel Godoy FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: 9 contribuição à pastoral familiar Sebastião Corrêa Neto ALTERIDADE: Emancipação e humanização 25 Ismael Garcia de Sousa EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: 45 as linhas mestras do Evangelho de Marcos Juan Pablo García Martinez, SCJ - Betharram EDUCAR PARA A VIDA PLENA 55 Frei Henrique Cristiano José Matos A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: 75 aberturas filosóficas para a discussão ecológica José Carlos Aguiar de Souza ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: 99 “SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO Ronilson de Sousa Lopes APRESENTAÇÃO 105 RECENSÕES 127 NORMAS PARA COLABORADORES 137 LIVROS RECEBIDOS 139 ISTA - Instituto Santo Tomás de Aquino Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos Diretor Executivo: Manoel Godoy GRADUAÇÃO: Filosofia (licenciatura) Coordenação: José Carlos Aguiar Teologia (bacharelado) Coordenação: Cleto Caliman PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu): Coordenação: Cleto Caliman Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização para Formadores da Vida Religiosa - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização em Aconselhamento Pastoral e Espiritual - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização Lato Sensu em Direito Matrimonial Canônico - 360 horas / aulas Julho / janeiro / julho Mais informações: Rua Itutinga, 340 - Minas Brasil 30535-640 - Belo Horizonte - MG Telefax: (31) 3419-2800 [email protected] www.ista.edu.br EDITORIAL Manoel Godoy |5 EDUCAR PARA A VIDA PLENA “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.” (Paulo Freire) Quem se dispuser a passear pelos textos deste número da Revista Horizonte Teológico, terá uma sensação de que o ISTA provoca em seus colaboradores um universo de temas que, à primeira vista, podem parecer desconexos. Por isso, ofereço um fio condutor que os une e dá certa coesão à sequência de artigos: Educar para a Vida Plena. Da problemática da família à espiritualidade dos irmãos de vida comum, o que se quer é exatamente isso: Educar para que a Vida seja plena, marcada por uma espiritualidade que dê um sentido profundo à nossa existência. Família sempre foi e será um tema a ser revisitado e, com a proximidade do Sínodo dos Bispos sobre a Família, em outubro de 2014, o ambiente eclesial se torna campo bastante fértil para tal abordagem. Sebastião Corrêa retoma as reflexões da Exortação Apostólica do Papa João Paulo II – Familiaris Consortio – à luz das conclusões da V Assembleia Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida como ponto de referência do Magistério da Igreja e, por outro lado, os conceitos da psicologia de Erik Erikson, traçando caminhos para o cuidado pastoral das famílias. Dessa forma, emerge a metodologia calcada na interdisciplinaridade como forma de abordagem consciente de uma das instituições que mais vêm sofrendo com as crises da sociedade hodierna. Vivemos sob o fogo cruzado das intolerâncias e da pluralidade crescente. É paradoxal. Hoje, há uma consciência mais aguçada Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.5-7, jul/dez. 2014. 6| EDITORIAL da presença do outro como condição para a firmação da própria identidade. Porém, cresce também o número dos que se sentem invadidos frente à irrupção do outro e dos outros, nesta sociedade plural. Considerar a alteridade como caminho para a emancipação e humanização é muito oportuno e abre um leque de possibilidades de realização do eu frente ao outro. O professor Ismael de Sousa parte de um contraponto muito pertinente entre os conceitos de alteridade em Buber e Levinas, destacando a liberdade e a responsabilidade nas relações humanas. Desde que o método histórico crítico foi introduzido na exegese bíblica, o Evangelho segundo Marcos tornou-se alvo de muitas leituras interessantes, ressaltando a originalidade do gênero bíblico – evangelho – atribuída a esse evangelista. Com isso, Marcos passou a ser considerado o primeiro evangelho, e não mais Mateus. Além disso, mergulhar na questão do messianismo de Jesus pode jogar luz aos messianismos atuais, tão em voga. Juan Pablo, com seu texto sobre o Evangelho de Jesus, Filho de Deus: as linhas mestras do Evangelho de Marcos, nos ajuda a mergulhar nesse debate onde o segredo messiânico e o discipulado ganham status de temas fundamentais nesse evangelho. Antes do Concílio Vaticano II, a Igreja no Brasil lançou um Plano de Pastoral em âmbito nacional, sob o título de Plano de Emergência. Nele, um dos destaques é, na linguagem de então, a renovação dos educandários. Como entrada, apresenta a escola católica caracterizada por dois princípios fundamentais e complementares: espírito de família e espírito missionário. Com a declaração conciliar Gravissimum Educationis, temos o aprofundamento dessas características tão bem tratadas no artigo do Frater Henrique, relatando um encontro da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil – ANEC. Frater Henrique enfrenta com pertinência o intrigante questionamento: o que pretendemos com um colégio católico? Numa articulação muito interessante entre documentos da Igreja e a situação atual da educação católica, ele justifica com muita precisão o título de sua reflexão: Educar para a Vida Plena. O trabalho de José Carlos Aguiar de Souza, Marco Aurélio do Nascimento Alves e Rafael Lourenço Navarro sobre “A Hermenêutica desmondiana: aberturas filosóficas para a discussão ecológica” nos ajuda a explorar problemas e condicionamentos filosóficos que envolvem questões ecológicas e ambientais. O texto, assim, pretende explorar as possibilidades de outro modo de (bio)narrativa, que não Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.5-7, jul./dez. 2014. Manoel Godoy |7 tenha o ser humano como centro de referência. Por meio de uma resenha muito interessante, Ronilson de Sousa nos leva a passear na obra de Umberto Eco – “Seis Passeios pelos Bosques da Ficção” –, onde o tempo aparece como destaque no método de interpretação de uma obra literária de tal gênero. Emerge a necessária conclusão de que ler uma obra de ficção é superar a letra e dar asas à imaginação, realizando assim um verdadeiro pacto com o autor. O ISTA teve a alegria de ser o espaço de lançamento do livro Imitação de Cristo: caminho de crescimento espiritual, do seu eterno colaborador e ex-professor Frater Henrique Cristiano José Matos. Depois de tantas versões dessa obra que caracteriza tão bem o movimento laical denominado de Devoção Moderna, da passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o que poderíamos esperar ainda de novo? Nos tempos atuais, em que tanto se fala de crises institucionais, a Igreja Católica não ficou ilesa. Porém, a espiritualidade cristã continua provocando um fascínio muito grande nos homens e mulheres de hoje; por isso, retomar a obra de Tomás de Kempis, da forma que o fez Frater Henrique, é contribuir com uma resposta profunda a tal fascínio, ajudando a dar sentindo real à vida. Vale a pena ler o artigo que retrata como se deu tal evento, onde o próprio autor apresenta o livro, a professora Silvia Contaldo, doutora do pensamento de Agostinho, relaciona o caminho espiritual de Tomás de Kempis com o do bispo de Hipona e Paulo César Barros, SJ, amplia nosso olhar sobre “A influência da ‘Imitação de Cristo’ em Inácio de Loyola e na espiritualidade inaciana, no contexto da Devotio Moderna”. Finalmente, Nei Brasil Pereira nos oferece uma excelente resenha do último livro do Frater Henrique C. J. Mattos: Preso estou, livre serei. Pastoral carcerária: fundamentos, inspiração, atuação, da Ed. O Lutador. O livro preenche uma grande lacuna na área. Que sua leitura nos estimule um novo olhar para a situação carcerária no Brasil: um olhar de misericórdia. Pe. Manoel Godoy Diretor Executivo do ISTA Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.5-7, jul./dez. 2014. 8| ARTIGOS Sebastião Corrêa Neto |9 FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: contribuição à pastoral familiar Sebastião Corrêa Neto Resumo Ao acompanhar e orientar pessoas, faz-se necessário ajudá-las a se localizar dentro da etapa de vida em que se encontram. Muitas crises vividas estão relacionadas com as etapas do desenvolvimento psicossocial que Erikson elaborou. Ao falar das oito etapas ou idades do ser humano, aliando o crescimento biológico, psíquico e social, Erikson oferece um mapa para quem escuta pessoas em suas crises. Além disso, pode-se colaborar para que cada acompanhado, em sua etapa de vida, descubra as habilidades ou disposições e também as dificuldades que a etapa lhe oferece e lhe chama a viver. Sem dúvida, a reflexão eriksoniana lança luzes consistentes para o acompanhamento de um projeto de vida pessoal, de modo integral. Palavras-chave: Erik Erikson. Etapas evolutivas. Ciclo de vida. Desenvolvimento psicossocial. Acompanhamento e orientação pessoal. 1 INTRODUÇÃO Um dos tesouros de nossos povos e valor importante na constituição de nossas sociedades, a família, como todas as instituições, sofre com as transformações sociais dos últimos tempos. A Igreja, em sua missão, vem refletindo sobre tais impactos e acompanhando-os. Para tal se organiza, através de suas instâncias Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. 10 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO À PASTORAL FAMILIAR pastorais, o acompanhamento e assistência para o crescimento e diversos momentos críticos da vida em família. O presente artigo tem como objetivo aprofundar tal acompanhamento, focalizando-o sobre a ótica das diversas etapas da vida da família. Quer, assim, avaliar os processos pastorais à luz dos eventos críticos da família. Para isso, além do Magistério, o texto dialoga com as reflexões de Erik Erikson. Autor da psicologia do desenvolvimento, Erikson pode contribuir na compreensão de tais momentos críticos da família. A linha de abordagem, portanto, centra-se numa perspectiva psicossocial, com enfoque biográfico. Ou seja, deseja refletir os sucessivos momentos da existência da família e contribuir para o acompanhamento nesses casos. 2 CUIDADO PASTORAL DA FAMÍLIA NA IGREJA Para a reflexão do cuidado pastoral da família na Igreja, tomam-se aqui dois textos de referência: a Exortação Apostólica Familiaris Consortio (FC) e o Documento de Aparecida (DAp). A Exortação Apostólica Familiaris Consortio apresenta em seus números 65 a 85 etapas, estruturas, responsáveis pela pastoral familiar. Mais ao fim apresenta situações especiais que a pastoral é desafiada a acompanhar. Sublinha-se, portanto, uma vez mais a urgência da intervenção pastoral da Igreja em prol da família. É preciso empregar todas as forças para que a pastoral da família se afirme e desenvolva, dedicando-se a um setor verdadeiramente prioritário, com a certeza de que a evangelização, no futuro, depende em grande parte da Igreja doméstica. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 65). A exortação continua apontando as etapas da pastoral familiar e direcionando para o compromisso da Igreja de acompanhar a família em seu caminhar. Assim, destaca a preparação para o matrimônio, a celebração e a pastoral pós-matrimonial. Pode-se dizer que o acompanhamento se estende desde a infância (preparação remota), passando pela preparação próxima do matrimônio, sua celebração, até a chegada dos filhos, quando se realiza a constituição final da família. “A ação pastoral da Igreja deve ser progressiva, também no Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. Sebastião Corrêa Neto | 11 sentido de que deve seguir a família, acompanhando-a passo a passo nas diversas etapas da sua formação e desenvolvimento”. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 65). Já o Documento de Aparecida (CELAM, 2007, p. 431-475), dentro de uma ótica mais ampla e integral, fala de família, pessoas e vida. Não somente refere-se à família como uma instituição, mas trata de pessoas dentro de tal realidade. Apresenta as diversas etapas da vida: as crianças, os adolescentes e jovens, os idosos, a dignidade da mulher e a responsabilidade do pai de família. Por fim, na perspectiva mais integral, apresenta a defesa da vida e o cuidado do meio ambiente. O Documento afirma claramente que a família é um dos tesouros para os povos latino-americanos. E, por isso, a preocupação com ela deve ser um dos eixos transversais da evangelização. Ou seja, em todas as ações pastorais, nas mais diversas perspectivas, deve-se ter esse olhar para a realidade familiar. Assim, requer-se uma pastoral intensa e vigorosa para: a) proclamar o evangelho da família; b) promover a cultura da vida; c) trabalhar para que os direitos das famílias sejam reconhecidos e respeitados. Defronte a tal demanda, como acompanhar os processos familiares em relação aos desafios dos tempos atuais? Uma das ações elencadas pelo Documento de Aparecida é “Estudar as causas das crises familiares para encará-las em todos os seus fatores”. (CELAM, 2007, n. 437h), Assim, a partir de agora, coloca-se a realidade de acompanhamento gradual da família. Entende-se, ante tantas outras realidades presentes na vida da família, a necessidade de compreender seus eventos críticos. Porém, antes de entrar diretamente em tais etapas, faz-se necessário compreender o desenvolvimento do conceito de gradualidade no Magistério da Igreja e, depois, conhecer a reflexão de Erik Erikson, que será suporte na compreensão dos eventos críticos da família. 3 O ITINERÁRIO MORAL DOS ESPOSOS: O PRINCÍPIO DA GRADUALIDADE Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. 12 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR O conceito de gradualidade¹ , no Magistério, ganha abertura a partir do pontificado de João XXIII (1963). A partir do confronto com o mundo moderno, abre-se caminho por considerar o ser humano como ser que se constrói progressivamente, ser de história e com dinamismo histórico. Em seguida, já com Paulo VI (1967), em sua Encíclica Populorum Progressio, ao falar da vocação humana ao crescimento, entende a gradualidade como um dinamismo posto pelo criador. Mas tais aberturas serão condensadas no Sínodo dos Bispos de 1980. Na Exortação Familiaris Consortio, João Paulo II (1982), acolhendo as contribuições do Sínodo, assume a demanda de uma pedagogia gradual. De maneira forte, tal realidade aparece no número 34: 1 É sempre muito importante possuir uma reta concepção da ordem moral, dos seus valores e das suas normas: a importância aumenta quando se tornam mais numerosas e graves as dificuldades para as respeitar. Exatamente porque revela e propõe o desígnio de Deus Criador, a ordem moral não pode ser algo de mortificante para o homem e de impessoal; pelo contrário, respondendo às exigências mais profundas do homem criado por Deus, põe-se ao serviço da sua plena humanidade, com o amor delicado e vinculante com o qual Deus mesmo inspira, sustenta e guia cada criatura para a felicidade. [...]. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 34). Já se percebe aqui a necessidade de uma pedagogia que leve em conta a realidade da pessoa. Ou seja, trata-a de maneira personalizada como cada subjetividade acolhe a ordem moral. A ordem moral está a serviço das pessoas para levá-las à felicidade. Fica claro a ideia de caminho a ser feito. E continua: Mas o homem, chamado a viver responsavelmente o plano sapiente e amoroso de Deus, é um ser histórico, que se constrói, dia a dia, com numerosas decisões livres: por isso ele conhece, ama e cumpre o bem moral segundo etapas de crescimento. Também os cônjuges, no âmbito da vida moral, são chamados a um contínuo caminhar, sustentados pelo desejo sincero 1 Cf. (BOTERO G., 2009, p. 110-113). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. Sebastião Corrêa Neto | 13 e operante de conhecer sempre melhor os valores que a lei divina guarda e promove, pela vontade reta e generosa de os encarnar nas suas decisões concretas. Eles, porém, não podem ver a lei só como puro ideal a conseguir no futuro, mas devem considerá-la como um mandato de Cristo de superar cuidadosamente as dificuldades. Por isso a chamada «lei da graduação» ou caminho gradual não pode identificar-se com a “graduação da lei”, como se houvesse vários graus e várias formas de preceito na lei divina para homens em situações diversas. Todos os cônjuges são chamados, segundo o plano de Deus, à santidade no matrimônio e esta alta vocação realiza-se na medida em que a pessoa humana está em grau de responder ao mandato divino com espírito sereno, confiando na graça divina e na vontade própria. Na mesma linha, a pedagogia da Igreja compreende que os cônjuges, antes de tudo, reconheçam claramente a doutrina da Humanae Vitae como normativa para o exercício da sexualidade e sinceramente se empenhem em pôr as condições necessárias para a observar. [...]. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 34). Sem abrir mão da gradação da lei moral, o Magistério reconhece o caminho histórico do ser humano, seu caminhar em etapas e procura fazer uma ponte entre a realidade e o ideal. À medida que as etapas e crises da vida vão acontecendo e, em cada uma delas seu amadurecimento, as condições para a internalização do bem moral vão se dando. Reconhece-se que a resposta à ordem moral deve levar em conta uma gradação a partir da etapa de vida em que a pessoa ou a família se encontra. E continua assim falando dessa pedagogia e caminho: Esta pedagogia, como sublinhou o Sínodo, compreende toda a vida conjugal. Por isso a obrigação de transmitir a vida deve integrar-se na missão global da totalidade da vida cristã, a qual, sem a cruz, não pode chegar à ressurreição. Em semelhante contexto compreende-se como não se possa suprimir da vida familiar o sacrifício, mas antes se deva aceitá-lo com o coração, para que o amor conjugal se aprofunde e se torne fonte de alegria íntima. Este caminho comum exige reflexão, informação, instrução idônea dos sacerdotes, dos religiosos e dos leigos que estão empenhados na pastoral familiar: todos eles poderão ajudar os cônjuges no itinerário humano e espiritual que comporta em si a consciência do pecado, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. 14 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR o sincero empenho de observar a lei moral, o ministério da reconciliação. Deve também ser recordado como na intimidade conjugal estão implicadas as vontades das duas pessoas, chamadas a uma harmonia de mentalidade e comportamento: isto exige não pouca paciência, simpatia e tempo. De singular importância neste campo é a unidade dos juízos morais e pastorais dos sacerdotes: tal unidade deve cuidadosamente ser procurada e assegurada, para que os fiéis não tenham que sofrer problemas de consciência. O caminho dos cônjuges será, portanto, facilitado se, na estima da doutrina da Igreja e na confiança na graça de Cristo, ajudados e acompanhados pelos pastores e pela inteira comunidade eclesial, descobrirem e experimentarem o valor da libertação e da promoção do amor autêntico, que o Evangelho oferece e o mandamento do Senhor propõe. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 34, grifo nosso). Assim, contando com a graça e o acompanhamento da Igreja, os cônjuges buscarão, em cada etapa da vida, crescer na vivência da moral divina. Nos dias atuais, o Papa Francisco, na sua Exortação Evangelii Gaudium (EG), dentro de um contexto em que fala da missão que se encarna nas limitações humanas, retoma o número 34 da Familiaris Consortio e diz: Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas. (JOÃO PAULO II, FC, 1982, n. 34, grifo nosso). Assim, na trilha da missão pastoral da Igreja e percebendo a realidade do acompanhamento das etapas de crescimento das pessoas, passa-se agora ao conhecimento de alguns elementos da vida e da obra de Erik Erikson, no intuito de uma posterior reflexão Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. Sebastião Corrêa Neto | 15 sobre as etapas críticas da família, na perspectiva do desenvolvimento humano. 4 ERIK ERIKSON E AS ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO Erik Erikson nasceu em 1902 e morreu em 1994, com 92 anos de idade, nos Estados Unidos. Viveu a primeira parte da sua vida na Europa. Foi criado na Alemanha. Iniciou a vida profissional como pintor de retratos e logo ganhou reputação de artista, especialmente por seus retratos de crianças. Depois de pintar o retrato da filha de Freud, recebeu dele o convite para estudar psicologia e ser analista de crianças. Aceitou o convite, deixou as viagens e a pintura e assumiu compromisso com a psicologia. Como ele mesmo diz: “Vim da arte para a psicologia...” (ERIKSON, 1971, p. 14). Fez parte do círculo íntimo de Freud em Viena. Com a ascensão do nazismo na Alemanha, emigrou para os Estados Unidos. Foi o primeiro psicanalista infantil de Boston. Aí, além da prática psicanalítica, engajou-se em vários estudos antropológicos sobre a infância e o desenvolvimento humano em outras culturas. Testou a utilidade de suas formulações teóricas com estudo de biografias. Desenvolveu significativa carreira universitária. Erikson aprofundou seus estudos no momento em que o contexto da psicologia do desenvolvimento humano se ampliava. Nesse mesmo tempo, os estudos sobre o desenvolvimento do adulto se avolumavam, talvez pelo fato de a população de idade superior a 60 anos ter crescido. Com o desdobrar das pesquisas, há uma mudança na análise do desenvolvimento humano. Aos poucos, percebe-se que não somente os traumas vividos na infância influenciam a história de vida do sujeito. (CÓRIA-SABINI, 1993, p. 105-107). Nessa corrente, Erikson, apesar de beber fortemente das ideias de Freud, contrasta com ele ao estabelecer que, apesar da importância das experiências infantis, os eventos dos estágios ulteriores podem contrapor-se às experiências negativas da infância e superá-las. Ou seja, o que se constrói na infância, em termos de personalidade, não é totalmente fixo e pode ser modificado por experiências posteriores. Além disso, ao considerar sempre o ser humano como ser social, Erikson amplia o “drama freudiano da família nuclear, para incluir mais consistentemente a interação da pessoa com as instituições e os Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. 16 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR símbolos culturais da sociedade.” (FOWLER, 1992, p. 48). Distinguese, assim, da teoria freudiana, por enfatizar a influência social mais do que a predominância biológica sobre a personalidade. Suas duas principais obras são: Infância e sociedade (1950) e Identidade, juventude e crise (1968). Na primeira, examina os aspectos da infância, ainda ligado ao caminho traçado por Freud. Para isso, estuda tribos indígenas, a educação e a sociedade norteamericana. Desenvolve o diferencial de sua reflexão ao perceber, sem ignorar Freud, que a sociedade tem papel decisivo na constituição da identidade das pessoas. Assim, aliam-se psicanálise e história. Para ele, o método psicanalítico é, essencialmente, um método histórico e o psicanalista é um novo tipo de historiador. Na obra Identidade, juventude e crise, ele analisa os sistemas totalitários e seus efeitos sobre a adolescência. O centro é a adolescência e a crise que ela desperta. Erikson avalia a vida de personalidades para perceber os efeitos da adolescência. Assim, ele conclui que esta não é uma doença, mas uma etapa da vida que, naquele momento, ganhava um corpo todo especial na sociedade. O eixo da investigação sobre a adolescência gira em torno do ciclo vital como epigênese da identidade. (ERIKSON, 1976, p. 90). Para tal passo, ele aprofunda a ideia de crise de identidade que já havia aparecido há vinte anos, em sua primeira grande obra. Partindo de uma amplitude e complexidade presentes no uso do termo identidade, ele procura delimitar melhor seu sentido e seu significado. Ao longo dessas obras, Erikson explana as etapas do desenvolvimento. Em um primeiro momento, na era moralista da infância, acontece a internalização de normas e são colocadas para a pessoa as expectativas culturais, de acordo com o ensinado pelos pais, outros adultos e pelos relacionamentos construídos. Tal era corresponde a quatro fases: a infância inicial, duas idades lúdicas e a idade escolar. Surge então a adolescência, como um momento da vida no qual é possível captar o bem universal em termos ideológicos. Resolvida a crise de identidade adolescente, a ética adulta surge possibilitando relações de desvelo, generatividade e transmissão da sabedoria para com os outros. Estas últimas são as etapas da primeira idade adulta, a adultez em si e a velhice. Alguns conceitos da reflexão de Erikson devem ser esclarecidos anteriormente. Um primeiro conceito é o de “ciclo vital”. Para Erikson, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. Sebastião Corrêa Neto | 17 ser humano é um ser que cresce através de sucessivas crises. Ou seja, “Uma criatura que evoluiu com um ciclo vital específico, adaptado à sua espécie de meio modificado – e isso só pode significar um potencial de adaptação vital permanentemente renovada.” (ERIKSON, 1976, p. 234). “É certo que cada família tem uma ‘biografia’ que lhe é própria, mas a maioria passa por etapas relativamente comuns a elas.” (CARVALHO, 1998, p. 19). Assim como o ser humano, no sentido individual, a família também tem seu ciclo. O desafio são sempre os impasses e arranjos no ciclo individual e familiar. Outro conceito é o de “evento crítico”. Sugere um acontecimento, uma crise que modifica a organização familiar constituída até então e exige uma nova adaptação. De um ponto, aparentemente negativo, traz instabilidade. Mas junto carrega a possibilidade de novo amadurecimento pessoal e familiar. Para Erikson, “a palavra crise é usada aqui num sentido de desenvolvimento para designar não a ameaça de catástrofe, mas um ponto decisivo, um período crucial de crescente vulnerabilidade e potencial; e, portanto, a fonte ontogenética da força e do desajustamento generativo.” (ERIKSON, 1976, p. 96). A cada momento do ciclo vivenciado, a crise produzida traz ao indivíduo e, aqui no caso, à família, novas tarefas ou incumbências. A cada momento exige-se desenvolvimento pessoal e nova adequação nas relações familiares. 5 A FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS Agora se apresentam quatro eventos críticos. (CARVALHO, 1998, p. 19-25). Em cada um será dada a contribuição de Erikson e a visão a partir da realidade do acompanhamento da Pastoral Familiar. a) A chegada do primeiro filho2 Um momento vital que, simbolicamente, diz da constituição 2 “É tão acertado dizer que os bebês controlam e criam suas famílias, como o inverso. Uma família só pode educar um bebê sendo educada por este. O seu crescimento consiste numa série de desafios aos membros da família, para que esta sirva às recém-criadas potencialidades de intenção social do bebê.” (ERIKSON, 1976, p. 96). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. 18 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR da família. Duas realidades. (CARVALHO, 1998, p. 20-22). O casal de um lado e a jovem mulher grávida, que não tem companheiro, de outro. No primeiro caso, entra toda a perspectiva de ajustamento do casal de estarem “grávidos”. No segundo, vem toda uma série de demandas, que, além do crítico de ser mãe, recaem sobre a jovem grávida. Segundo Erikson, na etapa do jovem adulto, que ele chama de “intimidade”, a instituição social que a ampara tem a ver com a regulação dos padrões de relação. Ou seja, com o organizar eticamente os relacionamentos. Assim se expressa Erikson: À medida que as áreas de responsabilidade adulta são gradualmente delineadas, quando o encontro competitivo, o vínculo erótico e a inimizade irredutível são diferenciados uns dos outros, elas acabam ficando sujeitas àquele sentimento ético que é a marca do adulto e que sucede à convicção ideológica da adolescência e ao moralismo da infância. (ERIKSON, 1976, p. 137). A resolução da fase inicial da vida adulta concede ao jovem adulto a virtude do amor. Supõe devoção mútua entre os parceiros que escolheram compartilhar suas vidas, ter filhos e favorecer o seu desenvolvimento saudável. Além disso, envolve também a interpenetração mútua de emoção e vontade na amizade, assim como outras situações de proximidade baseada em comprometimento. E assim se expressa o próprio Erikson ao dar uma formulação para a realidade surgida com a intimidade: “nós somos o que amamos.” (ERIKSON, 1976, p. 138). Em geral, o acompanhamento da Pastoral Familiar se dá tendo como núcleo a celebração do matrimônio. Por isso, todos os esforços estão na preparação dos noivos e a celebração nupcial. Ou seja, o centro de constituição da família gravita na celebração nupcial. No entanto, o texto provoca questionamentos e novos direcionamentos ao marcar a constituição simbólica da família no nascimento do primeiro filho. E, nesse sentido, em tal evento crítico, há pouca presença no acompanhamento da Pastoral Familiar. Esse pode ser o momento de maior tensão familiar e, no qual podem acontecer muitas separações. É uma grande mudança na vida do casal e assunção de novos papéis. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. Sebastião Corrêa Neto | 19 No caso das jovens grávidas, sem a ajuda de um companheiro, as chamadas “mães solteiras”, quase nada se tem feito. Além de lidarem com a situação crítica própria da gravidez, ainda têm que enfrentar toda uma carga de estigmas. b) Família com filhos pequenos “É nessa fase que se estrutura o mundo interior, por meio do vínculo afetivo com a mãe e o pai”. Do bebê, passando à “meninice” até a idade escolar, Erikson irá desenvolver uma série de realidades desafiantes para o desenvolvimento humano, através do processo psicossocial. Nessas etapas, “virtudes” como a esperança, força de vontade, determinação e destreza surgem e vão ser fator importante na vida do futuro adulto. Assim, o processo familiar e educacional se torna fundamental para a boa resolução dessas etapas. “A infância, hoje em dia, deve ser destinatária de uma ação prioritária da Igreja, da família e das instituições do Estado. Tanto pelas possibilidades que oferece como pela vulnerabilidade a que se encontra exposta.” (CELAM, DAp, 2007, n. 438). Segundo Erikson, aos pais cabe desenvolver a “generatividade”. Ou seja, a preocupação de adultos maduros com o estabelecimento e a orientação da nova geração. Prevendo o desaparecimento progressivo de suas vidas, as pessoas percebem a necessidade de se envolverem na continuidade da vida. A evolução fez do homem um animal tanto ensinante como aprendiz, visto que dependência e maturidade são recíprocas; o homem maduro necessita ser necessitado e a maturidade é guiada pela natureza daquilo que deve ser assistido. A generatividade é, pois, de modo primordial, a preocupação em estabelecer e orientar a geração seguinte. (ERIKSON, 1976, p. 138). A realidade dos casais novos, que em geral se afastam da dinâmica da comunidade para cuidar do “ninho” e da prole, exige aproximação e escuta atenta. Por vezes se quer somente o serviço desinteressado deles. Mas corre-se o risco, após seu distanciamento por causa da falta de tempo e disposição pela necessidade de cuidado “intrafamiliar”, de serem relegados como desertores. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. 20 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR c) Famílias com filhos adolescentes A adolescência é tempo de autoafirmação, quando os pais deixam de ser a referência. A “aventura” do agora adolescente domina a cena. Acontecem ritos de separação e de agregação a outros grupos. Processo de emancipação da adolescência. Na perspectiva de Erikson³ , dois conceitos precisam ser ressaltados aqui: moratória psicossocial e identidade. Quanto ao primeiro, moratória psicossocial, Erikson o entende como período de adiamento, um intervalo que a sociedade oferece, de certa forma, ao adolescente, para resolver seu conflito de identidade. Por moratória social psicossocial entendemos um compasso de espera nos compromissos adultos e, no entanto, não se trata apenas de uma espera. É um período de tolerância seletiva por parte da sociedade e uma atividade lúdica por parte do jovem; entretanto, conduz também, frequentemente, a um empenho profundo, ainda que amiúde transitório, do jovem – 3 terminando com uma confirmação mais ou menos cerimonial desse compromisso pela sociedade. (ERIKSON, 1976, p. 157). A moratória pode ser então experimentada ou como um período de aprendizado, aventuras e delinquências, ou entendida como um “empenho profundo”, um sentimento de grande compromisso e seriedade em relação a uma causa, mas que, depois, o adolescente descobre que tal caminho era apenas um período de transição. Já o conceito de identidade, para Erikson, é a resposta da pessoa quando responde à pergunta: “quem sou?”, construída a partir da socialização nas etapas infantis em conjunto com as etapas psicológicas e biológicas. Na infância, já se lança o que se espera do adulto. De um lado, o dado pela educação, o sonho projetado sobre a pessoa. De outro lado, quando da crise da adolescência, a possibilidade 3 Para Erikson, a “adolescência é a idade da determinação final de uma dominante identidade positiva do ego. É então que um futuro próximo participa do plano consciente da vida. É então que surge a questão de se o futuro foi ou não antevisto nas expectativas anteriores. [...] A grande preocupação do adolescente é quem e o que são aos olhos de um círculo mais amplo de pessoas significativas, em comparação com o que eles próprios chegaram a sentir que são; e como relacionar os sonhos, as idiossincrasias, os papéis e as habilidades, cultivados anteriormente, com os protótipos ocupacionais e sexuais da época.” (ERIKSON, 1971, p. 284-285). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. Sebastião Corrêa Neto | 21 de escolher o futuro: a pessoa se projeta. A identidade é o processo de recapitulação das crises da infância: quais forças a pessoa adquiriu? Quais fracassos? O que a sociedade e a educação ofereceram? Mas é também projeção e antecipação ao futuro: com quem estará? Em que gastar a vida? Ela se forma à medida que as pessoas resolvem três questões importantes: a escolha da ocupação, a adoção de valores nos quais acreditar e segundo os quais viver, e o desenvolvimento de uma identidade sexual satisfatória4. (ERIKSON, 1976, p.157). Os pais precisam redirecionar o exercício da autoridade e a fixação de limites. Há certa frustração por parte deles, por não verem os filhos realizarem os projetos que eles elaboraram. E as relações tendem a ser tensas, pois os filhos questionam a autoridade dos pais e os consideram ultrapassados. Duas saídas podem ser apresentadas aos pais: tentar se adaptar e criar abertura às mudanças ou firmar em seus valores e fechar-se ao diálogo. Eles têm que elaborar a possibilidade de não dependência dos filhos. Aqui entra o trabalho dos segmentos relacionados à evangelização e ao cuidado com a adolescência e a juventude. Em muitos casos, tem-se conseguido colaborar com os pais nessa etapa. Muitas vezes, a participação em um grupo de jovens é um processo seguro de emancipação. Falta ainda maior integração com a Pastoral Familiar. Tem-se que pensar aqui a complexidade da adolescência hoje. Há os adolescentes que queimam etapas e são lançados no mundo do trabalho por necessidade da família. Mas há também os jovens que não querem deixar o “ninho” familiar, pois não precisam. Há tantos outros desafios, como a violência e o extermínio dos jovens, as drogas, a sexualidade. Tudo isso exige uma atenção e ações efetivas. d) O envelhecimento dos pais e a saída dos filhos Em geral, o envelhecimento5 dos pais e a saída dos filhos 4 Confrontar com as tarefas específicas apontadas por Erikson no processo adolescente. 5 “Não é fácil envelhecer em um país de jovens e com uma forte tendência cultural para valorizar o presente e o novo, como acontece em nosso país.” (CÓRIA-SABINI, 1993, p.112). Além disso, há toda uma perspectiva de cultura jovem que domina a cena. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez.2014. 22 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR coincidem. Nesta etapa é necessário que os pais se desliguem do papel assumido durante muitos anos de suas vidas. Novas relações se instauram: agora tende a acontecer entre iguais e não mais como provedor e dependente. Percebe-se que esse momento tem sido um dos mais complexos no que diz respeito a um casamento. Durante anos o casal dedicou-se aos cuidados dos filhos e agora eles partem. Para criar os filhos, muitos casais de forma metafórica “se separam”. A mãe se devota tanto aos filhos que se “esquece” do marido. Ele vira o pai e, de certa forma, deixa de ser marido. O papel do pai fica em geral como aquele que dá suporte à vida familiar. Quando os filhos saem, os pais têm que enfrentar a crise do vazio deixado. Ou a sensação de “missão cumprida”. Mas e agora? Qual o sentido da vida, do casamento daqui pra frente? O casal pode tornar-se mais íntimo. Mas pode vir a se separar, por não conseguir se ajustar à nova realidade. 6 CONCLUSÃO A família, como todas as instituições, sofre com as transformações sociais dos últimos tempos. Ao acompanhar tais impactos, a Igreja se organiza, através de suas instâncias pastorais, para o acompanhamento e a assistência para o crescimento, mas também para servir, em diversos momentos críticos da vida em família. O presente artigo teve como objetivo aprofundar tal acompanhamento, focalizando-o sob a ótica das diversas etapas da vida da família. Quis, assim, avaliar os processos pastorais à luz dos eventos críticos da família. Para isso, além do Magistério, o texto dialogou com as reflexões de Erik Erikson. Viu-se que, nos diversos momentos da vida da pessoa e da família, novas realidades surgem, trazendo forças, mas também a possibilidade de um desajustamento. A vida em família se desdobra em constantes rupturas e reconstrução da trajetória. Cabe a quem acompanha e, aqui, no caso, à Pastoral Familiar, entender melhor esses eventos críticos e se fazer presente a eles. Além disso, o aprofundamento de tais realidades permite abrir a consciência para o fato das etapas da vida. O enfoque biográfico, é verdade, não pode ser absolto. Ao lado, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. Sebastião Corrêa Neto | 23 caminha, em harmonia, o olhar teológico e cultural. Assim, pode-se integrar uma visão bíblica e magisterial, confrontada com as questões que marcam a época hodierna e, ainda, como proposto nesse texto, levar em consideração os aspectos vividos por aquela determinada família em sua etapa de vida. Pe. Sebastião Corrêa Neto, padre do clero da Diocese de Oliveira, Minas Gerais. Graduado em Filosofia e Teologia pela PUC Minas, pós-graduado em Formação Presbiteral e pós-graduando em Aconselhamento Pastoral e Orientação Espiritual pelo ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino), em Belo Horizonte. Autor do livro Juventudes e vocações hoje: caminhos e perspectivas para uma pastoral vocacional. E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS BOTERO G., P. J. Silvio. A caridade pastoral: por uma pedagogia da misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2009. CARVALHO, Maria do Carmo Brant. A família e seus estágios críticos. In: CARVALHO, Maria do Carmo Brant et al. Serviços de proteção social às famílias. São Paulo: IEE/PUC-SP; Brasília: Secretaria de Assistência Social/MPAS, 1998. CELAM. CONSELHO EPISCOPAL LATINO - AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino - Americano e do Caribe.7.ed. Brasília; São Paulo: CNBB; Paulinas; Paulus, 2008. CÓRIA-SABINI, Maria Aparecida. Psicologia do desenvolvimento. São Paulo: Ática, 1993. 168p. ERIKSON, Erik H. Identidade: juventude e crise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. FOWLER, James W. Estágios da fé: a psicologia do desenvolvimento humano e a busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1992. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24, jul./dez. 2014. 24 | FAMÍLIA E SEUS EVENTOS CRÍTICOS: CONTRIBUIÇÃO A PASTORAL FAMILIAR FRANCISCO, Papa . Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. Brasília: CNBB, 2013. JOÃO PAULO II, Papa. Exortação Apóstólica Familiaris Consortio: sobre a função da família cristã no mundo de hoje. São Paulo: Paulinas, 1982. JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Pacem in Terris. São Paulo: Paulinas, 1963. PAULO VI, Papa. Populorum Progressio: carta encíclica. Petrópolis: Vozes, 1967. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.9-24 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 25 ALTERIDADE: Emancipação e Humanização Ismael Garcia de Sousa* Profª. Rita de Cássia Cypriano Valladares** Resumo A Alteridade é a condição necessária na distinção e na construção do ser humano. A presença do outro gera o encontro do inter-humano, e o encontro resgata no mais profundo do ser uma exigência ética, ou seja, uma responsabilidade infinita. O outro fundamenta a existência humana. A relação é essencialmente fundamento da existência. E a sua base é o diálogo. A palavra é a fonte originária da manifestação do rosto. Ela é transcendência, não transcendente, ela comunica e revela a face do outro. Porém, essa forma de comunicar nem sempre é compreendida e interpretada. No entanto, o outro não só comunica através de palavras, mas o seu corpo é linguagem e, desse modo, expressão. O rosto não limita o Eu, mas resgata aquilo que é mais sagrado nele: sua própria consciência. A Alteridade realiza, constrói e completa o humano. O outro não é um mero objeto ou um ser inferior ou uma praga a ser eliminada. Ele é presença inevitável na relação. É na sua presença que o Eu se torna humano. Quando se diz Tu, a Alteridade se impõe com sua reivindicação ética: não matarás. Não matar é a responsabilidade máxima que a Alteridade desperta no Eu. Palavras-chave: Alteridade. Construção. Diálogo. Emancipação. Humanização. 1 INTRODUÇÃO Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 26 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO A relação é um fenômeno de natureza antropológica. Ela é o encontro do Eu com o outro. O outro, na sua maneira de ser, é diferente do Eu. A absurda incompreensão egoísta da Alteridade, ou seja, da presença do outro, a ausência do cuidado, da compaixão, da responsabilidade e da solidariedade culminou e culmina na negação (assassinato, desprezo, rejeição, etc.) do outro – não como objeto, mas como pessoa. Perante este alarmante fato, faz-se necessário pensar e refletir a Alteridade como um elemento essencial na formação e na construção do ser humano. É na presença do outro que o Eu se reconhece, se humaniza e se emancipa. Nesta presente reflexão, pretende-se primeiramente apresentar que a vida humana é marcada essencialmente pela presença do outro enquanto consciência e, em segundo lugar, mostrar que essa presença desperta, em ambos, uma responsabilidade infinita. Além disso, procura-se também apontar que é nesse encontro que o Eu se reconhece como pessoa. E por último, apresentar que a Alteridade é uma proposta capaz de modificar, transformar e realizar o ser humano. O ser humano está sempre se relacionando. O outro é presença cotidiana na vida do Eu. O homem se relaciona em sua casa, no seu ambiente de trabalho, na forma de expressar sua religiosidade, nas suas horas de lazer, na sua sexualidade, por onde caminha, em qualquer lugar em que se encontrar, etc. A vida do homem é marcada pelo encontro dialogal. Por isso, a reflexão sobre a Alteridade deve ser experiência cotidiana. O encontro é inevitável. Portanto, não se pode pensar nem refletir sem perceber a situação concreta da existência. Martin Buber e Emmanuel Lévinas representam um vínculo de responsabilidade entre a reflexão e a ação, entre a práxis e o logos. Eles compreendem que as reflexões são iluminadas pela experiência existencial de presença ao mundo. A fonte de seus pensamentos são suas vidas e essas são as manifestações concretas de suas convicções. Este trabalho tem como fundamento esses dois autores que fizeram de sua vida uma verdadeira reflexão. A Alteridade é a fonte de realização do ser humano, é o suporte de emancipação e humanização. 2 ALTERIDADE Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 27 Para melhor compreensão do termo Alteridade, tanto na obra de Buber1 quanto em Lévinas2 , faz-se necessário conhecer, nem que seja sinteticamente, a genealogia dessa palavra. Sobre isso, diz a Logos Enciclopédia: O substantivo português alteridade tem por antecedente próximo o latino alteritas (de alte, outro), [...] no sentido aproximado de diferença, desunião. Comumente chama-se Alteridade em ontologia à condição de um ser distinto de outro no seu modo de ser específico ou no seu facto de ser numérico, i. é, na sua essência ou na sua existência: contrapõe-se à identidade de um ser consigo mesmo. A operação intelectual pela qual reconhecemos a Alteridade é designada distinção; a existência objectiva da Alteridade traduz-se pelo conceito de diversidade (SUMARES, 1989, p. 186). Não se contentando somente com essa definição, Abbagnano (2000) define a Alteridade desta forma: “Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. A Alteridade é um conceito mais restrito do que diversidade e mais extenso do que a diferença.” (ABBAGNANO, 2000, p. 34). Portanto, a palavra Alteridade nos chama ao diálogo. A presença do outro é uma experiência vital. Essa experiência ensinanos a conviver com aquilo que é diferente, a proporcionar um olhar interior a partir das diferenças. Significa reconhecer o outro em mim. Não se contentando somente com essa definição, Abbagnano (2000) 1 Aos 8 de fevereiro de 1878 nasce na cidade de Viena, Áustria, Martin Buber. No auge da juventude, entre seus 15 e 17 anos, sua vida foi profundamente marcada pela filosofia. As ideias de tempo e de espaço tomaram intensamente seu espírito. “Suas pesquisas se aprofundaram em diversas áreas: estudos sobre a Bíblia, Judaísmo e Hassidismo; estudos políticos, sociológicos e filosóficos” (BUBER, 2004, p.14). Durante toda a sua vida, Buber não se filiou a nenhum movimento filosófico, pois dizia que a filosofia e o filosofar são puramente abstração. E enquanto abstração, ela separa o homem da concretude da existência vivida. Buber, ao adentrar nos estudos místicos, mergulhou então num vazio existencial. E no dia 13 de junho de 1965, em Jerusalém, veio a falecer.. 2 Aos 12 de janeiro de 1906, nasceu na cidade de Kaunas, na Lituânia. Sua vida e seu pensar foram inspirados pela Bíblia hebraica. 1930. Exilado por cinco anos, jamais poderá esquecer a marca do ódio do homem contra o outro homem deixado pela violência nazista. Por razão desse horror, Lévinas começa a contruir sua ética da responsabilidade e a escrever suas obras mais importantes. Depois do cativeiro, dirigiu por dezoito anos (1946-1964) a Escola Normal Israelita Oriental de Paris e, na época, deu conferências no Colégio de Filosofia. Ele completou sua carreira acadêmica como professor da Universidade de Sorbone. O legado filosófico deixado por Lévinas vem despertando cada vez mais interesse no mundo inteiro. A ética levinasiana é marcada pela responsabilidade para com o outro. O filósofo veio a falecer bem na manhã de Natal, no dia 25 de dezembro de 1995, em Paris. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 28 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO define a Alteridade desta forma: “Ser outro, colocar-se ou constituirse como outro. A Alteridade é um conceito mais restrito do que diversidade e mais extenso do que a diferença.” (ABBAGNANO, 2000, p. 34). Portanto, a palavra Alteridade nos chama ao diálogo. A presença do outro é uma experiência vital. Essa experiência ensinanos a conviver com aquilo que é diferente, a proporcionar um olhar interior a partir das diferenças. Significa reconhecer o outro em mim O diálogo é capaz de romper as fronteiras do universo humano, de cessar guerras, de unir nações e antropologicamente de ressuscitar o homem das garras do medo e da depressão. A obra buberiana Eu e Tu é a fase mais madura e completa da filosofia do diálogo. Ela, segundo Buber (2004), “não é simplesmente uma descrição fenomenológica das atitudes do homem no mundo ou simplesmente uma fenomenologia da palavra, mas é também e sobretudo uma ontologia da relação” (BUBER, 2004, p. 29). Para ele, a palavra se apresenta como dialógica, ou seja, portadora de ser, palavra falante. A palavra é uma ação do homem na qual se faz homem e se estabelece no mundo com os outros. A palavra é princípio, fundamento da existência humana. A palavra como diá-logo é o fundamento ontológico do interhumano. [...] A ontologia da relação será o fundamento para uma antropologia que se encaminha para uma ética do interhumano. Diz-se então que o homem é um ente de relação ou que a relação lhe é essencial ou fundamento de sua existência. (BUBER, 2004, p. 31). Segundo Buber (2004), para o homem o mundo é duplo e sua atitude também é dupla conforme as palavras que ele pode pronunciar: são duas, e ele as chama de palavras-princípio “Eu-Tu e Eu-Isso”. Na primeira parte da obra, ele diz: O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude. A atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir. As palavras-princípio não são vocábulos isolados mas pares de vocábulos. Uma palavra-princípio é o par Eu-Tu. A outra é o par Eu-Isso, no qual, sem que seja alterada a palavra-princípio, pode-se substituir Isso por Ele ou Ela. Deste modo, o Eu do homem é também duplo. Pois, o Eu da palavra-princípio Eu-Tu Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 29 é diferente daquele da palavra-princípio Eu-Isso. As palavrasprincípio não exprimem algo que pudesse existir fora delas, mas uma vez proferidas elas fundamentam uma existência. As palavras-princípio são proferidas pelo ser. Se se diz Tu proferese também o Eu da palavra-princípio Eu-Tu. Se se diz Isso profere-se também o Eu da palavra-princípio Eu-Isso. [...] Não há Eu em si, mas apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-princípio Eu-Isso. Quando o homem diz Eu, ele quer dizer um dos dois. (BUBER, 2004, p. 53). Ao compreender que o mundo é duplo para o homem e que essa duplicidade se dá numa relação recíproca e não violenta, passamos realmente para o significado de Alteridade. As palavras-princípio são uma unidade entre o Eu e o Outro (Tu; Isso), porém, o Eu e o Outro são totalmente distintos. O primeiro está relacionado à subjetividade e o segundo, à objetividade. Pois bem, o Tu representa o outro homem e é com este que o diálogo acontece. O Isso representa o mundo e tudo aquilo que existe nele. Em relação ao Tu, Buber (2004) afirma: A vida do ser humano [...] não se limita somente às atividades que têm algo por objeto. Eu percebo alguma coisa. Eu experimento alguma coisa, ou represento alguma coisa, eu quero alguma coisa, ou sinto alguma coisa, eu penso em alguma coisa. A vida do ser humano não consiste unicamente nisto ou em algo semelhante. Tudo isso e o que se assemelha a isso fundam o domínio do Isso. (BUBER, 2004, p. 54). O Tu é definido como o outro homem, ele fundamenta o mundo da relação. No diálogo ou na relação o Tu não é objeto do Eu nem vice-versa. São duas consciências que se interagem e que só existem analogicamente. Para melhor compreender, Buber (2004) diz: O homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas quando, estando eu presente diante dele, que já é meu Tu, endereço-lhe a palavra-princípio. Ele não é um simples Ele ou Ela limitado por outros Eles ou Elas, um ponto inscrito na rede do universo de espaço e tempo. Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável, descritível, um feixe flácido de qualidades definidas. Ele é TU, sem limites, sem costuras preenchendo todo o horizonte. Isto não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 30 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO luz. [...] o homem a quem eu digo Tu não encontro em algum tempo ou lugar. Eu posso situá-lo, sou, aliás, obrigado a fazêlo constantemente, mas então, ele não é mais um Tu e sim um Ele ou Ela, um Isso. [...] Eu não experiencio o homem a quem digo Tu. Eu entro em relação com ele no santuário da palavra-princípio. Somente quando saio daí posso experienciálo novamente. A experiência é distanciamento do Tu. A relação pode perdurar mesmo quando o homem a quem digo Tu não o percebe em sua experiência, pois o Tu é mais do que aquilo de que o Isso possa estar ciente. O Tu é mais operante e acontecelhe mais do que aquilo que o Isso possa saber. Aí não há lugar para fraudes: aqui se encontra o berço da verdadeira vida. (BUBER, 2004, p. 57-58). A Alteridade buberiana é relação de reciprocidade que se encontra na palavra-princípio Eu-Tu, ou seja, uma relação interpessoal, dia-logal, dia-pessoal, relação de subjetividades, de consciências. É o encontro entre duas consciências que consolidam o mundo da relação. A relação é um dado antropológico, e só o ser humano é capaz de conferir-lhe sentido. 2.1 Alteridade em Lévinas Diferentemente de Buber, Lévinas considera que o diálogo com o outro é uma ação não recíproca. Ela é uma ação violenta, onde o outro deixa o Eu totalmente desconcertado, provocando assim uma mudança. O diálogo me obriga a uma relação transformadora e desconcertante: O diálogo com o outro obriga a uma relação que desestabiliza o Eu transformando-o profundamente e desconcerta a firmeza do Eu pelo encontro do rosto da Alteridade; esse deslocamento radical do Eu seria onde começa a verdadeira terra-natal do homem. [...] Um pelo outro, [...] no que estaria implicado o envio na direção do outro; o Eu seria a resposta a um apelo que o precede e esta seria também a sua unicidade. E não haveria como alguém responder em seu lugar, não há como escapar a essa responsabilidade pelo outro; não é o Eu que a escolhe mas ele é como que investido por ela, chegando ao ponto de substituir o outro e expiar por ele, de tirar o pão da própria boca e de dar a pele ao outro. (BONAMIGO, 2005, p. 95). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 31 No entanto, quem seria este outro? O que Lévinas nos falaria sobre este outro? O outro para Lévinas se revela, vem ao encontro, se abaixa até o mesmo (Eu). E o Eu – interioridade, profundidade – é chamado à acolhida, à hospitalidade. Como um estranho, o outro se revela a uma identidade que é interpelada e a qual, portanto, deve responder. Daqui a noção de responsabilidade. Se o outro escapa à definição é porque é ilimitado, indefinível, infinito. Com efeito, Lévinas afirma: O Outro metafísico é outro de uma Alteridade que não é formal, de uma Alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma Alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma Alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma Alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A colectividade em que eu digo “tu” ou “nós” não é um plural de “eu”. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum. (LÉVINAS, 2000, p. 26.). O outro é aquele que se apresenta com sua infinita Alteridade. Quando o outro me olha ele se refere a mim, a sua face se manifesta a mim. “O outro, a Alteridade, é o [...] começo do filosofar, o fundamento da razão, e mais, o sentido do humano e a possibilidade de realização da justiça e da paz.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 31). O outro é infinitamente outro. Nele se encontra algo de misterioso e que ultrapassa a sua presença. Essa transcendência que rompe as barreiras do conhecimento nos remete à ideia do infinito. Mas como o finito pode pensar no infinito? A capacidade do ser finito de pensar no infinito deriva justamente da finitude. E a ideia do infinito que tenho na contemplação do outro é justamente aquilo que está para além de um simples objeto, isto é, o excesso. Esse excesso, ou melhor, a expressão do infinito é o rosto. Assim escreve Lévinas: O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira não consiste em figurar como tema sob o meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 32 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum – a ideia adequada. (LÉVINAS, 2000, p. 38). O outro é aquele que tem a mortalidade estampada em sua face. A proposta de Lévinas de uma relação face-a-face é um apelo urgente de um novo humanismo que socorra, assista, proteja e acolha aquele que sofre em sua fraqueza, mas não somente isso, e sim a todo gênero humano. É no face-a-face humano que irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável. “No rosto do outro, que face-a-face me olha, o infinito enquanto tal revela-se, vem até mim – como uma ideia que o pensamento não pode produzir por si próprio – e me fala.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p.32). 3 ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO O outro enquanto outro escapa à fenomenologia do olhar. A fenomenologia reduz aquilo que se vê a um ente no mundo com um sentido estabelecido a partir do projeto fundamental, do ser: A visão não é transcendência. Concede uma significação pela relação que se faz possível. Contudo a aparição do rosto é a revelação de outro que exige respeito e acolhida. Segundo Lévinas (2000), é no acolhimento do rosto que se instaura a igualdade: No acolhimento do Rosto (acolhimento que é já a minha responsabilidade a seu respeito e em que, por consequência, ele me aborda a partir de uma dimensão de altura e me domina), instaura-se a igualdade. Ou a igualdade produz-se onde o Outro comanda o Mesmo e se lhe revela na responsabilidade; ou a igualdade não é mais do que uma ideia abstracta e uma palavra. Não se pode separar o acolhimento do Rosto de que ela é no momento. (LÉVINAS, 2000, p. 192). Por isso é que o aparecimento do rosto no mundo do mesmo (eu) instaura a exigência ética: “não matarás”! “Matá-lo, ou seja, não me deixar afetar por ele, seria negá-lo, calar sua voz e negar a minha própria humanidade.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 33). Matar significa negar a infinitude do outro, reduzindo-o a um mero ente no Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 33 mundo. “O não matarás surge pelo fato de que estou diante de um maior do que eu e a quem, portanto, devo reverência.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 32). O outro não é apenas um amigo, um parente ou um familiar. O outro é aquele que se pôs à frente do Eu, ele é um estrangeiro: O outro vem a mim como um estrangeiro, um alguém de uma outra terra. Ele é um estranho. E estranhos são sempre vistos com desconfiança e desprezo. Mas acolhê-lo, recebêlo em minha casa, em meu ser é inevitavelmente dar início a uma aventura que não tem fim e nem volta. Na hospitalidade, sou levado a veredas que o meu coração não seria capaz de percorrer se permanecesse sozinho e fechado na imparcialidade silenciosa de seu anonimato. O outro é o meu guia e eu o seu guardião. Ele me ensina que o mundo não se reduz aos meus vizinhos, à minha família, aos meus amigos, à minha etnia, ao meu grupo, nação ou classe social. Ele me ensina, ao devastar o meu egoísmo e ao chamar-me à responsabilidade, que existe sempre algo mais para aprender. (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p..32). Porém, o outro não é simplesmente um ente entre os outros, mas um ser que se manifesta infinitamente pela palavra. O rosto abre o discurso original, cuja primeira palavra é obrigação que nenhuma “interioridade” permite evitar. Discurso que obriga a entrar no discurso, começo do discurso que o racionalismo exige com os seus votos, “força” que convence mesmo “as pessoas que não querem ouvir” e fundamenta assim a verdadeira universalidade da razão. (LÉVINAS, 2000, p. 179). A linguagem se torna, entretanto, apenas o espaço do encontro do Eu com o Outro. A linguagem não é uma simples experiência, nem um meio de conhecimento, mas o lugar do reencontro com o outro, com o estranho, o desconhecido. No diálogo, o sentido da palavra nunca é compreendido e interpretado adequadamente pela hermenêutica3 do Eu. O outro e sua palavra não podem ser reduzidos a uma psicologia, sociologia ou outro conhecimento qualquer, pois a 3 Qualquer técnica de interpretação. Essa palavra é frequentemente usada para indicar a técnica de interpretação da Bíblia. (ABBAGNANO, 2000, p. 497). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 34 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO manifestação do rosto transforma e modifica o homem. Porque “o rosto não se reduz a uma forma plástica, ou seja, uma face. O rosto é toda a corporalidade. Ele significa a Alteridade do outro, sua infinita transcendência. É expressão do Infinito.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p.33). Dirá Lévinas (2000) que o Eu se emancipa e se humaniza na epifania do rosto. O rosto abre a humanidade. A epifania do rosto como rosto abre a humanidade. O rosto na sua nudez de rosto apresenta-me a penúria do pobre e do estrangeiro; mas essa pobreza e esse exílio que apelam para os meus poderes visam-me, não se entregam a tais poderes como dados, permanecem expressão do rosto. O pobre, o estrangeiro, apresenta-se como igual. (LÉVINAS, 2000, p. 190). E ainda, A presença do rosto – o infinito do Outro – é indigência, presença do terceiro (isto é, de toda a humanidade que nos observa) e ordem que ordena que mande. Por isso, a relação com outrem ou discurso é não apenas o pôr em questão da minha liberdade, não apenas a palavra pela qual me despojo da posse que me encerra, ao enunciar um mundo objectivo e comum, mas também a pregação, a exortação, a palavra profética. A palavra profética responde essencialmente à epifania do rosto, duplica todo o discurso, não como um discurso sobre temas morais, mas como momento irredutível do discurso suscitado essencialmente pela revelação do rosto enquanto ele atesta a presença do terceiro, de toda a humanidade, nos olhos que me observam. (LÉVINAS, 2000, p. 191). “No encontro, um novo homem, melhor, surge situado para além de si-mesmo, pois o rosto do outro retira o eu do seu privilegiado ensimesmamento egoico, colocando em causa sua existência para si.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p.33). É a presença do outro que retira o Eu da sua mais profunda solidão. Porém, o que a história da humanidade nos mostrou foi realmente uma história marcada pelo ódio. No entanto, a preocupação de Buber e Lévinas foi justamente com o humano. Eles propõem a Alteridade como forma de realização. Buber, após a Primeira Guerra Mundial, propõe o encontro dialógico. Na Introdução de sua obra Eu e Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 35 Tu, são apresentadas duas formas de presença: Em suma existem dois modos de presença. Sendo originários, a relação Eu-Tu e o conceito de presença recebem seu sentido autêntico na doação originária do Tu. No encontro dialógico acontece uma recíproca presentificação do Eu e do Tu. No relacionamento Eu-Isso se o Isso está presente ao Eu não podemos dizer que o Eu está na presença do Isso. A Alteridade essencial se instaura somente na relação Eu-Tu; no relacionamento Eu-Isso o outro não é encontrado como outro em sua Alteridade. Na relação dialógica estão na “presença” o Eu como pessoa e o Tu como outro. (BUBER, 2004, p. 36). Mas o Eu-Tu, relação fundamental entre humanos, não foi concretizado. O que se presenciou foi o surgimento do totalitarismo, incorporado por Hitler na Alemanha e por Mussolini na Itália. No entanto, ainda permanece a proposta elaborada e feita na carne por Buber e Lévinas. A imortalidade deles se encontra nas suas obras, principalmente em Eu e Tu e em Totalidade e Infinito. Em Buber (2004) podemos também presenciar em seu pensamento a proposta: “[...] a humanidade reduzida a um Isso, tal como se pode imaginar, postular ou proclamar, nada tem em comum com uma humanidade verdadeiramente encarnada à qual um homem diz verdadeiramente Tu.” (BUBER, 2004, p.60). A presença se instaura na medida em que o Tu se faz presente. A humanização do homem se concretiza quando ele se torna Eu, mas isso só acontece enquanto se relaciona com o Tu. A relação configura-se na palavra-princípio Eu-Tu. A identidade do Eu se realiza como reconhecimento do outro enquanto tal. A relação é possibilidade de atualização do encontro. O diálogo é, para Buber (2004), a forma explicativa do fenômeno do interhumano. O inter-humano é a realização concreta da vida dialógica. Nessa situação, uma pessoa se confronta realmente com outra, cada uma confirmando a outra reciprocamente. Quando se pronuncia Tu, este não se refere a um objeto, ou melhor, a nenhum, mas alude a uma pessoa. Aquele que diz Tu não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde há uma coisa há também outra coisa; cada Isso é limitado por outro Isso; o Isso só existe na medida em que é limitado por outro Isso. Na medida em que se profere o Tu, coisa alguma Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 36 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO existe. O Tu não se confina a nada. Quem diz Tu não possui coisa alguma, não possui nada. Ele permanece na relação. O mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação. O mundo da relação se realiza em três esferas: A primeira é a vida com a natureza. [...] A segunda é a vida com os homens. Nesta esfera a relação é manifesta e explícita: podemos endereçar e receber o Tu. [...] A terceira é a vida com os seres espirituais. (BUBER, 2004, p. 54-55). No inter-humano não há lugar para aparências, para o simples lado a lado, para a imposição, ou a falsidade. O dialógico se realiza no inter-humano como um voltar-se para o outro, bem determinado, e concreto, e este, ao voltar-se, alicerça o estabelecimento de um Nós que protege a consciência, a liberdade e a responsabilidade de cada pessoa. Portanto, a experiência fundamental e fundadora da pessoa é a relação Eu-Tu. O que faz o humano ser solidário a outro é a consciência de si mesmo. É no encontro que o homem toma consciência de si e de suas ações. O encontro se dá entre duas consciências e, nisto, se compreende a liberdade. Esta é, na compreensão de Lévinas, a afirmação do ser enquanto pessoa. Nesse sentido, o Eu é responsável pela afirmação do outro. A responsabilidade, ou seja, o cuidado com um ser humano, não enquanto objeto (Isso), e sim enquanto pessoa (Tu), é essencialmente amorosa. O amor desvenda a natureza da pessoa. Nele, a relação fundamental faz do homem um ser consciente, livre, responsável e, portanto, um ser pessoal. De fato, para que possamos compreender a realização do humano através do encontro dialógico e da epifania do rosto, faz-se necessário analisar estes termos: liberdade e responsabilidade. 3.1 Liberdade 4 4 Esse termo tem três significados fundamentais, correspondentes a três concepções que se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem ser caracterizadas da seguinte maneira: 1ª) Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a Liberdade é ausência de condições e de limites; 2ª) Liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a autodeterminação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substância, Estado); 3ª) Liberdade como possibilidade ou escolha, segundo a qual a Liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita. (ABBAGNANO,2000,p.605) Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 37 A liberdade é uma dimensão antropológica. Ela é intrínseca ao ser humano, sendo impossível extingui-la do mundo. “Este, com sua complexidade cada vez maior, oferece sempre mais oportunidades ao ser humano do que aquelas que ele pode realizar, durante toda a sua vida.” (NUNES, 2004, p. 92). Diante das conveniências da realidade empírica, o ser humano se encontra diante de possibilidades e, por isso, procura escolher aquilo que o realizará. “A liberdade é sempre liberdade de escolher; nunca de não escolher; é uma vivência individual, experimentada no espaço das possibilidades existentes no mundo.” (NUNES, 2004, p. 94). O autor: [...] entende a liberdade como medida de possibilidade portanto escolha motivada ou condicionada. Nesse sentido, a liberdade não é autodeterminação absoluta e não é, portanto, um todo ou um nada, mas um problema aberto: determinar a medida, a condição ou a modalidade de escolha que pode garanti-la. Livre, nesse sentido, não é quem é causa sui55 ou quem se identifica com uma totalidade que é causa sui , mas quem possui, em determinado grau ou medida, determinadas possibilidades. (ABBAGNANO, 2000, p. 610). Buber caracteriza a liberdade no princípio do inter-humano. O estabelecimento da liberdade está ligado à palavra-princípio Eu-Tu. Somente aquele que sabe da relação e reconhece a presença do Tu é capaz de tomar decisões. A liberdade não se encaixa na relação EuIsso, pois o reino absoluto da causalidade é o mundo do Isso. Porém, este mundo não é capaz de atingir o homem. É diante da face que o homem é livre. Diz Buber: O reino absoluto da causalidade no mundo do Isso, embora seja de importância fundamental para a ordenação científica da natureza, não atinge o homem que não está limitado ao mundo do Isso e que pode sempre evadir-se para o mundo da relação. Aí o Eu e o Tu se defrontam um com o outro livremente, numa ação recíproca que não está ligada a nenhuma causalidade e não possui dela o menor matiz; aqui o homem encontra a 5 Essa concepção tem estreito parentesco com a primeira. O conceito de liberdade a que se refere é ainda o de causa sui; contudo, como tal, a liberdade é não atribuída à parte, mas ao todo: não ao indivíduo, mas à ordem cósmica ou divina, à Substância, ao Absoluto, ao Estado. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 38 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO garantia da liberdade de seu ser e do Ser. Somente aquele que conhece a relação e a presença do Tu, está apto a tomar uma decisão. Aquele que toma uma decisão é livre, pois se apresenta diante da Face. (BUBER, 2004, p. 84). A grandeza da dimensão reflexiva baseada no outro e que se revela na epifania do rosto constitui a relação de transcendência. O outro transcende em seu rosto o mandamento ético. O outro que se apresenta a um eu edifica a relação e esta a liberdade. A liberdade é conhecida na relação. E essa relação é relação de bondade. Lévinas (2000) coloca a liberdade como forma de contemplar o rosto do outro, assim ele afirma: A relação com o rosto produz-se como bondade. A exterioridade do ser é a própria moralidade. A liberdade, acontecimento de separação no arbitrário, que constitui o eu, mantém ao mesmo tempo a relação com a exterioridade que resiste moralmente a toda a apropriação e a toda a totalização do ser. Se a liberdade se pusesse fora desta relação, toda a relação, no seio da multiplicidade, operaria apenas a tomada de um ser por outro, ou a sua participação comum na razão em que nenhum ser olha para o rosto do outro, mas em que todos os seres se negam. (LÉVINAS, 2000, p. 282). No entanto, “a liberdade é uma questão de medida, de condições e de limites e, isso em qualquer campo, desde o metafísico, o psicológico, o econômico e o político.” (ABBAGNANO, 2000, p. 612). A liberdade humana é uma liberdade situada, enquadrada no real, condicionada e por isso relativa. Entretanto, a liberdade é uma possibilidade de escolha. Uma possibilidade que pode ser alcançada por qualquer um nas condições oportunas. Portanto, os problemas da liberdade no mundo moderno não podem ser resolvidos por fórmulas simples e totalitárias (como seriam as sugeridas pelos conceitos anárquicos ou necessaristas), mas pelo estudo dos limites e das condições que, num campo e numa situação determinada, podem tornar efetiva e eficaz a possibilidade de escolha do homem. (ABBAGNANO, 2000, p. 613). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa 3.2 | 39 Responsabilidade6 É na relação do face-a-face, entre o eu e o outro, que se estabelece o encontro, cujo sentido primordial e último é a responsabilidade do eu pelo outro, sem exigência de reciprocidade, pois se houvesse tal exigência não se trataria mais de uma relação desinteressada. Nesta responsabilidade constitui-se a subjetividade do sujeito. Se no âmbito da consciência é impossível ao homem sair de si mesmo, considera Lévinas que o real contato com a Alteridade somente é possível a partir do Desejo e da necessidade. O outro é metafísico e, por ser, a responsabilidade é ilimitada. Desse modo, como afirma Lévinas: [...] uma responsabilidade infinita, uma responsabilidade pelo mundo que nunca se deixa encerrar nas medidas das decisões livres de uma vontade; trata-se da responsabilidade por tudo e por todos, da qual não cabe ao homem discutir os termos e as consequências. (BONAMIGO, 2005, p. 93). Pela palavra o outro é mestre do Mesmo e lhe ensina, devendo o eu julgar sua vida a partir da palavra do outro, com a consciência de que jamais se é justo o bastante. Nesta relação de respeito movida pelo desejo metafísico estabelece-se a morada em que o eu se coloca a serviço do outro numa relação de proximidade. O rosto não nega o eu, mas o eu acolhe o rosto pacificamente, e não violentamente. Pois é a epifania do rosto que manifesta e me convida a uma responsabilidade ilimitada. “A minha humanidade reside justamente em minha responsabilidade, que é insubstituível.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 33). O homem é responsável por aquilo com que se relaciona. O rosto onde se apresenta o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta como a opinião ou a autoridade ou o sobrenatural taumatúrgico. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa apresentação é a não-violência por excelência, porque em vez de ferir a minha 6 Possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em tal previsão. Responsabilidade é diferente de imputabilidade, que significa a atribuição de uma ação a um agente, considerado seu causador. (ABBAGNANO, 2000, p. 855). Lévinas prefere “responsabilidade” em vez de usar o termo amor, pois o considera mal empregado e por isso desgastado. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 40 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a. Nãoviolência, ela mantém no entanto a pluralidade do Mesmo e do Outro. É paz. A relação com o Outro – absolutamente outro –, que não tem fronteira com o Mesmo, não se expõe à alergia que aflige o Mesmo numa totalidade e na qual a dialética hegeliana assenta. O Outro não é para a razão um escândalo que a põe em movimento dialéctico, mas o primeiro ensino racional, a condição de todo o ensino. (LÉVINAS, 2000, p. 181). “A responsabilidade por outrem, aí, é o que de mais substancial há em mim e que me constitui como humano.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 33). Ser humano é ser responsável por aquele que tem a mortalidade estampada no seu rosto. E ser Eu é responder ao apelo ou ser refém do outro. Lévinas leva às últimas consequências a responsabilidade por outrem. Ser único é ser eleito a responder por tudo e por todos e, “responder é tornar-se responsável [...].” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 32). Porém, presencia-se, também em Buber, uma responsabilidade que evoca dois sentidos: o da resposta e o da obrigação. Para ele, A experiência de receber a palavra e respondê-la é o âmago do entre7 ou a revelação vivida pela reciprocidade. Esta experiência vivida de um vínculo numa situação de apelo e resposta encerra o fenômeno da responsabilidade em seus dois sentidos: primeiro, como resposta e, segundo, como a “obrigação” de responder. [...] a responsabilidade como projeto do homem na história de viver num nível real e essencial da vida humana é a resposta ao apelo do dialógico. A responsabilidade transcendendo o nível moral, para um nível mais amplo, é o nome ético de reciprocidade. (BUBER, 2004, p. 41). Porém, como vimos que Lévinas prefere a palavra responsabilidade em vez da palavra amor, devido ao seu mau uso, Buber diz que a responsabilidade do Eu para com o Tu tem como base o amor. O amor é uma força cósmica que une dois seres do mesmo gênero constituindo uma relação onde eles se realizam. O amor é 7 Buber propõe ao homem a realização da vida dialógica, uma existência fundada no diálogo. Para esta tarefa sobressai de novo o sentido profundo da categoria à qual já aludimos: o “entre”. Uma das manifestações antropológicas mais concretas da existência da esfera “entre” é o fenômeno da resposta. Neste nível palavra e práxis se confundem, isto é, no nível do dialógico, ou em outros termos dia-logos é dia-práxis, já que existe uma inter-ação “entre” Eu e Tu. (BUBER, 2004, p. 40). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 41 um movimento contínuo. E para que ele aconteça, necessita-se da presença do Tu. Buber nos relata que: Os sentimentos, nós os possuímos, o amor acontece. Os sentimentos residem no homem, mas o homem habita em seu amor. Isto não é simples metáfora, mas a realidade. O amor não está ligado ao Eu de tal modo que o Tu fosse considerado um conteúdo, um objeto: ele se realiza, entre o Eu e o Tu. Aquele que desconhece isso, e o desconhece na totalidade de seu ser, não conhece o amor, mesmo que atribua ao amor os sentimentos que vivencia, experimenta, percebe, exprime. O amor é uma força cósmica. Àquele que habita e contempla no amor, os homens se desligam do seu emaranhado confuso próprio das coisas; bons e maus, sábios e tolos, belos e feios, uns após outros, tornam-se para ele atuais, tornam-se Tu, isto é, seres desprendidos, livres, únicos, ele os encontra cada um face-a-face. A exclusividade ressurge sempre de um modo maravilhoso; e então ele pode agir, ajudar, curar, educar, elevar, salvar. Amor é responsabilidade de um Eu para com um Tu: nisto consiste a igualdade daqueles que amam, igualdade que não pode consistir em um sentimento qualquer, igualdade que vai do menor, ao maior do mais feliz e seguro, daquele cuja vida está encerrada na vida de um ser amado, até aquele crucificado durante sua vida na cruz do mundo por ter podido e ousado algo inacreditável: amar os homens. (BUBER, 2004, p. 61). Portanto, o amor é capaz de construir sem limites a responsabilidade incondicionada pela manifestação da face do outro. O Outro ou o Tu me convida a cultivar, regar, cuidar de mim mesmo e a fazer isso por causa e em vista do outro. A exigência ética me chama a ser responsável pela vida. “A responsabilidade que se instaura a partir da heteronomia da razão nos indica um novo modo para pensar o sujeito, estrutura que comporta o outro-no-mesmo, isto é, o outro em si ou sobre si.” (OLIVEIRA; SCORALICK, 2006, p. 33). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A nostalgia do humano evoca aquilo que é mais característico no homem, a sua humanidade. Essa nostalgia envolve uma conversão que se propõe um projeto de existência a ser realizado e não uma Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 42 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO simples volta a um passado. A afirmação do humano não é um objeto de análises científicas, mas um projeto reflexivo. A filosofia do diálogo, da relação – liberdade, responsabilidade – transfigura nessa nostalgia. A presença do outro é encontro e, no entanto, é diálogo, responsabilidade infinita. A vida humana é marcada essencialmente pela presença do outro. A Alteridade é relação, revela o modo de ser especificamente do Eu. É na presença do outro que o Eu se reconhece. Essa presença patenteia o mandamento estampado no rosto: não matarás! A epifania do rosto convida a uma responsabilidade infinita. A uma cordial responsabilidade pela existência humana. A existência humana é marcada pelo encontro, pela relação. Esta é presença autêntica na vida humana, pois o homem se relaciona em todos os momentos de sua vida. O encontro se realiza entre duas consciências. A transformação e a realização do ser humano se concretizam no inevitável encontro. O encontro sugere reflexão, não uma reflexão do passado, mas do presente. E é por isso que todo aquele que se propõe a construir uma reflexão capaz de dar sentido para a vida humana se fundamenta nos acontecimentos de seu tempo. A reflexão sobre a Alteridade é fruto de um tempo marcado pelo ódio do homem em direção ao seu semelhante. Uma relação em que o homem se reconhece com a presença do outro. Mas o que o século XX mostrou foi uma eclosão de raiva, de negação, incorporado por um regime de morte. A Alemanha foi palco de um verdadeiro genocídio. Por causa da Segunda Guerra Mundial morreram aproximadamente cinquenta milhões de pessoas. Entre os mortos, a Alemanha, por questões políticas, eliminou da face da Terra em média de dez milhões. Mas também o século atual percorre os mesmos caminhos de negação do outro marcados pelo século passado. Vários abandonos, guerras, atentados, assassinatos, acidentes de trânsito por imprudência, violência sexual e outros, etc. Devido a esses dados provocantes, é preciso afirmar a Alteridade como um elemento essencial da vida humana. A Alteridade convida todos a uma responsabilidade que não possui limites. A contemplação do rosto conduz o Eu à ideia do infinito em sua finitude. Portanto, a Alteridade marca e constitui a liberdade humana. Ela realiza o ser humano. A Alteridade essencial se instaura na relação. É na relação dialógica que se encontram o eu e o outro como pessoas. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Ismael Garcia de Sousa | 43 Nesta, acontece a experiência e, esta, estabelece um contato na estrutura do relacionamento. O encontro é um evento que acontece atualmente. A presença do outro implica um encontro mútuo, incondicionado. Presença significa presentificar e ser presentificado. Reciprocidade é a marca fundamental da atualização do fenômeno da relação. O critério de maior valor repousa sobre a reciprocidade. Assim a relação de maior valor existencial é o encontro, a relação interhumana. Entretanto, o homem jamais poderá viver sem o mundo, porém, jamais conseguirá viver só com o mundo, pois aquele que rejeita a Alteridade antropológica, não é uma pessoa humana. É no encontro que o homem se realiza infinitamente. O encontro do interhumano amplia a vida intelectual, psíquica e física. Sua emancipação e humanização se desenvolvem cotidianamente e historicamente na inter-relação. * Ismael Garcia de Sousa é leigo. Graduado em Filosofia pelo ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino). Professor na rede estadual de Minas Gerais na cidade de Divinópolis. E-mail: [email protected] ** Rita de Cássia Cypriano Valladares, professora do Instituto de Santo de Tomás de Aquino. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BONAMIGO, Gilmar Francisco. Primeira aproximação à obra de Emmanuel Lévinas. Síntese, v. 32, n. 102, p. 77-104, jan./abr. 2005. BUBER, Martin. Eu e Tu. 8. ed. São Paulo: Centauro, 2004. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Lisboa: Edições 70, 2000. NUNES, Rizzatto. A liberdade: manual de filosofia do direito: São Paulo: Saraiva, 2004. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. 44 | ALTERIDADE: EMANCIPAÇÃO E HUMANIZAÇÃO OLIVEIRA, Ednilson Turozi de; SCORALICK, Klinger. Emmanuel Lévinas: Ética e Alteridade. Discutindo Filosofia, São Paulo, v. 1, n. 4, p. 30-39, 2006. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Emmanuel Lévinas e a fenomenologia da face do outro. In: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: de Freud à Atualidade: São Paulo: Paulus, 2003. SUMARES, Manuel. Alteridade. In: LOGOS Enciclopédia Logos lusobrasileira de filosofia. Lisboa: Editorial Verbo, 1989. v. 1. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.25-44 , jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 45 EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos1 Juan Pablo García Martínez, SCJ – Betharram* Solange Maria do Carmo** Resumo Este trabalho, que consta de três artigos sucessivos, faz uma leitura do Evangelho de Marcos a partir da chave hermenêutica fornecida por Wilhem Wrede no seu célebre livro “O Segredo Messiânico” (1901). Com os ajustes necessários, a perspectiva de Wrede possibilita uma percepção mais clara e abrangente da poderosa – e misteriosa – mensagem de Marcos, expandindo os horizontes do leitor para além de uma abordagem superficial. Aliás, permite visualizar a intrínseca relação existente entre o messianismo e o discipulado na teologia do Segundo Evangelista. De fato, a tese da qual parte o presente trabalho é que, para Marcos, uma adequada percepção do messianismo assumido por Jesus não é tão somente uma exigência cristológica, mas é também condição essencial para uma apropriada compreensão do discipulado. No primeiro artigo serão apresentadas as linhas mestras do Evangelho de Marcos; no segundo se aprofundará sua concepção messiânica e, no terceiro, seu modo de compreender o discipulado. Palavras-chave: Evangelho de Marcos. Messianismo. Segredo messiânico. Wilhem Wrede. Seguimento de Jesus. 1 INTRODUÇÃO 1Trabalho financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica(BIC) do Curso de Teologia do Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 46 | EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos Durante séculos, o Evangelho de Marcos foi relegado a um segundo plano, no estudo e também na liturgia. Passadas sua popularidade e sua difusão iniciais, o Segundo Evangelho foi praticamente esquecido. A brevidade, o estilo simples e a aparente incompletude do texto fizeram como que a Igreja preferisse os outros Sinópticos, especialmente Mateus, mais extenso e didático. O próprio Agostinho de Hipona chegou a considerá-lo um compêndio de Mateus (De Consensu Evangelistarum, 1,2). Mas o panorama mudou no século XIX, quando a teoria das duas fontes advertiu acerca da dependência de Mateus e de Lucas em relação a Marcos, agora considerado o mais antigo dos Evangelhos. Em contrapartida às alegrias dessa descoberta, a nascente teoria caiu numa certa ingenuidade, pois, ao considerar o Evangelho de Marcos como o mais próximo temporalmente de Jesus de Nazaré, passou a estimá-lo também quase que como a testemunha inalterada do Jesus histórico. A teoria foi ganhando consenso até que, na virada do século, Wilhelm Wrede acendeu o debate com seu célebre livro O Segredo Messiânico (1901), demonstrando que também Marcos – e não somente Mateus e Lucas, como já tinham advertido os teólogos liberais – estava perpassado de ponta a ponta pela fé messiânica da Igreja. Apesar dos extremos da nova teoria, que acabou negando todo valor histórico ao texto de Marcos, esta significou um antes e um depois na leitura do Segundo Evangelho, possibilitando novas perspectivas e abordagens. (TAYLOR, 1979, p.29). A chave hermenêutica fornecida por Wrede será, de fato, a bússola que norteará nossa leitura de Marcos. A razão desta escolha é simples: a doutrina do segredo messiânico explicita bem a teologia marcana, ao mesmo tempo em que consegue elucidar um texto com frequência desconcertante e perpassado pelo mistério. Aliás, muito mais do que oferecer uma mera ferramenta interpretativa, entendemos que a doutrina do segredo messiânico consegue evidenciar a perspectiva a partir da qual foi escrito o Segundo Evangelho. A tese de Wrede oferece, com as devidas ressalvas, não somente uma chave hermenêutica, mas também a intuição teológica marcana, que moveu o evangelista a redigir o texto. Com base nesta perspectiva, levantaremos três perguntas fundamentais, dedicando à cada uma delas um artigo específico. Deste modo, quem quiser completar nossa abordagem do Segundo Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 47 Evangelho deverá aguardar os próximos números da publicação. Neste primeiro artigo, a pergunta a ser respondida será: Quais são os princípios e propósitos teológicos basilares que inspiram o Evangelho de Marcos? Para respondê-la, desdobraremos a questão em vários interrogantes: Em que contexto foi escrita a obra marcana? Quem são seus destinatários? Que propósito persegue o autor ao escrever o Evangelho? Quem é Jesus para Marcos? De que modo estrutura-se o texto? O segundo artigo2 se debruçar sobre o modo como Marcos compreende o messianismo de Jesus, que – conforme notaremos – é a de um messias às avessas de toda expectativa davídico-nacionalista. A pergunta subjacente será: Como entende e apresenta Marcos a identidade e a missão de Jesus? Como veremos, este será o cerne do nosso trabalho, pois colocará os alicerces de toda a teologia marcana. No terceiro artigo3 , estudaremos a concepção marcana do discipulado. Perceberemos que, na perspectiva do Segundo Evangelista, o discipulado se resume no seguimento de Jesus, feito ao longo do caminho. A pergunta que orientará nossa pesquisa será: Quais as implicações, para Marcos, do seguimento de Jesus? Nesse ponto da reflexão, indagaremos se há algum tipo de dependência entre o modo como Marcos entende o discipulado e sua compreensão do autêntico messianismo – já aprofundada no segundo artigo. Em outras palavras, o fato de Marcos compreender Jesus como o messias às avessas, ou seja, o messias inesperado, influencia no tipo de discipulado proposto? Essa é, de fato, a tese fundamental da qual partimos: no Segundo Evangelho, o seguimento de Jesus – o discipulado – está intrinsecamente relacionado com o tipo de messias que o evangelista compreende que Jesus é. Procuraremos mostrar que, para Marcos, uma apropriada percepção do messianismo assumido por Jesus não é tão somente uma exigência cristológica, mas é também condição essencial para uma adequada interpretação do discipulado. Nossa intuição se baseia em Mc 8,34-38, onde se adverte, bem às claras, que o destino de Jesus é, ao mesmo tempo, o destino do seguidor (SMITH, 1996, p.523-539). Sendo assim, a pergunta pela natureza do 2 VAI PARA TRÁS DE MIM: A questão messiânica no Evangelho de Marcos 3 TAL MESTRE, TAL DISCÍPULO: O discipulado no Evangelho de Marcos. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 48 | EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos messianismo na obra de Marcos é, necessariamente, uma questão prévia à sua concepção do discipulado. 2 DATA, LUGAR DE COMPOSIÇÃO E AUTORIA Conforme uma antiga tradição testemunhada no início do século II por Pápias, bispo de Hierápolis, o Segundo Evangelho foi escrito em Roma por volta do martírio de Pedro (aproximadamente 65 dC.). Além do testemunho de Pápias, conservado na Historia Eclesiástica de Eusébio de Cesareia (III, 39-15), outras fontes extrabíblicas, como o Adversus Haereses de Ireneu de Lyon (III, 1.2) e o Prólogo Antimarcionita (da Vetus Latina), também localizam a redação do Evangelho nesse contexto. Pápias atribui a obra a Marcos, de quem informa que não conheceu pessoalmente a Jesus, senão através de Pedro, cuja catequese teria colocado por escrito. Quem será este Marcos a quem se atribui o Segundo Evangelho? Difícil dizer ao certo, mas devemos recordar que o nome não era incomum na época. Provavelmente, trate-se de uma alusão ao Marcos do livro dos Atos dos Apóstolos, “de sobrenome João” (ou simplesmente “João Marcos”), associado a Pedro, Paulo e Barnabé (cf. At 12,12.25; 13,5.13), que em At 15,36-41 aparece simplesmente como “Marcos” e, em Cl 4,10, como “primo de Barnabé”. Também na Primeira Carta de Pedro se faz referência a um tal Marcos (cf. 1Pd 5,13). Quanto ao momento da escrita, mais confiáveis do que a tradição referida parecem ser os indícios internos do texto, em particular as possíveis alusões à Primeira Guerra Judaica (66-73 dC.) e à destruição de Jerusalém (70 aC.), presentes, sobretudo, no denominado discurso apocalíptico (cf. Mc 13), que parecem confirmar a datação sugerida por Pápias. Nessa mesma linha, a estimativa dos exegetas geralmente oscila entre uma data mais remota, 65-70 dC., e outra mais próxima, 70-75 dC. (BARBAGLIO, 1990, p. 428). No tocante à autoria atribuída a Marcos, alguns se inclinam pela sua historicidade, pois a tendência da tradição cristã sempre foi atribuir a autoria dos Evangelhos a algum dos apóstolos. Não sendo Marcos um dos Doze, dificilmente teria sido considerado autor sem motivo suficiente. (TAYLOR, 1979, p. 50). Outros – de cujo ponto de vista participamos – entendem que o autor quis deixar sua obra Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 49 anônima. Quando o escritor recebeu o querigma, sua personalidade se apagou diante da autoridade da mensagem a ser comunicada, o Evangelho. (MARGUERAT, 2009, p. 58). 3 DESTINATÁRIOS E PROPÓSITO TEOLÓGICO-PASTORAL DO EVANGELHO O texto de Marcos, primeiro do gênero literário Evangelho, foi elaborado para encorajar e esclarecer a fé daqueles que, amedrontados pela tribulação, experimentavam a tentação de um cristianismo sem cruz. Diante do perigo que isso representava para a fé da comunidade, o evangelista lhes anuncia novamente o querigma, lembrando-lhes que seguem a Jesus, o Servo Sofredor, que caminha para Jerusalém acompanhado de seus discípulos. Se a datação mais aceita for correta (década de 60 ou de 70 dC.), quando o Evangelho de Marcos foi escrito, as comunidades cristãs existiam há trinta ou quarenta anos. No momento em que as testemunhas oculares de Jesus estavam desaparecendo, percebendo o risco de que o essencial do querigma se perdesse, a segunda geração de cristãos assumiu a tarefa de conservar a memória escrita da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo para a terceira e as ulteriores gerações. Quais seriam, pois, estes leitores imediatos do texto de Marcos? A falta de uma reflexão profunda sobre a Torá – ao contrário do Evangelho de Mateus –, assim como a explicação de usos e costumes judaicos aparentemente desconhecidos pelos leitores (cf. Mc 7,1-4, sobre os rituais de purificação), leva a pensar numa comunidade, ao menos em parte, de origem pagã. As numerosas incursões de Jesus fora da Palestina parecem apontar nessa mesma direção. (MARGUERAT, 2009, p. 62). Sabemos que os Evangelhos nascem no seio de comunidades concretas, historicamente situadas, e para elas são originariamente escritos, levando em consideração as circunstâncias e as necessidades do destinatário. O Evangelho nos faz pensar em uma comunidade que procurava seguir a Jesus, o Crucificado, mas que estava escandalizada e confusa diante da própria tribulação. A Igreja de Marcos atravessava, possivelmente, tempos de perseguição, e não havia entendido ainda que estava associada ao mesmo destino do seu Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 50 | EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos Senhor. Consequentemente, não dava conta de anunciar a Boa Nova da ressurreição (cf. Mc 16,8). (TILLESSE, 1992, p. 80). A insistência do evangelista na necessidade da paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34) e na persistente incompreensão dos discípulos (cf. Mc 4,13; 6,52; 9,32), aparentemente imunes às reiteradas explicações que recebem de Jesus “em particular” (cf. Mc 4,34; 9,29), sugerem essa problemática. Certamente – podemos concluir –, a comunidade de Marcos já tinha sido evangelizada, mas encontrava-se necessitada de uma nova evangelização. Marcos lhe anuncia outra vez o querigma, levantando para isso uma pergunta fundamental, que só pode ser respondida na dinâmica do seguimento: “Quem é Jesus?” (cf. Mc 8,29). Concomitantemente, diante do desânimo e da incompreensão, faz questão de deixar às claras as consequências do seguimento: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8,34). 4 O MESSIAS INESPERADO E O SEGREDO MESSIÂNICO Neste contexto de incompreensão e cruz, o evangelista anuncia que Jesus é o messias, mas não segundo as expectativas terrenas de sua comunidade. O Jesus de Marcos é um messias diferente, que ultrapassa os esquemas puramente humanos de restauração davídiconacionalista e resiste a se encaixar neles4 . É o messias inesperado, e seu messianismo é o do Servo Sofredor, humilde, que entrega sua vida pela humanidade (cf. Is 52-53). Ele é o Filho do Homem (cf. Dn 7,13), o protótipo de todo homem, aquele que, em tudo, age segundo a vontade divina (cf. Mc 3,35) e precede à humanidade nos caminhos de Deus. Precisamente pelo inesperado desta compreensão messiânica e visando preservar o Evangelho de toda interpretação triunfalista – incompatível, portanto, com o caminho da paixão –, Marcos se vale do que os exegetas denominaram de “segredo messiânico” – 4 Isto não significa excluir da tradição judaica a possibilidade de um messias sofredor, até porque Marcos se inspira claramente nos cânticos (judaicos) do servo do Segundo Isaías. No entanto, os destinatários de Marcos parecem imbuídos de uma noção messiânica triunfalista – sem cruz –, e é precisamente essa concepção deturpada o objeto da preocupação marcana e o alvo da sua catequese (cf. Mc 8,34-38). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 51 ao qual dedicaremos o próximo artigo5 . No esquema do Segundo Evangelista, a identidade e a missão de Jesus serão reveladas, mas isso só acontecerá plenamente no momento decisivo da cruz quando, aniquilado, Jesus será finalmente reconhecido como Filho de Deus (cf. Mc 15,39). Entretanto, sua realidade mais profunda deve ser guardada em segredo. Este se expressa no mistério que envolve a pessoa e a atividade de Jesus e se concretiza nas frequentes exortações ao silêncio que dirige a todo aquele que o proclama – ou meramente o declara – como messias. Assim, os discípulos são advertidos para que não contem nada a ninguém, logo depois da profissão de fé petrina (cf. Mc 8,30). Também os demônios, conhecedores de identidade de Jesus, devem guardar silêncio: Jesus lhes proíbe terminantemente dizer quem ele é. Em outras ocasiões, até mesmo os beneficiários de milagres devem se calar, pois os milagres constituem manifestações parciais da glória e do poder messiânicos. A mesma circunspecção permeia as cenas do batismo e da transfiguração, momentos cume da revelação messiânica, ora reservados ao próprio Jesus – “Tu és o meu Filho amado” (Mc 1,11) –, ora reservados a um reduzido número de testemunhas – “Este é o meu Filho amado” (Mc 9,7). Na dinâmica do segredo messiânico, Jesus é caracterizado pelo seu extremo poder, onde se vislumbram sua identidade e sua missão. O Jesus de Marcos é, assim, violentamente “sobre-humano”. Ele faz os cegos ver, os surdos ouvir, os paralíticos caminhar; expulsa demônios; acalma tempestades; faz a figueira secar. (TILLESSE, 1992, p. 61). Por isso, ele surpreende, suscita admiração e, eventualmente, desperta o desejo de se aproximar dele, para fazer-lhe perguntas e conhecê-lo. Mas, ao mesmo tempo, Marcos apresenta um Jesus profundamente humano e próximo de nós. Ele é simplesmente “o carpinteiro, o filho de Maria” (Mc 6,3). Nenhum outro evangelista fala tanto sobre suas emoções: fica “entristecido” pela dureza do coração dos fariseus e passa sobre eles “um olhar irado” (Mc 3, 5); quando lhe põem à prova, dá “um suspiro profundo” (Mc 8,12); diante da incredulidade dos nazarenos, “se admirava” (Mc 6,6); perante o 5 No próximo artigo explicitaremos as funções do segredo messiânico na teologia marcana, a saber: função catequético-pedagógica e função lógico-histórica.. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 52 | EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos leproso e ao ver a grande multidão, “encheu-se de compaixão” (Mc 1,41; 6,34). Somente Marcos nos diz que Jesus olhou para o rico que queria segui-lo “com amor” (Mc 10,21) e, só em Marcos, Jesus toca o leproso com a mão (cf. Mc 1,41). O Jesus de Marcos também sente fome (cf. Mc 11,12), conhece o cansaço e procura descanso (cf. Mc 6,31). (MATOS, 1997, p. 112). Também as parábolas se articulam cuidadosamente em torno do segredo messiânico, já que, na teologia do Segundo Evangelho, elas não tornam a mensagem mais clara, mas, ao contrário, a obscurecem (cf. Mc 4,11-12). A concepção marcana das parábolas é, consequentemente, oposta à suposição habitual, segundo a qual, enquanto representações concretas tiradas da realidade quotidiana, seriam narrativas destinadas a facilitar o entendimento. (BURKILL, 1956, p. 246). Ao contrário, na perspectiva de Marcos, elas cumprem a função de provocar os interlocutores, cuja posição Marcos delimita segundo a atitude assumida diante da incompreensão que segue à parábola. Alguns se aproximam de Jesus e lhe fazem perguntas (cf. Mc 4,10), dando, assim, o primeiro passo do discipulado. São os “de dentro”, o grupo dos “com Jesus” que convive com ele. Outros permanecem na incompreensão, sem mudar nem procurar respostas; ou compreendem a parábola, mas rejeitam a dinâmica do Reino (cf. 12,1-12). São os “de fora” (cf. Mc 4,11), sejam estes a multidão (cf. Mc 4,33-34), os adversários (cf. Mc 12,1-12) ou a própria família biológica de Jesus (cf. Mc 3,31). 4 ESTRUTURA BIPARTIDA DO EVANGELHO Nos escritos antigos, as primeiras palavras costumavam dar o título à obra, caracterizando ao mesmo tempo seu conteúdo. Se isto vale para vários escritos da Bíblia (para os livros do Pentateuco, na Bíblia Hebraica), resulta particularmente certo no caso de Marcos, o único dos quatro Evangelhos canônicos a colocar já no seu prólogo o termo “Evangelho” (Boa Notícia) e o fundador desse gênero literário. A sua mensagem é, de fato, uma Boa Notícia para a sua comunidade, abalada pela adversidade e por sua própria incompreensão acerca do Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 53 seu sofrimento.6 Marcos começa o texto bruscamente. Não há nele genealogias nem relatos da infância, como em Mateus e em Lucas; não há prólogo sobre a pré-existência do Verbo, como em João. Seu começo abrupto e despojado permite, porém, vislumbrar já no primeiro versículo toda a sua estrutura literária e seu propósito teológico. O versículo “Inicio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1) é, de fato, programático, antecipando desde cedo a estrutura teológica da obra. Nesse ponto, os exegetas enfrentam o problema de determinar a autenticidade da expressão “Filho de Deus”. Embora a mesma apareça na maioria dos manuscritos, em alguns – como o Sinaiticus, do séc. IV – só se lê “Evangelho de Jesus Cristo”. As regras da crítica textual mandam seguir o texto mais curto, pois dificilmente um copista teria tido a ousadia de reduzir o original. Pelo contrário, seria mais usual que um copista piedoso tivesse acrescentado sua própria profissão de fé. Mas a expressão “Filho de Deus” corresponde de maneira tão profunda e rigorosa com a mensagem teológica de Marcos, que boa parte dos exegetas e tradutores a conserva7. (TILLESSE, 1992, p. 147). A estrutura da obra marcana se manifesta – seguindo a fórmula mais extensa – através de duas grandes inclusões. Mediante o recurso literário da inclusão, típica da literatura judaica, uma palavra ou expressão usada no começo de um texto é retomada no fim do mesmo. Dessa maneira, são marcados os limites da narrativa, ao mesmo tempo em que sua unidade estilístico-temática torna-se explicitada. (MOULTON apud GOPEGUI, 1982, p. 279-300). O esquema marcano pode ser assim representado como uma escada de dois lances ou partes, cada um respondendo a uma questão fundamental: 1- Quem é Jesus? (primeira inclusão; cf. Mc 1,1–8,30); 2) Que tipo de messias é Ele? (segunda inclusão; cf. Mc 8,31–15,39). O patamar entre os dois lances é ocupado pela proclamação petrina: “Tu és o Cristo” (Mc 8,29), a partir da qual o segredo messiânico começa a enfraquecer. Por sua vez, o segundo lance conduz aos pés do Servo Sofredor, onde o centurião romano proclama: “Na verdade, este 6Nos livros canônicos, o termo “evangelho” é introduzido por Paulo, que o utiliza sessenta vezes, embora seja Marcos quem inaugura o Evangelho como gênero, dando um “rosto” concreto ao Cristo das Cartas Paulinas. 7Peter Head é a favor da fórmula mais curta (HEAD, Peter. Text-Critical Study of Mark 1.1 `The beginning of the Gospel of Jesus Christ´. New Testament Studies, Cambridge, v.37, p.621-629, 1991). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 54 | EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39), encerrando assim a segunda grande inclusão. Eis o final do segredo. (SILVA, 1989, p. 13). Significativamente, em Mc 8,31, primeiro versículo da segunda parte, afirma-se que Jesus “começou a ensinar-lhes”. Bem diferente do anterior ensinamento, caracterizado pela linguagem simbólica das parábolas, o objeto do novo ensinamento é comunicado “abertamente” e com clareza: “era necessário o Filho do Homem sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8,31). A nova modalidade de ensino e o processo desencadeado pela profissão de Pedro constituem, para Marcos, um autêntico recomeçar, após o começo de Mc 1,1. Com Mc 8,31 inicia-se a segunda grande inclusão, que culmina no desfecho da cruz, na qual fica exposto, à vista de todos, o genuíno messianismo de Jesus. Só então pode ser confessada sua identidade mais profunda (cf. Mc 15,39). (TERRA, 1997, p. 7-8). 5 ESTRUTURA DO CAMINHO Por cima dessa estrutura bipartida, que tem como cume as proclamações de fé de Pedro (cf. Mc 8,29) e do centurião (cf. Mc 15,39), o Evangelho apresenta uma outra estrutura, mais visível e existencial: a do caminho8. Para Marcos, a intimidade com Jesus e o conhecimento de seu messianismo se darão no caminho, para aquele que se põe atrás do Mestre. Através desta dinâmica, as duas proclamações de fé, embora já antecipadas no prefácio (cf. Mc 1,1), não chegam ao leitor de maneira pronta e desencarnada, mas como fruto de um longo itinerário que tem a cruz como destino. Por isso, o caminho deve ser entendido, fundamentalmente, como caminho a Jerusalém, ou seja, como caminho que leva à paixão (cf. Mc 10,32.46.52; 11,8) e que deve ser percorrido, não somente por Jesus, mas também pelo discípulo. A tal ponto a questão é central que o discípulo que não acolher o caminho de sofrimento de Jesus e 8 A simbologia do caminho é particularmente rica em significados, tanto bíblicos quanto antropológicos. Ela remete à experiência de Israel, povo de origem nômade (cf. Gn 12,1), caminhante e protagonista de uma longa peregrinação espiritual, a da Torá, que é, fundamentalmente, caminho sempre aberto à comunhão com Deus. A itinerância é também a experiência da Igreja, originalmente conhecida como “Caminho” (cf. At 9,2; 19,9.23; 22,4; 24,14; 24,22), e da humanidade toda, que percorre o caminho da vida ao longo de sua história. (KONINGS, 1994, p. 7). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 55 que não o assumir como seu único caminho pessoal compromete sua mesma permanência no discipulado. (GNILKA, 1986, p. 15). Após o batismo no rio Jordão, Marcos situa Jesus no deserto (cf. Mc 1,12-13), lugar de provação (cf. Êx 15,25), de encontro com Deus (cf. Êx 3,1-6; 19,3) e de preparação para os tempos messiânicos (cf. Is 40,3-5). Lá são localizados o batismo (cf. Mc 1,9-11), as tentações (cf. Mc 1,12-13) e, previamente, a pregação de João Batista (cf. Mc 1,4-8). Como um novo Josué, Jesus sai do deserto e entra na Galileia proclamando a Boa Nova do Reino de Deus. A missão de Jesus começa assim no preciso momento em que a do Batista é concluída. O “mais forte”, que João tinha anunciado (cf. Mc 1,7; Is 9,5), se faz presente em Jesus. Uma vez na Galileia, tudo sucede vertiginosamente, “imediatamente” (cf. 1,18.20; 1,42; 3,6; 5,29; 6,27; 7,35; 9,24). O Reino de Deus tem pressa de acontecer, pois o tempo da espera acabou (cf. Mc 1,15; Is 30,19). Na Galileia Jesus chama os primeiros discípulos e institui Doze dentre eles. Lá é também o lugar por excelência dos sinais messiânicos anunciados por Isaías (cf. Is 26,19; 29,18; 35,5; 61,1): curas, milagres e exorcismos se sucedem um após o outro, suscitando a surpresa de todos. O evangelista faz questão de salientar que todos ficam “admirados” pelas suas obras e pela autoridade de seu ensinamento (cf. Mc 1,22.27; 2,12; 5,20; 9,15; 10,26; 12,17; 15,5.44). Curiosamente, Marcos não diz qual é a natureza desse ensinamento (cf. Mc 1,22; 2, 2,13; 6,1.6.34). É que, ao contrário de Mateus (cf. Mt 5–7) e de Lucas (cf. Lc 6,17-49; 15–16), o Segundo Evangelista se preocupa muito mais com a prática de Jesus do que com seu discurso. Para Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Ele ensina fazendo, o que causa grande admiração em todos. (BELO apud SILVA, 1989, p. 12). À admiração, com frequência, segue-se a pergunta pela identidade de Jesus: “Quem é este?” (Mc 4,41). Mas é só no caminho que esta pergunta pode achar resposta, pois só aos “com Jesus” são confiadas as chaves do segredo messiânico (cf. Mc 4,11). (TILLESSE, 1992, p. 137). Em alguns momentos, o caminho acontece em território pagão: Gerasa, Tiro, Sidônia, a Decápole (cf. Mc 5,1; 7,24.31). Os sinais messiânicos chegam também em terra estrangeira, pois a salvação ultrapassa os limites do judaísmo. A partir de Mc 10,1, Jesus se põe a caminho da Judeia e inicia a subida a Jerusalém, passando por Jericó. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 56 | EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos Finalmente, no capítulo 11, Jesus e os discípulos chegam à Cidade Santa, onde a oposição a ele se radicaliza. Em várias oportunidades, o grupo se traslada à Betânia, mas volta sempre a Jerusalém, onde o Filho do Homem abraça seu destino trágico (cf. Mc 8,31; 9,31; 10,3334). Marcos tinha começado o Evangelho quase que de repente, sem referência ao nascimento nem à infância de Jesus, que aparece já adulto, sendo batizado no Jordão. E da mesma forma, abruptamente, termina a obra, diante do sepulcro vazio, onde “em tremor e fora de si” (Mc 16,8) as mulheres (ou a comunidade de Marcos) recebem um anúncio esperançoso: “Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis, como ele vos disse!” (Mc 16,7). Para Marcos, não há necessidade de aparições pascais. A tradição posterior considerou incompleto o relato e acrescentou-lhe fragmentos – também canônicos – que compendiam as aparições pascais relatadas nos outros Evangelhos9. A tentativa de completar o relato originou-se numa incompreensão da mensagem poderosíssima de Marcos, para quem a crucifixão é a cristofania definitiva que prova aos olhos do mundo que Jesus é realmente o Filho de Deus. (TILLESSE, 1992, p. 98). Em síntese: o relato do batismo é a primeira manifestação de Jesus em Marcos; a crucifixão, ou seja, seu batismo de sangue, traz a última imagem, dando a entender que o destino messiânico de Jesus – e também o destino da Igreja – se consuma na cruz10. Por sua vez, a imagem do túmulo vazio, que encerra o relato, remete ao modo como a Igreja de Marcos experimentava a presença do Jesus pós-pascal: como ausência. (TILLESSE, 1992, p. 96). O final do Evangelho em 16,8, porém, não significa o final do caminho, que continua na Galileia. Ali, onde tudo começou (cf. Mc 1,9), tudo começa de novo. O retorno à Galileia é o retorno do discípulo ao território do anúncio inicial do Reino (cf. Mc 1,14-15), dos sinais messiânicos, das primeiras perguntas e das incipientes respostas. O 9 O trecho de 16,9-20, embora faça parte das Escrituras inspiradas, falta nos manuscritos mais antigos, como o Vaticano e o Sinaítico. Contudo, já no séc. II, era conhecido de Taciano e de Santo Ireneu, e aparece na maioria dos manuscritos gregos e em outros (Nota da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973 e MATOS, 1997, p. 110). 10 Na verdade, todo o Evangelho de Marcos (e não só os oito versículos de Mc 16,1-8), enquanto relato de fé nascido da experiência pascal, deve ser lido à luz do Ressuscitado. Em outras palavras, “toda a atividade de Jesus é projetada como a presença entre nós do Filho de Deus, que a morte não pode engolir, aquele Filho em que Deus se compraz; e portanto, aquele que vive.” (MARTINI, 1997, p. 94). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 57 preceder do Ressuscitado é que possibilita a experiência sempre nova do seguimento. Este se faz no trilho desse caminho, com todas as suas implicações e consequências. Volta-se, enfim, à Galileia, porque o caminho do discípulo deve sempre recomeçar. (AZEVEDO, 1989, p. 30). 6 CONCLUSÃO O Segundo Evangelho foi escrito como Boa Notícia dirigida a uma comunidade específica, a Igreja de Marcos, a fim de animá-la e de revitalizar sua fé em tempos de provação. Diante da tentação de um cristianismo sem cruz – o que comprometeria a essência do querigma –, o evangelista anuncia Jesus, o messias inesperado. Ele não é, de fato, um messias “bem sucedido”, mas, ao contrário, o Servo Sofredor, o justo iniquamente condenado. Exatamente pelo caráter inesperado da identidade e da missão de Jesus, o anúncio não pode ser feito subitamente, mas deve ser realizado de modo paulatino. Para isso, o evangelista elabora um artifício literário conhecido como segredo messiânico. Na perspectiva do segredo devem ser entendidos: os relatos de milagres e de exorcismos – com suas enigmáticas ordens de silêncio –; as parábolas, cujo sentido, a princípio, permanece oculto; e a própria estrutura do Evangelho. Como vimos, Marcos organiza o texto mediante duas grandes inclusões – sugeridas já no começo do Evangelho (cf. Mc 1,1) – que são delimitadas através da confissão de fé petrina (cf. Mc 8,29) e da proclamação do centurião romano (cf. Mc 15,39). Aliás, com base neste esquema bipartido, Marcos configura a proposta fundamental do seu Evangelho, que é o seguimento de Jesus no caminho, isto é, o discipulado. Como podemos observar, tudo no Segundo Evangelho depende do segredo messiânico, de modo que não é possível aprofundar na teologia marcana sem estudá-lo cuidadosamente. Isso justifica e exige que lhe dediquemos o próximo artigo. * Juan Pablo García Martínez nasceu na Província de Buenos Aires, Argentina. É religioso da Congregação do Sagrado Coração de Jesus de Betharram, advogado (2001) pela Universidade de Buenos Aires (Argentina) e estudante de Teologia (sétimo período) no Instituto Santo Tomás de Aquino, em Belo Horizonte, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 58 | EVANGELHO DE JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS: as linhas mestras do Evangelho de Marcos onde reside. ** Solange Maria Do Carmo, orientadora da pesquisa, licenciada em Filosofia, bacharel em Teologia (FAJE), mestre em Teologia Bíblica (FAJE) e doutora em Catequética (FAJE), professora do ISTA e do Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa (PUC-Minas). REFERÊNCIAS AZEVEDO, Walmor Oliveira de. Uma leitura do Evangelho de Marcos. A força pedagógica da articulação global do Evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, São Bernardo do Campo, n. 22, p. 23-30, 1989. BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos (I). São Paulo: Loyola, 1990. BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973. BURKILL, T. A.. The cryptology of parables. In: St. Mark´s Gospel. NovumTestamentum, Leiden, v. 1, p. 246-262, 1956. GNILKA, Joachim. El Evangelio según San Marcos. Mc 8,27–16,20. Salamanca: Sígueme, 1986, v. 2. GOPEGUI, Juan Ruiz de. O Evangelho de Marcos: um roteiro inspirador para a catequese. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v.14, n.34, p.279-300, 1982. HEAD, Peter. Text-Critical Study of Mark 1.1 `The beginning of the Gospel of Jesus Christ´. New Testament Studies, Cambridge, v.3 7, p. Para melhor compreensão do termo Alteridade, tanto na obra KONINGS, Johan. Marcos. São Paulo: Loyola, 1994. MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2009. MARTINI, Carlos Maria. O itinerário espiritual dos Doze. São Paulo: Loyola, 1997. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. Juan Pablo G. Martinez | 59 MATOS, Paulo Félix de. Títulos de Jesus no Evangelho de Marcos. Revista de Cultura Bíblica, São Paulo, v. 21, n. 81-82, p. 110-116, 1997. SILVA, Airton José da. Ele caminha à vossa frente. O seguimento de Jesus pelo Evangelho de Marcos. Estudos Bíblicos, São Bernardo do Campo, n. 22, p. 11-21, 1989. SMITH, Stephen H.. The function of the Son of David tradition in Mark´s Gospel. New Testament Studies, Cambridge, v. 42, p. 523539, 1996. TAYLOR, Vincent. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979. TERRA, João Evangelista Martins. Cristo no Evangelho de Marcos. Revista de Cultura Bíblica, São Paulo, v. 21, n. 81-82, p. 3-18, 1997. TILLESSE, Caetano Minette de. Evangelho segundo Marcos: nova tradução estruturada, análise estrutural e teológica. Fortaleza: Nova Jerusalém, 1992. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.45-59, jul./dez. 2014. 60 | Henrique Cristiano J. Matos | 61 EDUCAR PARA A VIDA PLENA Frater Henrique Cristiano José Matos Em fins de janeiro de 2014 houve, em Igarapé, na grande Belo Horizonte, um encontro de dois dias, organizado pela ANEC (Associação Nacional de Educação Católica do Brasil), do qual participaram vários diretores e diretoras de colégios católicos da capital mineira com suas respectivas assessorias. Dom José Maria Pires (1918), arcebispo emérito da Paraíba (João Pessoa), com seus quase 96 anos, esteve presente o tempo todo, brindando os participantes com reflexões muito originais sobre o tema: “A educação antes e depois do Concílio Vaticano II”. Seu testemunho de vida falou ainda mais alto do que as sábias palavras pronunciadas. O momento mais significativo de sua colaboração foi, sem dúvida, a Eucaristia que presidiu no sábado à noite, encontro fraterno de intensa espiritualidade e de partilha espontânea. A mim foi confiada uma reflexão sobre o tema “Educar para a vida plena”, tendo como pano de fundo o artigo 2º, inciso II, do Estatuto Social da ANEC, onde se lê: “[A ANEC tem como finalidade precípua] Promover a educação cristã evangélico-libertadora, entendida como aquela que visa à formação integral da pessoa humana, sujeito e agente de construção de uma sociedade justa, fraterna, solidária e pacífica, segundo o Evangelho e o ensinamento social da Igreja”. Durante a palestra usei um esquema, espécie de aide-mémoire, que, mais tarde, foi transformado no texto aqui apresentado. Não se trata de uma exposição sistemática sobre ‘educação católica’, mas de uma simples contribuição de um religioso que dedicou praticamente todasua vida ao trabalho educativo em Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. 62 | EDUCAR PARA A VIDA PLENA instituições católicas de ensino. Quando fui convidado para discorrer sobre o tema indicado, procurei os diversos lemas que colégios católicos de Belo Horizonte costumam colocar junto ao logotipo de sua instituição. Encontrei, entre outros, os seguintes dizeres: “Educar é libertar pela verdade”; “Educar para a paz”; “Vence quem se vencer”; “Educando para a vida plena”. Parecia-me que o lema contendo as palavras “vida plena” estava mais diretamente em sintonia com o ideário de uma “educação cristã evangélico-libertadora” de que fala o documento-base da ANEC. Não é difícil localizar a segunda parte da frase; encontramo-la em Jo 10,10: “Eu vim – diz Jesus – para que tenham a vida e a tenham em abundância.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM). A paráfrase do texto bíblico é precedida pelo verbo “educar”. Começamos nossa reflexão com a interpretação do termo “educação” Trata-se de um processo que, no caso específico de uma escola, envolve toda a comunidade escolar, numa dinâmica de participação, diálogo, criatividade e espírito crítico. Refere-se, concretamente, aos cuidados dispensados para alguém poder desenvolver plenamente sua personalidade, na convicção de que o próprio educando é o sujeito principal de seu desenvolvimento que, para ser “pleno”, deve ser integrado e não unilateral. Temos aqui uma tarefa básica e permanente do ser humano em qualquer faixa etária. No mundo competitivo em que vivemos é grande a tentação de sermos dominados pelo ter, a posse de algo em proveito próprio. Com acerto, Padre Libânio, SJ, afirmou que “o ‘ter’ se nos agrega, enquanto o ‘ser’ nos constitui.” (LIBÂNIO, 2002, p. 84). No contexto do sistema escolar a tarefa principal do educador ou professor não é ensinar, mas ajudar a aprender e, mais especificamente, ‘aprender a ser’, na perspectiva de um processo personalizante de autorrealização humana. Este ‘aprender a ser’ é, na realidade, uma dinâmica de humanização, com dimensão tríplice: a pessoa em si; sua convivência com os outros e com o mundo; sua relação com Deus. Paulatinamente começa a entender a si mesmo como alguém dotado de potencialidades a serem desenvolvidas, mas, igualmente, toma consciência de suas limitações e contradições. Experimenta que Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.25, p.61-74, jul./dez. 2014. Henrique Cristiano J. Matos | 63 não está sozinho no mundo, mas chamado a conviver com seus iguais e com a Natureza, numa relação de solidariedade, respeito e partilha. Por fim, descobre que é uma criatura que tem Deus por Pai com quem, em Jesus Cristo, pode relacionar-se no amor e na liberdade de um filho. O equilíbrio dessa tríplice experiência é que abre o horizonte de uma “vida plenificada”. A educação – na visão cristã – procura formar na pessoa este ideal de vida, unindo a utopia à realidade. Dois extremos devem ser evitados: uma insana autorreferencialidade e um complexo de inferioridade. “O ser humano vive entre limites e possibilidades. A atitude realista consiste em perceber o que é limite e o que é possibilidade. Dentro dos limites, desenvolver o máximo das possibilidades. Evitam-se o sonho do irreal e a acomodação da mediocridade. Deixa-se de lado o amargor de quem não aceita a realidade concreta e vive nas asas da ilusão. Empenha-se na valorização dos talentos pessoais, segundo o ensinamento da parábola, e das chances históricas, lidas como graças exteriores que o Senhor coloca em nossas vidas. É um realismo que conserva uma pitada de utopia, de esperança, de superação de si. Porque também isso pertence ao ser humano.” (LIBÂNIO, 2001, p. 66). No processo de amadurecimento humano, o educando aprenderá que sem solidariedade e responsabilidade social ele não cresce como pessoa. E também se convencerá de que sem disciplina não conquistará a tão sonhada liberdade. Uma escola de qualidade contempla, no seu projeto pedagógico, as diversas dimensões aqui apontadas, fixando objetivos, políticas e estratégias que se tornarão operacionais mediante programas detalhados e iniciativas concretas. Alguns elementos merecem nossa atenção pela importância que têm no conjunto do processo educativo: despertar no aluno a capacidade de maravilhar-se, sendo este o princípio de toda verdadeira aprendizagem; desenvolver nele, igualmente, o gosto pela beleza, porta de entrada do amor. Conhecida é a frase de Santo Agostinho (+430): “Que coisa é o belo? E que coisa é a beleza? Que coisa nos alicia e nos afaga nas coisas que amamos? Se não houvesse nelas decoro e beleza, de modo algum nos atrairiam.” (AGOSTINHO, 1999, livro IV, n. 13). Educação nunca é imposição; ao contrário, uma ação Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. 64 | EDUCAR PARA A VIDA PLENA autenticamente educativa leva o educando a pensar, ele mesmo, com lucidez, criatividade e liberdade. Supérfluo dizer que o ensino escolar não pode constar apenas de conhecimentos teóricos e soltos. Estes devem ser integrados em conjuntos maiores com significado para a vida da pessoa. Muito pobre é uma escola orientada maiormente para resultados imediatos do ponto de vista quantitativo e pragmático. São colégios que fazem propaganda no mercado e medem seu ‘sucesso’ apenas pelas aprovações dos alunos no ENEM ou cursos superiores. São imbuídos do espírito mercenário, cujo objetivo – duro dizê-lo – é ‘ganhar dinheiro’, reduzindo seus alunos a objetos de valor comercial. Frequentes vezes, são portadores de uma mentalidade utilitarista, na ótica de uma cultura massificante, vulgarizada e banalizada. Refletem, na realidade, os imperativos capitalistas que visam ao máximo de lucro com o mínimo de investimento e isso no mais curto prazo possível. O que determina sua atuação é, antes de tudo, eficácia, funcionalidade e racionalidade. Escolas desse tipo são um retrato vivo do ideário pósmoderno que fabricou um ser humano unidimensional! Padre Johan Konings, SJ, introduziu uma distinção significativa no conceito “educação”, falando de qualificação (para a vida profissional, o mercado de trabalho, uma função na sociedade) e aquilatamento, uma educação que enriquece a pessoa, a enobrece e constrói por dentro. Não se trata de apenas formar (ou deformar!) jovens ‘aproveitáveis’ no sistema econômico, mas de formá-los de tal maneira que atinjam plenamente sua vocação de pessoa. “O próprio ‘meio’ (a finalidade intermediária que é a qualificação) é influenciada pelo fim ‘final’ que se propõe, o aquilatamento da pessoa. Estruturas boas se fazem com pessoas boas. Se nosso ensino continuar dominado pelo pensamento da utilidade, vai continuar produzindo pessoas-máquinas, que não pensam nem sentem. Só se o ensino se empenhar em produzir personalidades bem informadas, conscientes, livres e solidárias, elevará realmente a qualidade da sociedade e da humanidade”. (KONINGS, 2013). Num colégio que se diz ‘católico’, o educando deve adquirir a capacidade de colocar diante de si perguntas sobre o sentido da vida, sua origem e destino, seus valores e desafios. São, efetivamente, interrogações existenciais que tocam a razão de ser da condição humana. Já dissemos que o estudo escolar deve ser útil à compreensão da vida e, nesse sentido, a escola deve incentivar uma Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. Henrique Cristiano J. Matos | 65 verdadeira ‘cultura de estudo’, elemento primordial da autoformação do educando. Nunca é demais insistir na importância de boas leituras, que vão além de informações fugazes da internet. O corpo discente recebe forte estímulo nesta direção pelos exemplos de seus próprios mestres. De fato, são os professores que, com seu testemunho e entusiasmo, abrem os olhos dos educandos para eles perceberem a beleza dos diversos saberes e o sentido mais profundo da vida humana. O exemplo convence muito mais do que recomendações verbais. São Gregório Magno, que viveu na segunda metade do século VI, já dizia: “Temos autoridade para ensinar quando, antes, praticamos o que falamos. O ensino perde a garantia quando a consciência contradiz o que foi verbalizado!”. Diversas vezes referimo-nos à ‘educação católica’ e agora queremos aprofundar, mesmo em linhas globais, esta temática. Há 50 anos o Concílio Vaticano II (1962-1965) publicou a Declaração Gravissimum Educationis (28-10-1965), afirmando: “Entre todos os meios de educação, tem especial importância a escola, em virtude de sua missão, enquanto cultiva atentamente as faculdades intelectuais, desenvolve a capacidade de julgar retamente, introduz no patrimônio cultural adquirido das gerações passadas, promove o sentido dos valores, prepara a vida profissional e criando entre alunos de índole e condição diferentes um convívio amigável, favorece a disposição à compreensão mútua.” (CONCÍLIO VATICANO II, GE, 1965, n. 5). No período que se seguiu ao Concílio, houve na Igreja um sério esforço de especificar o papel de uma ‘escola católica’. A CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) publicou, em 1976, a tradução portuguesa do Documento 23 da CLAR (Confederação LatinoAmericana de Religiosos) sobre o religioso educador1. Ainda hoje vale a pena reler este texto rico em conteúdo e inovador em suas propostas. No prefácio da edição brasileira, Padre Marcello de Carvalho Azevedo, SJ, na época presidente da CRB-Nacional, esclarece que o Documento é um roteiro sugestivo e completa que, mais do que ensinar, ajuda a descobrir e aprender. Depois de lê-lo, será difícil não se interrogar”, conclui Padre Marcello. 1 Uma síntese deste documento, em forma de esquema interpretativo, encontra-se em: MATOS, Henrique Cristiano José. Herança de um magistério. Belo Horizonte: [s.n.] 2012, p. 160-164. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. 66 | EDUCAR PARA A VIDA PLENA A pergunta que mais nos intriga é: o que pretendemos com um colégio católico? Qual é a sua razão de ser? Quando examinamos as origens de colégios inicialmente fundados e dirigidos por religiosos ou religiosas, verificamos, quase sempre, que seus iniciadores tiveram objetivos bem definidos: queriam evangelizar mediante o trabalho educacional da juventude em escola própria. A preocupação para com a qualidade do ensino e a escolha criteriosa de professores tinham um objetivo mais largo e profundo: a formação cristã integral de crianças e jovens, sua preparação para serem bons cidadãos e autênticos cristãos, conscientes de seu lugar na sociedade e na Igreja, dispostos a darem sua contribuição na construção de um convivência humana mais justa, solidária e compassiva. Aqueles que iniciaram essas escolas estavam persuadidos que “a formação acadêmica é realmente importante, mas muito mais importante é que os educandos cheguem a encontrar o sentido da vida à luz de sua fé e que sintam um ideal de fraternidade cristã. Somente assim estariam dispostos a compartilhar com outros o que são e o que têm; teriam sensibilidade social; respeitariam a todos e sairiam – enfim – da escola com decisão de promover a justiça, na sociedade da qual participam”. (CLAR, 1976, p. 62). Via de regra constatamos que, uma vez assegurada a qualidade do ensino e estabelecida uma infraestrutura correspondente, os colégios católicos fundados no século passado procuraram, desde seus primórdios, empenhar-se seriamente na sua missão evangelizadora, dando testemunho do amor de Cristo, a cuja imagem pretendiam formar seus alunos, a fim de que neles surgisse o ‘homem novo’, em busca da plenitude de sua maturidade humana e cristã. No fundo, se convenceram de que o peso maior não é a instituição em si, com suas realizações materiais, mas o espírito que a anima por dentro e que dá direção ao trabalho desenvolvido. Também sustentaram a tese de que numa escola “em estado de evangelização” não podem faltar ‘tempos fortes’ de reflexão, diálogo e convivência. Em circunstâncias diversas explicitaram que “autêntica educação libertadora exige o anúncio explícito da Palavra de Deus, através de uma comunidade serviço-testemunho, partindo sempre de situações concretas.” (CLAR, 1976, p. 56). “Partir de Cristo” é o imperativo de uma identidade cristã e Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. Henrique Cristiano J. Matos | 67 católica, pois Ele constitui o centro de uma educação integral. Evangelizar é humanizar e, por sua vez, quem humaniza de verdade é que evangeliza! Daí que identidade nunca pode ser imposição de uma determinada confissão religiosa ou Igreja. Recentemente, o Papa Francisco, falando aos participantes da Plenária da Congregação Romana para a Educação Católica (13-2-2014), disse: os que atuam na rede de escolas católicas devem empreender “itinerários educativos de confronto e diálogo, com uma fidelidade corajosa e inovadora que saiba promover o encontro entre a identidade católica com as várias ‘almas’ da sociedade multicultural”, e acrescentaríamos: multirreligiosa. Apresentar a pessoa de Jesus Cristo como modelo de uma educação plenificante não é algo forçado ou artificial, ilegítimo ou desrespeitador, pois toda autêntica evangelização (propor o Evangelho como ‘caminho de vida’) conduz, necessariamente, a um aperfeiçoamento de nosso ser-humano. Leonardo Boff expressou esta verdade em termos inequívocos: O existir humano consiste num sair-de-si (‘ex’-istir), pois é “saindo de si que o homem fica mais profundamente em si; é dando que recebe e possui seu ser. Por isso que Jesus foi o homem por excelência, o ecce homo: porque sua radical humanidade foi conquistada, não pela dominação e categórica afirmação do eu, mas pela entrega e comunicação de seu ‘eu’ aos outros e para os outros, especialmente para Deus, a ponto de identificar-se com os outros e com Deus. Do modo de ser de Jesus como ser-para-os-outros, aprendemos qual é o verdadeiro ser e existir do homem. Ele só existe com sentido, caso se entender como total abertura e como nó de relações para todas as direções, para o mundo, para com o outro e para com Deus. Seu viver verdadeiro é um vivercom. Por isso, é somente através do ‘tu’ que o ‘eu’ se torna o que é. O eu é um eco do tu e, em sua última profundidade, uma ressonância do Tu divino. Quanto mais o ser humano se relaciona e sai de si, mais cresce em si mesmo e se torna humano. Quanto mais está no outro, mais está em si mesmo e se torna eu”. (BOF, 1998, p. 145). A presença da Igreja – cuja missão essencial é evangelizar (PAULO VI, EN, 1975, n.14) – no campo educacional manifesta-se, de forma privilegiada, na escola católica. “É próprio dela – lemos da Declaração Gravissimum Educationis, (CONCLÍO VATICANO II, GE, 1965, n. 8) – criar um ambiente de comunidade escolar animado pelo Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. 68 | EDUCAR PARA A VIDA PLENA espírito evangélico de liberdade e caridade, ajudar os adolescentes para que, ao mesmo tempo que desenvolvam a sua personalidade, cresçam segundo a nova criatura que são graças ao batismo e ordenar, finalmente, toda a cultura humana à mensagem da salvação, de tal modo que seja iluminado pela fé o conhecimento que os alunos adquirem gradualmente a respeito do mundo, da vida e do homem”. Esta missão, realizada em circunstâncias sempre cambiantes, constitui a razão de ser de uma escola católica. Acrescenta ainda o mencionado documento conciliar: “É bela e de grande responsabilidade a vocação de todos aqueles que, ajudando os pais no cumprimento de seu dever e fazendo as vezes da comunidade humana, têm o dever de educar nas escolas. Esta vocação exige especiais qualidades de inteligência e de coração, uma preparação muito cuidada e uma vontade sempre pronta à renovação e à adaptação.” (CONCLÍO VATICANO II, GE, 1965, n. 5). Repetidamente se fala aqui de ‘vocação’ e de ‘ministério’ do corpo docente, referindo-se a um serviço de inestimável importância para a sociedade e para a Igreja, no fundo algo impagável pelo fato de extrapolar, de longe, uma remuneração material. É obra de Deus e representa um benefício incalculável à sociedade, pois da educação depende o futuro de uma Nação! Muito além dos conhecimentos que transmite, o professor-educador dá testemunho de valores encarnados na sua pessoa, sua linguagem e seu modo de ser. O exemplo de vida é que fornece credibilidade a seus ensinamentos. Bem o disse Papa Francisco no documento-programa de seu pontificado, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (24-11-2013): “Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa-Nova, não só com palavras mas, sobretudo, com uma vida transfigurada pela presença de Deus.” (FRANCISCO, EG, 2013, n. 259). Diante do ideal esboçado não podemos fechar os olhos para a realidade em que nos encontramos, hoje, com seus incomuns desafios na área da educação. Não há necessidade de entrar em detalhes , pois os fatos são amplamente conhecidos a todos que trabalham na escola. Apenas apontaremos algumas questões mais prementes, entre as quais o descrédito do casamento tradicional, a desestruturação familiar, o reconhecimento de relações homoafetivas, as enormes mudanças provocadas pela mídia, particularmente a internet, a dependência química e o generalizado tráfico de drogas entre os jovens. Todos esses fenômenos arrastam uma série de graves consequências para a Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. Henrique Cristiano J. Matos | 69 educação. Frequentes vezes a escola é ainda um dos poucos lugares onde a criança ou adolescente possui um espaço de acolhimento e de diálogo. Quem trabalha, como voluntário, no sistema prisional sabe, de perto, a importância de uma escola dentro do presídio. Os educadores – na realidade a grande maioria são mulheres! – exercem ali um papel que vai muito além das aulas ministradas. Essas profissionais tornamse as confidentes dos presos, ponto de apoio e de referência humana. Sua presença materna no submundo do crime, em meio daqueles e daquelas privados de sua liberdade, mantém acesa a tênue chama da esperança, que é a possibilidade de um futuro diferente e a certeza de que nem tudo está perdido! Essas heroínas oferecem, pelo seu ser e agir, o que temos de melhor na sociedade: a educação que, no caso específico da população carcerária, é um dos poucos elementos de real ressocialização! Ser educador é uma das vocações mais nobres e, também, mais necessárias. Reduzi-la a uma mera tarefa profissional é esvaziála na sua essência. Logicamente, o serviço prestado deve ser bem remunerado; aliás – é forçoso reconhecê-lo – nunca poderá ser pago à altura, pois seu exercício extrapola todo cálculo monetário! Daí que se torna estranho e contraditório quando numa escola tudo começa a ser avaliado em termos de dinheiro. Qualquer minuto a mais no atendimento deve ser pago, perdendo-se a dimensão da gratuidade, inerente a toda obra educacional. Educar é humanizar na dimensão tríplice de que já falamos. Assim, abrimos para o educando um caminho de vida plena que – na tradição cristã – se concretiza na pessoa histórica de Jesus, o Cristo da fé, o Filho de Deus encarnado, que disse de si mesmo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.” (Jo 14,6). A imagem de ‘caminho’, de ‘avançar’, de ‘crescer’ e ‘amadurecer’ é singularmente adequada para a ação educativa, tanto humana quanto espiritual; aliás, as duas dimensões do processo sempre são inseparáveis. Ao longo da História do Cristianismo, regularmente houve momentos privilegiados com orientações seguras, que lançaram novas luzes sobre a dinâmica do crescimento e amadurecimento do ser humano e sobre o sentido de sua existência. Assim, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o Espírito suscitou na Igreja um movimento de revitalização do serHorizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. 70 | EDUCAR PARA A VIDA PLENA cristão, que entrou na História com o nome de Devoção Moderna. Em torno da figura de Gerardus Grotius (1340-1384) formaramse grupos de homens e mulheres que desejavam uma vida cristã mais ‘interiorizada’ (devota), voltando-se às genuínas fontes do cristianismo: a pessoa de Jesus de Nazaré, a Sagrada Escritura, particularmente os Evangelhos, e os ensinamentos dos Santos Padres (grandes teólogos e pastores dos primeiros séculos). Entre os diversos ramos da Devoção Moderna merece destaque o dos Fratres de Vita Communis, os ‘Irmãos da Vida em Comum, leigos que viviam em comunidade, sob a obediência de um ‘prior’ (o primeiro entre seus iguais), mas sem votos canônicos (isto é, oficialmente reconhecidos pela Igreja). Seu apostolado preferido era a educação da juventude. Os fráteres acompanhavam estudantes, acolhidos nas suas próprias casas, ou frequentadores de escolas por eles fundadas e dirigidas. Propagavam o ideal de uma ‘formação integral’, a partir da inspiração religiosa. E nesses ambientes que terá grande difusão o livrinho intitulado Imitação de Cristo, composto por Tomás de Kempis (13801471), membro de outro ramo da Devoção Moderna (os Cônegos Regulares de Windesheim). Trata-se de uma obra constando de quatro pequenos tratados que, no seu conjunto, oferecem uma pedagogia de crescimento humano-espiritual, ou seja, um itinerário prático para alguém chegar a ser cristão de verdade. No decorrer dos séculos, esse pequeno manual transformou-se num dos maiores clássicos da espiritualidade cristã. Após a Bíblia, é o livro mais divulgado e, provavelmente, mais lido, não só por cristãos mas, igualmente, por pessoas fora de seu âmbito religioso específico. O segredo de sua popularidade está, sem dúvida, no realismo com que o autor aborda a dinâmica do amadurecimento ‘em Cristo’. Apresenta, de fato, uma fina análise psicológica do ser humano ‘em busca de sua realização’. Descreve o processo de crescimento cristão a partir de experiências vividas no quotidiano. Esta obra-prima de Tomás de Kempis sobreviveu os tempos, firmando-se em momentos de esfriamento, forte crise e contestações. Recentemente houve uma reviravolta quanto à compreensão e interpretação de estrutura, composição e conteúdo da Imitação de Cristo. Nos Países Baixos, berço desta obra kempense – região atualmente em acelerado processo de secularização –, vieram à luz novas tradições e sólidos estudos que clarificaram seu contexto histórico e significado, mostrando que se trata do fruto mais maduro Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. Henrique Cristiano J. Matos | 71 e também duradouro do movimento da Devoção Moderna. Essas publicações tiveram uma recepção surpreendente e não só entre especialistas. Notável é uma tradução diretamente voltada a um público jovem, em linguagem moderna. (VRIES, 2008). Todas essas iniciativas revelam que esse clássico da espiritualidade conserva, ainda em nossos dias, uma misteriosa atração e admirável atualidade. No início de 2014, foi lançado no Brasil um livro que traz o título “Imitação de Cristo: caminho de crescimento espiritual”. (MATOS, 2014). Oferece ao público de língua portuguesa uma introdução à conhecida obra de Tomás de Kempis, no que diz respeito ao seu contexto histórico, linhas inspirativas e significado para nós, hoje. Contém também uma antologia, em nova tradução, com um índice temático para facilitar seu uso em circunstâncias e momentos diversos da vida. O autor adota nesse seu livro-guia a sequência dos quatro ‘livros’ (tratados), conforme o manuscrito original de 1441, seguindo nisso os resultados das recentes pesquisas realizadas pelo Instituto de Espiritualidade “Titus Brandsma”, da Universidade de Nimega (Países Baixos). Aparece, assim, uma visão completamente nova da Imitação, que, durante séculos, foi vista como um manual ascético-moralista. As descobertas dos últimos decênios revelaram uma direção bem diferente. Na realidade, trata-se de uma obra mistagógica, um guia que, pedagogicamente, nos conduz ‘à vida plena’, ou seja, à união mística com Deus. Faustino Teixeira, no prefácio do mencionado livro, comenta: Temos aqui “uma preciosa pedagogia religiosa que privilegia um caminho interior de crescimento espiritual. Em linha de sintonia com a inspiração traçada pela Devoção Moderna, a Imitação de Cristo sublinha a centralidade da interioridade, mas pontuada pelo seguimento de Jesus. Trata-se de uma ‘interiorização do espírito de Jesus’ e um convite a uma vida cristiforme que se abre ao horizonte maior do Mistério de Deus. Ou, como indica o autor, “a busca de Deus, seguindo o Cristo, na perspectiva da união definitiva no amor trinitário.” (MATOS, 2014, p. 11). Longe de ser um livro de espiritualidade intimista, alheia à realidade, temos em mãos uma obra que apresenta uma orientação segura para quem pergunta sobre o sentido da existência e está em busca de Jesus Cristo, indo, com Ele, ao encontro do Pai, a fim de entrar na ‘vida plena’. Num tempo de radicais mudanças, de desorientação, crescente subjetivismo e perda de valores, a Imitação Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. 72 | EDUCAR PARA A VIDA PLENA de Cristo nos conduz à interioridade e, simultaneamente, provoca um forte questionamento respeito à nossa autorreferencialidade, abrindo perspectivas de realização pessoal, exatamente pela saída de nós mesmos ao encontro dos outros e do grande Outro: Deus. Tomás de Kempis, colocando-nos decididamente no caminho do seguimento de Cristo, não desconhece suas implicações sociopolíticas da sequela Christi. Jesus foi um homem que não viveu para si mesmo, mas doou livremente sua vida para que todos tivessem vida e vida em abundância (Jo 10,10), privilegiando os pequenos, fracos, pecadores , marginalizados, doentes e presos, enfim, todos aqueles irmãos e irmãs que se encontram ‘à beira da estrada’. Mostrou-se, durante toda a sua vida no meio de nós, um vir misericordiae, um homem de misericórdia, um Irmão compassivo, que vivia a fraternidade na partilha e na solidariedade. O processo de transformação interior e de crescimento espiritual – descrito em detalhes e com realismo por Tomás – atingirá, por coerência interna, a sociedade em que vivemos e atuamos. Assim, “Jesus se torna uma referência de permanente crítica interna, que incomoda. Ele não permite ser domesticado por nenhum sistema eclesiástico e não fica preso à instituição religiosa, mas, sim, se deixa amar pela fé libertadora.” (BOFF, 1998, p. 219). Concluindo: Educar para a vida plena foi o título dessa reflexão. O processo formativo do ser humano nunca se encerra enquanto andamos aqui na terra. Ao contrário, entramos conscientemente num fascinante itinerário de contínuo amadurecimento humano e espiritual, até chegarmos ao desenvolvimento cabal de todas as possibilidades presentes em nosso ser. Não é um processo linear, uma vez que, necessariamente, conhece avanços e recuos. O que importa realmente é a direção que seguimos, o ideal que cultivamos, o sonho que acalentamos. “Aprender a ser é a mais difícil tarefa educativa. Implica uma concepção integral do ser humano e desenvolver-lhe todas as dimensões. (...) Aprender a ser inclui uma compreensão ampla. Equilibrada e relacional do ser humano, para viver na realidade atual e ser capaz de imaginar realidades futuras. A verdade e a veracidade do próprio ser se constrói numa relação de liberdade diante da onda consumista de bens. O ‘ter’ ameaça hoje o ‘ser’. Importa ser na verdade de si, autenticamente, sem perder-se e esconder-se no ter.” (LIBÂNIO, 2002, p. 106-107). A escola católica evangeliza quando coloca em evidência Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. Henrique Cristiano J. Matos | 73 os valores do Evangelho, que sempre são valores profundamente humanos. Que não tenha receio de comunicar publicamente a mensagem de Jesus e traduzi-la em atitudes coerentes. Na tradição católica falamos de ‘formar Cristo’ em nós (Gl 4,19), o Homem novo e integrado por excelência. A partir dEle, o educando começa a entender-se como filho de Deus, o único Senhor, e como irmão e irmã dos outros seres humanos, comprometido com a tarefa de instaurar uma sociedade fraterna, solidária e justa. Gradativamente, mediante um longo processo de aprendizagem, tomará consciência da presença do Divino, encarando sua vocação derradeira como uma participação à ‘vida plena’, quando Deus, Pai querido, se torna ‘tudo em todos.’ (1Cor 15,28). Este ideário formativo está maravilhosamente traçado na obra De Imitatione Christi, herança perene da Devoção Moderna, movimento de revitalização cristã do século XIV, obra-prima de um de seus mais ilustres representantes. Começa com as palavras: “Quem me segue, não anda nas trevas (Jo 8,12), diz o Senhor. São estas as palavras de Cristo, pelas quais somos exortados a imitar sua vida e seus costumes, se, verdadeiramente, queremos ser iluminados e libertos de toda cegueira de coração. Seja, pois, nosso principal empenho meditar sobre a vida de Jesus Cristo.” (Livro 1, capítulo 1,1). Frater Henrique Cristiano José Matos é religioso da Congregação dos fráteres de Nossa Senhora Mãe da Misericórdia. Dedicou toda a sua vida à educação. Possui publicações na área a de História da Igreja e de Espiritualidade. É o responsável pelo Centro Holístico de Espiritualidade “Vicente de Paulo”, no município de Igarapé-MG. E-mail: fraterhc@terra. com.br REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores). BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2004. BOFF, L. Jesus Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. CLAR. O educador religioso. Rio de Janeiro: CRB, 1976. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. 74 | EDUCAR PARA A VIDA PLENA CONCÍLIO VATICANO II. Declaração Gravissimum Educationis sobre educação cristã. Disponível em:< http://www.vatican.va/archive/ hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_ gravissimum-educationis_po.html>. Acesso em: 27 nov. 2013. FRANCISCO. Evangelii Gaudium a alegria do Evangelho: exortação apostólica do Sumo Pontífice ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Loyola, 2013. LIBANIO, J. B. A arte de formar-se. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002. LIBANIO, J. B. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2001. KONINGS, Johan.Educação com humanismo.Disponível em:<http:// www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=3977>. Acesso em: 27 nov. 2013. MATOS, Henrique Cristiano José. Imitação de Cristo: contexto histórico, inspiração e atualidade. Belo Horizonte: O Lutador, 2014. MATOS, Henrique Cristiano José. Herança de um magistério. Belo Horizonte: [s. n.], 2012. PAULO VI. Evangelii Nuntiandi: exortação apostólica ao episcopado, ao clero, aos fiéis de toda a igreja sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1975. VRIES, Mink de. De Navolging van Christus. Hertogenbosch/ Mechelen: KBS, 2008. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.61-74, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 75 A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica¹ José Carlos Aguiar de Souza* Marco Aurélio do N. Alves** Rafael Lourenço Navarro*** Resumo Objetivo deste artigo é explorar problemas e condicionantes filosóficos envolvendo as questões ecológicas e ambientais. Mais especificamente, através do pensamento do filósofo irlandês William Desmond e sua concepção do espaço metaxológico ou intermediário do ser, iremos explorar as possibilidades de outro modo de (bio) narrativa, que não tenha a centralidade humana como referência. Trata-se de nos abrirmos para uma subjetividade benigna, que não seja concebida em termos da vontade de potência do sujeito moderno. A generosidade hermenêutica do pensamento desmondiano oferece uma importante contribuição da filosofia ao debate ecológico. Palavras-chave: Hermenêutica. Bionarrativa. Metaxologia. Ecologia. Gestell.1 Abstract: This article presents a discussion concerning Bionarration from the perspective of Desmond`s metaxology. Metaxological 1 Este artigo é fruto de pesquisa financiada pela FAPEMIG/FIP: “Hermenêutica e Ecologia: rumo a uma bionarrativa do meio ambiente como superação da racionalidade instrumental”, em curso desde 2013. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 76 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica thoughtpresents a hermeneutic possibility of conceiving of a benign subjectivity that does not will to power. This hermeneutic generosity offers an enormous philosophical contribution to the nowadays ecological debate. Keywords: Metaxology. Bionarration. Hermeneutics. Ecology. Gestell. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo uma reflexão filosófica sobre a questão ambiental. Mais especificamente, iremos nos deter sobre as possibilidades de uma bionarrativa de plantas e de animais2, através da interlocução com o pensamento metaxológico de William Desmond. Muito embora a metaxologia não tenha discutido, diretamente, a questão ambiental, ainda assim ela oferece a possibilidade de uma hermenêutica genuinamente respeitosa da diferença, contribuindo para uma reflexão mais ampla da delicada problemática da ecofilosofia. Na primeira parte do artigo, discutiremos os problemas ligados à constituição da modernidade e da ciência, apresentando, logo após, a crítica feita por Heidegger à instrumentalidade técnica do mundo moderno. Em seguida, apresentaremos a contribuição de Derrida para o debate em torno da centralidade narrativa humana e a solução que ele propõe. Buscaremos argumentar que Derrida não consegue de fato superar os limites da racionalidade centrada no cogito. Logo após apresentaremos, brevemente, os eixos centrais do pensamento desmondiano, constitutivos da sua “hermenêutica benevolente.” Na última parte do artigo apresentaremos e discutiremos as questões da bionarrativa e a contribuição do pensamento de William Desmond como alternativa hermenêutica viável dessa problemática. 2 MODERNIDADE E CIÊNCIA Com o advento da modernidade e seu projeto de 2 O interesse pela temática da bionarrativa surgiu do instigante artigo de Peter Scheers (2007, p. 279-291). Onde o autor interpreta a metaxologia como uma hermenêutica benevolente, capaz de se abrir para a alteridade recalcitrante da natureza. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 77 objetivaçãocrescente do ser, o mundo foi perdendo paulatinamente os signos do mistério e a ambiguidade da sua comunicação. Quanto mais o ser do mundo e das coisas se torna objetivado, menos ele nos oferece a matriz capaz de nutrir reverência pela realidade elusiva das coisas. (SOUZA, 2013, p. 115). O ethos científico moderno concebe o mundo, em sua pobreza quantitativa, como uma mera res extensa. O ethos criado a partir do cogito autônomo tem como consequência a exclusão de qualquer fundamento heteronômico da racionalidade moderna. A guinada para o self é a implementação do projeto da razão, que se define como maître e possesseur de la nature. O cogito cartesiano cria a sua realidade no próprio ato do pensar; de si e para si o cogito assegura os fundamentos da nova ciência: cogito ergo sum. O caráter autônomo da razão faz com que a racionalidade moderna seja autolegitimadora, não necessitando de um princípio externo divino que garanta a verdade de suas próprias operações como fundamento último de certeza. Distintamente das outras épocas, a modernidade corta o aspecto heteronômico libertando, por assim dizer, a curiosidade humana de qualquer elo teológico restringente. O cogito cartesiano é expressão da autonomia do sujeito pensante, que não mais necessita de uma referência fora da sua própria estrutura autônoma. O cogito encontra no seu movimento reflexivo o paradigma da verdade. A primeira certeza do cogito cartesiano é encontrada no próprio ato de reflexão. A pressuposição subjacente a tal certeza é de que a consciência não pode ser deduzida de nada além de si mesma. No processo de reflexão a consciência se torna consciente de si e se afirma como autoconsciência. O cogito cartesiano não é um objeto a mais no mundo e por isso mesmo ele pode se colocar como a condição mesma da própria dúvida e se apresentar como o princípio de certeza fundante de todo o conhecimento. Tudo o mais pode e deve ser exposto à dúvida. Através da própria atividade de reflexão, a autoconsciência cria a sua própria natureza, que é estar consciente. Em outras palavras, o cogito é tomado como o princípio determinativo de toda racionalidade. Este momento originador de autorreflexibilidade é o que distingue a idade moderna de todas as outras épocas anteriores. Deus, no sistema cartesiano, possui apenas a função de assegurar a objetividade da realidade, mas o critério da verdade é dado pelo método: clareza e distinção. A própria ideia de Deus pode Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 78 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica ser considerada uma ideia verdadeira por ter sido submetida às novas exigências da razão. Uma vez assegurada a realidade objetiva do mundo, a ideia Deus não cumpre nenhuma outra função no sistema cartesiano. Tudo o que Descartes deseja de Deus era conseguir estabelecer um lugar para a realidade do mundo dentro do seu sistema, e então ele não necessitava mais dele. A racionalidade autoafirmativa se torna na modernidade um projeto existencial. No princípio normativo do cogito é que encontramos a estrutura de toda a racionalidade subsequente. A estrutura da racionalidade moderna pode ser delineada a partir da unificação dos dois polos constituintes do princípio da autonomia moderna: autopreservação e autoafirmação-do-sujeito. A racionalidade moderna é estruturalmente constituída em termos de uma trindade de componentes, que se delineiam em três momentos paradigmáticos: identidade, atividade autopreservadora e contradição. O primeiro momento estrutural, identidade, nos faz confrontar com um novo sujeito cuja consciência autoafirmativa se coloca como o princípio subjacente de toda a racionalidade. A consciência se torna causa sui. (SOUZA, 2005, p. 119)3. O segundo momento estrutural, de atividade autopreservadora, nos remete a uma atividade que não está direcionada a nenhuma teleologia ou fim pré-estabelecido, já que a sua moção visa apenas à preservação-de-si-mesma. Este princípio de autopreservação foi o responsável pela destruição do princípio de teleologia que norteou toda a tradição do pensar até a idade moderna. E por isso mesmo, ele é a inversão de toda e qualquer teleologia. (SOUZA, 2005, p. 119). Nós encontramos o terceiro momento estrutural, contradição, de forma bem clara e evidente na concepção newtoniana do espaço e do tempo. De fato, a Lei da Inércia de Newton é o ponto central do princípio de autopreservação. A concepção newtoniana de espaço superou a concepção de que o telos do movimento é o repouso. Para Newton, a mudança do curso de um objeto se dá devido a fatores externos ao objeto. Esses fatores externos contradizem o curso normal de um dado movimento. (SOUZA, 2005, p. 120). Em suma, razão advoga uma universalidade neutra. O ethos 3 Ver também (SOUZA, 2013, p. 116). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 79 moderno é geométrico e não mais contemplativo. Não existe nada mais a ser contemplado a não ser a universalidade neutra da razão geométrica. E o sucesso metodológico da ciência no projeto de dominar a natureza fez do conhecimento científico o paradigma de todo o conhecimento. (SOUZA, 2013, p. 116). Assim sendo, todos os outros possíveis modos de se descrever a realidade não possuem o suposto grau determinativo da razão científica. A matemática passou a ter importância ímpar na formação de ideias. E a matemática é completamente neutra a todas as questões que envolvem valor. (WHITEHEAD, 1994, p. 38). A noção de explicação mecânica para todos os processos da natureza finamente adquiriu na modernidade o status de dogma da ciência por assim dizer. (SOUZA, 2013, p. 117). O mundo nada mais é do que uma sucessão de configurações instantâneas de matéria: res extensa. 3 HEIDEGGER E A PROBLEMÁTICA DA TÉCNICA Em “Sobre a questão da técnica” (Die Frage nach der Technik). publicado em 1954, Martin Heidegger destaca a diferença entre a técnica e sua essência, passando da noção tradicional de essência como aquilo que de fato seja, para aquilo que concede à coisa continuidade em seu Ser. Estabelece-se assim “técnica” e “essência da técnica” como conceitos distintos. Heidegger assume as perspectivas “meios para um fim” e “uma atividade humana” como as definições instrumental e antropológica da técnica e ressalta a diferença entre o correto e a verdade; para ele o correto constitui-se como uma proposição que se adéqua a um aspecto daquilo a que se refere enquanto a verdade busca descobrir a essência do Ser-que-se-dá e permitir uma livre relação com ele. Para se compreender a proposta heideggeriana, é preciso nos determos sobre esta separação entre a verdade entendida como o correto, como adequatio intellectus et rei, e a verdade desvelada na clareira (die Lichtung) do Ser como aletheia. Em um escrito sobre a tarefa do pensar, Heidegger descreve assim a insuficiência da verdade como adequação: Na medida em que se compreende verdade no sentido “natural da tradição como a concordância, posta à luz ao nível do Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 80 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica ente, do conhecimento com o ente; mas também na medida emque a verdade é interpretada a partir do ser como a certeza do saber a respeito do ser, a aletheia, o desvelamento como clareira, não pode ser identificada à verdade. Pois a verdade mesma, assim como ser e pensar, somente pode ser o que é, no elemento de clareira. Evidência, certeza de qualquer grau, qualquer espécie de verificação da veritas, movem-se já com esta no âmbito da clareira que impera. (HEIDEGGER, 1989, p. 79). Dentro da perspectiva do filósofo alemão, a verdade é dizer do Ser. Dizer aqui é a tradução de sagen, verbo que no idioma alemão pode ser substantivado para algo que é traduzido por “lenda, saga, conto” e é o que estabelece o que pode e o que não pode ser dito no discurso ordinário, suprindo um povo de conceitos e constituindo assim um mundo Ao nos atentar que dizer (sagen) difere do enunciar em proposição (aussagen), compreendemos a verdade em Heidegger como dita de modo poético. Assim, a essência da técnica moderna, chamada por Heidegger de Gestell, impede o homem de alcançar a verdade. Tal influência ameaça a existência humana enquanto Dasein, ser-aí possuidor da possibilidade de hermenêutica do Ser. Buscamos, então, compreender como o homem pode se relacionar com a técnica moderna sem ter de assumir riscos desnecessariamente. Tomando a doutrina das quatro causas de Aristóteles, Heidegger destaca a demasiada importância dada à causa motora ou eficiente pela técnica moderna, que se preocupa apenas com o modo de fazer as coisas desconsiderando frequentemente o que e para que é feito. Ao buscar o entendimento helênico das causas, Heidegger visa ressaltar o fato de causa indicar o processo de revelação do efeito em clara oposição à noção técnica de causa como criação pela causa motora, já que o processo de revelação vale-se da causa motora bem como das outras três; material, formal e final. Este processo de revelar-se do Ser o pensamento grego entendia por aletheia, desvelar, tornar-se presente; nós modernos ignoramos o que é dito do Ser e chamamos de verdade o que é falado em proposições e usualmente entendemos como a adequação da ideia à experiência como veritas. Valendo-se da classificação aristotélica dos modos de conhecimento, Heidegger relaciona a técnica com uma atividade de revelação da verdade. Esta relação descaracteriza a técnica como mero Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 81 meio para um fim, caracterizando-a como uma maneira de descobrir a verdade. Techné diz respeito ao conhecimento universalizado em oposição à mera opinião. Aquele que constrói algo tem o conhecimento não só do manufaturar, do fabricar, mas também entende o que, para que e com o que se está manufaturando, compreende todo o processo que leva algo a se revelar. É neste aspecto de compreensão e não no de confecção que a técnica é um descobrimento. Todavia, a característica marcante desse descobrimento da técnica é a definição daquilo que se revela, pois a técnica moderna encara o mundo sob o ponto de vista da ciência moderna. Deste modo, aletheia revela o Ser em seu sentido mais originário enquanto veritas é apenas um falar restrito sobre o algo no mundo. Dito de outro modo, as ciências exatas encaram o mundo como passível de universalização estéril de sentido. “O procedimento matemático tornou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da autolimitação axiomática, ele se instaura como necessário e objetivo: ele transforma o pensamento em coisa; em instrumento, como ele próprio o denomina.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1984, p. 37). A ciência moderna, por sua vez, entende o real como um conjunto de leis gerais e estabelece à tecnologia uma forma de se relacionar com a natureza, que implica em só reconhecer nesta fontes de recursos à disposição. Ora, ao entender a natureza como mera relação entre fórmulas matemáticas, a técnica moderna desconsidera outras significações da coisa definida pelas leis gerais da ciência moderna e passa a se relacionar com essas coisas apenas no tocante à dependência que se tem delas enquanto recursos para alguma atividade humana. Desta maneira, um rio deixa de ser um marco geográfico, que influencia a vida ao longo de seu leito, para se tornar apenas fonte de energia das turbinas de uma usina hidrelétrica. Entretanto, diferentemente de um moinho, que usa o vento para impulsionar suas hélices e gerar a força com a qual trabalha, a técnica moderna não apenas utiliza o recurso, mas o estoca, para que ele esteja à disposição a qualquer momento que se faça necessário. À natureza, encarada desta forma pela técnica, Heidegger dá o nome de Estoque (Bestand). Porém, apesar deste compreender definidor e fixo em aspectos específicos do mundo, que se revela lhe propiciar um controle sobre a utilização destes recursos, o homem não tem controle sobre o desvelamento em si mesmo. Tal des-velamento apresenta-se sempre que Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 82 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica chama o homem aos modos de descobrir pertinentes à humanidade. Esta atividade de trazer adiante, revelar o real, num modo de ordenação de suprimentos, é nomeada Gestell. Esta palavra, cuja forma substantivada traduz-se como quadro, também é grafada por Heidegger como Ge-stell para ressaltar o verbo stellen. Este verbo pode significar colocar no lugar, ordenar, arranjar, suprir, entregar... Stellen engloba uma família de verbos como bestellen (ordenar, comandar), vorstellen (representar), sicherstellen (proteger), verstellen (bloquear, disfarçar), herstellen (colocar aqui, apresentar), darstellen (apresentar, exibir). Ao apresentar a essência da técnica, o pensador germânico nos chama a prestar atenção à característica nociva dela, ao seu perigo oculto. Em que consiste o perigo da técnica? Ao encarar o real apenas no âmbito do identificável pela ciência e manipulável pela técnica, o homem desconsidera outros significados do Ser-que-se-dá, acaba por apreender a natureza apenas como estoque (Bestand). e passa a considerar o real apenas naquilo que lhe é possível manipular. Sob tal perspectiva, o homem passa a enxergar no real só o fruto de sua interferência. Neste modo alienado de ver o mundo, o homem tende a ver a humanidade como parte desta natureza dominada e manipulada a seu bel prazer, como mero recurso humano. Daí sua essência de Ser-aí, aquele que interpreta o mundo, perde-se na ilusão de que ele se encontra em todo lugar a todo instante, relacionando-se somente com os produtos de sua atividade. Revela-se, pois, o perigo inerente à essência da técnica moderna, que incita o homem ao modo de descobrimento que define o real como estoque. Entretanto, Heidegger invoca Hölderlin para nos lembrar que “lá onde cresce o perigo, cresce também o poder de salvação.” Daí compreender o que Heidegger estabelece com Gestell permitirá descobrir ali a salvação, a proteção a este perigo, já que ainda mais nocivo que a ameaça oculta é a ameaça que, uma vez conhecida, é ignorada por se acreditar ter sido anulada. Deste modo, as propostas de um mero “desenvolvimento sustentável” não dão conta do problema ecológico, pois não conseguem perceber o problema. Um mundo digno de ser entendido como tal possui a natureza como parte atuante. Entretanto, a tecnologia moderna, em seu controle, cala o dizer da natureza, a transformando em jardins para a exploração humana. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 83 4 A RELAÇÃO ENTRE HUMANO E NÃO HUMANO: A ANÁLISE DESCONSTRUCIONISTA DE JACQUES DERRIDA A tradição ocidental caracteriza-se pelo lógos (racionalidade e linguagem). o qual é considerado um “próprio do homem”. A leitura desconstrutora da razão, feita por Derrida, avalia que a maneira pela qual a filosofia, em seu conjunto, a partir de Descartes, tratou a questão do animal não humano demonstra um forte logocentrismo. Trata-se de uma tradição não homogênea, mas hegemônica, cujo discurso é o de domínio. Entretanto, o que resiste a essa tradição é o fato de existirem seres vivos, entre os quais alguns não advêm daquilo que esse grande discurso acerca dos viventes pretende lhes atribuir. (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 82). Mesmo que, desde os tempos antigos, tenha sido exercida a violência contra os demais seres vivos, Derrida tenta mostrar a especificidade moderna e o axioma do discurso que a sustenta e pretende torná-la legítima. O conceito moderno de direito é dependente do momento cartesiano do cogito, da subjetividade. “Um certo conceito do sujeito humano, da subjetividade pós-cartesiana está, por ora, no fundamento do conceito dos direitos do homem.” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 83). Portanto, reconhecer direitos aos não humanos é uma maneira implícita de confirmar o moderno axioma de gesto repressivo, a interpretação do sujeito humano, o qual proporcionou a pior violência com relação aos viventes não humanos. (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 84). Derrida para evitar a filosofia do sujeito critica a teoria do significado de Husserl. Este postula a favor da esfera da consciência pura contra o “domínio intermédio da comunicação linguística”, confere o significado à esfera da essencialidade ideal e do inteligível com o objetivo de livrá-lo dos traços da expressão verbal. A expressão linguística representa o seu significado de uma maneira diferente, ela possui significado na base de um contexto ideal e não por força da associação. (HABERMAS, 1998, p. 162-164). Jacques Derrida pretende tornar válido o entrelaçamento do inteligível com o signo e até o primado transcendental do signo ante o significado, argumentando contra a platonização do significado e interiorização da expressão linguística. O autor não parte do princípio que considera a identidade do significado dependente da Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 84 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica práticaintersubjetiva do emprego de regras semânticas. Para ele, o fato de Husserl ter conectado os significados linguísticos a expressões objetivas, às quais se referem à verdade e destinam-se a estarem adaptadas à função cognitiva, é indício de um logocentrismo antigo e que não pode ser sanado apenas pela análise da linguagem. Esse logocentrismo confere à razão o poder de limitar a linguagem. Husserl teria se deixado cegar pela ideia fundamental da metafísica ocidental. (HABERMAS, 1998, p. 166-169). Na medida em que a força transcendental da origem passa da subjetividade criadora para a produtividade anônima e instituidora da história da escrita desconstrução derridiana opera uma inversão do fundacionismo husserliano. É significativo o fato de que Derrida durante esse movimento do pensamento não rompe em momento algum com a persistência do fundacionismo da filosofia do sujeito. O que para essa filosofia era considerado fundamental, o autor modifica em algo dependente de um fundamento ainda mais profundo, de um poder originário condensado temporalmente. Segundo Habermas, “não é a história do ser que define o início e o fim, mas sim uma imagem enigmática [...] e Derrida persiste na ideia vertiginosa de um passado que nunca foi presente.” (HABERMAS, 1998, p. 172). Portanto, Derrida não escapa às cadeias do paradigma da filosofia do sujeito, não se desvencilha da estrutura aporética do acontecer da verdade desprovido de toda e qualquer validade de verdade. Enquanto participante do discurso filosófico da modernidade, ele herda as fragilidades de uma crítica da metafísica que não se afasta da intenção da filosofia da origem. Conserva pressupostos da filosofia do sujeito ao buscar um sentido na história, no tempo. Ao privilegiar a escritura que cria estruturas sem sujeito, Derrida não vê que o significado depende do uso intersubjetivo de regras semânticas. Para Habermas, ao limitar a filosofia à tarefa de decifração pela crítica literária, livre de qualquer amarra a uma disciplina científica, apaga a necessária fronteira entre ficção e filosofia. Embora haja uma modificação do gesto, “também ele desconecta o pensamento desconstrutivo da análise científica, desembocando na exortação, em fórmulas vazias, uma autoridade indeterminada.” (HABERMAS, 1998, p.162; 174). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 85 5 A HERMENÊUTICA DESMONDIANA A filosofia desmondiana tem como ponto focal o “ser entre” (being between). como a matrix existencial que nutre o seu projeto filosófico. (DESMOND, 2000, p. 117-118). Desmond cunha o termo metaxológico, que é derivado do grego “metaxu” e significa “meio”, “intermediário”, “entre”; e “logos”, que significa discurso, palavra, fala articulada racionalmente. O sentido metaxológico do ser diz respeito ao logos do metaxu, ou seja, um discurso do “entre” (between), do “meio” (middle). Desmond desenvolve o sentido metaxológico em relação aos sentidos unívoco, equívoco e dialético. Os quatro sentidos do ser se revelam extremamente complexos. O sentido unívoco se encontra associado à ciência moderna e sua pretensão de determinação total do ser através da matematização e quantificação das coisas. (DESMOND, 1995, p. 67). O sentido lógico da univocidade perpassa todos os herdeiros de Aristóteles com a afirmação de que ser inteligível é ser determinado tode ti. A consciência unívoca possui uma abordagem englobante em que apenas a identidade é percebida. O sentido equívoco está mais identificado com Wittgenstein e os jogos de linguagem. (DESMOND, 1995, p. 80). A oposição dualista do sentido equívoco do ser é vista como justificativa para uma compreensão atomista do ser. A consciência equívoca aponta para zonas de tensão e ambiguidade no ser e no pensar que não permitem uma simples redução à unidade unívoca. Entretanto, se permanecermos nesta equivocidade, o suposto pluralismo que venhamos a defender não constituirá, de fato, uma comunidade, mas algo fragmentado. Já o sentido dialético busca mediar entre a univocidade e a equivocidade através de uma totalidade sintética, que Hegel denomina de espírito absoluto. Entretanto, o pensamento dialético não consegue se abrir para uma alteridade genuína, permanecendo ainda na concepção de um pensamento circular que medeia apenas consigo mesmo. Desmond afirma que existe uma perplexidade primeira, fundante, que inicia o próprio pensar filosófico. Para Desmond, a consciência filosófica não se inicia e muito menos termina com/ ou em um argumento. O ser é perplexidade, admiração e sem esta perplexidade originária não haveria a própria consciência (mindfulness) filosófica. Para Desmond, o Ser é admiração e esta afirmação não Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 86 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica pode ser entendida como um argumento a mais. Somos, por assim dizer, jogados nesta admiração. A nossa existência está dominada pela tensão entre a identidade (eu) e a alteridade (que é outro ao eu). O ser possui um excesso que resiste a qualquer tentativa de conceitualização completa e determinada da metafísica ocidental cujo voo mais ambicioso é encontrado no espírito absoluto de Hegel. Aristóteles exprimiu de modo lapidar o excesso do ser ao afirmar: to on legatai pollachos. (ARISTÓTELES, 2004, n. 1003b5). Muito embora o ser seja dito de muitos modos, isso não significa que o esforço de se pensar o ser de modo mais determinado seja um exercício que possa ser negligenciado. O “excesso” do ser se apresenta em uma pluralidade de modos e somente discernindo essas diversas facetas é que poderemos conseguir uma maior clareza do pensar no que se refere à questão do ser. Tal clareza é denominada por Desmond de “atenção-plena-metafísica” (metaphysical mindfulness). (DESMOND, 2000, p. 43-44). Em suma, o sentido metaxológico é uma intermediação que envolve a mediação entre a pluralidade de totalidades mediadas por si mesmas (self-mediated wholes). A multiplicidade de instâncias de identidade é colocada lado a lado de tal maneira que a identidade reconhece não apenas a alteridade daqueles que lhe são outros, como também reconhece a si mesma em sua própria exemplificação de alteridade. É exatamente esta interação dinâmica que leva a consciência metafísica para além da mediação-de-si para uma intermediação na qual a atenção-plena metafísica é uma participante dentre uma pluralidade de participantes, na comunidade do ser. 6 AS IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO METAXOLÓGICO O mundo objetivado da ciência não é mais uma matriz capaz de nutrir uma reverência para com a natureza, para além da vontade de potência do sujeito moderno e seu projeto de domínio e maestria do mundo. A modernidade ocidental testemunhou a atenuação do espírito de sutileza e prevaleceu o espírito geométrico e o seu movimento de matematização e quantificação das coisas. (DESMOND, 2005, p. 7). O ideal científico é concretizado pela ciência moderna com a sua pretensão de dar uma resposta unívoca ao ser das coisas. Entretanto, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 87 o pensamento metaxológico explora temas que se encontram no limite da compreensão mais sistemática do pensar,forçando a filosofia a se abrir para perplexidades outras à determinação do pensamento autônomo moderno. A filosofia neste espaço intermediário tem que estar plenamente-atenta à frágil ambiguidade do ser ao mesmo tempo em que é levada para os limites do pensamento mais sistemático ao tratar de temas que exigem mais do que o espírito geométrico pode alcançar. Um novo modo de se olhar para a natureza demanda um espírito de sutileza que vá além do sentido moderno de teoria, que parte da hipótese instrumental, que nos oferece entendimento e domínio da realidade. e domínio da realidade. A possibilidade de olharmos para a natureza numa perspectiva outra que a da centralidade humana só pode ser abordada por um espírito de sutileza capaz de se abrir para a porosidade do mistério elusivo das coisas, para além de uma teoria analítica ou da clareza geométrica da ciência. A univocidade da teoria científica não é capaz de penetrar a matriz ambígua do ser, que excede o caráter meramente autodeterminativo do pensamento geométrico. A filosofia, segundo Desmond, tomada como mera tecnicalidade puramente argumentativa, não consegue abarcar o caráter excessivo do ser de plantas e de animais. Desmond argumenta que foi uma admiração primeira que precipitou a própria perplexidade filosófica. Tratase de algo que não pode ser passível nem de objetivação e nem de subjetivação como concebidas pela modernidade. (DESMOND, 1995, p. 31). O caráter excessivo das coisas aponta, segundo Desmond, para as “hipérboles do ser”, que se colocam em excesso à completa determinação finita do pensamento, para além da objetivação e da subjetivação. Eles devem ser pensados tanto como algo íntimo que ao mesmo insinuam algo universal. (DESMOND, 2005, p. 13). A filosofia tem que se mover para além do “postulado finitista” e seu enunciado básico de que ao pensar o ser como finito e nada mais do que finito, então, não se é possível pensar nada além. (DESMOND, 2005, p. 25). A questão de uma bionarrativa para plantas e animais não pode emergir dentro do ethos do pensar que não considera nada outro do que o postulado meramente quantitativo permite. O questionamento desmondiano é direcionado às filosofias da imanência radical, que fecham o pensamento para tudo o que é outro a ele. Ao advogar a pobreza da filosofia, a metaxologia Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 88 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica força os filósofos a se abrirem para além das autossatisfações do conhecimento mais sistemático da filosofia tradicional. Assim, novas porosidades do pensar podem aflorar de modo mais rico e promissor do que o exercício da filosofia enquanto pensamento que se pensa apenas a si mesmo. 7 A ALTERNATIVA DESMONDIANA NO DEBATE DA BIONARRATIVA Desmond propõe uma alternativa viável, que foi denominada de “teoria de interpretação ou hermenêutica benevolente.” (SCHEERS, 2007, p. 279). Desmond desenvolveu uma das mais impressivas contribuições contemporâneas para um sentido benigno de hermenêutica da alteridade. Não se pode apelar apenas para a tecnologia para resolvermos a crise ecológica. Temos que superar um niilismo cego para qualquer valor intrínseco do ser. A questão central, levantada ao longo deste artigo, é a seguinte: é possível formularmos um sentido de bionarrativa para plantas e animais? Para Scheers, muito embora não sejam idênticos a nós, a estória de vida encontra-se de algum modo presente no mundo animal e vegetal. (SCHEERS, 2007, p. 288). Desde Descartes, a ontologia reinante tem sido científicotecnológica, na qual o ser (On). é substituído pelo fazer (techne). O ideal contemplativo da racionalidade antiga cede lugar à racionalidade instrumental ou poética (poiesis). com a guinada da modernidade. Isso significa o fim da ciência aristotélica e a busca da causalidade final das coisas, substituída por um novo modelo de ciência cujo objetivo é a causa eficiente: maître et possesseur de la nature. Como vimos, a concepção cartesiana do sujeito isolado e independente, definido como res cogitans, influenciou de modo decisivo o ethos da modernidade. O projeto da ciência moderna busca de algum modo responder a todas as questões essenciais ligadas à existência humana e à exterioridade da natureza. As coisas perdem o seu caráter elusivo, cedendo o seu mistério à vontade determinativa da ciência e à instrumentalização tecnológica. O processo de objetivação da natureza significa que o ser em sua inteligibilidade emerge de um processo de determinação científica do qual nós somos em última Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 89 instância a fonte. O antropocentrismo exarcebado colocou a humanidade no centro e todos os outros seres são vistos numa relação de dependência e subordinação. Contudo, é possível conceber outro modo de antropocentrismo, que situe a humanidade no espaço metaxológico como os seus outros. O antropocentrismo concebido, sobretudo, a partir da ciência do século XVII tenta univocalizar a natureza à nossa imagem e semelhança, ou então, concebe um modo de equivocidade no qual a natureza é um outro na medida em que o seu sentido se torne para nós Para Desmond, o ser na comunidade metaxológica não pode ser reduzido a nenhum dos dois extremos. Ele propõe um modo de intermediação aberta e plurivocalista que preserva todos os termos de sua mediação. A intermediação metaxológica evita a tendência da dialética hegeliana de suprassumir a singularidade idiótica das coisas num todo universal e racional. Enquanto logos (discurso) do metaxu (meio), o pensamento metaxológico nos protege de um modo de antropocentrismo exacerbado, ao afirmar a nossa condição ontológica no meio e não no centro, como senhores e dominadores da natureza. Em suma, o projeto da modernidade tem na afirmação-do-self um dos seus eixos centrais. A crítica contemporânea se volta contra a concepção da afirmação absoluta do self. A crítica é direcionada contra um modo de antropocentrismo exacerbado, que coloca a humanidade no centro. Todavia, é possível conceber outro tipo de antropocentrismo ou afirmação-do-self, que situa a humanidade na intermediação com os seus outros. Como vimos, o primeiro modo de antropocentrismo busca univocalizar a natureza à nossa imagem ou, então, concebe um modo de equivocidade no qual a natureza é tida como um mero em-si, sendo que o seu sentido se torna para nós, enquanto fonte de valoração das coisas. Evidentemente, o ser humano, diferentemente de plantas e animais, tem o seu ser e o seu mundo a serem construídos. O meioambiente construído envolve mais o elemento antropocêntrico do que o meio-ambiente espontâneo de plantas e animais. As teorias instrumentalistas veem a existência do meio-ambiente espontâneo apenas para servir à humanidade. Para Desmond, a modernidade, enquanto uma nova era, se pensou como uma renovação ou renascer Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 90 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica do que é natural em distinção ao sobrenaturalismo medieval. Mas, depois das revoluções filosófica e científica da modernidade, o self moderno não se encontra em casa com a natureza e busca assegurar seu próprio ser através da vontade de potência tecnológica sobre a alteridade do mundo, concebido como mera res extensa. (DESMOND, 2000, p. 275). A guinada moderna deveria relacionar o homem com a natureza e não com o sobrenatural. Mas, ao invés de nos reconectar com a natureza, a racionalidade moderna terminou nos colocando em oposição ao mundo, de tal modo que a natureza se torna um outro que a humanidade tem que negar. Por que a modernidade seguiu nessa direção? O sujeito cartesiano pode nos oferecer algumas pistas. O self é visto como algo abstraído de tudo aquilo que não seja ele mesmo. Se eu sou apenas eu mesmo, então eu não sou você. Desse modo, eu também não sou uma árvore ou um animal. Consequentemente, a humanidade é colocada à parte da natureza. Na medida em que o self é concebido como autônomo, sem nenhuma referência heteronômica, e a natureza é vista como governada por leis mecânicas, então a humanidade livre toma posse da natureza mecânica e o modo mais adequado para se estabelecer o domínio consiste em tomar posse das leis da natureza. O projeto da modernidade está alicerçado na pura autoidentidade do cogito. O pensamento é idêntico à negação ou dúvida. O que eu nego ou coloco em dúvida não sou eu. Na medida em que eu duvido eu sou: cogito ergo sum. O self cartesiano, ao ser simplesmente ele mesmo, é indeterminado, abstrato e vazio. Transposto para a sociedade todos somos indivíduos separados que temos na separação o único elo que nos une. Assim a univocidade é transposta para a equivocidade social. Se a terra nos pertence, mas nós não pertencemos a ela, podemos construir um verdadeiro lar aí? Com este questionamento, Desmond tece uma crítica sutil à racionalidade ou mente instrumental, que vê a terra como algo externo e meramente explorável, sem nenhum valor intrínseco: a terra é uma coisa entre outras coisas. Em contraposição à mente instrumental, Desmond propõe uma plena-atenção capaz de reconhecer a bondade inerente ao ser, para além das posições subjetivista e instrumental. O metaxológico não é a busca de uma totalidade racional abrangente como o absoluto Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 91 hegeliano. Ao invés da lógica racional, a metaxologia nos oferece uma sabedoria idiótica (idios-íntimo). Essa sabedoria reconhece que muito embora as coisas estejam intimamente relacionadas, esse relacionamento não significa nenhuma determinação do e pelo self. Trata-se do reconhecimento de uma unidade anterior (Prior unity), uma fonte supradeterminada e por isso mesmo indeterminável. Desmond advoga uma sabedoria que se alegra com a ideia de que o ser é, que a atenção-plena foi dada a todos, que o ser é um excesso. Para a questão “por que o ser ao invés do nada?”, Desmond oferece uma não-reposta: no lugar de uma resposta, o mais importante é “que” o ser é. O “que” é excessivo justamente por que ele excede nossa capacidade de uma resposta determinada. Pensar a natureza em termos da sabedoria idiótica faz com que esta deixe de ser uma mera coisa para se tornar uma fonte ou plenitude indeterminável. Para Desmond, a instrumentalização das coisas é sinônimo de niilismo ontológico. Um niilismo silencioso que não prega a morte dos valores, da moral, da sociedade ou de Deus. Não se trata de um niilismo político, mas de um niilismo cego para qualquer valor intrínseco do ser. (DESMOND, 1995, p. 508). Se o valor é criado pela humanidade é, portanto, totalmente instrumental. O “espanto” ou “maravilhar-se” pela presença (Thereness) do ser, e que não pode ser capturado por conceitos, é simplesmente ignorado pela racionalidade moderna. A natureza é tomada como um agregado de forças e materiais sem nenhum valor intrínseco (Valueless) a ser valorada extrinsecamente pela humanidade. (DESMOND, 1995, p. 510). Ao atomizar tanto a natureza quanto a nós mesmos, nos separamos da ordo naturalis. Colocar questões referentes ao relacionamento do meio ambiente construído com biomas originais, focando apenas na ciência, tecnologia e causalidade eficiente é perder o ponto central da problemática. Precisamos redirecionar a nossa abordagem em relação à natureza; não se pode apelar apenas para a tecnologia para resolvermos a crise ecológica. Precisamos nutrir o debate atual com uma reflexão sobre a nossa relação com a natureza. Esta não se encontra apenas fora de nós na medida em que somos parte dela. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 92 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica 8 CONCLUSÃO Desmond propõe um conceito de intermediação que nunca poderá ser totalmente controlada, seja pelo self, seja pela alteridade. Assim sendo, ele abre a possibilidade de uma generosidade hermenêutica não-instrumental: uma hermenêutica agápica. Segundo Desmond, se buscarmos o bem no outro não poderemos definir esse bem simplesmente em termos de sua congruência conosco. A generosidade hermenêutica implica benevolência da parte do self que interpreta; ela pede também meios interpretativos autênticos de encontro com o outro em sua alteridade genuína. Segundo Scheers, a metaxologia desmondiana aponta para o princípio hermenêutico da similaridade, segundo o qual os seres humanos e os animais partilham um mesmo mundo. (SCHEERS, 2007, p. 283). Humanos, animais e plantas, somos todos criaturas da terra e pertencemos a um mesmo planeta. As coisas são expressão do processo da natureza naturando (Nature naturing). Desmond se refere a uma afinidade ontológica entre o eu e a alteridade real dos seres. Segundo Desmond, “o eu humano, mesmo em seu caráter distinto, não precisa estar alienado do restante da criação. Um profundo parentesco com as coisas esta gravado em nós. Isso poderia ser motivo de alegria, de respeito ético.” (DESMOND, 2000, p. 286.). Nós não somos a medida da verdade das coisas. A mente agápica concebe um valor inerente ao outro. A negação do valor intrínseco nos permite destruir e transformar a alteridade. Baseados na teoria desmondiana de interpretação benevolente, é possível interpretar plantas e animais como entidades de sentido e de valor intrínseco e, assim, contrapor as concepções reducionistas e produtivistas radicais. (SCHEERS, 2007, p. 284). O self se encontra situado no meio (Middle). com os outros seres. Nós somos seres entre outros seres. A metaxologia desmondiana nos oferece um senso de intermediação que permite que tanto o self quanto a alteridade possam florir. A pluralidade positiva do meio não pode ser completamente determinada nem pelo self nem pelo outro. O processo de interpretação não é uma questão de um intérprete controlar subjetivamente tudo, enquanto que o objeto permanece mudo. A quantificação exclusiva do mundo não pode ser um caminho a seguir. A intermediação metaxológica não é uma relação na qual o Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. José Carlos Aguiar de Souza | 93 sujeito ultrapassa o outro, imprimindo sua própria marca sobre todo o processo de conhecimento, nem a questão do outro deixar suas configurações sobre o sujeito. Pelo fato da alteridade possuir uma voz ativa no campo hermenêutico de intermediação, a interpretação se torna algo mais do que uma aventura solipsista. A intermediação não pode ser fechada por nenhum dos lados. (DESMOND, 1995, p. 451). Para além da ordem humana o real exibe uma ordem que não fomos nós que fizemos. (DESMOND, 2000, p. 395). O sentido de estrutura não determinada pelo humano permite a formulação de um princípio de resistência. Nossas interpretações e preconcepções se encontram confrontadas por resistências que ultrapassam o nosso controle pessoal. A imersão dos seres humanos na comunidade do ser dos seres pode gerar um estado de espírito para além do privilégio dado à autodeterminação do sujeito sem o senso de bondade ontológica do outro. O Ser se encontra envolvido pelo perfume do bem. O intérprete benevolente aceita a universalidade da bondade ontológica não humana. Segundo Desmond, trata-se “de um respeito ativo pelo outro, uma cortesia para com o seu ser, um engajamento com uma alteridade não dominadora. ” (DESMOND, 2000, p. 189-190). Os intérpretes humanos possuem capacidades interpretativas e morais para explorar possibilidades para além da soberania erótica: o sentido desmondiano de benevolência interpretativa. Desmond está atento às complexidades envolvidas na concepção de mente agápica. Nós precisamos usar as coisas do mundo. Precisamos comer para sobreviver. Isso implica inevitavelmente no papel existencial da mente erótica. Por isso mesmo, a plena-atenção agápica permanecerá sempre, num certo sentido, um ideal a ser alcançado. O mais importante para os seres humanos é explorar as possibilidades oferecidas pela soberania agápica, para além da moldura restrita da autodeterminação da soberania erótica e descobrir o sentido e o valor originais das coisas. A versão metaxológica de um modo de antropomorfismo benigno oferece uma celebração de animais e plantas em sua alteridade recalcitrante. Para Galileu, apenas a leitura unívoca matemática do livro da natureza faz sentido. Sem a matemática estaríamos vagando num labirinto escuro. Para Desmond, é possível entoar um canto para além do cálculo matemático que nos permite compreender algo da natureza enquanto processo de devir e das Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.75-97, jul./dez. 2014. 94 | A HERMENÊUTICA DESMONDIANA: aberturas filosóficas para a discussão ecológica coisas em suas singularidades idióticas, que possuem o seu próprio valor. Para deixarmos as amarras da crise ecológica e a apropriação violenta da natureza é importante buscar interpretações de plantas e animais que levem em conta a riqueza e a bondade original bem como o sentido das coisas e dos processos para além da humanidade. * José Carlos Aguiar de Souza é doutor em filosofia e professor do ISTA, da PUC Minas e pesquisador da FAPEMIG. Desenvolve pesquisas nas áreas de Metafísica, Filosofia da Ciência, problemas da Modernidade e ecofilosofia. E-mail: jc-aguiar@ ig.com.br ** Marco Aurélio Alves é graduando em filosofia e bolsista do FIP-Puc Minas no projeto de pesquisa “Hermenêutica e Ecologia: rumo a uma bionarrativa do meio ambiente como superação da racionalidade instrumental.” *** Rafael Lourenço Navarro é graduando em filosofia e bolsista da FAPEMIG no projeto de pesquisa “Hermenêutica e Ecologia: rumo a uma bionarrativa do meio ambiente como superação da racionalidade instrumental.” REFERÊNCIAS ADORNO,Theodor; HORKHEIMER, Max. 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Assim sendo, este trabalho tem por objetivo analisar o tempo no livro Seis passeios pelos bosques da ficção, de Umberto Eco, e traz contribuições que ajudam a pensar a diferença entre história e enredo, a aceleração e a desaceleração de uma narrativa, as maneiras de abordar o passado e o futuro, o tempo em que ocorre a história e o tempo em que a mesma é contada, bem como os detalhes que não são explicitados na narrativa e que requerem do leitor um posicionamento imaginativo para preencher o que falta na leitura. Palavras-chave: Compreensão. Tempo. Literatura. 1 INTRODUÇÃO Uma das coisas que mais nos fascinam é o entendimento, a compreensão daquilo que lemos. Quando compreendemos o que lemos, melhor degustamos, saboreamos com mais suavidade e mais enriquecemos o espírito. Para compreendermos as obras literárias, precisamos de uma fórmula que nos permita decifrá-las. Estas são denominadas de chaves interpretativas. Existem inúmeras! Porém, será abordada neste artigo mais uma dessas chaves preciosas, o tempo. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez.2014. 100 | ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: “SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO 2 A IMPORTÂNCIA DA COMPREENSÃO DO TEMPO NA LITERATURA Umberto Eco, no livro Seis passeios pelos bosques da ficção, aborda, entre outras coisas, a questão do tempo na literatura. Pelo menos no que tange aos quatro primeiros capítulos. O que nos faz pensar: qual a importância de se estudar e compreender o tempo numa obra literária? Aparentemente a resposta é simples. Não há nenhuma relevância, visto que muitos leitores já leram uma quantidade numerosa de livros, sem necessariamente analisá-los do ponto de vista do tempo, e os compreenderam relativamente bem. Porém, analisar uma obra literária a partir da compreensão do tempo que se vislumbra nela mesma, a maneira como o autor lida com o tempo e os aspectos temporais é, sem sobra de dúvida, fascinante e enriquecedor, pois possibilita uma interpretação sistemática e profunda da literatura. No tempo cronológico, seres humanos são guiados e orientados a todo instante por um relógio. Rígido, inflexível, que lhes lembra constantemente as vinte e quatro horas do dia e que neste intervalo eles têm inúmeros afazeres. Entre eles, ler. Poucos se deram conta de que, para iniciar a leitura de uma obra literária, existe a necessidade de se fazer um pacto muito importante, o qual Coleridge citado por Umberto Eco (1994) chama de suspensão da descrença: A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de “suspensão da descrença”. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor simplesmente, finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (ECO, 1994, p. 81). No caso, o leitor deve aceitar que o tempo na literatura pode ser flexível. Daí a importância de se estudar e compreender o tempo para melhor saborear o que se está lendo. E no que se refere à obra de Eco, embora muito densa, serão destacados cinco pontos, os quais são os mais relevantes para a compreensão do assunto em questão. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez.2014. Ronilson de Sousa Lopes | 101 O primeiro ponto é a distinção entre história e enredo. O primeiro equivale a dizer que é a história narrada de forma ordenada temporalmente, já o segundo se refere à maneira como a história aparece na superfície. Exemplo: a história de Édipo Rei, que começa com a cidade de Tebas sendo ameaçada por muitas pestes, o que leva o rei Édipo a pesquisar a causa das pragas que a assolavam; com isso a história vai se desenvolvendo de maneira que ele vai desvelando fatos precedentes. Ou seja, o primeiro aspecto com que nos deparamos é um acontecimento perto do final da história, e não com o início cronológico que seria, no caso, o oráculo predizendo ao rei Laio que seu filho Édipo o mataria e se casaria com sua esposa Jocasta. O leitor se depara, primeiramente, com o enredo, só depois que vai reelaborando a história de forma temporal. O segundo ponto importante, no que se refere ao tempo, é aquele que ocorre quando o autor está contando uma história e começa a fazer digressões, nas quais relembra o passado ou se projeta rumo ao futuro. Para o primeiro, Eco utiliza a palavra flashbacks e para o segundo, flashforwards. E nos dá um exemplo belíssimo de como esse recurso funciona: Todos usam essas técnicas ao descrever fatos passados: “Ei, escute só isto! Ontem encontrei o John – quem sabe você se lembra, é aquele sujeito que corria todas as manhãs, dois anos atrás [flashback]. Pois bem, ele estava muito pálido, e devo confessar que demorei um pouco para entender por que [flashforward], e ele disse – ah, esqueci de contar que quando o vi ele estava saindo de um bar, e eram só dez horas da manhã, entendeu? [flashback] – mas, enfim, o John me falou – Ah, meu Deus, você nunca vai adivinhar o que ele me falou [flashforward]...”. Espero não ser tão confuso no resto desta exposição. Mas, com maior senso artístico, Nerval certamente nos confunde em Sylvie com um jogo estonteante de flashbacks e flashforwards. (ECO, 1994, p. 36). As palavras utilizadas não são traduzidas para o português, no entanto o exemplo deixa bem claro sua utilidade e importância como ferramentas que, bem utilizadas, são capazes de tornar um texto mais belo. Não as palavras, mas o recurso que elas significam, de retornar no tempo para abordar algo acontecido no passado ou se lançar ao Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez. 2014. 102 | ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: “SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO futuro para falar de algo que ainda não aconteceu ou simplesmente para retomar um acontecimento mais à frente do passado referido no flashback. O terceiro ponto se refere à distinção entre tempo da história e tempo do discurso. Ora, tempo da história é aquele que remete à duração em que ela ocorre, enquanto o tempo do discurso refere-se ao tempo em que o primeiro item foi narrado, ou mesmo lido. O tempo da história faz parte do conteúdo da história, se o texto diz que “mil anos se passam”, o tempo da história são mil anos. Mas, no nível da expressão linguística, ou no nível do discurso ficcional, o tempo de escrever (e ler) a frase é muito curto. É por isso que um tempo do discurso rápido pode exprimir um tempo da história bastante longo. Naturalmente, o contrário também pode acontecer: vimos na conferência anterior que Nerval precisou de doze capítulos para nos contar o que aconteceu em uma noite e um dia; e, depois, em dois capítulos curtos nos contou o que aconteceu no decorrer de meses e anos. (ECO, 1994, p. 60). Evidentemente que há casos em que os dois tempos coincidem, como é o caso da música. O quarto ponto diz respeito à questão da aceleração e da desaceleração. Um autor pode resolver, numa história normal, descrever algo que ocorre em dez anos em apenas um parágrafo, ou seja, de forma bastante acelerada. Ao contrário, escrever algo que aconteceu em três segundos em uma descrição prolongada que ocupe mais de dez páginas. Isto seria uma maneira de prolongar a história. Esse último ponto é muito importante, segundo Umberto Eco, para que o leitor possa fazer passeios inferenciais. Ou seja, para dar tempo para o leitor pensar. O quinto e último ponto de nossa análise referente ao tempo diz respeito ao próprio preenchimento ou não preenchimento de um texto, em outras palavras, certas informações que podem ou não ser explicitadas no texto. No caso, por vezes, um autor muito descritivo, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez.2014. Ronilson de Sousa Lopes | 103 que preencha todas as informações de um texto, corre o risco de ser redundante e cansativo por ser demasiadamente prolixo. Já no segundo caso, permite que o leitor complete as informações que já estão de modo implícito no texto. Por enquanto, só quero dizer que qualquer narrativa de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e de personagens, não pode dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha toda uma série de lacunas. Afinal (como já escrevi), todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho. Que problema seria um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender – não terminaria nunca. Se eu ligar para você e disser: “Vou pegar a estrada e dentro de uma hora estarei aí”, você não há de esperar que eu acrescente que vou de carro pela estrada. (ECO, 1994, p. 9). Na Bíblia há um caso que exemplifica bem isso que está sendo dito, na narração em que se conta que o apóstolo Paulo caiu na estrada de Damasco. Todos que leem esse relato dizem que ele caiu do cavalo. Há até quadros famosos que retratam essa passagem bíblica, no entanto o texto não fala em momento algum que ele tenha caído de um cavalo. Após discorremos sobre esses cinco pontos, podemos afirmar que: perceber uma obra literária em seus aspectos temporais constitui uma beleza infindável, e acima de tudo, é de fundamental importância para enriquecer as noções de estética e compreensão. Por isso mesmo, agora que você aprendeu a observar esses pontos, é convidado a correr à biblioteca, apanhar um livro e lê-lo, analisando-o; e, evidentemente, há muitos aspectos do tempo que não foram abordados aqui. Fica também o convite para ler Eco e aprender muito mais. * Ronilson de Sousa Lopes é licenciado em filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA. Cursa Gestão Pública pela Universidade Estadual do Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez. 2014. ANÁLISE DO TEMPO NA LITERATURA EM: “SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO”, DE UMBERTO ECO Amazonas UEA e Pós-graduação em Educação Ambiental pela UNICID. É autor do livro Contos do Meu Sertão, lançado pela Editora O Lutador. E-mail: lopespav@ yahoo.com.br REFERÊNCIA ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.99-104, jul./dez. 2014. APRESENTAÇÃO 104 | APRESENTAÇÃO Apresentação | 105 MATOS, Henrique Cristiano José. Imitação de Cristo: caminho de crescimento espiritual: contexto histórico, inspiração e atualidade. Belo Horizonte: O Lutador, 2014. 237 p. Recentemente alguém me perguntou: qual foi sua intenção ao escrever sobre a Imitação de Cristo, aquele livro clássico que já temos em tantas versões, mesmo na língua portuguesa? Pensei um pouco e respondi com algumas referências à minha própria experiência de vida. Sempre me intrigou o fato de o Fundador da nossa Congregação ter dado a denominação de frater aos membros da Família Religiosa por ele fundada em 1844. Não chamou seus religiosos de irmão (broeder, em holandês; bruder, em alemão; brother, em inglês), mas usou expressamente a palavra latina frater. Existe uma hipótese interessante – ainda a ser confirmada com argumentos documentais convincentes – que remete a uma informação de o Fundador ter desejado perpetuar no nome frater a preciosa herança espiritual da Devoção Moderna, aquele notável movimento laical de revitalização cristã, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Como estudioso da História da Igreja, essa questão sempre me interessou particularmente. Afinal de contas: o que é a Devoção Moderna? Há outros motivos. Nos meus estudos sobre Santa Teresa de Lisieux e o Beato Charles de Foucauld – ‘dois luminares místicos de nosso tempo’, na expressão de Yves Congar –, que eram, simultaneamente, contemporâneos e conterrâneos, encontrei diretamente várias indicações sobre a influência da Imitação na sua vida. Especialmente Santa Teresinha menciona explicitamente nos nos seus escritos que esse livro foi decisivo no despertar de sua vocação à vida no Carmelo. (MATOS, 2014, p.16). Também recordo-me vivamente que, nos meus anos de formação inicial, fomos obrigados a escutar, diariamente, um trecho da Imitação de Cristo, que sempre precedia a leitura de mesa durante o almoço. Já na época – estamos naqueles longínquos anos 50 do século passado! – nós, jovens, questionávamos aquele costume por considerá-lo antiquado, mas os superiores não abriam mão dessa leitura espiritual. Tivemos de ouvir os textos, não uma, mas muitas vezes, no decorrer dos anos, até quase sabê-los de cor. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 106 | Apresentação amou igualmente minha atenção que ‘gente de peso’ nos campos de filosofia, ciência, política ou literatura mostraram uma curiosa predileção por esse livrinho da tardia Idade Média. Cito apenas algumas figuras: o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que era também cientista, matemático e diplomata; André-Marie Ampère (1775-1836), entre outros o inventor do primeiro telégrafo eletrônico; Dag Hammerkjöld (1905-1961), sueco, que foi secretário-geral da ONU entre 1953 e 1961, a quem John Kennedy chamou de ‘o maior estadista do nosso século’; Dietrich Bonhoeffer, teólogo luterano que morreu no campo de concentração nazista, em 1945; Pierre Teilhard de Chardin, SJ (1881-1955), o grande intelectual, cientista e pensador, com suas inovadoras ideias sobre a teoria evolucionista; Aldous Leonard Huxley (1894-1963), escritor inglês que viveu nos EE.UU., autor do conhecido romance Brave New World; Robert Schuman (1886-1963), renomado político democrata e primeiro presidente do Parlamento Europeu, entre 1958 e 1960; o Papa, hoje, Santo João XXIII (+ 1963), e ainda muitos outros. Por que eles se apaixonaram por um livro tão antigo, cujo conteúdo estava, aparentemente, em boa parte superado? Sabemos que a Imitação conheceu, no mínimo, quatro mil reimpressões, em mais de 90 idiomas. Ainda hoje aparecem regularmente novas traduções, para não falar de reedições. Basta ver o caso da versão da Editora Vozes. (MATOS, 2014, p. 230-231, n. 61). Não é segredo que, após a Bíblia, foi (e talvez ainda seja) o livro mais lido no mundo cristão, ultrapassando, inclusive, as fronteiras confessionais. Mais uma vez surge, espontaneamente, a pergunta: como se explica o misterioso fascínio desse livro? Como conseguiu (e consegue ainda) cativar pessoas de tendências e religiões tão diferentes? Na publicação que tenho o privilégio de apresentar hoje, procuro dar uma resposta a essas interrogações. Confesso que, nos últimos anos, eu mesmo li inúmeras vezes esse clássico de espiritualidade, em versões diferentes e mesmo em idiomas diversos. A edição que mais me impressionou pelo aparato crítico adotado e a beleza e atualidade da tradução foi a versão elaborada pelo carmelita Frei Rudolf van Dijk, professor emérito do renomado Instituto de Espiritualidade ‘Tito Brandsma’, ligado à Universidade de Nimega, nos Países Baixos. Este Instituto tem como um de seus grandes temas Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014 Apresentação | 107 de estudo científico o fenômeno da Devoção Moderna, movimento dentro do qual deve ser situado o livro De Imitatione Christi. Já que tocamos em Devoção Moderna, é oportuno especificar melhor de que se trata. O termo indica uma corrente espiritual de renovação evangélica, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Estamos numa época de grandes turbulências sociais e políticas e, igualmente, eclesiásticas. Na realidade, acenam a radicais mudanças na sociedade e, nesse sentido, há um impressionante paralelo com o momento histórico atual. Recordo aqui alguns fatos: as grandes descobertas que alargam, consideravelmente, o conhecimento da terra e colocam diante dos europeus enormes desafios; uma impressionante difusão do medo entre o povo comum, entre outros provocada pela ‘peste negra’ que dizimou um terço da população europeia; o dramático ‘Cisma Ocidental’ que dividiu internamente a Igreja com dois e até três papas reinando simultaneamente; o surgimento dos nacionalismos e sinais evidentes de uma crescente secularização da sociedade; fortes críticas ao poder temporal dos pontífices romanos, questionamentos levantados, a viva voz, por João Quidort e Marsílio de Pádua. Por fim, os prenúncios de grandes mudanças de mentalidade, com destaque para o emergente subjetivismo. Sentimos já as dores de parte de um novo período histórico que começará com o Renascimento e o Humanismo do século XVI. Nas bases do cristianismo percebemos nessa época um abandono do ‘fiel comum’ por parte do clero, misticismos, confusões na compreensão da fé, incertezas e tendências heterodoxas. No fundo, há um grito por autenticidade, transparência e simplicidade. De toda parte vêm interrogações sobre a essência do ser-cristão e o sentido da própria Igreja. Muitos se perguntam: como harmonizar tantas contradições no Corpo de Cristo? Existe, indubitavelmente, um incontido desejo por reformas ‘in capita et membris’, tendo em vista, particularmente, os pastores da Igreja em seus diversos níveis. Esse pano de fundo é indispensável para entendermos o surgimento da Devoção Moderna. O termo diz respeito à busca de uma maior ‘interioridade’ (ser devotus) do ser-cristão, mas sintonizada com os novos tempos que estavam começando (daí o adjetivo moderna). No contexto dessas aspirações, amplamente difundidas, situa-se a figura do diácono Gerardo Grotius (1340-1384), que é considerado ‘o pai do movimento da Devoção Moderna’ Não Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 108 | Apresentação irei aqui entrar em detalhes sobre a biografia e as obras dessa figura ímpar, apenas quero salientar sua insistência na necessidade de ‘volta às fontes’ do cristianismo, o que significa, concretamente, a redescoberta da Sagrada Escritura, da pessoa histórica de Jesus e da Tradição viva da Igreja, especialmente dos Santos Padres. O grande ideal de Grotius era formar, no meio do povo, ‘células vivas’ de vida cristã, que se inspirassem nas comunidades cristãs de que falam os Atos dos Apóstolos. Com a sua morte aos 44 anos, seus seguidores deram continuidade aos ideais por ele propagados. Uma das mais significativas iniciativas foi o surgimento dos Fratres da Vita Communis, grupos de leigos que viviam em comunidade, partilhavam seus bens, sem emitir oficialmente votos religiosos. Escolhiam entre si um prior para ser o elo de união entre os irmãos. Adotavam um estilo de vida muito simples e frugal. Em suas casas recebiam jovens para serem acompanhados em seus estudos e em sua formação humana e cristã. Os Frateres abriram também escolas próprias e numa delas entraria o jovem Martinho Lutero, o futuro líder do movimento que conhecemos como ‘Reforma Protestante’. Interessante o dia a dia desses Irmãos. Em comunidade praticavam o ‘colação’ (collatio) e cada um organizava para seu próprio uso um rapiarium. Para seu sustento material muitos deles dedicavam-se a copiar manuscritos, de modo particular a Bíblia, que colocavam à venda. A partir da experiência laical dos ‘Irmãos da Vida Comum’, desenvolve-se uma forma de vida claustral no espírito da Devoção Moderna. É conhecida na História como os ‘Cônegos Regulares de Windesheim’. Johannes, o irmão de sangue de Tomás de Kempis, seria o prior do mosteiro de Santa Inês, a primeira fundação fora do mosteiromãe. Os Cônegos seguiam a Regra de Santo Agostinho, considerada por eles como expressão fiel daquilo que os ‘devotos’ aspiravam: viver unânimes, tendo uma só alma e um só coração ‘orientados para Deus’ (artigo 3º). Um traço marcante da regra agostiniana é exatamente o apaixonado desejo de um encontro íntimo com Deus, a unio mystica. As ‘Exortações finais’ da Regra (artigos 48-49) não deixam dúvida sobre esse propósito, quando lemos: “Que Deus lhes conceda observar tudo isso movidos pela caridade, como apaixonados da beleza espiritual, e exalando em seu trato o bom odor de Cristo, não como servos sob a lei, mas como pessoas livres sob a graça”. Durante os 71 anos em que Tomás viveu no Mosteiro do Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 109 Monte Santa Inês, foi-lhe confiada a formação dos jovens religiosos. E em primeira instância para eles elaborou um ‘guia espiritual’ que entraria na história como ‘Imitação de Cristo’. Na realidade, é o fruto de um longo e paciente exercício de seleção, ordenação, redação e revisão, que ocupou nada menos do que 20 anos de trabalho. Na sua elaboração muito serviram os dados recolhidos nos rapiaria que possuía. Formaram-se quatro libelli, livrinhos ou, melhor dizer, quatro pequenos tratados que constituem uma unidade, no sentido de oferecer, num conjunto internamente articulado, uma ajuda para o crescimento e amadurecimento da fé. O manuscrito definitivo foi entregue ao editor pelo próprio Tomás de Kempis, em 1441. Hoje este precioso documento encontra-se na Biblioteca Real de Bruxelas, na Bélgica. A ordem dos quatro tratados na grande maioria das traduções em uso hoje é diferente da ordem do manuscrito original. Foram trocados de lugar os dois últimos, de modo que o livro 3 (Do Sacramento do Altar) passou para o quarto lugar e o livro 3 (Da consolação interior) para o terceiro lugar. Esse procedimento teve grandes consequências. Invés de ‘guia mistagógico’, a obra-prima de Tomás começou a ser vista como um livro ascético-moralista, o que empobreceu enormemente seu alcance espiritual. Grande mérito cabe aos estudiosos do Instituto ‘Tito Brandsma’, que recolocaram os livros na ordem do manuscrito de 1441, empreendendo, igualmente, um ingente trabalho de reinterpretação de todo seu conteúdo. O resultado foi surpreendente! Nasceu algo completamente novo, fascinante, atual e inspirador. A publicação que hoje apresento é uma popularização desse ingente esforço. Dividi o livro – bem jesuiticamente – em três partes (capítulos); a contextualização da Devotio Moderna; origem, composição e caráter místico da Imitação de Cristo; uma antologia bilíngue, com o texto latino original e uma nova tradução portuguesa. Considero a terceira parte como a mais rica e inspiradora pelo fato de ir diretamente à fonte. Um ‘índice temático’ facilita a procura de determinados temas específicos da espiritualidade da obra. Digo com toda a simplicidade: esta publicação me deu uma satisfação interior muito grande. Veio ao encontro de um desejo longamente acalentado. Confesso que, há anos, leio, diariamente, um trecho da Imitação, melhor dizer, fico ‘ruminando’ uma das lições espirituais do místico Tomás de Kempis. Trata-se de uma mística ‘com os dois pés no chão da vida’, nada de abstrato Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 110 | Apresentação ou aéreo. O que encanta na obra é exatamente a transparência, o realismo, o fino trato psicológico, a verbalização de uma experiência vital, o testemunho de alguém que colocou no papel o que viveu no quotidiano de sua existência. Há algo de perene nessa obra, pois toca o que é profundamente humano: o fato de estar sempre ‘em busca’, o nosso estado de ‘transeunte’, o intenso desejo de ‘ter vida’ e vida que se eternize. No fundo, é para o cristão aquele forte e irresistível desejo de poder encontrar-se pessoalmente com Deus, unindo-se a Ele no abraço definitivo do amor na comunidade trinitária, nosso lar definitivo e plenificante. Jesus é o caminho; Nele temos a vida e é Ele que aponta a verdade derradeira: não apenas somos ‘chamados’ filhos de Deus, mas o somos ‘de verdade’ e, por isso, seremos acolhidos amorosamente na Casa do Pai, gozando a plenitude da vida. A Imitação de Cristo traça para nós, discípulos e discípulas de Jesus, um caminho de amadurecimento espiritual que não é sujeito aos caprichos da moda, contendo em si aquilo que é duradouro: a busca incessante e o desejo permanente de união com Deus. No fundo, a obra-prima de Tomás de Kempis traduz, em termos existenciais, o que São João afirma no Evangelho do 5º Domingo da Páscoa: “Senhor, mostra-me o Pai e isso nos basta... Quem me viu, viu o Pai...” Vamos ao Pai! (cf. Jo 14,8-9.12). Para concluir, ainda uma ligeira referência à pessoa mencionada na dedicatória. O texto – projetado na foto de uma capela do Parque Nacional Particular do Caraça, este ‘Santuário místico’ confiado à Congregação da Missão, Lazaristas – diz: “Para Amália Kátia Ferreira Mendes, que, na rotina da vida escolar, sempre mantém aberta a janela da transcedência numa perspectiva mística, dando ao seu labor educativo uma dimensão espiritual de singular profundidade”. Como é gratificante termos em nosso meio educadores e educadoras, mestres e mestras, que no seu ensino vão além da materialidade de sua respectiva disciplina, tendo a capacidade de apontar dimensões mais profundas da vida, que, afinal de contas, constituem a razão de ser de nossos trabalhos e cansaços: a união íntima com o Senhor da Vida. Obrigado, Amália; obrigado, professores e professoras deste querido e estimado Instituto de Filosofia e Teologia ‘Santo Tomás de Aquino’, cujo nascimento pude assistir e, depois, ajudar no seu desenvolvimento, servindo-o durante tantos e tão felizes anos.Belo Horizonte, terça-feira, dia 20 de maio de 2014. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 111 Frater Henrique Cristiano José Matos, cmm A IMITAÇÃO DE CRISTO E A TRADIÇÃO AGOSTINIANA Quero fazer uma confissão preliminar. Ao longo da minha vida vi, por várias vezes, um exemplar do livro Imitação de Cristo. Com a minha avó materna, muitas vezes. Ora em seu criado, ora em sua mão em algum final de tarde, quando ela sentava-se conosco na varanda da avenida do Contorno, cuja paisagem nos enchia os olhos de belos horizontes. Depois, uma vez aqui outra ali, em alguma gaveta da minha mãe. Naquelas gavetas de mãe, onde a gente vai procurar – com bastante frequência – tudo que sumiu, sempre me deparava com um pequeno livro, capa amarelada, sem muito apelo... Confesso: vi, mas nunca li. Como nossa memória é um grande palácio e tudo está lá devidamente arquivado – escondido, diz Agostinho –, assim que recebi o convite do Pe. Cleto Caliman para participar desta mesa, a imagem daquele exemplar na gaveta da minha mãe me reapareceu. Fui à sua procura e aqui está! Imitação de Cristo, tradução de texto latino, nova edição de 1943. Na capa, o nome do tradutor, Pe. J.- I. Roquette e a seguinte informação: ‘acompanhada de piedosas reflexões no fim do capítulo’. Logo compreendi o que Frater Henrique, que agora nos apresenta essa belíssima edição, expôs na Introdução, na página 15: sua geração, dos anos 60 e 70, sentia certa aversão por aquelas coisas que soavam como ‘ascese, mortificação, fuga mundi, desprezo dos bens materiais, desconfiança do corpo’ e que vinham de fora, pela força da autoridade. Preconceitos à parte, o fato é que nosso autor descobriu – e isso é contado com maestria – a ‘riqueza que está escondida nessa obra’. E de onde brota tanta riqueza? O diamante que reluz precisa de longo processo de lapidação. Parece ter sido esse o trabalho do Frater. Lapidar, acertar arestas, recortar, restaurar, decompor para reconstituir a totalidade dessa pedrinha preciosa. Dessa garimpagem quero destacar um viés: a chamada Devoção Moderna e sua relação Lendo, agora sim!, a Imitação de Cristo, percebem-se claramente Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 112 | Apresentação raízes agostinianas nessa corrente espiritual. Pergunto: que fio condutor é esse que ligou épocas tão distintas – Agostinho é um pré-medieval – entrelaçou contextos e permitiu alguma primavera quando tudo era só outono1 ? Obviamente a formação religiosa de Tomás de Kempis (13801471) conta muito. Veja-se o item 2.1 da segunda parte da obra (que trata da questão da autoria) na qual o Frater nos detalha o percurso formativo do autor. Na Regra de Santo Agostinho, do primeiríssimo artigo espelha-se seu itinerário espiritual: “Antes de tudo, irmãos caríssimos, amai a Deus e depois ao próximo, pois estes são os principais mandamentos que nos foram dados2” (BOFF, 2009, p. 23). Ao longo de toda a obra, e de acordo com a disposição dos quatro livros que compõem essa nova edição da Imitação de Cristo, pode-se dizer que a tônica agostiniana da interioridade perpassou e moldou os temas da devoção moderna. Sabemos, Agostinho foi o grande ‘descobridor’ da interioridade do homem. Sua famosa interpelação, na obra Da Verdadeira Religião, “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem3” , parece ressoar no livro I da Imitação de Cristo: “Vigia sobre ti, animate e admoesta-te. Vivam os outros como vivem, não te descuides de ti mesmo (IC, 1,25). Revolvendo a própria intimidade, Agostinho descobre que não se conhece, que é um mistério para si mesmo: “tornei-me uma questão para mim mesmo” é o que Agostinho pode dizer de si, com alguma certeza. O ‘acesso à interioridade’ é um longo processo e não é feito sem algum sofrimento. Quanto mais se volta para dentro de si, mais o homem percebe os próprios limites porque «o mais das vezes, no discurso é abundante a indigência da inteligência humana, porque o procurar fala mais que o encontrar» 4 1 (Cf. MATOS, 2014, p. 43). “Em suma, dentro da Europa, no outono da idade Média e na passagem para a Idade Moderna, a Devoção foi a representação mais significativa de uma Igreja em vias de renovação e reforma, a partir das Bases.” 2 “Ante omnia, frateres carissimi, diligatur Deus, deinde proximus, quia ista praecepta sunt principaliter nobis data”. (Cf. BOFF, 2009, p. 23). 3“Noli foras ire; in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas: et si tuam naturam mutabilem inveneris, transcende et te ipsum; sed memento cum te transcendis, ratiocinantem animam te transcendere. Illuc ergo tende, unde ipsum lumen rationis accenditur” (De vera Religione. xxxix, 72). 4 “et ideo plerumque in sermone copiosa este egestas humanae intellegentiae, quia plus loquitur inquisito quam inuentio et longior est petitio quam impetratio” (Conf. XII, i, 1). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 113 Com isso, Agostinho está fazendo uma estranha inversão. Para ele, a existência de Deus e o conhecimento que dele temos acabam não sendo problemáticos: o problema se encontra no autoconhecimento, no conhecimento que temos de nós mesmos. É justamente esse movimento de construção interior e exterior que nos faz pensar, junto com Agostinho. Em Confissões, no livro XIII, lemos: “Mas o homem animal, que é como uma criança em Cristo e bebe leite até que ganhe forças para um alimento sólido e fixe o olhar na contemplação do sol, não se sinta abandonado na sua noite, mas alegre-se com a luz da lua e das estrelas.” 5 A procura da verdade, num ‘programa espiritual’ – desde Heráclito – “A mim mesmo me procurei” (fr. 249) –, depende desse investimento em si mesmo para justamente sair de si, uma forma de ascese intelectual que, em Agostinho, mostra-se continuamente como um modo de deslocamento interior. Ou em outro trecho do mesmo livro: “Dá-te a mim, ó meu Deus, devolve-te a mim: eis que te amo, e, se é pouco, que te ame com mais força. [...] Sei apenas que, sem ti, me sinto mal, não apenasfora de mim, mas também dentro de mim mesmo, e que toda a abundância, que não é o meu Deus, é para mim indigência”.6 Por aí percebem-se pontos de intersecção entre Agostinho e a Devotio Moderna, cujo fundamento está na busca da interioridade. Caminho espiritual, itinerário, viagem. Enfim, tudo convida à devoção, entendida como atitude existencial – interrogante, problematizadora – do que vai pelo coração do homem. São desvios, desvãos desse mundo que anda precisando mais de ‘imitações’ do que de simulacros. Sílvia Maria de Contaldo, professora do Instituto Santo Tomás de Aquino. A INFLUÊNCIA DA “IMITAÇÃO DE CRISTO” EM INÁCIO DE LOYOLA 5 “et ideo plerumque in sermone copiosa este egestas humanae intellegentiae, quia plus loquitur inquisito quam inuentio et longior est petitio quam impetratio” (Conf. XII, i, 1). 6 “animalis autem homo” tamquam ‘paruulus in Christo’ lactisque potator, donec roboretur ad solidum cibum et aciem firmet ad solis aspectum, non habeat desertam noctem suam, sed luce lunae stellarumque contentus sit” (Conf. XIII, xviii, 23) Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 114 | Apresentação E NA ESPIRITUALIDADE INACIANA, NO CONTEXTO DA DEVOTIO MODERNA 7 1 INTRODUÇÃO Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, teve uma bela e interessante história de conversão. Ferido numa batalha, no século XVI, viu-se em circunstâncias propícias ao encontro com Jesus, experiência que lhe proporcionou a transformação radical de sua vida. Ora, neste processo de descoberta do mistério de Cristo, além dos evangelhos, Inácio valeu-se da literatura religiosa de sua época e, entre os livros que o levaram a aprofundar a experiência de Cristo, encontra lugar de destaque a “Imitação de Cristo”. Neste breve artigo apresentamos algo da influência da “Imitação” em sua conversão e na elaboração de dois documentos fundamentais para a Ordem religiosa fundada pelo convertido de Loyola: o livro dos Exercícios Espirituais e as Constituições da Companhia de Jesus. 2 CONVERSÃO DE INÁCIO DE LOYOLA Após ter sido atingido na perna direita por ocasião do cerco de Pamplona, cidade atacada pelo exército francês no dia 20 de maio de 1521 − há exatos 493 anos! −, Íñigo8 López de Loyola (1491-1556) é levado ao castelo de sua família para convalescença. (CARDOSO, 1987, v. 2). Entre agosto e setembro de 1521, tendo pedido a sua cunhada, Madalena de Araoz, romances de cavalaria para passar o tempo, consegue dela apenas livros piedosos. Destes, sobretudo a partir de outubro a dezembro de 1521, Inácio se interessa por dois, a saber: a Vita Christi (de Ludolfo de Saxônia, o Cartuxo, escrita no séc. XIV) e o Flos sanctorum (“Legenda áurea”, de Tiago de Voragine O.P., escrita no séc. XIII). A partir da leitura desses dois livros e de pensamentos que lhe vêm durante a convalescença no castelo de Loyola, Inácio experimenta o que, mais tarde, ele próprio chamará de “discernimento dos espíritos”. Quando imaginava a vida de Cristo e dos santos, ele experimentava uma alegria que tendia a permanecer. 7 Intervenção por ocasião do lançamento da obra de (MATOS, 2014). 8 Posteriormente, Inácio adotará a grafia latina de seu nome: Ignatius Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 115 Porém, quando pensava na glória do mundo, no que poderia conquistar, ocorria-lhe uma alegria fugaz. Todavia, é algo ainda muito intuitivo, primitivo, que algum tempo depois será sistematizado no livro dos Exercícios Espirituais segundo a forma das duas séries de regras para o discernimento dos espíritos9 . Nesta fase de convalescença, Inácio adquire o hábito de elaborar o seu próprio rapiarium: copia frases dos evangelhos e dos livros piedosos preferidos (Vita Christi e Flos sanctorum), bem como anotações das experiências provocadas pelos espíritos que agitavam a sua alma, a saber, as famosas “moções” espirituais. (CARDOSO, 1987, p. 11). Mediante este procedimento, Inácio se mostra homem típico da Devotio Moderna: elabora um rapiarium e se interessa pelos movimentos internos ao coração humano. Em fins de março de 1522, chega a Montserrat; a caminho dessa localidade, faz voto de castidade. No dia 25 de março de 1522, pela manhã, Inácio dirige-se a Manresa, lugar em que levará vida de intensa oração e penitência. Ali, por volta de agosto-setembro de 1522, viverá a experiência espiritual fundante da assim chamada “ilustração do Cardoner”: “Indo assim em suas devoções, assentouse um pouco com o rosto para o rio [Cardoner], o qual ficava bem em baixo. Estando ali assentado, começaram a se lhe abrir os olhos do entendimento. Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de espírito, como de fé e letras”10 . (CARSOSO, 1987, p. 30). Em Manresa, Inácio conhece a “Imitação de Cristo”, certamente presente de seu confessor e diretor espiritual, o beneditino João de Chanon. Segundo seus biógrafos, a partir de então, dois livros sempre o acompanhariam: os Evangelhos e a “Imitação de Cristo”. Como primeiro Superior Geral da Companhia de Jesus, a partir de 19 de abril de 1541, esses dois volumes sempre estiveram sobre a sua mesa de trabalho. A “Imitação de Cristo”, à qual Inácio se referia familiarmente como o Gersonzito (porque então se atribuía a autoria do livro a João Gerson, chanceler de Paris, falecido no ano de 1429), recebeu deleum título elogioso: “a perdiz dos escritos espirituais”. (FERNÁNDEZ 9 Cf. Exercícios Espirituais 313-327 [1ª Semana]; Exercícios Espirituais 328-336 [2ª Semana]. 10 Inácio de Loyola experimenta, neste sentido, algo muito diverso da experiência mística de Agostinho, a saber, a “visão de Óstia”, no ano de 387: cf. Confissões, livro IX, x, 23-25. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 116 | Apresentação ZAPICO; DALMASES, 1960, p. 431). Para o convertido de Loyola, tratava-se da mais fina iguaria servida pelos autores espirituais. A propósito de sua predileção pela “Imitação de Cristo”, mencionem-se dois testemunhos do Pe. Luís Gonçalves da Câmara, jesuíta português, muito próximo a Santo Inácio: [Inácio, na noite de 29 de janeiro de 1555,] disse também que em Manresa havia lido primeiro o Gersonzito, e que já nunca mais havia querido ler outro livro de devoção; e o recomendava a todos com os quais se relacionava, e lia cada dia um capítulo por ordem; e depois de comer ou em outras horas o abria sem nenhuma ordem, e sempre encontrava o que tinha no coração e aquilo de que tinha necessidade. (FERNÁNDEZ ZAPICO; DALMASES, 1943, p. 584). Foi Nosso Pai [Santo Inácio] tão amigo deste livro [a “Imitação de Cristo”] que, quando o conheci em Roma, parecia-me ver e achar escrito em sua conversação tudo o que nele havia lido. Suas palavras, movimentos e todas as demais obras eram para ele um contínuo exercício e para quem com ele se relacionava uma lição viva de Gerson. E disto posso eu dar bom testemunho, por ser naquele tempo muito afeiçoado a este livro e conservar uma grande recordação dele (FERNÁNDEZ ZAPICO; DALMASES, 1943, p. 659). Em 1523, Inácio faz uma peregrinação à Terra Santa, mais precisamente a Jerusalém, para conhecer os lugares concretos em que Jesus viveu e morreu. Ele se interessa, assim, pela vida humana de Jesus, atitude típica da Devotio Moderna. Em Barcelona (1525-1526), Alcalá e Salamanca (1526-1527), Paris (1528-1535) e Veneza (1536), Inácio dedica-se aos estudos em vista do apostolado, para o qual se sente chamado pelo Senhor. Em Paris, no Colégio de Monte Agudo (Montaigu), conhece os “Irmãos da Vida Comum”, uma experiência religiosa nascida no contexto renovador da Devotio Moderna 11. Em 1537, Inácio tem uma forte experiência espiritual nalocalidade de La Storta, a pouco mais de dezesseis quilômetros 11 (Cf. CARDOSO, 1987), Itaici – Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 11, p. 53, 1993. Ver também (MATOS, 2014, p. 43-46). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 117 de Roma. “Estando um dia, algumas milhas antes de chegar a Roma, numa igreja, fazendo oração, sentiu tal mudança em sua alma e viu tão claramente que Deus Pai o punha com Cristo seu Filho, que não teria ânimo para duvidar disto, de que o Pai o punha com seu Filho.” (CARDOSO, 1987, p. 96). Para o convertido de Loyola, esta experiência mística representou um vigoroso impulso para seguir a Cristo. A certa altura de sua experiência de fé, Inácio passa a propor a diversas pessoas um método de oração ao modo de itinerário pessoal de busca da vontade de Deus, método este experimentado por ele mesmo, e que posteriormente se materializaria no livro dos Exercícios Espirituais. E mais: pratica largamente a conversa espiritual (collatio), outro indício de sua sintonia com a Devotio Moderna. Por exemplo, em 23 de outubro de 1550, o duque de Gandia hospeda-se em uma das casas da Companhia de Jesus, em Roma, onde tem colóquios espirituais com o Fundador da ordem religiosa. 3 FUNDAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS O século XVI é marcado pelo surgimento de uma nova proposta de vida consagrada − a dos clérigos regulares −, que se coloca na sequência das três grandes formas de vida religiosa: a monástica a canônica regular e a mendicante. Osteatinos, os barnabitas e os jesuítas, por exemplo, cada grupo a seu modo, encarnarão este novo espírito, caracterizado por: sacerdotes dedicados à cura de almas que abandonavam os usos dos monges e frades incompatíveis com a pastoral, mas que abraçavam a vida comum como meio de santificação pessoal e de assegurar maior eficácia ao apostolado. Não usavam hábito próprio, renunciavam ao coro, dedicavam-se prevalentemente à educação juvenil e tinham uma estrutura mais centralizada. (MONDONI, 2014, p. 69). No dia 15 agosto de 1534, em Montmartre, Inácio e os nove primeiros companheiros – grupo que iniciará o processo que será consumado com o reconhecimento pontifício da Companhia de Jesus, em 1540 – pronunciam um voto. “Naquele voto prometeram viver em pobreza e realizar uma peregrinação a Jerusalém. Se, apósesperar um ano, a peregrinação resultasse impossível, se ofereceriam ao Papa, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 118 | Apresentação para que ele os enviasse aonde julgasse mais conveniente.” (O´NEILL, 2001, p. 876, v.1). 4 CONCEPÇÃO DO LIVRO DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS Com grande probabilidade, da leitura da “Imitação de Cristo” ficaram “ideias e até frases de que se ressentem os Exercícios Espirituais, as Cartas e as Constituições da Companhia de Jesus.” (CARDOSO, 1987, p. 51). O livro dos Exercícios Espirituais (EE) consiste num instrumento a ser usado não por aquele que faz ou recebe os mesmos Exercícios – o exercitante –, mas por aquele que dá os EE – o “pregador”. Foi concebido para um período razoavelmente longo (convencionalmente, um mês), e dividido em quatro etapas – as chamadas “semanas”: a primeira tem caráter penitencial (meditação e consideração do pecado dos anjos [EE 50], do pecado de Adão e Eva [EE 51] e do pecado “de cada um dos que, por um pecado mortal, foram para o inferno…” [EE 52]); a segunda consiste na contemplação dos mistérios da vida pública de Jesus; a terceira desenvolve-se na forma de contemplação da Paixão do Senhor; e a quarta propõe ao exercitante a experiência da Ressurreição de Cristo. Na segunda semana dos Exercícios inacianos é que se verificam mais fortemente os sinais de influência da Devotio Moderna, particularmente da “Imitação de Cristo”, em Inácio de Loyola. Nesta semana, a graça a ser instantemente pedida pelo exercitante é o “conhecimento interno do Senhor […] para que eu mais o ame e o siga” (EE 104). Inácio propõe ao exercitante que ele se imagine nas situações vividas pelo Jesus histórico, contemple calmamente o Senhor a partir destas representações imaginárias e, na sequência dessa experiência, estabeleça um colóquio com Jesus, com Deus Pai, ou ainda, dependendo da cena contemplada, com a Virgem Maria. Como não ver aqui a dinâmica da lectio divina, tão cara à Devotio Moderna: meditatio (leitura do texto evangélico), contemplatio (contemplação da cena evangélica, fazendo-se uso da memória e da imaginação) e oratio (colóquio final com Jesus, Deus Pai, ou Maria)? E ainda, a importância dada ao Jesus histórico, envolvido nas situações descritas sobretudo pelos evangelhos sinóticos, é outro traço daespiritualidade típica da Devotio Moderna. Não por acaso, numa das notas práticas Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 119 dos Exercícios Espirituais recomenda Inácio: “Para a segunda semana e as seguintes, é muito útil ler alguns trechos dos livros da ‘Imitação de Cristo’ ou dos Evangelhos e de vidas de santos.” (EE 100). Para Inácio, não basta, da parte do exercitante, o conhecimento superficial, “biográfico”, de Jesus. É necessário aprofundar a experiência de fé no Senhor, a ponto de se atingir o conhecimento interno de Jesus: conhecimento íntimo, experiencial, sapiencial, do Senhor. Ora, este encontro com o Senhor Jesus nas profundezas do coração humano proporcionará ao exercitante condições de seguir o mesmo Senhor em sua páscoa para o Pai: paixão, morte e ressurreição (terceira e quarta semanas). 4.1 A imitação de Cristo nos Exercícios Espirituais Apresentemos, agora, algumas passagens do livro dos Exercícios Espirituais em que, explicitamente, Inácio de Loyola recomenda ao exercitante a imitação de Cristo: Eterno Senhor de todas as coisas, […] quero e desejo […] imitar-vos em suportar todas as injúrias e toda ignomínia e toda a pobreza, […] (EE 98: “O apelo do rei temporal ajuda a contemplar a vida do Rei Eterno”). Por fim, se fará um colóquio […] para seguir e imitar melhor o Senhor Nosso […] (EE 109: Contemplação da Encarnação). Pedir […] graça para imitar [o verdadeiro Chefe] (EE 139: “Meditação de Duas Bandeiras”, 3º preâmbulo). [Pedir a graça de] passar opróbrios e injúrias, para neles mais imitar [o Senhor Jesus] (EE 147: “Meditação de Duas Bandeiras”, colóquio). […] para imitar e assemelhar-me mais efetivamente a Cristo Nosso Senhor, […] (EE 167: Três modos de humildade). […] pedindo que o Senhor Nosso o queira escolher para esta terceira maior e melhor humildade, para mais o imitar e servir, […] (EE 168) .12 Segundo John O’Malley (2002, p. 134), historiador jesuíta estadunidense, “Inácio provavelmente derivou primeiro a categoriaconsolação da Imitação de Cristo, onde é quase um motivo condutor.” 12 Em todas as citações dos Exercícios Espirituais, o itálico é nosso. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 120 | Apresentação 4.2 A imitação de Cristo nas Constituições da Companhia de Jesus Na série de motivações a serem observadas naqueles que se apresentam como candidatos à Companhia de Jesus, Inácio de Loyola não deixa de indicar, entre elas, a vontade de imitar a Cristo: “[…] porque desejam parecer-se de algum modo com nosso Criador e Senhor Jesus Cristo, e imitá-lo vestindo-se do seu traje e usando as suas insígnias, […] Ele deu-nos o exemplo para que, em todas as coisas possíveis, com a sua graça, O queiramos imitar e seguir, pois é o caminho que leva os homens à vida.” (Const. 101). 4.3 O livro da “Imitação de Cristo” na história da Companhia de Jesus Vários jesuítas, ao longo da história, traduziram, editaram e estudaram o livro da “Imitação de Cristo”, discutindo, por exemplo, a autoria da obra. Assim sendo, passamos a enumerar alguns membros da Companhia de Jesus que contribuíram para a recepção dessa obra ao longo dos séculos. Baltazar HOSTOUNSKÝ (ou HOSTOVINUS), Boêmia 15341600, que foi tradutor da obra. Aquiles GAGLIARDI13 , Itália, 1539-1607, que afirmou: “É tão grande a plenitude de disciplina do homem interior que nada se pode esperar de melhor, tão grande a abundância de devoção derivada da sua leitura que parece a fonte do Paraíso Terrestre a fecundar as almas não só dos incipientes e proficientes, mas ainda dos perfeitos, exercitados no sentido de toda sabedoria…” (CHIFFETTI apud CARDOSO, 1987, p. 52). Inácio CHOMÉ, França 1696 − Bolívia 1768, foi tradutor da “Imitação de Cristo”.JozefHippoliet GHESQUIÈRE, Bélgica 1731 − Alemanha 1802, discutiu a autoria da obra. Vítor BECKER, Holanda 1841-1898, também discutiu a autoria da “Imitação de Cristo”. Leonel FRANCA, Brasil 1893-1948, foi tradutor do livro, e afirmou: “Nenhum livro, puramente humano, atingiu a universalidade de influência da Imitação de Cristo. Como nenhum outro, venceu a ação do tempo e o fastio dos homens. Há cerca de cinco séculos que nas suas páginas singelas e profundas se 13 Sobre Gagliardi (FRENÁNDEZ ZAPICO, DALMASES, 2001, v. 2, p. 1547-1548). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 121 alimenta a piedade das gerações cristãs. E todas encontram aí a nutrição espiritual que lhes tonifica a vida interior. […] No conhecimento do coração humano [o autor da Imitação de Cristo] desceu a estas profundezas que atingem a natureza na sua própria essência e, portanto, numa universalidade que se sobrepõe às contingências passageiras de uma época, de uma raça ou de uma cultura. […] A Imitação de Cristo já não tem data nem pátria; é um patrimônio da humanidade!”14 . (IMITAÇÃO, 1953, p. 9-10). Karl Rahner (1904-1984), em 1964, publicou um ensaio sobre a imitação de Cristo, não sobre o livro propriamente, mas a respeito do seguimento de Cristo no contexto dos Exercícios Espirituais. 15 Apresentamos a seguir alguns trechos deste sugestivo texto do teólogo jesuíta alemão. A verdadeira imitação de Cristo na convivência com ele consiste no reproduzir a ordem interna da sua vida em uma situação sempre nova e diversa, de pessoa a pessoa. Somente quando procuramos viver realmente a sua vida e não apenas multiplicála, assumindo em nós somente pálidas deduções, a imitação de Cristo é digna de ser vivida, encontra a complacência de Deus e tem o peso de poder conquistar a eternidade com o Filho do homem que foi elevado à destra do Pai. E esta é autêntica imitação de Cristo, porque o reviver em tal sentido a vida de Jesus salva a sua ordem interna, uma vez que se dá no seu Espírito, na força do Pneuma divino. (RAHNER, 2006, p. 120). Para reviver a vida de Jesus numa situação sempre nova e sempre minha é necessário que eu descubra a forma a cada vez válida para mim. Como não se pode deduzir uma situação histórica de leis históricas gerais, assim não se pode deduzir a minha forma de imitação do esquema geral, que, afinal de contas, existe. Tal busca é sempre decisão individual, irrenunciável, enquanto é a autorresponsabilidade diante daquilo que ninguém, nem um tratado de moral, nem um padre espiritual pode dizer a outra pessoa; é um momento essencial na imitação de Cristo. Portanto, devemos correr o risco da 14 Este prefácio de Leonel Franca à tradução da “Imitação de Cristo” traz a data de 18 de janeiro de 1944.. 15 Ensaio recentemente editado: “Zur Nachfolge Christi.” In: (RAHNER, 2006, p. 116-124). Dele há uma versão em italiano: “Sull’imitazione di Cristo.” In: (RAHNER, 1967, p. 175-192). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 122 | Apresentação solidão em tal decisão existencial e não devemos procurar (o que frequentemente se esconde por detrás da busca de um confessor ideal) transferir esta responsabilidade para uma instância exterior. (RAHNER, 2006, p. 120). Autodecisão e subordinação não são duas realidades antitéticas na imitação de Cristo: no fundo ambas representam os elementos inseparáveis de uma dedicação ao Senhor. Contudo, a relação entre os dois elementos é polar e dialética. Não é sempre fácil encontrar uma harmonia entre eles. A tensão entre ambos é algo típico da existência cristã. Cristo quer uma imitação radicalmente obediente, mas não quer (o que seria mais cômodo) que nos limitemos a caminhar atrás dele com passo pesado. Cada um de nós, em nome de Cristo, tem uma missão a cumprir, missão da qual ninguém pode se eximir. Um e outro elemento, a obediência à lei de Cristo universalmente válida e a coragem da marca pessoal, que por si representa somente uma forma mais radical de obediência, derivam na mesma medida da natureza da imitação de Cristo. A dificuldade está na presença simultânea dos dois elementos, mas é também esta a grandeza da nossa vida cristã. (RAHNER, 2006, p. 121). Não devemos ser homens plenos de ressentimentos, não devemos nos comportar como certos ‘ascetas’ que tornam fácil a renúncia ao mundo tornando mau aquilo que devem abandonar. Não devemos ser fanáticos, mas devemos imitar Cristo com serenidade e alegria. (RAHNER, 2006, p. 123). O sacerdote, expoente oficial da Igreja, não deve considerá-la como a Igreja do poder, do progresso civil, da instituição de um mundo feliz nesta terra, mas como continuação da vida de Jesus de Nazaré que, por si mesmo, fala só de serviço ao Reino de Deus, de obediência ao Pai, de carregar a cruz e que, enfim, não se interessa por nada que não sejam Deus e a salvação eterna das almas. (RAHNER, 2006, p. 124). É sugestivo o fato de que a “Imitação de Cristo” pertencia ao rol de livros recomendados para a leitura nos refeitórios das primeiras casas da Companhia de Jesus. (O´MALLEY, 2002, p. 548). 4.4 Releituras jesuíticas do livro da “Imitação de Cristo” Apresentamos a seguir um quadro de correspondência entre algumas passagens da “Imitação de Cristo” e escritos fundamentais e atitudes a serem vividas pelos membros da Companhia de Jesus. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 123 Com isto, damos alguns exemplos de ensinamentos da “Imitação de Cristo” que, julgamos nós, foram recebidos pela tradição jesuítica. “Imitação de Cristo” “Tradição Jesuíta” “[…] não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição dentro de minha alma, a saber defini-la. Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus?” (livro 1, capítulo 1,parágrafo 3). “[…] porque não o muito saber sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE2). “Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura” (1,1,4). “[Inácio] notou esta diferença: quando pensava nos assuntos do mundo, tinha muito prazer; mas, quando, depois de cansado, os deixava, achava-se seco e descontente. Ao contrário, quando pensava em ir a Jerusalém descalço, em não comer senão verduras, em imitar todos os maiores rigores que via nos santos, não se consolava só quando se detinha em tais pensamentos, mas ainda, depois de os deixar, ficava contente e alegre” (Autobiografia, 8). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 124 | Apresentação “[…] porque não o muito saber sacia e satisfaz a alma, “As muitas palavras não satisfazem à alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2). mas uma palavra boa refrigera o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus” (1,2,2). “Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada” (1,2,3). “[…] prefiro ser tido como néscio e louco por Cristo […]”(EE 167:3º modo de humildade). “Enfastia-me, muita “[…] porque não o muito saber sacia e satisfaz a alma, vez, ler e ouvir tantas mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2). coisas; pois em vós acho tudo quanto quero e desejo” (1,3,2). “Que mais te impede e perturba do que os afetos imortificados do teu coração? […] Que mais rude combate haverá do que procurar vencer-se a si mesmo?” (1,3,3). Título do livro dos EE: “Exercícios Espirituais para vencer a si mesmo e ordenar sua vida, sem determinar-se por alguma afeição desordenada” (EE 21). “[…] mais facilmente acreditamos e dizemos dos outros o mal que o bem, tal é a nossa fraqueza” (1,4,1). “Para que tanto aquele que dá os exercícios espirituais como o exercitante mais se ajudem e aproveitem, há de se pressupor que todo bom cristão deve estar mais pronto a salvar a proposição do próximo do que a condená-la […]” (EE 22). “Toma conselho com um varão sábio e consciencioso, e procura antes ser instruído por outrem, melhor que tu, que seguir teu próprio parecer” (1,4,2). Para que alcance bons frutos no retiro inaciano, o exercitante deve ser dócil a quem dá os Exercícios. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. Apresentação | 125 “Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus tua esperança. Fazes de tua parte o que puderes, e Deus ajudará tua boa vontade” (1,7,1). “Esta seja a primeira regra das coisas a serem feitas: Confiar em Deus como se o sucesso dependesse totalmente de ti, e não d’Ele; agir, pois, como se Deus fizesse tudo, e tu, nada” (in Thesaurus Spiritualis SocietatisIesu, Romae: Apud Curiam Praepositi Generalis, 1953, p. 625). “Ajudam muito […] ao aproveitamento espiritual os devotos colóquios sobre coisas espirituais, mormente quando se associam em Deus pessoas que pensam e sentem do mesmo modo” (1,10,2). Santo Inácio prezava a conversa espiritual, sobre temas religiosos. Já no início de sua conversão se dedicava a esta prática, à qual dava caráter de apostolado “Quem julga os demais perde o trabalho, quase sempre se engana e facilmente peca; mas, examinando-se e julgando-se a si mesmo, trabalha sempre com proveito” (1,14,1). No livro dos EE, propõem-se o exame particular (EE 24-31) e o exame geral de consciência (EE 32-43). “De manhã toma resoluções, e à noite Prática cotidiana dos exames ao final da examina tuas ações: como te houveste hoje manhã e ao final da noite. em palavras, obras e pensamentos, porque nisso, talvez não raro, tenhas ofendido a Deus e ao próximo” (1,19,4). 5 CONCLUSÃO Embora o livro da “Imitação de Cristo” tenha sido escrito e divulgado em tempos já muito distantes dos nossos, não se pode negar o seu valor como rico e sugestivo subsídio espiritual para o homem de hoje. Em tempos de comunicação instantânea, que nos leva irremediavelmente à dispersão e à superficialidade, textos como a “Imitação de Cristo” podem nos levar a buscar uma experiência espiritual mais rica e consistente, que induz o coração humano a se abrir à força criativa do Espírito de Cristo. Pensamos que, nesta direção, têm muito a contribuir os testemunhos dos santos, entre os quais se encontra Inácio de Loyola. Mais do que procurar o sentido profundo da “Imitação de Cristo” em suas páginas, talvez o mais proveitoso seja reconhecer a influência deste singelo e despretensioso livro nos autores cristãos de diversas épocas e escolas espirituais, de tal modo a se verificar a liberdade e a criatividade do Espírito do Senhor que “sopra onde quer” (Jo 3,8). Prof. Paulo César Barros SJ, leciona na Faculdade Jesuíta de Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. 126 | Apresentação REFERÊNCIAS BOFF, Clodovis. A regra de Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 2009. CARDOSO, Armando (Org.). Autobiografia de Inácio de Loyola. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1987. v. 2. FERNÁNDEZ ZAPICO, Dionysius; DALMASES, Candidus de. Fontes Narrativide S. Ignatio de Loyola et de Societatis Iesu initiis: narrationes scriptae ab anno 1574 ad initium saeculi XVII. Roma: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1960. IMITAÇÃO de Cristo. 6. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1953. (Obras completas do Pe. Leonel Franca, 14). MATOS, Henrique Cristiano José. Imitação de Cristo: caminho de crescimento espiritual: contexto histórico, inspiração e atualidade. Belo Horizonte: O Lutador, 2014. MONDONI, Danilo. O cristianismo na Idade Média. São Paulo: Loyola, 2014. O’MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. São Leopoldo: Unisinos, 2002. O´NEILL, Charles E. Diccionario histórico de la Compañía de Jesús: biográfico-temático. Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 2001. v. 1. RAHNER, Karl. Ignatianischer Geist: Schriften zu den Exerzitien und zur Spiritualitat des Ordensgrunders. Freiburg: Herder, 2006. (Samtliche Werke, 13). RAHNER, Karl. Elevazioni sugli Esercizi di S. Ignazio. Roma: Paoline, 1967. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.105-126, jul./dez. 2014. RECENSÕES Filosofia e Teologia (FAJE). RECENSÕES Recensões | 127 MATOS, Henrique Cristiano José. Preso estou, livre serei. Pastoral Carcerária: fundamentos, inspiração, atuação. Belo Horizonte: O Lutador, 2014. 164p. Inicio minha recensão citando as palavras do apresentador do livro, Durval Ângelo: “A presente publicação vem preencher uma lacuna sentida há muito por todas e todos os que se dedicam à nobre missão de acompanhar as pessoas em privação de liberdade. Faltava-nos uma referência que conjugasse três elementos essenciais: primeiro, uma análise crítica e não superficial da realidade do sistema prisional, das condições a que são submetidas as pessoas que nele estão inseridas e suas consequências. Segundo, que retomasse os principais pilares evangélicos eclesiais e humanitários que sustentam o trabalho com o encarcerado e, por fim, que oferecesse orientações práticas de como desenvolver essa tarefa no desafiante cotidiano caótico do sistema prisional brasileiro.” (MATOS, 2014, p.11). Outra citação, a de Dom José Carlos de Souza Campos, que se apresenta como Bispo de Divinópolis, MG, “e (Bispo) também dos que se encontram atrás das grades”: “As palavras de Jesus, em Mt 25,36, tornam ‘os que estão na cadeia’, sem nenhuma especificação de conduta ou estado, em ‘sacramentos’ de Cristo, isto é, como lugares de especial presença do Senhor. [...] Como o Senhor quis estar presente no pão e no vinho, também escondese naqueles que habitam a escuridão e a insalubridade das celas.” (MATOS, 2014, p.13). Bela, a capa. Título expressivo, com letras em branco – “Preso estou, livre serei” – sobre fundo azul escuro, no centro da capa um calabouço iluminado pela Cruz gloriosa, foi uma alegria muito grande ter este livro em mãos. Isto, pouco depois de haver reencontrado o autor, Frater Henrique, em julho p.p., todo empolgado com o trabalho iniciado em novembro de 2009, portanto há menos de cinco anos, no Complexo Prisional de São Joaquim de Bicas, na grande Belo Horizonte. Frater Henrique é holandês, deve ter os seus 70 anos, veio bastante jovem para o Brasil, aqui inculturou-se pelo viés do estudo da História, primeiro a do Brasil, depois a da Igreja, e tornou-se notável professor universitário e escritor nessas disciplinas. Em seguida, tendo-se aposentado das aulas e dedicando-se a escrever, descobriu agora, há pouco, que a Misericórdia, carisma de sua Congregação, concretiza-se e encarna-se, de modo especial, na pastoral carcerária! Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. 128 | Recensões E este livro é fruto dessa descoberta... que me faz pensar na frase de Agostinho: “Tarde te amei, Beleza sempre nova, tarde te amei”... mas ainda em tempo! Depois de recordar os primeiros passos, as primeiras iniciativas, inclusive a instalação de um “pequeno Centro de Atendimento ao Preso” (APC, Apoio à Pastoral Carcerária) e a formação de duas equipes de visita etc, o autor assim apresenta as “três partes” do seu livro: “o primeiro capítulo oferece uma visão da ‘realidade da prisão’, contextualizando-a; o segundo aborda ‘os fundamentos’ de uma pastoral carcerária; o terceiro oferece uma explanação da ‘estrutura’ e do ‘desenvolvimento’ do serviço da Igreja junto à população prisional.” (MATOS, 2014, p. 23). Quanto à “realidade da prisão”, título do primeiro capítulo, o autor começa recordando as barbaridades ocorridas no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, no final de 2013: “quatorze decapitados, entre 59 assassinados de janeiro até perto do Natal”... seguindo-se, nos inícios deste ano, o contraste “entre o tratamento reservado aos ‘mensaleiros’ condenados e os outros 10.326 ‘presos comuns’ da Papuda, em Brasília”, “revelando, mais uma vez, que a justiça não costuma ser ‘cega’ como retratam suas estátuas nos tribunais: frequentemente ela enxerga de forma discriminatória pessoas de condições diferentes...” (MATOS, 2014, p. 27-29). Menciona a atual crise do matrimônio e da família, com indícios tão fortes no sistema prisional, “muitos presos provindo de lares desfeitos ou de pais que nunca tiveram vínculos de amor duradouro, frutos de famílias esfaceladas pela migração, pelo alcoolismo do pai e/ou pela gravidez de adolescentes sem condições de serem mães, pelo desemprego, pelas drogas...” (MATOS, 2014, p. 30-31). O Papa Francisco fala de uma ‘globalização da indiferença’, que nos torna incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, onde “não há mais espaço para os outros, já não entram os pobres, já não ouvimos a voz de Deus, já não gozamos da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem.” (FRANCISCO, EG, 2013, n. 2, p. 33). Quanto ao “atual contexto sociopolítico e cultural”, escreve o autor: “Encontramo-nos envolvidos por uma ideologia de mercado notoriamente pragmática, competitiva, consumista e individualista .Lucro e especulação financeira funcionam como imperativo Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. Recensões | 129 inquestionáveis. Divinizam-se eficácia e produtividade, fazendo-se deles parâmetros quase absolutos, em detrimento da pessoa humana e dos direitos inalienáveis da Natureza e dos outros seres vivos” (MATOS, 2014, p. 36-37). Nesse contexto encontra-se o flagelo das drogas, uma das causas maiores, atualmente, da superlotação das nossas prisões. Sobre esse flagelo, o autor cita um texto importante de João Paulo II, na Exortação Ecclesia in America, de 1999: “O flagelo das drogas não seria, em essência, o mal a ser combatido ou, pelo menos, o único a ser combatido. Ele seria muito mais o efeito de outro mal, maior e mais grave, a perda do sentido da vida. Daí a ênfase necessária na recuperação e prática dos valores básicos da virtude cristã e a denúncia dos comportamentos e atitudes contrários à preservação da vida, à solidariedade e amor ao próximo, à justiça etc. É necessário denunciar, com coragem e força, o hedonismo, o materialismo e aquele estilo de vida que facilmente induzem à droga.” (MATOS, 2014, p. 43). A seguir, o autor fala dos “objetivos aduzidos para ‘justificar’ a privação da liberdade”, objetivos reduzíveis a três: a punição retributiva, a prevenção de novas infrações, e a regeneração do condenado. E comenta: “Para quem tem maior conhecimento da realidade prisional, não é segredo que nenhuma dessas finalidades é atingida na maioria dos casos. A prisão deveria ter como meta primordial não a punição nem a intimidação, mas a reabilitação, a recuperação do infrator.” (MATOS, 2014, p. 43-44).Padre Alfonso Pastore, grande apóstolo dos presos, falecido em 2000, assim escreve: “Os cidadãos presos, detidos, encarcerados, falharam, sim – senão todos, a maioria – mas nós, a sociedade e o governo, também falhamos contra eles antes do crime e, muito mais, após o crime. Antes, por todas as causas sociopolíticas e econômicas erradas e injustas... Depois, por não oferecermos, na quase totalidade das cadeias, condições de ressocialização e reeducação.” (MATOS, 2014, p. 44). Bom número de páginas é dedicado à descrição da “realidade vivida atrás das grades”: inteira dependência dos outros, atitude básica de submissão, perda da privacidade, solidão, sujeição às “regras da cadeia”, carência afetiva, prisões provisórias que se eternizam, revista vexatória às esposas e mães, deficiente assistência à saúde, dificuldade em oferecer estudo e trabalho... Infelizmente, como Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. 130 | Recensões se expressa Julieta Lemgruber, ex-Diretora da Administração Prisional do Rio de Janeiro,“a morosidade da justiça e a burocracia excessiva contribuem para reduzir vidas humanas a simples peças processuais! Essa máquina não funciona e é perversa: joga para dentro com muita facilidade, e tem um funil estreitíssimo do outro lado.” Quanto à ociosidade no sistema, o autor a qualifica de “maldita,” e conclui, após várias considerações: “O trabalho fortifica e regenera, enquanto a ociosidade debilita e avilta. Em parte alguma, como na prisão, evidencia-se a incontestável verdade desses princípios.” (MATOS, 2014, p. 55-58). Quais, então, as “perspectivas de recuperação ou ressocialização”, num sistema “que, na realidade, fabrica delinquentes em série, tornando-se um viveiro de ‘profissionais do crime’ pois estrutura-os no seu ambiente fechado, os solidariza, hierarquiza e predispõe para futuras cumplicidades”? Pe. Bruno Trombetta, durante mais de 30 anos coordenador da Pastoral Carcerária no Rio de Janeiro, assim resume as “consequências negativas da forçada reclusão”: o preso sofre um “processo de infantilização”, desenvolve a irresponsabilidade e o complexo de inferioridade, e se torna uma pessoa “marcadamente dependente.” Assim sendo, é “urgente substituir a única pena de privação da liberdade por outras, como trabalhos sociais de interesse coletivo, capazes de restabelecer a paz, reconstruir a justiça e proporcionar o ressarcimento das vítimas.” (MATOS, 2014, p. 60-63). Uma forma alternativa de prisão é a que foi criada em São José dos Campos, SP, em 1972, conhecida pela sigla APAC, “Associação de Proteção e Assistência ao Condenado”, e que se tem desenvolvido em Minas Gerais, inclusive em parceria com o Estado. “Seu método é fundamentado na valorização humana, à luz do Evangelho e da experiência de Deus, lidando com condenados nos três regimes penitenciários – fechado, semiaberto e aberto – e acompanhando também os que gozam de trabalho externo e os egressos...” Mas as APACS, continua o autor, “são ainda uma exceção no sistema prisional. Um privilégio de poucos.” Quanto ao sistema oficial, chegamos a um beco aparentemente sem saída, como reconhece Juan Ernesto Méndez, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU: “A experiência demonstra que, quanto mais se constroem presídios, mais eles se enchem.” A saída, porém, existe: Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. Recensões | 131 “O próprio apenado, mediante penas alternativas, deveria ser o sujeito ativo do processo da sua reinserção na sociedade.” (MATOS, 2014, p. 64-67). O segundo capítulo, intitulado “fundamentos da Pastoral Carcerária”, começa expondo seu objetivo: “A PCr existe para prestar um serviço à pessoa presa. Atua em nome da Igreja, a partir da gratuidade da mensagem libertadora do Evangelho, tendo em vista a integridade de quem se encontra privado de sua liberdade, e a sua reintegração na sociedade.” A seguir, evoca o “modelo da ação pastoral junto aos presos”, o Senhor Jesus, que se aproximou de nós “movido pela misericórdia”. Esta, como compaixão evangélica, constando de “três movimentos básicos: Ver, interiorizar, agir”, segundo o que o autor expõe mais largamente no seu livro “No Movimento da Misericórdia.”1 Mais “A PCr quer colocar em prática, na realidade prisional, as lições do Evangelho sobre nossas relações com o próximo. Ela parte da convicção de que o preso representa a imagem viva de Deus e, por isso, deve ser amado, ainda que seja inimigo, criminoso ou traidor (cf Mt 5,43-48).” E ainda: “Estamos diante de uma das maiores surpresas e aparentes paradoxos do Evangelho: como explicar que a ‘salvação’ é oferecida gratuitamente àquele que mereceria a ‘condenação’?” (MATOS, 2014, p. 71-74). Em Matos (2014, p.75), não gostei, no subtítulo, do adjetivo “religiosas”, pela ambiguidade que esse termo carrega. Pelo conteúdo que segue, ficaria melhor: “Referências bíblicas e eclesiais”. De fato, o autor trata do “Jesus histórico, nosso irmão misericordioso” e de “Maria de Nazaré, nossa Mãe compassiva”. A seguir, relembra algumas “testemunhas na História da Igreja”, começando por alguns textos do Novo Testamento. Quanto à História da Igreja, inclusive a partir do fato de que, em tantas paróquias, verifica-se enorme dificuldade de reconhecer que a PCr faz parte integrante da ação evangelizadora, não concordo com a afirmação de que “nunca os encarcerados foram esquecidos e menos ainda ignorados”. É verdade que a afirmação seguinte relativiza esse “nunca”: “Sempre houve discípulos/as de Cristo que se preocuparam diretamente com os presos em nome da comunidade eclesial.” (MATOS, 2014. p. 80). Isto é, sempre 1 Cf. MATOS, 1996, p. 67-80. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. 132 | Recensões houve “discípulos/as”, a saber, alguns... Na p. 81, senti falta, pelo menos em notas de rodapé, das fontes documentais onde se encontram os textos aludidos, inclusive o impressionante texto do Papa Nicolau II, do séc. IX, contra a tortura para arrancar confissões. Dela, entretanto, o autor diz que era prática corriqueira “naqueles tempos”: evidentemente, não só “naqueles tempos”... nossas delegacias que o digam! Quanto aos “Santos que atuaram na realidade prisional”, estranhei que apareça em primeiro lugar um santo lendário, do séc. VI, Leonardo de Noblac, sem qualquer referência documental... seguido pela figura notável de S. Vicente de Paulo e por um texto atualíssimo do jurista e chanceler inglês do séc. XVI, S. Tomás Moro. Lembrome aqui de S. Pedro Nolasco, fundador dos mercedários, votados à libertação dos escravos dos sarracenos no séc. XIII; de São Pedro Claver, jesuíta dedicado aos escravos negros em Cartagena, no séc. XVII; de São José Cafasso, dedicado aos condenados em Turim, em meados do séc. XIX... além das recentes figuras notáveis dedicadas à PCr em nosso país, que não é o caso de nomear nesta recensão. Muito úteis, no livro, as vinte páginas de citações dos documentos papais sobre a PCr (MATOS, 2014, p. 85-105), começando com os pronunciamentos de Pio XII, um “aos presos da Itália e de todo mundo”, em 1951, e outro aos juristas, “sobre a ajuda cristã aos encarcerados”, em 1957. Seguem as palavras paternas de João XXIII, em plena oitava do Natal, poucas semanas após sua eleição, na visita aos presos da penitenciária “Regina Caeli”, em Roma; a mesma prisão foi visitada por Paulo VI, em 1964, com palavras igualmente cheias de ternura. João Paulo II, na sua primeira vinda ao Brasil, visitou a Penitenciária de Papuda, em Brasília, deixando ali bela mensagem. De Bento XVI, o autor cita o extraordinário discurso aos presos do novo Complexo Penitenciário de Rebibbia, em Roma, poucos dias antes do Natal de 2011 (MATOS, 2014, p. 95-100). E comenta: “Se é verdade que a civilização de um país pode ser medida pela condição de seus cárceres, também é verdade que do calor das visitas aos institutos penitenciários surge a humanidade de um pontificado” (p.95). Enfim, do Papa Francisco, em apenas 1 ano e meio de pontificado, temos uma série de declarações, que retomam o que ele fazia e dizia como Arcebispo de Buenos Aires. Mais de uma vez Francisco tem confessado a interrogação que faz a si mesmo, sempre que tem contato com os presos: “Por que ele está lá, e não eu?... Pois as debilidades que temos Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. Recensões | 133 são as mesmas, por que ele caiu e não eu?” Aos participantes de um Congresso Internacional de Juristas, em 39-05 p.p., sobre o tema da Justiça, afirmou: “É necessário fazer justiça, mas a justiça autêntica não se contenta simplesmente com castigar o culpado. É necessário ir além e fazer o possível para corrigir...” (MATOS, 2014, p. 102-103). O terceiro capítulo, apresentando a “estrutura e organização da Pastoral Carcerária”, começa expondo sua “dimensão eclesial”. Depois de vários textos bíblicos, relembra que a PCr é “a presença institucional da Igreja no mundo dos cárceres. [...] Os que exercem este ministério o fazem comunitariamente, em nome de Cristo, em nome da comunidade eclesial, e como enviados pelo Bispo diocesano.” (MATOS, 2014, p. 110-111). Além disso, não existe PCr sem o profetismo evangélico: é ‘denúncia’ das situações prisionais que ferem a dignidade humana e, igualmente, é ‘anúncio’ da boa nova do Reino: do perdão, da justiça, da solidariedade, da liberdade. Falando dos integrantes da PCr, da sua motivação e atuação, escreve o autor: “Frequentemente ouve-se dizer que a resposta à delinquência deve ser uma repressão mais dura! Infelizmente, o mundo das prisões é um mundo também marginalizado pela maioria das comunidades eclesiais!” (MATOS, 2014, p. 115). Por isso, “fazer parte da PCr pressupõe uma vocação peculiar, requerendo qualidades humanas indispensáveis para este tipo de serviço eclesial.” (ibid.). Além da preparação adequada, a equipe de PCr só pode funcionar satisfatoriamente quando se reúne com regularidade e participa de encontros específicos, em âmbito diocesano e também regional. Em relação às visitas nos presídios, garantidas pela Lei de Execução Penal, de 1984, art. 24, saiu em 2011 a “Resolução n. 8”, com normas que facilitam esse direito legal1 . Mesmo assim, é comum, na prática, os agentes da PCr encontrarem obstáculos à visita neste ou naquele dia, desta ou daquela maneira, sendo necessária paciência e perseverança. Nas páginas 121-130, o autor apresenta várias indicações práticas, muito úteis, para os contatos com os presos/as. Como entender a “assistência religiosa”? Ela não é proselitista, não vai recrutar para esta ou aquela denominação, não vai “converter”, mas, antes de tudo, “visitar”. É o que Jesus nos pediu, em Mt 25,36. 1 O texto integral da “Resolução” encontra-se como “Adendo”, no final do livro (MATOS, 20147, p. 157-162). Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. 134 | Recensões Da visita, seguem os outros passos, inclusive momentos de oração, celebração, caminhada de conversão. (MATOS, 2014, p. 121-130). Quanto aos “desafios, obstáculos e perspectivas”, o autor comenta “a violência nos presídios”: é “um eco da violência na rua, nas casas e no coração das pessoas, enfim, de todo um sistema sociopolítico baseado em exploração, injustiça e ‘tirar vantagem em tudo’. Para dizê-lo mais claramente, a alternativa não é ter ‘prisões menos violentas’, mas ter uma sociedade mais justa e igualitária, onde se cultivem princípios éticos de convivência humana.” Quanto à própria PCr: “Participar, como voluntário, da PCr, é, antes de tudo, assumir uma espiritualidade de serviço desinteressado... É um dos ministérios mais sublimes na Igreja, embora seja também um dos mais desconhecidos e, lamentavelmente, pouco apreciados.” (MATOS, 2014, p. 132-133). Sobre as “linhas de trabalho priorizadas pela PCr no Brasil”, o autor assim as resume: a) Evangelização – evangelizar a pessoa encarcerada na sua totalidade; b) Diálogo com a sociedade – para formar uma consciência comprometida com a defesa da vida, denunciando os tratamentos degradantes; c) Promoção da cidadania – ajudar o detento a conhecer seus direitos e deveres e a conquistar seu lugar na sociedade; d) Justiça – toda pessoa é digna de respeito e de justiça. A educação para a justiça passa pela recuperação e pelo exercício dos valores morais pessoais, coletivos e sociais.” (MATOS, 2014, p. 135136). Note-se, ainda, esta “profissão de fé” da PCr, segundo o textobase da CF-97: “Cremos, com Jesus, que não se corrige a violência com outra violência. Cremos também que detestar o pecado não inclui abandonar o pecador. Cremos, ainda, que se supera a violência com o amor, a bondade e o perdão.” (MATOS, 2014, p. 139). Último tópico do livro é a “utopia evangélica”, rejeitada por “um modelo de sociedade que, em si mesma , mata a utopia” (p.144). Entretanto, a utopia do Reino, o Reino da Vida, trazida à humanidade pelo Senhor Jesus , não pode morrer! E disso nós, seus discípulos Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. Recensões | 135 somos testemunhas: em nosso caso, também no mundo das prisões. Quanto à oração de Paulo VI, interpretando os sentimentos de um preso orante, nas pp. 147-148, não me parece “belíssima”, como a qualifica o autor. Concordo, porém, que é um texto rico em intuições, sem dúvida. (MATOS, 2014, p. 144-148). Na conclusão, escreve o autor: “Na realidade, apenas começamos. Nunca se ‘conclui’ um trabalho de evangelização, a fortiori tratando-se de pessoas privadas de sua liberdade.” E continua: “Ser cristão é, por imperativo evangélico, ser misericordioso. Como servidores/as dos presos, a Igreja nos ‘delegou’ uma obrigação, que é, ao mesmo tempo, um privilégio: colocar em prática a palavra de Jesus em Mt 25,36: Estive preso no cárcere, e viestes ver-me. [...] Vale a pena, sim, engajar-se na PCr, pois o trabalho humanizador no sistema prisional corresponde, integralmente, à missão que o Senhor confiou a seus seguidores/as: evangelizar. O sonho de Deus é, efetivamente, ‘uma sociedade sem prisões’!” (MATOS, 2014, p. 151-153). Quanto à apresentação do texto, muito bem diagramado, é de agradável leitura. Numa segunda edição, que certamente ocorrerá, certos detalhes de revisão deverão ser melhorados ou corrigidos, p. ex. o sobrenome “Trombetta”, que pelo menos duas vezes saiu como “Trometta”: na nota de rodapé, à p. 63, e na Bibliografia, à p. 156; na citação de Mt 25,36, no Prefácio, à p. 17, houve um erro de concordância verbal: “Tudo o que fizestes... é a mim que fizestes” (não “fizeste”); o “segundo objetivo” da pena privativa de liberdade, à p. 43 em baixo e p. 44 em cima, é a “prevenção... através da intimidação” (não “intimação”) etc. Mas farei um elenco do que anotei, e o mandarei ao autor. Terminando, só me resta congratular-me com o Frater Henrique pelo excelente livro que, a meu ver, prestará grande serviço à Pastoral Carcerária, tanto para os que já a fazem como para os que ainda se omitem. Exatamente nestes dias estão, mais uma vez, pipocando atentados a ônibus, comandados de dentro dos presídios de Santa Catarina. É uma nova maneira que os presos encontraram, infelizmente, de fazer ouvir sua voz. Que a reação não seja simplesmente endurecer, reprimir... mas dar condições, segundo o que prevê a LEP, Lei de Execução Penal, para que os presos se recuperem. Este livro é uma valiosa contribuição nesse sentido. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. 136 | Recensões Ney Brasil Pereira, presbítero da Arquidiocese de Florianópolis, é professor de Exegese Bíblica no Instituto Teológico de Santa Catarina e coordenador da Pastoral Carcerária em Florianópolis, SC. E-mail: [email protected] * REFERÊNCIAS FRANCISCO. Evangelii Gaudium a alegria do Evangelho: exortação apostólica do Sumo Pontífice ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Loyola, 2013. MATOS, Henrique Cristiano José. No movimento da misericórdia. Belo Horizonte: O Lutador, 1996. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.13, n.26, p.127-136, jul./dez. 2014. | 137 NORMAS PARA COLABORADORES 1 Textos inéditos A revista Horizonte Teológico (HT) recebe contribuições para suas seções de artigos, comunicações e recensões. Os textos devem ser inéditos e serão submetidos à avaliação do Conselho Editorial. 2 Submissão dos textos Os textos devem ser enviados ao Conselho Editorial pelo e-mail [email protected]. 3 Apresentação dos originais a) Os textos devem ser digitados em papel formato A-4; fonte tamanho 12 para texto e tamanho 10 para citações longas e notas de rodapé; tipo de letra Times New Roman. b) Margem superior e esquerda 3 cm e margem inferior e direita 2 cm. c) Usar espaçamento 1,5 cm no corpo do texto e 1 cm para citações longas, notas de rodapé e referências; alinhamento justificado. d) Para citações longas (mais de três linhas), adentrar 4 cm e citações com menos de três linhas; usar aspas no próprio corpo do texto. e) Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo, nome dos autor(es), resumo, palavras-chave, resumo em língua estrangeira, keywords, corpo do texto, referências e anexos. f) Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da primeira página com fonte 12, tipo de letra Times, em negrito, todas as letras maiúsculas. g) Digitar os títulos das seções de acordo com a NBR 6024:2012 da ABNT. Com fonte 12, tipo de letra Times. Os títulos de seções são numerados com algarismos arábicos (por exemplo: 1 INTRODUÇÃO, 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA, 3 CONCLUSÃO. As letras de cada seção devem ser grafadas com caracteres maiúsculos e em negrito. 138 | h) Artigos e comunicações devem ter entre 4 mil e 8 mil palavras, incluindo os anexos; recensões, entre 1 mil e 2 mil palavras. i) As referências devem ser indexadas pelo sistema (autor, data, página) no corpo do texto e NÃO em nota de rodapé. Para citar, resumir ou parafrasear um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Francisco Taborda, a indexação completa deve ser (TABORDA, 2005, p. 36). Quando o sobrenome vier fora do parênteses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula. j) Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico. Use o itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros. k) As referências devem ser precedidas da expressão REFERÊNCIAS, com letras maiúsculas, em negrito e centralizado na página. Estas devem ser apresentadas em uma única ordem alfabética, alinhadas somente à esquerda, em espaço simples, e espaço duplo entre elas. l) As referências devem seguir a NBR 6023:2002 da ABNT: os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem numeração, em espaço simples e separadas entre si por espaço duplo e sem adentramento; o principal sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e demais nomes do autor (por exemplo: MATOS, Henrique Cristiano José. Liturgia das horas e vida consagrada. 4. ed. Belo Horizonte: O Lutador, 2005). m) Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por ponto e vírgula. n) Os elementos essenciais de uma referência são: Autor(es). Título. Edição. Local. Editora e data de publicação. Para artigos são: Autor(es). Título do artigo. Título da publicação, local de publicação, volume/ano, número, páginas, mês e ano. 4 Dados dos autores Os autores deverão informar seus dados pessoais: nome completo; função, instituição a qual pertencem; endereço de contato e endereço eletrônico. 5 Exemplares dos autores Os autores de artigos e comunicações publicados receberão três exemplares da revista ; de recensões, dois exemplares. LIVROS RECEBIDOS | 139 EDITORA PAULINAS www.paulinas.org.br Concilio Vaticano II Autora: Euza Helena Abreu Ney de Souza Esta obra parte do princípio de que o legítimo pluralismo é dom do Espírito e é condição indispensável para a catolicidade. O Concilio Vaticano II foi uma experiência de pluralismo, pois mostrou diversas teologias dentro de uma mesma fé. À luz deste princípio, esta obra ajuda a refletir o evento conciliar e questões teológicas e pastorais que suscitam proveitoso debate entre teólogos, historiadores e pastoralistas. O legado do Vaticano II só poderá tornar-se realidade se compreendido e estudado com claras chaves hermenêuticas, o que possibilita ser assumido por todos. Presença Feminina no Vaticano II Autor: Adriana Valério A presença feminina no Vaticano II, da escritora Adriana Valério, resgata a trajetória das 23 mulheres que participaram do Concílio Vaticano II, evento eminentemente masculino e clerical. Na época, a previsão de muitos padres conciliares era a de que a participação feminina no Concílio seria simbólica. Entretanto as dez religiosas e treze leigas convidadas como auditoras não foram silenciosas e nem as suas presenças foram simbólicas; pelo contrário, a participação delas deixou sinais importantes nos próprios documentos conciliares. A obra reflete sobre a voz e o papel da mulher na igreja, e está dividida em duas partes: a primeira relembra os principais eventos da sociedade que antecederam o Concílio. A segunda parte do livro apresenta por meio de uma investigação apaixonante, os rostos e as história de cada uma dessas “madres conciliares” que souberam encontrar ocasiões certas para pronunciar palavras eficazes. 140 | Exegese bíblica Autora: Maria de Lourdes Corrêa Lima O panorama exegético atual oferece diversas propostas metodológicas. Há, contudo, elementos tão fundamentais que estão, ao menos de forma implícita, nas diversas óticas de leitura. Durante o século XX, muitos destes elementos chegaram a uma sistematização amplamente aceita no assim chamado método histórico-crítico. Embora sujeitas a revisões e novos desdobramentos, suas etapas encontramse na base de diversas metodologias atuais. O presente livro, após apresentar, na primeira parte, os fundamentos da Hermenêutica da Exegese Bíblica, descreve, na segunda parte, as diversas etapas metodológicas da interpretação de um texto bíblico. Tudo se inicia com uma tradução do texto em questão. Em seguida, chega-se à análise crítica da constituição literária do texto, assim como de sua forma, de seu gênero literário, de sua redação e das tradições nele presentes. Finalmente, podem ser apresentados os comentários exegéticos que favorecem a compreensão do que está sendo refletido no escrito bíblico analisado. Pobre para os pobres Autora: Gerhard Ludwig Muler Pobre para os pobres, fala sobre a missão libertadora e evangelizadora da Igreja, e aborda por meio de um olhar contemporâneo, temas como: a fé, o desenvolvimento humano, os desafios para a teologia nos dias de hoje, revendo os eventos conciliares e o documento de Aparecida: opção pelos pobres. Traz temas que despertam o leitor para a importância da missão da igreja como renovadora da fé e dos verdadeiros valores humanos. A obra faz parte da coleção Teorama, e traz no prefácio uma declaração escrita pelo Papa Francisco, que expressa seu agradecimento pela importante colaboração que o conteúdo do livro traz aos católicos “Sou grato a Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, que com o presente livro quis relembrar-nos tudo isso. Estou certo de que cada um de vós que ler estas páginas deixará o seu coração ser tocado e sentirá surgir dentro de si a exigência de uma renovação da vida...”. | 141 O Futuro de Deus na missão da Esperança Autor: Cezar Kuzma Ao discernir o Futuro de Deus na missão da esperança cristã, esta obra enriquece a coleção com um diálogo maduro entre a Teologia da Esperança de Jürgen Moltmann e a Teologia Latino-Americana da Libertação. O futuro, objeto de toda a teologia, apresenta-nos o gratuito plano de Deus, que é a nossa salvação, e nos convida a caminhar em sua direção. Este caminhar decorre de um encontro com o Deus que vem (Advento) e se revela a nós, mostrando-nos o seu rosto (Cristo), e depende também de um aceite da fé (que é a resposta humana), provocado e vivido na esperança. Este “seguir” e este “ir” acontecem dentro deste mundo e com as variantes novas do contexto onde estamos. Para destrinçar esse caminhar na esperança cristã, o autor pôs em diálogo as intuições de Jürgen Moltmann e a profecia da Teologia da Libertação. Este livro se propõe a um estudo da Teologia da Esperança de Moltmann em aproximação com a Teologia Latino-Americana da Libertação numa perspectiva escatológica. Embora essas duas teologias tenham suas especificidades, o autor desvelou com competência seus pontos convergentes, ressaltando a maturidade por elas alcançada ao longo das últimas décadas. O estudo aproximativo aqui oferecido acentua um novo discurso escatológico da esperança em tom também libertador. O autor acredita que toda “esperança é libertadora” e que “toda teologia que se quer da esperança é da libertação e toda teologia que se quer da libertação é da esperança”. Essa convicção permeia todo o trabalho e convida o leitor a olhar na direção deste futuro de Deus que se vislumbra na missão da esperança cristã. 142 | Filosofia da Religião Autor: Michael B. Willkinson e Hugh N. Campbell Andrea Riccardi Este livro é uma introdução a um debate contínuo em vastas áreas da Filosofia da Religião. Não leva em conta nenhum conhecimento prévio sobre o assunto e começa explicando os problemas subjacentes que os filósofos tentam enfrentar, dando um esboço básico sobre o que a filosofia faz. Fornece material para a reflexão, facilmente identificado, no final de vários capítulos. E permite que o leitor acompanhe o debate, tendo acesso a material suficiente para pensar sobre o assunto. Este livro investiga os recursos e limites da Filosofia da Religião, quando tenta compreender a Deus como além da linguagem humana, como sendo de uma ordem totalmente diferente de qualquer outra coisa de nossa experiência cotidiana. Mas há um perigo peculiar nessa abordagem, pois pode parecer que Deus seja tão elusivo quanto uma quimera. Se Deus é tão misterioso, de fato, ele pode, de algum modo, ser? É algo singular à fé religiosa o fato de nela Deus ser encontrado: ser claro, ser desconhecido, mas de algum modo existir. Mas, frequentemente, o Deus da crença das pessoas pode tornar-se um Deus fabricado. E, para evitar esse risco, esta obra recua e nos sintetiza três milênios de debates sobre o tema, consciente de que nossa própria existência já é um grande enigma. Na Filosofia da Religião, dizem os autores, é a profundeza do mistério do ser que nos confronta e, ao enfrentá-la, esperamos um vislumbre de compreensão e explicação. A tarefa de cada um de nós, como filósofos, com nossos recursos pobres e limitados de mente, escrita e diálogo, em uma incerteza sem fim, é fazer do mistério aquilo que podemos. Talvez não seja tudo em vão. O livro foi pensado como um debate, que já começa entre os próprios autores. Não é somente uma lista de argumentos, mas quer que o estudante reflita sobre eles e se envolva com eles. Portanto, prepare-se para tentar... discordar dos autores! | 143 PAULUS www.paulus.com.br Introdução á filosofia do mito Autor: Luc Brisson “Desejo falar de como o bispo vive concretamente. Quero descrever sua relação com as pessoas com quem tem contato, como passa os diversos momentos de seu dia, quais são seus principais compromissos, o que acontece quando encontra as pessoas… Lembro-me de que, em minha infância, eu considerava o bispo alguém que estava como em um nicho ou pedestal na Igreja para ser homenageado pelos fiéis. Neste livro, quero baixá-lo desse lugar e vê-lo em contato com o povo, como de fato acontece. Pretendo exprimir algo que dê uma imagem sua menos nebulosa e hierática, mas viva e sem falsas pretensões.” O cardeal Carlo Maria Martini propõe uma reflexão inédita, fruto de sua experiência pessoal, sobre uma figura institucional muito citada na imprensa, mas talvez não muito conhecida. Da pergunta “como alguém se torna bispo?” até a narração das relações amigáveis, críticas ou polêmicas com crentes e não crentes, chega-se às características que tornam o bispo capaz de viver e de anunciar o Evangelho no mundo pós-moderno João Paulo II - Santo Já Autor: Andrea Riccardi Não é fácil canonizar um pontífice contemporâneo, também devido à complexidade de sua história e às implicações de suas decisões. João Paulo II, por seu lado, teve vida complexa e pontificado bastante longo. O que foi que levou a Igreja de Ratzinger e de Bergoglio a tomar tal decisão em tão curto tempo? Talvez esse tipo de decisão queira destacar que João Paulo II foi um papa profundamente diverso de seus predecessores? Neste breve ensaio, Andrea Riccardi responde a essas questões e percorre as articulações e acontecimentos que conduziram à canonização de João Paulo II. 144 | Introdução á filosofia do mito Autor: Luc Brisson ‘Desde a Antiguidade até a Renascença, a transmissão dos mitos da Grécia antiga e de Roma foi assegurada, de forma paradoxal, pela filosofia, que, depois de ter denunciado a incapacidade desses relatos de transmitir a verdade e de desenvolver uma argumentação, empenhou-se, graças a esse instrumento exegético que representa a alegoria, a mostrar como, sob seus elementos mais surpreendentes e mais escandalosos, dissimulava-se a significação filosófica mais alta. Neste livro encontram-se informações históricas, textuais e doutrinais sobre as metamorfoses que sofreu a interpretação alegórica dos mitos durante dois milênios. O conjunto desse relato permite repor em questão várias ideias simplistas, mas muito difundidas, sobre as ligações que mantêm mythos e logos, tradição religiosa e especulação sobre a natureza, teologia e filosofia, paganismo e cristianismo. Esta nova edição corrigida leva em conta a maior parte dos novos trabalhos e dos novos autores sobre a interpretação alegórica surgida depois de uma dezena de anos. Sujeitos no mundo e ma Igreja Autor: João Décio Santos ‘A Nova Evangelização passa pela ação missionária, que prepara verdadeiros discípulos de Jesus Cristo no mundo e para o mundo. Nesse sentido, cresce na Igreja do Brasil o interesse de Dioceses pela criação dos Conselhos Diocesanos de Leigos, visando aprofundar sua identidade e atuação. É preciso juntar forças, unirse na mesma ação evangelizadora, partilhando sonhos e desejos, convocando todos os batizados para uma reflexão sobre a missão da Igreja não apenas “para” os leigos, mas “com” os leigos. | 145 Sonhos na Psicologia Junguiana Autor: Durval Luiz de Faria/Laura Villares de Freitas/ Marion Rauscher Gallbach Jung foi um dos pioneiros no estudo dos sonhos. Pela sua noção de inconsciente e de vida psíquica, construiu uma maneira própria e original de trabalho com os sonhos na psicoterapia, que leva em conta tanto o inconsciente individual quanto o coletivo. Propôs o método de amplificação simbólica. A partir de fins do século XX, a Psicologia Analítica lança-se em novas formas de trabalho com os sonhos, para além de sua consideração na psicoterapia individual. Os analistas e terapeutas que aqui se apresentam ampliam criativamente a ircunscrição do método, com peculiar ênfase ao trabalho com sonhos e grupos, à consideração do corpo, à utilização de recursos expressivos e artísticos e à sua utilização na formação profissional. Destaca-se também a aplicação em diferentes contextos, que ampliam o atendimento ao sofrimento psíquico onde ele ocorra, seja nos centros de atendimento da rede pública, na saúde mental, nas casas-abrigo, respondendo, assim, à grande diversidade de demandas da contemporaneidade. 146 | PAULUS www.paulus.com.br Friedrich Nietzsche Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo Autor: Friedrich Nietzsche Este livro representa um radical experimento crítico que reúne, além dos conhecidos temas, um panorama global mais específico em torno dos pensamentos da filosofia madura de Nietzsche em diversos âmbitos: a crítica de tradições filosóficas e morais, um reposicionamento sobre a arte, principalmente em relação aos seus conceitos apolíneo e dionisíaco, o embate com filósofos e escritores, uma discussão crítica com a ciência e com as culturas (especialmente alemã e greco-romana antigas), entre outros. Pensatas Pedagógicas - Nós e a escola: agonias e alegrias Autor: Mario Sérgio Cortella Os vícios e as virtudes, os princípios e as práticas, a docência e a essência, as lições e as ações fazem deste livro a “fina flor” após quarenta anos de prática educacional de Mario Sergio Cortella. Tal como um testamento o autor mostra no que acredita, seu modelo de mestre e de escola e alinhava o futuro da instituição educacional. E acima de tudo fala de gente, do cotidiano profissional, da dor e da alegria de fazer e pensar educação. Mais que uma obra, uma paixão de ser e de viver educação | 147 Eu e Deus Autor: Vito Mancuso Este livro nasce da consciência da gravidade do momento presente e da exigência interior de refundar na presença das perplexidades atuais o pensamento de Deus, entendido como verdade da vida e do mundo. Por séculos, no Ocidente, a fundação do pensamento de Deus foi realizada a partir da Igreja e a partir da Bíblia. Ainda hoje, a postura dominante segue este duplo caminho, Igreja + Bíblia ou, no caso do Protestantismo, Bíblia + Igreja. A ALMA BRASILEIRA LUZES E SOMBRA Autor: Walter Boechat Este livro aprofunda sobre uma compilação do melhor do XXII Congresso da Associação Junguiana do Brasil, apresentando a “Alma Brasileira” a partir da Psicologia Analítica ou em diálogo com ela. Teologia Moral Autor: Antônio Moser A Teologia Moral é uma disciplina e um campo de conhecimento da Teologia que se dedica ao estudo e à pesquisa do comportamento humano em relação a princípios morais e ético-religiosos. “Teologia Moral: a busca dos fundamentos e princípios para uma vida feliz” analisa rapidamente o caminho percorrido pela Teologia Moral ao longo dos séculos, para contextualizar o leitor nos conceitos fundamentais. Em seguida, sugere uma mudança de paradigmas focada nos novos cenários sociais, culturais e eclesiais, na convicção de que uma teologia distante e desligada da concretude humana já não responde mais às questões concretas da vida humana em suas novas faces. 148 | Maria Madalena na montanha de Sainte-Baume Autor: Jean-Yves Leloup Míriam de Magdala ou Maria Madalena é uma das mulheres com quem o Mestre teve uma das passagens mais intensas de todo o evangelho e aparece como a primeira testemunha da ressurreição. Leloup embasado em estudos sobre essa figura considerada “apóstolo entre os apóstolos” e apoiado principalmente na tradição oral mostra o arquétipo da mulher selvagem e angelical que Maria Madalena representa e seu lugar ainda ímpar na proximidade com Yeshua e o cristianismo nascente. | 149 CUPOM DE ASSINATURA ANUAL Revista Horizonte Teológico Remeter para: Revista Horizonte Teológico Rua Itutinga, 340 Bairro Minas Brasil 30535-640 | Belo Horizonte - MG Fax: (31) 3419-2818 [email protected] www.ista.edu.br Nome ____________________________________________________ Endereço _________________________________________________ _________________________________________________________ Bairro ____________________________________________________ Cidade _____________________________________ Estado _______ CEP _______________________ Telefone (___) __________________ E-mail ___________________________________________________ Consulte o valor da assinatura: (31) 3419-2804 ou pelo e-mail [email protected] Formas de pagamento: ( ) Cheque nominal à ISJB - Instituto Santo Tomás de Aquino ( ) Depósito Bancário: Banco Bradesco Agência 2797-9 - Conta corrente: 15646-9 Titular da conta: ASTA - Associação Santo Tomás de Aquino (Enviar comprovante de depósito juntamente com cupom) Bairro