Artigos e estudos comentados Os medicamentos genéricos são

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Os medicamentos genéricos são
equivalentes aos inovadores.
Porque é que se utilizam tão pouco?
Comentário a uma revisão sistemática
comparando medicamentos genéricos
com inovadores em cardiologia
Introdução
Desde a sua introdução no mercado no início da
década de 80 que os medicamentos genéricos (MGs) têm
feito um caminho muito interessante em Portugal,
nomeadamente quando as políticas do medicamento
começaram a apoiar e promover o seu uso entre nós.
Este apoio explícito por parte das autoridades da
saúde à prescrição de MGs tem induzido a sua utilização
generalizada, mas tem sido também uma contínua fonte
de dúvida dos profissionais (especialmente médicos)
sobre a sua verdadeira qualidade farmacológica.
Existe de facto uma corrente que duvida da
bioequivalência entre os MGs e os medicamento inovadores
(Mis), suspeitando que os efeitos clínicos entre as classes
são diferentes (no caso dos MGs, a maior parte das vezes
inferiores)(1). Existem vários casos individuais em que
médicos (ou os próprios doentes) afirmam que estes
deixaram de responder ao tratamento - por exemplo com
perda de controlo da hipertensão arterial, menor efeito
analgésico/anestésico, menor controlo glicémico, etc. –
responsabilizando um MG recentemente dispensado por
essa diminuição do efeito terapêutico.
António Vaz Carneiro
Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa
Director do Centro de Estudos de Medicina Baseada na
Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa
Especialista em Medicina Interna pela Mount Sinai
Hospital and Medical School, New York, USA, pelo Hospital
de Santa Maria e pela Ordem dos Médicos
Especialista em Nefrologia pela University of Califórnia,
San Francisco, USA (1985) e pela Ordem dos Médicos
Diplomado em Cuidados Intensivos pela European Society
of Intensive Care Medicine
Coordenador, Conselho Nacional da Evidência para a
Medicina da Ordem dos Médicos
Fellow, American College of Physicians. Eleito em Abril de
2008.
Co-Director, Harvard Medical School - Portugal Program in
Translational Research and Information, Ministério da
CIência, Tecnologia e Ensino Superior
Autor de mais de 300 artigos publicados e de 200 apresentações científicas em congressos e reuniões nacionais
e estrangeiras
Bioequivalência farmacológica e clínica
O conceito de bioequivalência é central para a
compreensão dos medicamentos genéricos: dois produtos
são bioequivalentes se são farmacologicamente equivalentes
e se as suas biodisponibilidades – após administração de
uma dose molar idêntica – são suficientemente
semelhantes, em termos da sua eficácia e segurança. A
bioequivalência pode ser estabelecida através:
• da concentração máxima sérica do fármaco
• do tempo para atingimento da concentração máxima
• da área sob a curva de concentração em termos de
níveis séricos.
Este conceito básico de bioequivalência não deve no
entanto fazer-nos esquecer o facto que duas formulações
nunca são realmente idênticas: isto pode mesmo dizer-se
em relação a dois lotes do mesmo medicamento ou dois
comprimidos do mesmo lote. Deste modo, os estudos de
bioequivalência – no qual assentam as reclamações de
igualdade dos genéricos – destinam-se a provar que os
perfis das formulações em estudo não diferem significativamente(2). Se os dois perfis são de facto sobreponíveis
(ou diferem pouco), então será de esperar que os efeitos
terapêuticos também o sejam.
É claro que estes são conceitos farmacológicas, isto é,
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Recebido para publicação: Junho de 2009
Aceite para publicação: Junho de 2009
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Revista Factores de Risco, Nº15 OUT-DEZ 2009 Pág.9
A questão científica foi “São os MGs tão eficazes como
os MIs no tratamento das doenças cardiovasculares (CV)?”.
Foram pesquisados a Medline, a EMBASE e o International
Pharmaceutical Abstracts (1984 a Agosto de 2008) para
ensaios clínicos (RCTs – randomized clinical trials) e estudos
observacionais. Estes tinham de comparar directamente
um MI com um MG no tratamento de doenças CVs e
tinham de disponibilizar pelo menos um resultado (outcome)
de eficácia ou segurança: sinais vitais (frequência cardíaca,
tensão arterial e diurese), testes laboratoriais (INR, LDL e
electrólitos urinários), morbilidade e mortalidade e
consumo de recursos de saúde. Foram especificamente
excluídos estudos realizados apenas em produtos
biológicos (amostras de sangue, soro ou urina).
A selecção para análise final incluiu 47 estudos (38 RCTs).
As comparações entre MGs e MIs incluíram as seguintes
classes farmacológicas: beta-bloqueantes, diuréticos,
bloqueadores dos canais de cálcio, antiagregantes
plaquetários, IECAs, estatinas, bloqueadores alfa e varfine.
A medida de associação foi a dimensão do efeito (que se
esperava ser o mais próximo possível do zero, se os
fármacos fossem de facto equivalentes).
No quadro estão descritos os resultados.
Os autores avaliaram ainda a opinião de peritos,
expressa em editoriais que discutiam expressamente a
substituição de MIs por MGs na prática clínica, sendo
obtidos os seguintes resultados:
• Foram identificados 43 editoriais, 44% dos quais
publicados entre 1993 e 1999
• 53% expressavam uma visão negativa da troca de
MGs por MIs
• 28% encorajavam a substituição de MIs com MGs
• 67% dos referentes a fármacos com intervalos terapêuticos curtos eram negativos.
baseiam-se em medições e análises bioquímicas de
produtos biológicos. Mas para o médico que trata doentes
o que importa é saber se os efeitos clínicos (benefício e
risco) são de facto idênticos entre o MG e o MI. Para isso
são necessários estudos em doentes com as patologias
alvo, comparando directamente duas formulações do mesmo
medicamento (MI vs. MG) em resultados (outcomes) clínicos
relevantes. Se os resultados forem idênticos, então está
conseguida a equivalência clínica e o uso de MGs é seguro.
“Esperemos que este estudo
ajude a dissipar as dúvidas que
os médicos responsáveis por
tomar conta de doentes possam
ter acerca dos medicamentos
genéricos … “
A revisão sistemática do JAMA
Precisamente tentando definir a equivalência clínica
entre medicamentos cardiológicos foi recentemente
publicada no JAMA uma revisão sistemática com meta-análise analisando um conjunto de estudos que
comparavam em desenho paralelo MGs com Mis(3). É este
desenho paralelo dos estudos individuais, juntamente
com a metodologia das meta-análises que faz com que
este seja um artigo de enorme importância, que vale a
pena analisar e comentar.
Tabela I
Classe farmacológica
Número de RCTs (n)
Dimensão do efeito (IC 95%)
Beta-bloqueantes
6 (135)
0,00 (-0,24-0,25)
Diuréticos
10 (135)
-0,03 (-0,28 a 0,22)
Bloqueadores dos canais de cálcio
4 (242)
0.00 (?0.53 to 0.53)
Antiagregantes plaquetários
2 (50)
0,21 (?0,19 a 0,61)
IECAs
1 (23)
-0,09 (?0,68 a 0,50)
Estatinas
2 (71)
-0,25 (?0,62 a 0,12)
Bloqueadores alfa
1 (43)
0,06 (?0,37 a 0,50)
Varfine
4 (238)
-0,09 (?0,33 a 0,15)
Global
30 (837)
-0,03 (?0,15 a 0,08)
Adaptado de ACP JC Abr 09, 150:4
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Os medicamentos genéricos são equivalentes aos inovadores. Porque é que se utilizam tão pouco?
Comentário a uma revisão sistemática comparando medicamentos genéricos com inovadores
em cardiologia
“ … em muitos subgrupos de doentes específicos, o medicamento
ideal a prescrever não é um genérico, mas sim o inovador que foi
estudado numa amostra de doentes semelhantes e demonstrou
ter o melhor perfil de benefício/risco para aquele doente.”
Comentários
Que saibamos, esta é a primeira revisão sistemática
em que se comparou directamente a eficácia dos
genéricos versus os seus homólogos inovadores, em
outcomes clínicos (e não apenas farmacológicos).
Esta revisão é de alta qualidade, centra-se sobre uma
questão clinicamente muito importante, os critérios de
inclusão/exclusão foram lógicos e existiu um esforço de
inclusão da maior parte dos estudos relevantes (que se
revelaram consistentes e precisos nos seus resultados).
Por outro lado, embora uma boa parte dos estudos
apresentasse pela escala de Jadad uma qualidade metodológica razoável e as amostras apresentassem dimensões
modestas (o que lança a dúvida sobre o poder destes
estudos de discriminar entre os resultados - alguns dos
estudos eram farmacocinéticos, de resto). Para além disso,
em muitos casos foi utilizado um desenho de superioridade (e não de equivalência)(5) e o seguimento não foi, na
maior parte dos casos, muito dilatado.
As conclusões são no entanto claras e consistentes de
estudo para estudo, com diferenças clínicas nulas. Deste
modo, é legítimo aceitar a reclamação de equivalência
entre os genéricos e os inovadores, já que os benefícios
sobre os resultados (outcomes) clínicos foram na grande
maioria dos casos sobreponíveis (dimensão do efeito
próxima do zero).
Baseados nestes resultados, parece ser natural que os
médicos e doentes aceitem as recomendações das
autoridades no sentido da sua utilização regular, já que,
para idênticos rácios de benefício/risco, deve-se ter em
conta o custo na decisão do que prescrever.
Apesar destes resultados, porquê a contínua desconfiança dos clínicos (e muitas vezes doentes), na utilização
de genéricos? Várias causas potenciais podem ser
adiantadas: crença dos médicos na falta de qualidade
global dos MGs (mesmo sem provas claras deste facto); o
carácter alienador para os médicos da maior parte das
acções de promoção dos MGs (em que as vantagens
financeiras são apresentadas como a grande razão para
prescrição); a valorização exagerada da experiência clínica
individual com doentes específicos (um doente respondeu
menos bem a um MG, os outros também responderão
mal) e, finalmente, conflitos de interesse dos prescritores
(relações financeiras com firmas farmacêuticas de MIs, por
exemplo).
Esperemos que este estudo ajude a dissipar as dúvidas
que os médicos responsáveis por tomar conta de doentes
possam ter acerca dos MGs, relembrando ainda que as
bases racionais da terapêutica farmacológica incluem a
definição da eficácia do medicamento (através da análise
dos indicadores dos ensaios clínicos), da sua segurança
(frequência e gravidade dos efeitos adversos), do seu
perfil de interacções medicamentosas, assim como do tipo
de doentes que foram estudados nos ensaios clínicos com
o medicamento em questão. Deste modo, em muitos
subgrupos de doentes específicos, o medicamento ideal a
prescrever não é um genérico, mas sim o inovador que foi
estudado numa amostra de doentes semelhantes e
demonstrou ter o melhor perfil de benefício/risco para
aquele doente.
António Vaz Carneiro
Bibliografia
1. A biodisponibilidade tem dois componentes: a dimensão (que
é a fracção da dose administrada que atinge a circulação
sistémica) e a taxa (que é o intervalo de tempo que leva até se
atingir a concentração máxima no soro, após a administração
dessa dose)
2. Generics and bioequivalence. 1st ed. Boca Raton: CRC, 1994
3. Kesselheim AL et al. Clinical Equivalence of Generic and BrandName Drugs Used in Cardiovascular Disease A Systematic Review
and Meta-analysis. JAMA 2008;300:2514-2526
4. Okie S. Multinational medicines - ensuring drug quality in an
era of global manufacturing. N Engl J Med 2009;361:737-740.
5. Carneiro AV. Ensaios de equivalência entre medicamentos:
aspectos metodológicos. Rev Port Cardiol 2003;22:1125-1139.
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