IDENTIDADE DOCENTE: PENSANDO A FORMAÇÃO INICIAL Mara

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IDENTIDADE DOCENTE: PENSANDO A FORMAÇÃO INICIAL
Mara Lúcia Rodrigues Costa1(UEMG/Barbacena)
Resumo
O presente trabalho aborda alguns aspectos que em nossa opinião podem auxiliar na reflexão
sobre a construção da identidade docente. Entendendo que ela está entrelaçada aos processos
de socialização nos diversos contextos nos quais o sujeito está inserido e que também sofre
efeitos de constantes mudanças estruturais e institucionais que interferem no mundo exterior.
Com o intuito de ampliar o pressuposto acima, procuramos estabelecer uma articulação com a
abordagem teórica da produção da identidade cultural, ressaltando a relação constitutiva com
a linguagem. A partir desse percurso, compomos um quadro teórico incorporando conceitos
da filosofia da linguagem Bakhtin. A temática da identidade é muito complexa, e seu estudo
envolve aspectos individuais e sociais, os quais, segundo alguns autores, tem um caráter
interdisciplinar e pode atribuir significados diferentes de acordo com os campos que a
investigam. Um dos aspectos que norteia esse trabalho diz respeito a influencia da cultura na
construção da identidade. A cultura atua na produção da identidade ao dar sentido à
experiência, quando possibilita a escolha entre as várias identidades possíveis. Ela também
oferece uma gama de possibilidades que geram uma variedade de representações simbólicas,
as quais acabam por constranger o indivíduo em suas preferências. Dessa forma, a identidade
emerge, não de um centro interior, de um “eu verdadeiro e único”, mas do diálogo entre os
conceitos e definições representados pelos discursos de uma cultura e pelo desejo (consciente
ou inconsciente) de responder aos apelos feitos pelos significados. Outro aspecto que iremos
dar ênfase em nossa explanação é o do sistema de representação, pois as práticas de
significação produzem significados na forma de representações. O foco desse aspecto é o
currículo, pois como sistema de representação e significado ele pode nos auxiliar a
compreender como as identidades são por ele geradas. Também daremos destaque ao papel da
formação escolar. É ao longo da trajetória escolar, nas experiências vivenciadas como alunos,
que começa a se forjar o conceito de „ser professor‟. Discutiremos a importância da
significação social da profissão, da revisão constante dos significados sociais desta, da revisão
das tradições, da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que permanecem
significativas. E finalmente discutiremos o papel das interações discursivas no processo de
construção da identidade, pois ele é mediado pelos signos, pelas trocas e pela comunicação
entre os indivíduos. O significado surge a partir dos jogos de linguagem e dos sistemas de
classificação nos quais as coisas estão inseridas; nesse sentido, aquilo que é considerado um
fato natural é também um fenômeno discursivo. Quando um determinado fato ou fenômeno é
caracterizado dentro de um sistema classificatório, o significado atribuído a ele é resultado
não de sua essência natural, mas de seu caráter discursivo.
Palavras-chave: Identidade docente, formação inicial, licenciatura.
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Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 14 Formação docente: serviços de apoio à escolarização
inclusiva do IX Congresso de Pesquisa e extensão e IV semana de Ciências Sociais da UEMG/Barbacena.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEMÁTICA IDENTIDADE
O campo de estudo que envolve o tema identidade é muito complexo e envolve
aspectos individuais e sociais, os quais, segundo Guimarães (apud Pimenta e Lima, 2011) tem
um caráter interdisciplinar e pode atribuir significados diferentes de acordo com os campos
que a investigam. Assim, por exemplo, a Sociologia destaca a importância das experiências e
a história pessoal dos indivíduos na construção identitária (PIMENTA e LIMA, 2011). Outro
aspecto que não podemos deixar de mencionar, quando se discute essa temática, é a cultura,
uma vez que a sua constituição se dá no interior desta (LOPES e MACEDO, 2011).
É possível depreender que há um dinamismo implícito na sua construção, pois ao
longo da trajetória de vida, os sujeitos passam por inúmeros processos de socialização que
estão imersos em determinados contextos sociais e culturais. Como a discussão sobre
identidade envolve vários aspectos, torna-se necessário circunscrever que, nesse trabalho,
trataremos da identidade docente.
Para ajudar na compreensão dessa temática, vamos partir da noção de identidade
apresentada por Hall (2011), que inicia a discussão do tema perfazendo uma retrospectiva de
movimentos importantes os quais revolucionaram o pensamento e a cultura ocidentais na
Modernidade e contribuíram para a mudança da concepção da identidade. Nesse percurso, foi
possível delinear três identidades distintas: a do sujeito no iluminismo, do sujeito sociológico
e do sujeito pós-moderno.
A identidade do sujeito no iluminismo é caracterizada como algo inexorável, que
emerge quando ele nasce, com ele se desenvolve, e permanece essencialmente a mesma ao
longo da sua existência. Essa noção era baseada na ideia de um ser humano autônomo, único,
centrado, coerente, na qual os homens eram dotados de razão. Sendo o pensamento de
Descartes (apud HALL, 2011) a principal fonte dessa concepção de sujeito.
Mudanças no campo econômico e social, como o processo de industrialização, no
século XIX alteraram essa percepção de identidade, que definia o sujeito desde o seu
nascimento. De acordo com Hall (2011, p.30) “o indivíduo passou a ser visto como mais
localizado e „definido‟ no interior dessas grandes estruturas e formações sustentadoras da
sociedade moderna”. Outros eventos que contribuíram para isso foram a biologia darwiniana,
na qual o sujeito foi „biologizado‟ e o surgimento das novas ciências sociais que preconizam
que os indivíduos são formados subjetivamente através de sua participação em relações
sociais mais amplas, e que os processos e as estruturas são sustentados pelos papéis que os
indivíduos desempenham nelas. Assim, nessa concepção do sujeito sociológico, a identidade
“é formada na interação entre o eu e a sociedade” (HALL, 2011, p.11). Esse processo acaba
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por fazer com que a identidade do sujeito seja determinada pela posição que ele ocupa na
estrutura social.
Na contemporaneidade, a costura entre o mundo público e o mundo pessoal está
sendo alterada. O sujeito com uma identidade estável e unificada como o sujeito sociológico
está “se tornando fragmentado: composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” (HALL 2011, p. 12). O autor atribui a
fragmentação da identidade do sujeito contemporâneo a mudanças estruturais e institucionais
que interferem no mundo exterior e, consequentemente, alteram a “sutura” entre aquele e a
estrutura. Neste cenário, a identidade se torna um produto cultural e passa a oferecer muitas
possibilidades de representações que acabam por compelir o sujeito em suas escolhas.
A cultura, de acordo com Lopes e Macedo (2011), compreendida como uma ação
direta do homem sobre o meio, transformando-o por meio da utilização de técnicas, está de
certa forma ligada à educação e a escola. Cabe a ela, a escola, a função de socializar os
indivíduos, tornando-os capazes de compartilhar uma mesma cultura.
Ainda segunda as autoras, a cultura tem outro conceito que também está
relacionado à educação e ao currículo é o de repertório de significados, que nada mais é que
um conjunto de sentidos socialmente criados que permitem aos indivíduos se identificarem
uns com os outros. Isso acaba por criar uma cultura humana geral, uma monoculturalidade,
que produz exclusões e rejeições, uma vez que a sociedade se mostra cada dia mais,
multicultural. Nem todos os indivíduos compartilham o mesmo repertório de sentidos isso
acaba por estabelecer uma distinção entre os „repertórios válidos e não válidos‟ (LOPES e
MACEDO, 2011, p.185).
Nesse cenário, o currículo se apresenta como um sistema de representação e
significado que pode nos auxiliar a compreender como as identidades são por eles geradas.
Dessa forma a trajetória escolar é um aspecto importante, uma vez que nesse
percurso somos expostos a perspectivas, conteúdos e práticas que irão moldar nosso olhar e,
por conseguinte irão implicar nas escolhas que faremos, isto é, qual(is) o(s) sentido(s) que
iremos dar ao nosso fazer, com que nos identificamos ou nos diferenciamos.
Essa a
abordagem permite que se compreenda melhor como a interação específica dos contextos
institucionais escolares contribui para que os estudantes aprendam a se constituir como seres
sociais.
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FORMAÇÃO ESCOLAR: IMPLICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
DOCENTE
De acordo com Pimenta e Lima (2011), é no processo de formação que as opções
e intenções acerca da profissão começam a ser consolidadas. No caso específico da profissão
docente, alguns autores como Pimenta (2000) e Nóvoa (2007) destacam que a construção da
identidade docente tem raízes no início da formação escolar elementar, nas relações
estabelecidas com diferentes professores. É ao longo da trajetória escolar, nas experiências
vivenciadas como alunos, que começa a se forjar o conceito de „ser professor‟.
Assim, trazemos as contribuições de alguns autores para nos ajudar a
compreender como a formação escolar pode colaborar para o processo de formação da
identidade docente.
Para Gimenes (2011) o processo de construção identitário constituído no contexto
da formação inicial de professores de Ciências e Biologia apontam para a valorização do
conhecimento específico e teórico; a desvalorização dos saberes pedagógicos; a organização
dos conteúdos em aulas expositivas e uma dicotomia entre os saberes das ciências naturais e
pedagógicos. Para ela, o processo formativo, percorrido por esses futuros professores ao longo
da formação inicial aponta para a construção de processos identitários precários, em que o
licenciando sente pouca vontade de exercer a profissão docente, pois não há uma reflexão
teoricamente fundamentada que seja significativa e que aponte para novas possibilidades para
esse futuro docente, o que leva a constituição de um profissional marcado pelo bacharelado e
por um „não ser professor‟.
Lopes (2007) que também investigou a formação inicial de professores de
Biologia e Ciências considera que o Estágio Supervisionado pode propiciar ao estudante a
possibilidade da construção de vários saberes docentes. Pode ser a oportunidade de o
estudante construir um saber teórico, um saber fazer e, principalmente, um saber ser
professor, que é o seu saber pessoal e subjetivo, o qual não pode ser ensinado, mas é preciso
ser aprendido. A posição do estagiário é uma posição dúbia, intermediária, pois ora é aluno,
ora professor. Nessa etapa da formação, a identidade docente oscila entre o ser aluno e o
tornar-se professor. Ele parece olhar para os professores que há ao seu redor e procura
encontrar um modelo que faça o seu estilo. Ela assinala que a modelagem é o principal meio
pelo qual são dados os primeiros passos na construção do ser professor. Para a autora, a
identidade docente é construída a partir da experiência prévia como aluno, o que influencia a
escolha da profissão. O estágio é um espaço de identificações pessoais, é a sua fonte de
saberes práticos. Assim, a identidade profissional dos professores pode ser entendida como
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uma construção pessoal e social marcada por múltiplos fatores, resultando numa série de
representações que o futuro professor tem de si mesmo, da escola, dos alunos e da sua
profissão.
Já Melo (2007), que discute a formação de professores a partir da ótica dos
alunos, professores e coordenadores dos cursos de Física, Matemática e Química de uma
instituição pública, observou que há uma ênfase dos saberes disciplinares (os específicos do
curso), dada tanto pelos professores como pelos licenciandos no processo formativo dos três
cursos investigados. Essa característica acaba sendo um traço marcante na identidade
profissional destes. Isso fica evidente nos discursos discentes, porque mesmo reclamando,
eles se rendem à necessidade de “dominar o conteúdo”, de “saber o máximo para poder
ensinar” e de “que a gente saiba muito conteúdo”. A pouca ênfase dada à formação
pedagógica, admitida pelos professores e licenciandos, dificulta, segundo a autora, o
aprendizado da profissão; isso fica evidente nos depoimentos dos alunos quando se referem a
sua formação para a docência: “Temos que correr atrás, a gente aprende mesmo é fazendo”
(p.124). A autora evidencia alguns aspectos que são comuns aos cursos estudados, que
dificultam o desenvolvimento da identidade profissional: a insegurança sentida pelos alunos
ao assumirem a docência no período de estágio, principalmente com relação ao domínio dos
saberes pedagógicos; práticas formativas que pouco contribuem para o investimento na
profissão e a distância entre os conteúdos acadêmicos e os escolares.
Também não há como desconsiderar que a identidade do professor se constrói em
circunstâncias sociais que não se separam da vida pessoal. Essa perspectiva de acordo Nóvoa
(2007) admite a existência de elaboração de um conhecimento pessoal no interior do
conhecimento profissional, isso possibilita captar o sentido de uma profissão que está no
cerne da identidade profissional docente. Nesse sentido a formação deve estimular uma
perspectiva crítico-reflexiva, que dê subsídios para o desenvolvimento de um pensamento
autônomo e propicie para que ela seja participativa, pois estar em formação implica
investimento pessoal, que pressupõe um trabalho livre e criativo sobre o próprio percurso,
com vistas à construção de uma identidade profissional. Ele esclarece que o processo de
formação é dependente do percurso educativo, mas não se deixa controlar unicamente por ele;
em outras palavras, os seus saberes se relacionam com os de experiência que se encontram no
âmago da identidade pessoal. Fica claro, nessa relação, que as identidades pessoal e docente
são distintas, porém estão entrelaçadas.
A identidade não é um dado adquirido, propriedade ou produto. É um lugar de
lutas e conflitos, de esforço de construção de maneiras de ser e estar numa profissão. Portanto
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um processo dinâmico, que necessita de tempo para acomodar inovações, assimilar mudanças
e que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor. A construção da
identidade é sempre um processo complexo (NÓVOA, 2007).
SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DA PROFISSÃO DOCENTE
Para Guimarães (2005), a identidade profissional do professor está ligada à
maneira como a profissão docente é representada, construída e mantida socialmente. Ela é
estruturada individual e coletivamente pelos professores e está intimamente ligada à
representação da profissão.
Os cursos de formação podem exercer influência na construção da identidade
profissional do professor, à medida que possibilitem a reflexão e uma análise crítica a respeito
das diversas representações sociais construídas historicamente sobre a profissão. Será nesse
confronto entre as representações e as demandas sociais que haverá o reconhecimento da
identidade construída durante o processo de formação.
Entretanto alguns autores fazem alusão a uma „crise da identidade‟ na profissão
docente (NÓVOA, 2007 e GUIMARÃES, 2005). Essa crise, para Nóvoa (2007), é
consequência do processo de descaracterização dessa profissão. Houve uma mudança na área
de formação de professores que passou a dar mais atenção a investigações sobre o ensino para
além do trabalho docente, desprestigiando o saber pedagógico e reduzindo aquele a um
conjunto de competências técnicas; em outras palavras, houve uma mudança de postura do
âmbito científico para o institucional. Isso contribuiu para um deslocamento sobre controle da
atividade docente que passou a ser maior e, como consequência, favoreceu o processo de
descaracterização da profissão.
Guimarães (2005) alerta para as mudanças pelas quais os diversos setores da
atividade humana passam e que se materializam no processo identitário. Ressalta o fato de
elas atingirem, de forma significativa, a formação de professores, uma vez que, em seu
entendimento, além dos aspectos do conhecimento, há também os éticos, que põem em xeque
compreensões, crenças e posturas que constituem o processo de formação. É justamente por
se encontrar em crise que as investigações sobre a identidade docente têm conquistado cada
vez mais espaço nos debates acadêmicos.
Moreira e Cunha (2008) ressaltam que existem pontos de tensões e desafios que
precisam ser enfrentados na formação inicial de professores e que podem contribuir para a
construção da identidade e formação docente. Para os autores, uma abordagem da identidade
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durante o processo formativo, que centre o processo de sua construção na sala de aula é muito
profícuo, pois essa perspectiva permite que se compreenda melhor como a interação
específica dos contextos institucionais escolares contribuem para que os estudantes aprendam
a se constituir como seres sociais. Outro aspecto destacado diz respeito ao favorecimento de
uma visão de identidade descentrada e mutável a ser implementada na formação de
professores, o que pode colaborar para uma ação docente que estimule uma construção mais
livre das identidades dos estudantes. Estes devem ser estimulados a escolhê-las livremente e a
se responsabilizar pela suas opções. O terceiro ponto que os autores enfatizam é a necessidade
de se compreender a tensão entre o universal e o particular na construção da identidade
docente. A vantagem que essa perspectiva traz para o trabalho do professor é a não
preservação de núcleos essenciais no âmago da identidade.
Podemos perceber o quão é interessante pensar a relação entre a construção da
identidade docente (Pimenta e Nóvoa, principalmente) e os processos de formação das
identidades. Também compreender como a formação inicial pode exercer influência na
construção da identidade profissional do professor, quando esta possibilita, não somente
conhecimentos específicos e pedagógicos, mas também uma análise crítica a respeito das
diversas representações sociais construídas historicamente sobre a profissão docente.
Entendendo que a formação da identidade docente está entrelaçada aos processos
de socialização nos diversos contextos nos quais o sujeito está inserido, mas que hoje também
sofre efeitos de constantes mudanças estruturais e institucionais que interferem no mundo
exterior (HALL, 2011), propomos a ampliação desse pressuposto, articulando-o à abordagem
teórica da produção da identidade cultural (HALL, 2011; SILVA, 2011), que ressalta, nesse
processo, a relação constitutiva desses processos com a linguagem (HALL, 2011, SILVA,
2011).
O PAPEL DAS INTERAÇÕES DISCURSIVAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE
As interações discursivas são destacadas como um aspecto importante no processo
de construção da identidade, por serem mediadas pelos signos, pelas trocas e pela
comunicação entre os indivíduos (Hall, 2011 e Silva, 2011). O significado surge a partir dos
jogos de linguagem e dos sistemas de classificação nos quais as coisas estão inseridas; nesse
sentido, aquilo que é considerado um fato natural é também um fenômeno discursivo. Quando
este fato ou fenômeno é caracterizado dentro de um sistema classificatório, o significado
atribuído a ele é resultado não de sua essência natural, mas de seu caráter discursivo. Dessa
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forma, é possível depreender que os processos sociais nos quais estamos imersos são
subordinados ao significado e, consequentemente influenciam nossa maneira de viver,
portanto têm que ser compreendidos como práticas culturais e discursivas. Nessa perspectiva,
toda prática social tem relação com o significado e dela depende, ou seja, tem o seu caráter
discursivo (HALL, 1997).
Assim, é possível pensar na importância das produções discursivas como forma
de interpelar as identificações que os sujeitos fazem de si mesmos e de suas escolhas, uma vez
que isso se faz por meio da linguagem.
De acordo com Hall (2011), as identidades são construídas nas narrativas
pessoais e é justamente por serem constiruídas dentro e não fora do discurso que necessitam
ser compreendidas como produzidas em espaços “históricos e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas
específicas” (p. 109). O autor salienta, ainda, que elas emergem em meio aos jogos de poder,
e por isso mesmo, são marcadas pela diferença e pela exclusão muito mais do que por uma
unidade idêntica, como no seu significado tradicional.
Assim, a construção da identidade é um processo engendrado na diferença ou por
meio dela e reelaborado pelos processos de exclusão/diferenciação. Isso implica o
reconhecimento de que é apenas por meio da relação com a aquilo que não é, com o que falta
e com o outro, que a identidade pode ser construída.
Para Silva (2011), identidade e diferença possuem uma relação de estreita
dependência, são inseparáveis e partilham uma característica importante: ambas são fruto de
atos de criação linguística e, portanto, produzidas pelo universo cultural e social. Por ser um
ato linguístico, elas estão sujeitas a determinadas características da linguagem em geral. Dessa
forma, não podem ser analisadas destacadas dos sistemas de significação nos quais ganham
sentido e são assim governadas pela estrutura da linguagem. No entanto, o autor afirma que
essa estrutura é caracterizada pela indeterminação e pela instabilidade, o que torna a
identidade e a diferença igualmente indeterminadas e instáveis.
A indeterminação da linguagem decorre da característica fundamental do signo de
não coincidir com a coisa ou conceito. O signo é uma marca, um sinal que está no lugar de
outra coisa, que pode ser um objeto concreto, um conceito ligado ao objeto, ou um conceito
abstrato. Porém o autor esclarece que a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar
de ter a ilusão de ver no signo a presença do referente: a coisa ou o conceito. Isso é necessário
para que ele funcione, pois está no lugar de alguma coisa, mas é justamente a impossibilidade
dessa presença que o obriga a depender do processo de diferenciação.
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Outro aspecto apontado por Hall (2012) e por Silva (2011) sobre identidade e
diferença é que sua definição – discursiva e linguística− está sujeita às relações de poder. Elas
são impostas e não convivem lado a lado, sem hierarquias, mas são disputadas.
Na disputa pela identidade, outros recursos simbólicos e materiais da sociedade
estão envolvidos. A diferenciação é o processo central pelo qual identidade e diferença são
produzidas. Há uma série de marcas da presença do poder que guardam relação estrita com o
processo de diferenciação: excluir/incluir (este pertence e aquele não); demarcação de
fronteiras (nós e eles); classificação (bons e maus) e a normalização (nós somos normais e
eles não o são) (SILVA, 2011).
A demarcação da identidade e da diferença implica, sempre, as operações de
incluir e excluir, ou seja, traduzem-se, segundo Silva (idem), em declarações sobre quem
pertence ou não, demarcando fronteiras e fazendo distinções entre quem fica dentro ou está
fora; isso implica afirmar e reafirmar relações de poder. Os pronomes que utilizamos para
demarcar essas fronteiras "nós” e “eles”, não são simplesmente categorias gramaticais, mas
indicadores das posições do sujeito marcadas por relações de poder. Também é uma forma de
classificação, que é um processo central na vida social.
Uma vez que nos definimos, considerando o outro e a coletividade por meio da
palavra, é justamente através desta que podemos perceber as construções identitárias. A partir
dessa relação constitutiva da identidade com a linguagem, aproximamos o processo de
formação da identidade − e da identidade docente − à formação discursiva do sujeito,
completando o quadro teórico com conceitos da filosofia da linguagem. Bakhtin (1995) e seu
círculo colocam o sujeito como um agente constituído sócio-historicamente, que não pode ser
o resultado de um determinismo mecânico da estrutura, tampouco fruto de uma
individualidade autoconsciente e livre de coerções. A constituição dos sujeitos ocorre no
sentido do social para o individual, pela incorporação de disposições originadas através de
regularidades objetivas, situadas na lógica de um determinado campo (família, classe social,
ciência, religião, ...) e que, ao mesmo tempo, são redimensionadas de acordo com a trajetória
do indivíduo, bem como da posição que ele ocupa no campo.
Para Bakhtin (1995), tudo que é ideológico é um signo, e possui significado e só
emerge do processo de interação entre uma consciência individual e outra. A consciência só
se torna consciência quando é impregnada de conteúdo ideológico. É somente no processo de
interação social que esta se materializa e o faz por meio da interação verbal. Por isso, é
justamente no meio ambiente dos atos de fala (as conversas de corredor, as trocas de opinião,
as diferentes reuniões sociais), que se acham submersos todos os aspectos de criação
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ideológica. As formas de interação verbal estão, assim, fortemente atreladas ao contexto
social dado, e “reagem de maneira muito sensível a todas as flutuações da atmosfera social”
(p. 42).
Segundo Bakhtin (1995), “cada época e cada grupo social têm seu repertório de
formas de discurso na comunicação sócio-ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao
mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas” (p.
43). Para o autor, entre as formas de comunicação, existe uma determinada forma de
enunciação e um tema, formando uma unidade orgânica que, em sua perspectiva, é
indestrutível. Acrescenta que essas formas são “determinadas pelas relações de produção e
pela estrutura sócio-política (idem, p.43)”.
Assim, entre as formas de comunicação há uma relação entre as formas de
enunciação e o contexto desta. Em suas palavras, “no processo de interação verbal, a
influência poderosa que exerce a organização hierarquizada das relações sociais sobre a forma
de enunciação tem uma importância imensa no processo de explicitação dos principais modos
de comportamento (BAKHTIN, 1995, p. 43)”. Em sua visão, os temas e as formas da criação
ideológica crescem juntos. O processo de integração da realidade na ideologia, “o nascimento
dos temas e das formas, se tornam mais facilmente observáveis no plano da palavra (p. 46)”.
Ela será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, é capaz de
registrar as suas fases transitórias mais íntimas e efêmeras. De acordo com o autor, a realidade
da palavra, assim como a de qualquer outro signo, é resultado do consenso entre os
indivíduos.
Ao apresentar o conceito de enunciado, Bakhtin (1997), o faz a partir da sua
concepção de linguagem. Para ele, os enunciados são construções dialógicas como as que
ocorrem em situações cotidianas, em que há alternância entre os interlocutores. Ele estende
essa concepção para outras formas de comunicação – por exemplo, peças de teatro, livros, que
seriam partes de um diálogo − uma vez que são como respostas a outros enunciados.
Para Bakhtin (idem), o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades
da atividade humana e da utilização da língua “não só por seu conteúdo (temático) e por seu
estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais –, mas também, e, sobretudo, por sua construção composicional”
(p. 279). Esses três elementos estão integrados de forma indissociável no “todo” do
enunciado, e “são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação” (idem, p.
279). Qualquer enunciado considerado isoladamente é, sem dúvida, individual, “mas cada
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esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo
isso que denominamos gêneros do discurso” (1997, p. 279).
Segundo Bakhtin (idem), há uma diversidade de gêneros do discurso, pois existem
infinitas possibilidades de atividade humana, e cada uma comporta seu próprio repertório, que
se diferencia e amplia à medida que as esferas da atividade humana se tornam mais
complexas.
Se os parágrafos anteriores mostram relações constitutivas entre o enunciado e o
contexto social onde está inserido, o que poderia limitar as ideias de Bakhtin à concepção
sociológica de identidade, essas relações são ampliadas quando consideramos outros
conceitos de sua obra, como dialogismo e hibridismo.
O conceito de dialogia (Bakhtin, 1981), compreendido como a condição
interdiscursiva da linguagem, pode ser aproximado da construção discursiva da identidade
uma vez que está relacionado ao diálogo permanente com o outro. Dessa forma os enunciados
podem ser vistos como diálogos nos quais são travados embates ideológicos e confrontos com
visões de mundo. De acordo com Brait (2005), o dialogismo refere-se a um permanente
diálogo nem sempre simétrico e harmonioso entre os diferentes discursos que representam
uma comunidade, cultura e sociedade; diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e
o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que são, por sua
vez, estabelecidos por esses discursos.
Segundo Freitas (2010), a noção de dialogia afina-se com a concepção de
identidade cultural de Hall (2011), pois os sujeitos participam do “simpósio universal” que
rege o funcionamento da língua, tornando possível que a identidade seja produzida na
enunciação uma vez que ela não está definida a priori, mas é sempre declarada a partir da
diferença, em uma situação dialógica.
A produção discursiva – e dialógica – da identidade busca a fixação, mas assim
como acontece com a linguagem, tende a escapar, passando por processos que a complicam e
subvertem. Tais processos são caracterizados, segundo Silva (2011), pela mistura,
combinação ou diálogo entre diferentes grupos, gerando uma identidade “que não é mais
integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas” (p. 87).
Compreendemos, com Hall (1997), que a cultura não é nada mais que o somatório
de diferentes sistemas de classificação e formações discursivas, aos quais a língua recorre
com o objetivo de dar significado às coisas, e que o discurso se refere a uma série de
afirmações, que fornece uma linguagem para poder falar sobre um assunto, produz
conhecimento e o modo como este é institucionalizado, modelando práticas sociais e
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colocando em funcionamento novas práticas. Como afirma Bakhtin (1995), a comunicação
tem um vínculo com os processos de produção, e a palavra é o material privilegiado da
comunicação que acompanha e comenta todo ato social. Sendo a identidade construída no
interior da representação, através da cultura, vimos a possibilidade de fazer uma aproximação
do processo de formação identitário com o processo de interação verbal. Essa visão
A visão bakhtiniana de que o enunciado tem uma natureza social e que os gêneros
do discurso estão atrelados às atividades humanas pode auxiliar a compreender a construção
da identidade docente, considerando que esse processo está submetido tanto às forças de
socialização da formação inicial quanto às de descentramento e hibridismo identitário,
característicos da contemporaneidade. Para tal, será interessante perceber indícios de relações
dialógicas com discursos associados ao contexto formativo e a outros contextos sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES
O curso de licenciatura, no contexto de desvalorização e precarização do trabalho
docente em nosso país, não tem conseguido atrair o jovem para essa profissão e (Gatti, 2010),
menos ainda, conseguido alterar a situação profissional.
Estudos que lancem luz sobre a problemática da licenciatura vivenciada hoje no
país são bem vindos, especificamente em relação à formação docente. Ainda que os resultados
desses trabalhos não possam ser generalizados é interessante investigar o perfil dos
estudantes, pois isto poderá fornecer pistas sobre a construção de uma identidade docente.
Também não podemos deixar de pensar na estrutura do curso de licenciatura. Esse conjunto
de circunstâncias socioculturais pode colocar em xeque as políticas de formação docente para
suprir a falta de professores, na medida em que os formandos simplesmente não venham a
abraçar a carreira docente ou que venham a fazê-lo sem referências mais robustas para
enfrentar a realidade atual do ensino público.
Também salientamos a importância de considerar em estudos dessa natureza,
ouvir os estudantes para compreender o fenômeno formativo, sempre complexo. Tal
procedimento pode mostrar como representações e crenças trazidas por eles concorrem com
discursos produzidos no curso para forjar a identidade profissional.
Referência
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Texas Press.
13
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