DEVERES DE CASA: UMA PRÁTICA SEM REFLEXÃO?

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DEVERES DE CASA: UMA PRÁTICA SEM REFLEXÃO?
SCHLINDWEIN, Luciane Maria 1 - UFSC
BUENO, Silviane Irulegui2 - UFSC
Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Os deveres de casa, historicamente, veem sendo implementados nas escolas de tal forma que
se constituiram em uma prática que se normalizou, sem discussão e questionamentos. Com o
intuito de investigar sobre a função dos deveres de casa no cotidiano escolar, este estudo foi
organizado em dois momentos distintos: levantamento bibliográfico e pesquisa empírica.
Contextualizamos o tema na História da Educação brasileira, buscando identificar a origem
dessa prática pedagógica e o seu papel na rotina escolar; mapeamos os estudos acadêmicos
sobre os deveres de casa, publicados entre os anos de 2000 e 2011 em duas grandes
plataformas de trabalhos acadêmico-científicos (Portal CAPES e BDTD) e, buscamos
identificar a atribuição de sentidos aos deveres de casa dada por supervisores, professores,
pais e crianças/alunos de escolas públicas no município de Florianópolis. A educação está,
estreitamente, vinculada à produção de conhecimento e, a partir do contexto que está inserida,
reflete a posição de instrutora e/ou formadora. A escola, neste cenário, desenvolve a função de
socialização, necessitando incorporar à sua prática a revisão de conteúdos, padrões de
comportamento e valores sociais, para responder a um comportamento desejado e esperado da
sociedade. A partir do século XVII, começamos a conviver com a ideia de infância e, a
criança que anteriormente convivia com diferentes idades e condições sociais, passa a
frequentar a escola, local que toma para si a aprendizagem social. A pesquisa empírica, de
cunho qualitativo, trabalhou com o questionário como instrumento de coletas de dados. A
amostra foi constituída pelas 10 escolas da rede municipal de forma a termos uma
representatividade deste universo. Tal seleção ocorreu em função dos indicadores divulgados
pelo INEP e secretaria de Municipal de Educação de Florianópolis. Os dados estão sendo
analisados em uma perspectiva dialética e, também, com base nos estudos de análise de
conteúdo desenvolvidos por Bardin.
Palavras-chave: Deveres de casa. Formação de professores. Planejamento pedagógico.
1
Doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999).
Atualmente é bolsista do CNPq e professora do Departamento de Metodologia do Ensino e do Programa de Pósgraduação em Educação do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E-mail: [email protected]
2
Pedagoga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestranda em Educação no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob orientação da
Prof.ª Dr.ª Luciane Maria Schlindwein. E-mail: [email protected]
15705
Introdução
A pesquisa desenvolveu-se no intuito de investigar sobre a função dos deveres de casa,
no cotidiano escolar. Consideramos deveres de casa toda atividade pedagógica elaborada e
proposta pelos professores, para que os alunos realizem em horário opcional, fora do período
regular de aulas na escola. O interesse em pesquisar sobre os deveres de casa na prática
pedagógica do cotidiano escolar é fruto da experiência profissional de mais de 25 anos como
professora e coordenadora pedagógica na Educação Infantil e Anos Iniciais, em escolas
públicas e particulares.
Ao longo dessa experiência, observou-se que professores e escolas, ao organizarem
seus planos de trabalho, demonstravam uma preocupação constante com objetivos, conteúdos,
procedimentos e avaliações. No entanto, quando era necessário o desdobramento deste
planejamento para as atividades de rotina, percebeu-se que não havia explicitação da função
dos deveres de casa. A prática dos deveres de casa, ao que parece, se normalizou nas escolas,
tornando-se uma atividade aceita, sem discordância, sem questionamento.
Na inquietude em constatar a escassez da produção acadêmica sobre o tema e, que dos
trabalhos desenvolvidos, muitos se dedicarem à relação escola e família, esta pesquisa
desenvolveu-se na direção de investigar sobre: Os deveres de casa desempenham qual função
no cotidiano da escola?
Sobre a elaboração do conhecimento científico, Moroz e Gianfaldoni (2006, p. 16)
afirmam que “[...] A pesquisa científica tem por objetivo elaborar explicações sobre a
realidade, sendo possível tanto preencher lacunas num determinado sistema explicativo
vigente num momento histórico quanto colocar em xeque dado sistema. [...]”. A prática dos
deveres de casa, para nós, constituiu-se em um momento de reflexão e busca de sua origem,
aplicação e sentidos, dialogando com alguns pressupostos.
Sobre Educação
Pensar, falar e refletir sobre educação exige uma contextualização histórica e social.
Segundo Cardoso (2004, p. 109), “A educação é sempre uma prática social determinada,
definida social e historicamente no âmbito de uma forma particular e específica de
organização da sociedade.”, Saviani (apud Miranda, 1985, p. 132) conceitua a educação “[...]
15706
como uma atividade mediadora no seio de uma prática social global.”, e Charlot (2006, p.15)
afirma que “A educação é um triplo processo de humanização, socialização e entrada numa
cultura [...]”. Todos esses conceitos levam à conclusão de que a educação será produtora ou
reprodutora de um conhecimento a partir da situação histórico-social do contexto em que está
inserida.
No capitalismo, a educação atende as demandas, estímulos e desafios dos
subconjuntos da sociedade. Apresentada como serviço, ela é uma indústria lucrativa,
reforçando a ideia de que está “à disposição” de uma dada organização social. Isso é possível
de perceber pelos documentos da Organização Mundial do Comércio (OMC), nos quais a
lógica mercantil está presente nas propostas de políticas para a educação. Em relação às
universidades, a mesma lógica se repete, quando a “tendência de negócio” prevalece à ideia
de espaço dedicado à ciência na sociedade.
Quando da implantação do capitalismo, “[...] a educação pública era pensada como
estratégica para a concretização dos então novos ideais burgueses.” (Cardoso, 2004, p.111).
Era necessário formar o cidadão para que dominasse o saber, produzindo conhecimento e
aplicando-o nos processos produtivos. A instrução garantiria uma nova posição na construção
de uma sociedade nova: o Estado nacional burguês.
Nos seus primórdios a educação era controlada pela igreja e privilégio de poucos. A
burguesia, para ascender, entendeu que a instrução e o acesso ao conhecimento lhe
possibilitariam exercer os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Dessa forma, a
perspectiva para a educação pública de uma classe ascendente
[...] visava o aperfeiçoamento das capacidades e talentos individuais e a capacitação
para exercer funções sociais partia do reconhecimento da necessidade de oferecer a
todos os indivíduos humanos os meios de prover suas necessidades, de assegurar seu
bem-estar, de conhecer e exercer seus direitos, de conhecer e cumprir seus deveres.
(CARDOSO, 2004, p. 112).
Ideologia igualitária, sentimento de cidadania e democracia burguesa serviram de
amparo para o capitalismo estabelecer-se. A democracia, dominada e direcionada pela
burguesia, aí “administrando” a cidadania conforme seus interesses, expressando valores de
liberdade, direitos e deveres. Expressões intencionais e vigiadas, as quais garantiam um
controle do que se podia e do que se queria.
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A reflexão sobre educação aproxima alguns pensadores quando há consenso de que
precisa ser formadora (do discernimento, da crítica e da liberdade), instrutora (de conteúdos e
de saberes) e estreitamente vinculada à produção de conhecimento.
Fica o questionamento se sabemos trabalhar com essa educação que atravessa o muro
da escola, que se entrelaça com o poder das mídias e com o acesso à internet. A rapidez e a
informação estão mascarando uma realidade, quando se colocam superiores ao entender,
estudar e conhecer. Bachellard (1972 apud Cardoso, 2004, p. 117), registra que “[...]
apresentar ou deter um grande acúmulo de informações dá a ilusão de dominar um saber. Mas
a ilusão de saber é grande aliada da ignorância. É, mesmo, um obstáculo ao conhecimento
[...]”.
A educação, ao ser construída ou reproduzida, evidencia uma visão: ou da educação
como mercadoria, como formação para o trabalho; ou da educação que forma a
razão e aperfeiçoa a crítica. O caminho de ambas é distinto, mas as duas, no seu
processo educativo, envolvem a transmissão de saberes, “[...] porque é condição do
exercício da crítica, como também da dúvida e da retificação de saberes
estabelecidos.” (Cardoso 2004, p. 121).
A mesma autora afirma que:
A educação lida com desconhecimentos que equivalem a ignorâncias, que o
processo de aprendizagem procura superar e substituir por algum grau de
conhecimento. Mas lida também com outro tipo distinto de desconhecimento, um
des-conhecer que equivale a des-aprender ou a des-pensar, exercício eminentemente
crítico, crítica radical de algo antes aprendido ou pensado e que o processo de
construção de conhecimento visa negar, produzindo alguma ratificação”. (Cardoso,
2004, p. 121).
A crítica só pode se estabelecer a partir de uma razão instruída, considerando-se os
limites do pensamento e do conhecimento, estabelecendo nexos sociais e históricos. Quando
se estuda sobre a criança e a escola, há a tendência de idealizar uma situação, pois não é
realizada uma análise crítica do seu caráter histórico e social, segundo Miranda (1985).
Retomar os princípios da revolução burguesa, perceber as contradições entre a
ideologia do discurso burguês e a sua prática efetiva na organização da sociedade, pode nos
permitir pensar, produzir e viver um outro mundo, o qual precisa ser reconstruído, não
necessariamente “construir destruindo”, segundo Cardoso (2004, p. 122).
Esse agir diferente pressupõe um pensar de forma ampla, educando nossa razão para
ampliação de conceitos, entendendo a crítica como uma perspectiva de transformação.
15708
Sobre Escola
Segundo Cardoso (2004, p. 113) “A escola é um aparelho ou um dispositivo social que
se estabelece no capitalismo como um dos pilares da reprodução social [...]”. Como
instituição social a escola tem sua organização e forma de funcionar peculiares e sobre isso
percebe-se que há hierarquia nas relações e no poder exercido entre essas hierarquias.
Miranda (1985, p. 133) destaca três tarefas básicas da escola, a favor dos interesses
das classes populares:
[...] facilitar a apropriação e valorização das características sócio-culturais, garantir a
aprendizagem de certos conteúdos essenciais da chamada cultura básica e
possibilitar a crítica dos conteúdos ideológicos propostos pela cultura dominante e a
reapropriação do saber que já foi alienado das classes populares pela dominação.
A concepção de educação voltada para a cidadania, defendida pelos grandes
educadores no Brasil, contrapõe-se à educação formal realizada na escola que, pela sua
organização e funcionamento, reproduz e fortalece a relação de dominação.
Atualmente, a contradição está posta entre a formação e a educação enquanto
mercadoria. Com as diversas e rápidas mudanças da contemporaneidade, “[...] a escola tende
a substituir significativamente a sua função instrutora pela função de reprodução das relações
sociais [...]” (Cardoso, 2004, p. 115). Essa “nova” função fixa-se nas tarefas de socialização e
de controle social, privilegiando a submissão.
Tanto a pedagogia tradicional como a nova, expressam a ideia de que a escola é uma
passagem do mundo infantil para o mundo adulto, reproduzindo o que é esperado da
sociedade. Tratado como um estágio de integração da criança à sociedade, o processo de
socialização se fez necessário desde que se excluiu a criança do convívio do adulto, diferente
do que acontecia na sociedade medieval, na qual o espaço social era compartilhado por todos.
A escola toma para si, na atualidade, a socialização como uma das finalidades,
negando que a criança é socializada desde sempre, antes mesmo do nascimento, a partir da
história de sua mãe. Essa socialização escolar está intimamente ligada a um comportamento
desejado e esperado da sociedade, no qual segundo Miranda (1985, p. 131) “[...] A escola é
uma agência socializadora de uma sociedade que se afirma democrática [...]”. Portanto,
deveria estar mais atenta ao processo de socialização em que é cenário, repensando seus
conteúdos, padrões de comportamento e valores sociais, atuando de forma mais crítica e
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reflexiva, problematizando as situações vivenciadas e possibilitando a convivência respeitosa
e não dominadora.
Tipos de Conhecimento
Faz-se necessário pensar sobre o tipo de escola que ajudamos a formar, para que
servem e com qual conhecimento estamos trabalhando. Young (2007) define um desses
conhecimentos, o “conhecimento dos poderosos” que é aquele centrado nos que detêm o
conhecimento. Tendo as escolas como função desenvolvê-los, por meio de sua apropriação.
Tal “conhecimento poderoso” difere do conhecimento cotidiano, pois é especializado e
desenvolvido nas escolas, com enfoque nos currículos, conteúdos selecionados e ações
intencionais. Esse conhecimento é que permite a construção dos conceitos científicos.
Outro tipo de conhecimento é o cotidiano, o não escolar, que também é importante por
auxiliar na formação do aluno, no entanto não é suficiente para a construção de conceitos.
Segundo Vigotski (1962 apud Young, 2002, p. 66):
Enquanto os conceitos científicos têm início com sua definição verbal e se
desenvolvem “à medida que são complementados com trabalho escolar e leitura
adicionais”, os conceitos espontâneos já são em si mesmos “ricos em experiência”,
mas, devido ao fato de não fazerem parte de um sistema, não fornecem explicações e
podem gerar confusões.
Os conceitos espontâneos relacionam-se com o cotidiano e o senso comum, enquanto
os conceitos científicos estão relacionados com a teoria, que é construída por pesquisadores e
alunos envolvidos em áreas específicas, intencionados em entender ou transformar o mundo
(Young, 2002).
Duarte (1996) e Martins (2000) discutem o conceito de cotidiano, diferenciando-o do
sinônimo de dia a dia e ampliando-o no sentido de provocar a percepção para além das
atividades rotineiras. Para Duarte (1996, p. 32), “As atividades diretamente voltadas para a
reprodução do indivíduo, através da qual [sic], indiretamente, contribuem para a reprodução
da sociedade, são consideradas atividades cotidianas [...]”. Na mesma linha de pensamento,
Martins (2000, p. 142) complementa, afirmando que cotidiano “[...] é a mediação que edifica
as grandes construções históricas, que levam adiante a humanização do homem [...]”. Nesta
perspectiva, fica aos educadores mais um desafio no sentido de ampliar seus conhecimentos,
vocabulário e entendimento do que tanto se pronuncia na escola – “Faz parte do cotidiano
escolar!”.
15710
A formação geral, com características de instrução elementar, torna-se insuficiente,
quando se pensa em um processo educativo capaz de desenvolver, também, o aprender a ver e
a ouvir, trabalhando a sensibilidade e a crítica.
Sobre Infância
A ideia de infância, como a condição social de ser criança, surgiu com a mudança do
sentimento de família e desenvolvimento da educação escolar. Na Idade Média a criança era
cuidada e protegida por seus pais. O sentimento de família, a união emocional entre seus
membros desenvolveu-se depois, a partir do século XVII.
“A ideia de infância é uma representação dos adultos e da sociedade.”, segundo
Miranda (1985, p. 128); já Mello (2007, p. 90) afirma que “A infância é o tempo em que a
criança deve se introduzir na riqueza da cultura humana histórica e socialmente criada,
reproduzindo para si qualidades especificamente humanas.”.
Antes da sociedade industrial, a infância se limitava ao período em que a criança
necessitava de cuidados para sobreviver. Aos sete anos, aproximadamente, a criança convivia
diretamente com o adulto, sua aprendizagem se dava pelo convívio e na ajuda aos mais
velhos. A socialização não era controlada pela família e acontecia no convívio social. Nesta
convivência, não havia lugar para a intimidade e a privacidade.
A ausência de análise crítica sobre a ideia de infância, escola e a relação entre escola e
sociedade, tende a registrar uma ideia abstrata de criança e uma relação ideal, mas não real, da
situação em si.
Para entender a chegada da criança na escola, é necessário delinear alguns aspectos
históricos, para depois tentar estabelecer a relação criança/escola e o processo de socialização.
E nesta relação constitui-se uma rotina de trabalho escolar determinada, onde os DC fazem
parte desde, aproximadamente, o século XVII.
Sobre Criança
A partir das necessidades de ordem capitalista, nasce a família moderna no século
XVIII, instalando a intimidade, a vida privada e o sentimento de união entre pais e filhos. O
sentimento moderno de família surge com a ideia de que a criança não era preparada para a
vida, cabendo aos pais a sua formação moral e espiritual. Como consequência, as crianças
15711
foram enviadas para a escola, lugar onde receberiam a formação necessária para o seu
desenvolvimento. Dessa forma, a aprendizagem social, antes dada pelo convívio com
diferentes idades e condições sociais, passa para a educação escolar e a criança, afastada dessa
convivência e da possibilidade de se expressar sobre a sua realidade, restringe-se a reproduzir
o modo de ser e pensar do adulto. Para Charlot (1971 apud Miranda, 1985, p. 127), a criança
“[...] torna-se, então, um ser cuja condição social é rejeitada, pois é marginalizada econômica,
social e politicamente [...]”, definindo-a como “[...] o reflexo do que o adulto e a sociedade
querem que ela seja e temem que ela se torne.” (CHARLOT, 1979 apud Miranda, 1985,
p.109).
Sobre o conceito de criança, Miranda (1985, p. 128) afirma que criança “[...] é um ser
em formação biológica, ainda não plenamente constituída do ponto de vista maturacional.”, e
já Bolle (1984 apud QUINTEIRO, 2009, p.11) afirma que o conceito de criança segundo
Benjamin,
[...] não é uma miniatura do cosmos adultos; bem ao contrário, um ser humano de
pouca idade que constrói seu próprio universo, capaz de incluir lances de pureza e
ingenuidade, sem eliminar todavia a agressividade, resistência, perversidade, humor,
vontade de domínio e de mando.
A natureza infantil, defendida por muitos autores com base no seu desenvolvimento
biológico, não se restringe somente a esse aspecto. É necessário entender que a realidade da
criança não corresponde apenas ao desenvolvimento biológico mas, também, pela sua
condição social de ser, pelas relações estabelecidas e mediadas pelo convívio entre seus pares
e com os adultos.
Na Pedagogia é possível destacar duas concepções distintas de criança, segundo
Miranda (1985, p. 129), “Para a Pedagogia Tradicional, a ideia de criança é a ideia do que ela
deverá ser se for adequadamente educada. [...] Já a Pedagogia Nova vê a criança como um ser
pleno para a auto-realização em cada etapa do desenvolvimento.” A pedagogia nova contribui
para a visão mais adequada da criança, embora ainda percebemos reflexos da visão naturalista
e biológica da infância. É necessário respeitar a criança como um ser constituído biológico e
socialmente, que estabelece relações, é sujeito de sua história e que tem seu processo de
socialização determinado pela sua condição histórico-social.
15712
Sobre Cultura
A cultura, na perspectiva histórico-cultural, não é algo estático, pronto, mas um
processo dinâmico, em que seus membros estão em constante recriação, reinterpretando
informações, conceitos e significados. Para Marta Shuare (2011), “[...] a cultura não existe
fora da sociedade e vice-versa. Não existe uma cultura só para mim. Sou parte de uma
comunidade humana.” 3. No Dicionário de Filosofia encontramos que é o “[...] conjunto dos
modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma geração para a outra, entre os
membros de determinada sociedade.” (ABBAGNANO, 2007, p. 264).
Dentro deste cenário pensamos os deveres de casa, como um momento presente na
rotina estudantil que privilegie o desenvolvimento da criança enquanto cidadão que pensa,
cria, faz hipóteses, analisa e constrói o seu conhecimento, o “conhecimento poderoso” 4, não
limitando-se às atividades meramente repetitivas. Neste aspecto, não nos limitamos, neste
trabalho, a assumir simples posição de a favor ou contra, mas de resgatar – ou instalar – a
intenção com que se trabalha com os DC, que em algum momento pode trabalhar com a
repetição ou fixação, desde que tais atividades possam desencadear uma evolução, um ir além
do que já se sabe, para depois trabalhar com a ideia de fixação5. Visto que só podemos “fixar”
6 o que já sabemos, caso contrário, copiamos e repetimos o que alguém nos determinou.
Esta pesquisa organizou-se em dois momentos distintos: levantamento bibliográfico e
pesquisa empírica. A revisão de literatura é um trabalho extenso, complexo e de “idas e
vindas”. No decorrer do processo e paralelo a ele, amadurecendo enquanto pesquisadora,
vários caminhos foram percorridos, buscando rigor no que foi proposto.
[...] “o trabalho com a literatura tem uma relação intrínseca com o problema de
pesquisa. Se, de um lado, a consulta à literatura é determinada pelo problema, de
outro, à medida que se trabalha com a literatura, criam-se condições para melhor
delimitação do mesmo.” (Moroz e Gianfaldoni, 2006, p. 27)
O levantamento geral, consultando as bases de dados da CAPES - Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e BDTD - Biblioteca Digital Brasileira de
Teses e Dissertações, buscou identificar a produção existente em nível de mestrado e
3
Marta Shuare, na palestra A Teoria Cultural de Vigotski e seus aspectos conceptuais metodológicos, em
Florianópolis, em novembro de 2011, na UFSC.
4
Referindo-me à ideia desenvolvida anteriormente por Young (2007)
5
Segundo o AURÉLIO (2010, p. 408), Aplicar toda a atenção; reter na memória [...]
6
Grifo meu.
15713
doutorado, utilizando como descritores, além da expressão dever de casa, as expressões
deveres escolares, tema de casa, lição de casa, tarefa de casa e tarefas escolares, por perceber
que em muitos casos aparecem como sinônimos. A expressão ‘Para casa’, usada em alguns
estados e materiais didáticos, não apresentou produção acadêmica específica. Cada descritor
foi pesquisado isoladamente e foram identificados no título, palavras-chave ou resumo.
No levantamento geral sobre o tema, considerando os descritores sinônimos, foi
possível perceber que os deveres de casa é um tema com produção acadêmica restrita até
2000, ampliando-se os trabalhos, em especial, a partir de 2005. Percebemos, também, que há
variação de descritores conforme a região brasileira, demonstrado no gráfico abaixo.
Fonte: Elaborado pela autora da pesquisa.
Dos setenta e três trabalhos selecionados, cinquenta e quatro estavam na base de dados
da CAPES e dezenove, na BDTD. Realizamos a leitura de todos os resumos e, trabalhamos
com a técnica sugerida por Bardin para análise de conteúdo, que é definida como:
“um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não se trata de um
instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único
instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a
umcampo de aplicação muito vasto: as comunicações”, (BARDIN, 2011, p. 37).
Na CAPES, trinta e quatro trabalhos foram desenvolvidos no Ensino Fundamental e
identificamos no geral, quinze trabalhos que relacionam os deveres de casa com atividades ou
momentos que aproximam ou envolvem a escola e a família. Vinte e cinco trabalhos atribuem
15714
o mesmo significado que a nossa pesquisa aos DC, aparecendo em diversos trabalhos como
uma variável nas pesquisas desenvolvidas. Outros significados identificados para os DC
referiam-se como prática avaliativa; sinônimo de atividade desenvolvida em aula, com a ajuda
do professor; e atividades diárias, realizadas em casa. Dois trabalhos fazem um resgate
histórico, buscando situar a origem dos deveres de casa e, como na nossa pesquisa, localizam
algumas hipóteses: no método pedagógico dos jesuítas e nas prescrições de Comenius e
Herbart. Nesta base de dados, onze trabalhos compõem a amostra desta pesquisa.
Dos resumos lidos na BDTD, quatorze desenvolveram-se no Ensino Fundamental e,
no total, o significado atribuído aos DC dividiu-se em duas categorias de análise: sinônimo de
atividade realizada em sala de aula, na presença e com a orientação do professor – quatorze
trabalhos e, toda atividade pedagógica elaborada e proposta pelos professores, para que os
alunos realizem em horário opcional, fora do período regular de aulas na escola – cinco
trabalhos. Nesta base de dados, três trabalhos compõem a amostra desta pesquisa.
A pesquisa qualitativa, segundo Denzin e Lincoln (2006, p. 17), “é uma atividade
situada que localiza o observador no mundo. Consiste em um conjunto de práticas
materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo.” Neste contexto, seus
pesquisadores estudam tentando entender ou interpretar os significados conferidos pelas
pessoas ao objeto pesquisado, reunindo dados, teorias, publicações, experiências e relatos.
Ao concluir o mapeamento dos estudos acadêmicos sobre o assunto, alguns
questionamentos tornaram-se mais evidentes e a busca pelo que atualmente se propõe em
relação aos DC, apresentou um novo caminho: a pesquisa empírica.
[...] “o trabalho com a literatura tem uma relação intrínseca com o problema de
pesquisa. Se, de um, lado a consulta à literatura é determinada pelo problema, de
outro, à medida que se trabalha com a literatura, criam-se condições para melhor
delimitação do mesmo”. (Moroz e Gainfaldoni, 2006, p. 27)
Com esse redimensionamento do percurso, tornou-se necessário a definição do
instrumento de coleta de dados, optando-se pelo questionário, onde as respostas seriam
“registradas por escrito, sem a intervenção direta do pesquisador” (Ibidem, 78). Para
representar o universo das escolas públicas municipais de Florianópolis, delimitou-se a
amostra destas escolas, baseando-se nos índices do IDEB (Índice de Educação Básica) 2011.
Selecionamos as 10 primeiras escolas do ranking, segundo dados da Prefeitura Municipal de
Florianópolis e da sua Secretaria Municipal de Educação.
15715
Foram aplicados 40 questionários, sendo 10 para gestão, 10 para professor(a), 10 para
pais e 10 para crianças/alunos. Destes, 39 retornaram e as contribuições estão sendo
analisadas em categorias, segundo Bardin. As análises iniciais nos permitem afirmar que os
deveres de casa ainda são centrados na fixação de conteúdos e complementares ao trabalho
desenvolvido em sala de aula, segundo supervisores e professores. Os PPPs das escolas, na
sua maioria, não explicitam a função e intencionalidade dos deveres de casa e, é unanimidade
entre os colaboradores das escolas a afirmação de que os deveres de casa contribuem para a
formação dos alunos. Os pais que participaram também apoiam esta prática, que segundo eles,
aproxima escola e família. E as crianças, na sua maioria, mostraram-se satisfeitos e afirmam
“aprender” com os deveres de casa.
As categorias de análise desenvolvidas a partir dos trabalhos acadêmicos e dos
questionários aplicados, continuam sendo analisadas e oportunizando discussões acerca da
função da escola, papel do professor e os conteúdos trabalhados em nossas escolas.
A discussão sobre o tema não finaliza. As análises nos dão subsídios para continuar
pensando e elaborando estratégias para trabalhar este assunto, este momento do cotidiano
escolar, com nossos colegas educadores. Faz-se necessário uma reflexão sobre nossa prática,
nos cursos de formação e nas políticas educacionais, buscando os objetivos pedagógicos que
envolvem a prática dos deveres, propondo o desenvolvimento de situações desafiantes, onde o
pensar e construir hipóteses se sobressaia ao copiar e reproduzir.
REFERÊNCIAS
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BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
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