203 A questão da antropologia entre o empírico e o transcendental: Foucault sobre Kant Fillipa Silveira* RESUMO Este trabalho tem o propósito geral de expor a questão da antropologia tal como ela se apresenta para Foucault no texto de introdução à sua tradução da Antropologia do ponto de vista pragmático de Kant. O objetivo aqui é o de precisar uma questão que aparecerá de maneira mais desenvolvida em As palavras e as coisas, e que congrega o grande impasse subjacente a toda antropologia: que o conhecimento em torno do homem o considere, ao mesmo tempo, como ser de natureza (condicionado empiricamente e marcado pela finitude), e como ser de liberdade (de linguagem e possibilidade). O conhecimento em torno do Homem o teria dotado de um suposto privilégio metafísico (a alma) pelo fato de ele não se encaixar inteiramente e unicamente como elemento da natureza (Physis). Para escapar à psicologia tanto racional como empírica, Kant trabalha com as implicações “pragmáticas” do conceito de “sentido interno” (Gemüt), que Foucault examinará detidamente. O exame parece nos revelar dois desdobramentos principais: 1 - que a investigação da antropologia kantiana revela mais sobre o contexto do nascimento de um saber do “normal por excelência”, que regulará as práticas de assujeitamento vinculadas a ideias de saúde/ sanidade e, 2 – que o saber sobre o Homem revela também os limites e dificuldades epistemológicos do próprio sujeito do conhecimento e sua dissolução no que Foucault chamará de um saber de “nós mesmos”. PALAVRAS-CHAVE: antropologia; empírico; transcendental; Homem; sujeito; pragmática. A primeira dificuldade na abordagem do tema da antropologia no pensamento de Foucault é bastante patente: qualquer uma que tenha se aproximado de sua obra observa não só um profundo ceticismo como um posicionamento extremamente crítico ante o discurso e a filosofia sobre o Homem. Identificada como, ao mesmo tempo, funesta conseqüência e motor * Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 204 infundado do desenvolvimento das chamadas ciências humanas, o Homem é a invenção do saber moderno, fadada ao desaparecimento iminente. Tal é o quadro que nos é apresentado, sobretudo no capítulo IX de As palavras e as coisas1, em que se anunciam a inexistência do Homem antes do final do século XVIII e as condições de seu nascimento no contexto da volta da representação sobre si mesma e o encontro dela com seus limites. O problema em torno da pergunta pelo Homem – que aqui anexaremos à investigação mais geral sobre o problema da antropologia – é que ele surge como uma inexorável via de fundamentação, de enraizamento do saber naquele que é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto deste saber. Em outras palavras: o conhecimento acerca do homem não se quer um saber qualquer, mas o saber dos saberes – a verdade da verdade – pois que ele é este ser que supostamente pode se desligar da natureza e alçar, do ponto de vista da linguagem, o âmbito transcendental, as condições de possibilidade de todo e qualquer saber: Sem dúvida, não é possível conferir valor transcendental aos conteúdos empíricos nem deslocá-los para o lado de uma subjetividade constituinte, sem dar lugar, ao menos silenciosamente, a uma antropologia, isto é, a um modo de pensamento em que os limites de direito do conhecimento (e, conseqüentemente de todo saber empírico) são ao mesmo tempo as formas concretas da existência, tais como elas se dão precisamente nesse mesmo saber empírico” (FOUCAULT [1966], 2002, p.342). Antropologia e subjetividade parecem formar um bloco conceitual em que está dado de antemão o problema da fundamentação do saber. Leia-si aqui fundamentação como a verdade garantida pelo caráter transcendental daquilo que no homem não é natureza. Isto quer dizer, e aqui temos uma primeira hipótese geral deste trabalho, que haveria, em Foucault, uma denúncia ao sujeito do conhecimento fundacionista que nasce e se robustece com a filosofia transcendental kantiana e tem como decorrências o Homem e as ciências humanas. É investigando o que é o Homem que Foucault aborda a temática do sujeito como lugar da identidade e do fundamento. E é na abordagem das ciências humanas, sobretudo a psicologia, que este Homem passa a ser compreendido como um modelo. A antropologia deste modelo se 1 Cf. M. Foucault, As palavras e as coisas, [1966] 2002, pp. 417-474. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 205 desdobraria numa espécie de “ciência do normal por excelência” (Foucault, 2008, p. 73) que assujeita e objetiva, do ponto de vista dos saberes, os indivíduos singulares desde a modernidade. É dessa maneira que, e aqui temos uma segunda hipótese geral deste trabalho, para além do que explicitamente se configura na chamada fase genealógica do pensamento de nosso autor, haveria, ainda no âmbito da arqueologia um exame do que chamaríamos aqui de um “poder epistemológico”, ocupado em denunciar o momento a partir do qual nos teríamos tornado “sujeitos/ Homens-a-ser”. O objetivo aqui é o de extrair a questão da antropologia das primeiras 40 páginas da tese complementar à tese de doutorado de Foucault, publicada tardiamente sob o título: Introdução à Antropologia. Nela, temos uma detalhada e crítica exposição da Antropologia de um ponto de vista pragmático de Kant, no qual estão presentes, ainda que de maneira incipiente – e aqui nasce a terceira hipótese geral deste trabalho – os elementos que constituirão o problema antropológico em As palavras e as coisas. 1. As relações antropológico-críticas Apesar do título, o texto de Foucault ultrapassa os propósitos de uma mera introdução ao texto. Nosso autor tem uma tese: Da Crítica à Antropologia haveria uma relação de finalidade obscura e obstinada. Mas é possível também que a Antropologia tenha sido modificada em seus elementos maiores à medida que se desenvolvia a tentativa crítica: a arqueologia do texto, se ela fosse possível, não permitiria ver o homem que a precedeu? Quer dizer, a Crítica, a seu caráter próprio de « propedêutica » à filosofia, adicionaria um papel constitutivo no nascimento e no devir de formas concretas da existência humana. Haveria uma certa verdade crítica do homem, filha da crítica das condições de verdade” (FOUCAULT, 2008, p.12-13). Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 206 Foucault examina muito detalhadamente o contexto e as condições da redação do texto que, segundo ele, teria se construído e modificado bastante antes da sua apresentação e publicação como texto final em 1798. Antropologia e filosofia crítica (principalmente o projeto da Crítica da razão pura) teriam mais relações entre si que nos mostram as datas de publicação – a Antropologia estaria se gestando desde 1771 (FOUCAULT, 2008, p.12). Haveria no seu intento não a resposta à última das quatro questões elencadas na Lógica2, mas uma constituição pragmática do homem como cidadão do mundo. Pragmática aqui significando uma espécie de ligação entre poder (können) e dever (sollen) a partir dos quais o homem, enquanto cidadão, faz algo do próprio mundo e de si mesmo. Em suma, poderíamos sintetizar três questões de fundo que estão na base da tese de nosso autor tais quais abordadas na primeira metade do texto. A primeira é a de que a Antropologia se engendraria num contexto de pesquisas em que Kant está voltado para questões de ordem fisiológica, dietética e psicológica da constituição do ser humano 3. Daí o texto apresentar um forte conteúdo moral e moralizante, presente em prescrições para a manutenção da saúde, e na análise das degenerescências da alma quando o homem se encontra fora de seu elemento e de sua sanidade. O texto volta-se aqui para a necessidade da manutenção e do prolongamento da “boa vida” humana, da busca pelo distanciamento em relação à doença 4, cujo princípio repousaria no bom uso de sua liberdade (FOUCAULT, 2008, p. 28). A relação entre filosofia e medicina formariam um conjunto onde: 2 De um ponto de vista weltbürgerlicher (como “cidadão do mundo”), o campo da filosofia se desdobra em quatro questões: 1) O que posso saber? ; 2) O que devo fazer? ; 3) O que posso esperar? ; 4) O que é o homem. À primeira pergunta, responderia a Metafísica, à segunda, a Moral, à terceira a Religião, à quarta, a Antropologia. Em suma, se poderia fazer decorrer todas as outras da última, pois que todas se relacionam com ela. Cf. I. Kant. Logik, 1923, p. 25. 3 Foucault cita e comenta várias passagens da correspondência de Kant com o médico alemão Cristoph Hufeland. Os desdobramentos desses diálogos estariam presentes de maneira igualmente determinante no Conflito de faculdades de Kant. Cf. Introduction à l’anthropologie, 2008, pp .27-31. 4 O capítulo final de História da loucura da idade clássica, intitulado O círculo antropológico parte basicamente destas suposições: “Mas a verdade humana que descobre a loucura é a imediata contradição daquilo que é a verdade moral e social do homem. O momento inicial de todo tratamento será portanto a repressão dessa verdade inadmissível, a abolição do mal que ali impera [...]” (FOUCAULT, [1961] 1978, p. 565). Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 207 Ordenamento medical e preceito filosófico se encaixam espontaneamente na lógica de sua natureza: em uma palavra, uma filosofia moral e prática é uma “Univerzalmedizin” na medida em que, sem servir a tudo nem por tudo, ela não deve faltar em nenhuma prescrição. (FOUCAULT, 2008, p.29). Haveria, assim, nesta tese da imbricação entre Crítica prática e antropologia, a construção do Homem como o espaço mesmo do transcendental; e de um saber sobre ele que se expressa aqui no seio de uma “fisiologia moral”. Na Antropologia de um ponto de vista pragmático, “o conhecimento sobre o homem se encontra num ponto de cruzamento da determinação de um privilégio metafísico, que é a alma, e do domínio de uma técnica que é a medicina” (FOUCAULT, 2008, p. 72). A segunda questão de fundo explorada por Foucault no exame das interdependências entre antropologia e Crítica repousa nas relações entre o indivíduo e o Estado. Também nelas, prevalece um conteúdo moral atrelada à pertença do Homem ao mundo jurídico, à vida pública, mundana e empírica. A Antropologia manteria, assim, estreitas relações com uma metafísica do Direito, questão discutida por Kant em correspondências com o filólogo alemão Christian Schütz. As objeções de Schütz a Kant tocam: O coração mesmo da preocupação antropológica, que é um certo ponto de convergência e de divergência do direito e da moral. A Antropologia é pragmática nesse sentido em que ela não considera o homem como pertencendo à cidade moral dos espíritos (ela seria dita prática), nem à sociedade civil dos sujeitos de direito (ela seria assim jurídica); ela o considera como “cidadão do mundo”, quer dizer, como pertencendo ao domínio do universal concreto, no qual o sujeito de direito, determinado pelas regras jurídicas e submetido a elas é, ao mesmo tempo, uma pessoa humana que porta, em sua liberdade, a lei moral universal”. (FOUCAULT, 2008, p. 26). O que faz ressaltar assim o caráter pragmático da Antropologia é que ela remete o homem a este universal concreto, que traduzirei aqui, com reservas, pelo difícil termo de uma “materialidade transcendental”. O Homem torna-se o paradoxal efeito universal de sua própria condição empírica particular, e isto na qualidade de membro político e jurídico de uma Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 208 sociedade. O Homem de Kant na Antropologia é um “cidadão do mundo” (weltbürger), e nisto reside seu caráter pragmático (FOUCAULT, 2008, p. 27). O elemento a tornar esta condição humana possível na Antropologia é a liberdade. Aqui se apresenta todo o problema de toda e qualquer antropologia, pois que o homem é, com efeito, ser de liberdade (freihandelndes Wesen), mas é, igualmente, um ser de natureza (Naturwesen), o que o configura, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto do saber sobre si mesmo. A articulação de uma análise do homo natura sobre uma definição do homem como sujeito de liberdade (FOUCAULT, 2008, p. 31) teria dotado a Antropologia de um duplo caráter: empírico e transcendental. E nisto precisamente residiria seu maior problema Como sujeito de uma dietética, o Homem modelo de normalidade na antropologia kantiana tem o corpo inserido na construção de um saber sobre seu caráter de “ser de natureza”. O saber sobre este corpo e sua dietética não é, entretanto, local e contingente, mas se quer propedêutico e universal, desenvolvendo-se no seio de uma “didática antropológica”, o que na Antropologia de um ponto de vista pragmático se define pela “maneira de conhecer tanto o interior quando o exterior do homem”. (KANT, [1781] 2001, p. 25). De outro lado, sendo também membro de um corpo jurídico, o homem é cidadão do mundo e, ao mesmo tempo, legislador de si mesmo, ou seja, um ser de liberdade e de possibilidade. Medicina, moral e Direito se unem aqui na constituição de um ser supostamente conhecido e objetivado de fora pra dentro, mas também de dentro para fora, na medida em que ele é capaz de arbítrio e da transformação de si mesmo. Como é possível, porém, este encontro, quer dizer, qual seria o lugar, no Homem, dessas sínteses? 2. O caráter pragmático do sentido interno (Gemüt) Uma terceira grande questão de fundo da tese de Foucault repousa sobre a análise do sentido interno e retoma as relações antropológico-críticas no que elas têm de mais Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 209 epistemológico. A Antropologia, de acordo com Foucault, teria o propósito, ainda que não explícito, de sanar as dificuldades da síntese do múltiplo, de apontar uma direção para a solução do problema da validade universal da representação e das relações necessárias entre entendimento e sensibilidade. De acordo com Foucault, Kant sustenta que a representação, apesar de não “devida” ao objeto tem, na relação com ele, as condições de partilha de sentido e comunicação com o outro. Para que isto seja possível, é preciso que o sujeito, para além de receptáculo passivo das determinações empíricas, seja capaz de determinar a si mesmo a partir das representações oriundas da sensibilidade. A Antropologia teria como propósito, ainda que de modo implícito, lançar luz sobre a aporia da síntese entre o sujeito enquanto ser de liberdade referido às possibilidades transcendentais de seu conhecimento, e como ser de natureza, preso às determinações empíricas de sua existência. Como é possível, entretanto, que o conhecimento do sentido interno – passividade e forma pura do tempo na Crítica da Razão Pura, gerador de um mero conhecimento fenomenal de si mesmo – possa ter aqui o caráter de síntese do conhecimento do homem como cidadão do mundo? É que o conceito do qual a Antropologia pretende extrair seu caráter pragmático não é a alma do homem, mas precisamente seu sentido interno. Compreendido como apercepção empírica, o Gemüt tem, na Antropologia um caráter pragmático, quer dizer, para além de puro e para além de empírico. Voltando-se ao que há de interior no homem, o saber corre o perigo da recorrência à psicologia, tanto de cunho empírico como racional. A Crítica da razão pura, mais especificamente a dialética transcendental, expunha já as dificuldades do saber sobre o interior do homem enquanto um saber do eu penso puro. Se, por outro lado, este conhecimento fosse dotado de elementos empíricos da percepção do sujeito sobre si mesmo, deixaria de ser racional (KANT, [1781] 2001, A 342). Ocorre que a Antropologia se pretende um saber outro que qualquer uma destas psicologias. Rejeita-as tanto do ponto de vista formal – que ignora a distinção entre o caráter puro da consciência de si (apercepção) e a consciência conteudal de si mesmo (Gemüt) – como do ponto de vista empírico, que toma a alma e questões relativas à manutenção de sua identidade e substância como interrogação (FOUCAULT, 2008, p. 36). Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 210 De que maneira, porém, teria o sentido interno ganhado aqui este sentido universalizável, transcendental, se ele remete, desde a Crítica da razão Pura, ao caráter meramente empírico do conhecimento de si? É no espírito (Geist) que vai se encontrar o que Kant denomina o “princípio vivificador” do Gemüt. O espírito dá vida ao Gemüt através de Idéias: Esta é, então, a função do Geist: não organizar o Gemüt de maneira a fazer dele um ser vivente, ou o análogo da vida orgânica, ou ainda a vida do Absoluto ele mesmo: mas lhe vivificar, fazer nascer na passividade do Gemüt, que é aquela da determinação empírica, o movimento formigante das idéias [...] Assim, o Gemüt não é simplesmente “o que ele é”, mas o que ele “faz de si mesmo” (FOUCAULT, 2008, p. 39). Vivificado pelo espírito, o sentido interno deixa de ser mera passividade e passa a ser mobilizado por ideias que o constituem de um caráter pragmático: o da possibilidade de se fazer a si mesmo, no “maior uso empírico possível de sua razão” (KANT [1781] 2001 A677; B 705). O sentido interno se desdobraria numa “dialética desdialetizada”, pois que é dotado do caráter ativo da produção de ideias, mas voltado também para o domínio da experiência (FOUCAULT, 2008, p.39). O espírito seria a liberdade e a totalidade que transcende o Gemüt. (FOUCAULT, 2008, p.40). Aqui estaria fundada a legitimidade da antropologia de cunho pragmático: O espírito está na raiz da possibilidade do saber. E, por isso mesmo, indissociavelmente presente e ausente das figuras do conhecimento: ele é este recuo, esta “reserva visível” e invisível na distância inacessível da qual o conhecer toma lugar e possibilidade. Seu ser é de não estar lá, desenhando, nisso mesmo, o lugar da verdade” 5. (FOUCAULT, 2008, p. 40-41). 5 O ser deste “não estar lá” aparece mais tarde como o não-ser do homem no eterno recuo da origem na parte VI do capítulo IX de As palavras e as coisas. Por se encontrar a meio caminho entre a determinação das positividades do saber empírico e o reconhecer-se no a priori do saber sobre ele mesmo, o Homem se torna o lugar de uma eterna origem recuada, ocupando esse espaço da verdade inteiramente infundada de si mesmo Cf. M. Foucault, As palavras e as coisas, [1966] 2002, PP. 417-474) Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 211 No cerne desta questão estariam as dificuldades do engendramento do homem como certeza moderna. Pelo fato de poder determinar a si mesmo e de fazer uso (Gebrauch) do mundo e de si mesmo é que o homem é um ser de liberdade: “Nós tocamos o essencial: o homem, na Antropologia, não é nem homo natura nem sujeito puro de liberdade: ele é tomado nas sínteses já operadas de sua ligação com o mundo” (FOUCAULT, 2008, p. 34). Como se explica esta relação entre a função do Gemüt no sujeito, a antropologia e o fundamento? É que precisamente ali onde o saber for capaz de unir num só discurso o lastro desmistificador da experiência e a universalidade do entendimento, o saber alcançaria supostamente seu grau máximo de verdade – a resposta à pergunta “o que é o homem?” englobando todos os outros problemas da filosofia. Uma suposição ainda a ser examinada com o devido cuidado nos abriria uma vereda na interpretação do percurso de Foucault. A crítica à propedêutica antropológica estaria, de um lado, na base de sua arqueologia das práticas de assujeitamento da medicina, da psiquiatria e da psicologia (o homem, o louco, que ocupa o não lugar da verdade, o disparate entre razão e desrazão). De outro, na genealogia das práticas de saber/ poder no Direito, e na gestão dos ilegalismos, pautadas no modelo de homem weltbürger, ator livre de seu próprio destino que encontra, no sentido interno, a síntese entre sua liberdade universal e sua pertença jurídicoestatal empírica. Do ponto de vista estritamente epistemológico, a antropologia revela igualmente os limites e dificuldades do próprio sujeito do conhecimento transcendental como síntese da possibilidade do conhecimento humano sobre si mesmo. No sentido de uma contraantropologia foucauldiana, poderíamos afirmar o horizonte de uma “antropologia do desconhecimento”: Porque é duplo empírico-transcendental, o homem é também o lugar do desconhecimento – deste desconhecimento que expõe sempre seu pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite, ao mesmo tempo, se interpelar a partir do que lhe escapa. É essa a razão pela qual a reflexão transcendental, sob sua forma moderna, não mais encontra o ponto de sua necessidade, como em Kant, na existência de uma ciência da natureza (à qual se opõem o debate perpétuo e a incerteza dos filósofos), mas Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 212 na existência muda, prestes porém a falar e como que toda atravessada secretamente por um discurso virtual, desse não-conhecido a partir do qual o homem é incessantemente chamado ao conhecimento de si” (FOUCAULT, [1966], 202, p. 445) É sempre difícil a tentativa da enunciação de uma hipótese de interpretação do texto de um autor envolvendo períodos distintos de seu pensamento. Mas a maneira como aqui foi apresentada a análise foucauldiana da Antropologia de Kant enseja, ainda que apenas a título indicativo, uma ligação possível com o que chamaríamos aqui de uma contra-antropologia. O conteúdo positivo do ethos filosófico de uma filosofia crítica de nós mesmos – nós mesmos homens, mas também nós mesmos loucos, amorais, sexualmente impróprios, criminosos, anormais – se vê: Não mais na busca das estruturas formais que têm valor universal, mas como investigação histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir, a nos reconhecermos como sujeitos disso que fazemos, pensamos e dizemos. Nesse sentido, essa crítica não é transcendental, e não tem por fim tornar possível uma metafísica: ela é genealógica na sua finalidade e arqueológica no seu método. Arqueológica – e não transcendental – nesse sentido em que ela não procurará extrair as estruturas universais de todo conhecimento ou de toda ação moral possível, mas sim tratar os discursos que articulam isso que pensamos, dizemos e fazemos como tantos acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica nesse sentido em que ela não deduzirá da forma disso que nós somos, o que nos é impossível de fazer ou de conhecer, mas ela extrairá da contingência que nos fez ser o que nós somos, a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que nós somos, fazemos ou pensamos”. (FOUCAULT [1984] 2001, p. 1393). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, M; KANT, I. Anthropologie d’um point de vue pragmatique & Introduction à l’anthropologie. Paris, J. Vrin, 2008. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 213 FOUCAULT, Michel. [1966] As palavras e as coisas. Trad. Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002. _________________. Qu’est-ce que les lumières? [1984] In: Dits et écrits II (1976-1988). Paris, Gallimard, 2001. _________________. [1961] História da loucura na Idade Clássica. Trad. José T. Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978. KANT, Immanuel. [1781]. Crítica da razão pura. Trad. Manuela P. dos Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001 ______________. [1800] Logik. In: Gesammelte Schriften. Bd. IX. Berlin und Leipzig, W. de Grunter, 1923. ______________. [1798] Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. C. Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)