A questão da antropologia entre o empírico e o transcendental

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A questão da antropologia entre o empírico e o transcendental: Foucault sobre
Kant
Fillipa Silveira*
RESUMO
Este trabalho tem o propósito geral de expor a questão da antropologia tal como ela se
apresenta para Foucault no texto de introdução à sua tradução da Antropologia do ponto de
vista pragmático de Kant. O objetivo aqui é o de precisar uma questão que aparecerá de
maneira mais desenvolvida em As palavras e as coisas, e que congrega o grande impasse
subjacente a toda antropologia: que o conhecimento em torno do homem o considere, ao
mesmo tempo, como ser de natureza (condicionado empiricamente e marcado pela finitude), e
como ser de liberdade (de linguagem e possibilidade). O conhecimento em torno do Homem o
teria dotado de um suposto privilégio metafísico (a alma) pelo fato de ele não se encaixar
inteiramente e unicamente como elemento da natureza (Physis). Para escapar à psicologia
tanto racional como empírica, Kant trabalha com as implicações “pragmáticas” do conceito de
“sentido interno” (Gemüt), que Foucault examinará detidamente. O exame parece nos revelar
dois desdobramentos principais: 1 - que a investigação da antropologia kantiana revela mais
sobre o contexto do nascimento de um saber do “normal por excelência”, que regulará as
práticas de assujeitamento vinculadas a ideias de saúde/ sanidade e, 2 – que o saber sobre o
Homem revela também os limites e dificuldades epistemológicos do próprio sujeito do
conhecimento e sua dissolução no que Foucault chamará de um saber de “nós mesmos”.
PALAVRAS-CHAVE: antropologia; empírico; transcendental; Homem; sujeito; pragmática.
A primeira dificuldade na abordagem do tema da antropologia no pensamento de
Foucault é bastante patente: qualquer uma que tenha se aproximado de sua obra observa não
só um profundo ceticismo como um posicionamento extremamente crítico ante o discurso e a
filosofia sobre o Homem. Identificada como, ao mesmo tempo, funesta conseqüência e motor
*
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. Bolsista CAPES. E-mail:
[email protected].
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infundado do desenvolvimento das chamadas ciências humanas, o Homem é a invenção do
saber moderno, fadada ao desaparecimento iminente. Tal é o quadro que nos é apresentado,
sobretudo no capítulo IX de As palavras e as coisas1, em que se anunciam a inexistência do
Homem antes do final do século XVIII e as condições de seu nascimento no contexto da volta da
representação sobre si mesma e o encontro dela com seus limites.
O problema em torno da pergunta pelo Homem – que aqui anexaremos à investigação
mais geral sobre o problema da antropologia – é que ele surge como uma inexorável via de
fundamentação, de enraizamento do saber naquele que é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto
deste saber. Em outras palavras: o conhecimento acerca do homem não se quer um saber
qualquer, mas o saber dos saberes – a verdade da verdade – pois que ele é este ser que
supostamente pode se desligar da natureza e alçar, do ponto de vista da linguagem, o âmbito
transcendental, as condições de possibilidade de todo e qualquer saber:
Sem dúvida, não é possível conferir valor transcendental aos conteúdos
empíricos nem deslocá-los para o lado de uma subjetividade constituinte, sem
dar lugar, ao menos silenciosamente, a uma antropologia, isto é, a um modo
de pensamento em que os limites de direito do conhecimento (e,
conseqüentemente de todo saber empírico) são ao mesmo tempo as formas
concretas da existência, tais como elas se dão precisamente nesse mesmo
saber empírico” (FOUCAULT [1966], 2002, p.342).
Antropologia e subjetividade parecem formar um bloco conceitual em que está dado de
antemão o problema da fundamentação do saber. Leia-si aqui fundamentação como a verdade
garantida pelo caráter transcendental daquilo que no homem não é natureza. Isto quer dizer, e
aqui temos uma primeira hipótese geral deste trabalho, que haveria, em Foucault, uma
denúncia ao sujeito do conhecimento fundacionista que nasce e se robustece com a filosofia
transcendental kantiana e tem como decorrências o Homem e as ciências humanas. É
investigando o que é o Homem que Foucault aborda a temática do sujeito como lugar da
identidade e do fundamento. E é na abordagem das ciências humanas, sobretudo a psicologia,
que este Homem passa a ser compreendido como um modelo. A antropologia deste modelo se
1
Cf. M. Foucault, As palavras e as coisas, [1966] 2002, pp. 417-474.
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desdobraria numa espécie de “ciência do normal por excelência” (Foucault, 2008, p. 73) que
assujeita e objetiva, do ponto de vista dos saberes, os indivíduos singulares desde a
modernidade.
É dessa maneira que, e aqui temos uma segunda hipótese geral deste trabalho, para
além do que explicitamente se configura na chamada fase genealógica do pensamento de
nosso autor, haveria, ainda no âmbito da arqueologia um exame do que chamaríamos aqui de
um “poder epistemológico”, ocupado em denunciar o momento a partir do qual nos teríamos
tornado “sujeitos/ Homens-a-ser”.
O objetivo aqui é o de extrair a questão da antropologia das primeiras 40 páginas da
tese complementar à tese de doutorado de Foucault, publicada tardiamente sob o título:
Introdução à Antropologia. Nela, temos uma detalhada e crítica exposição da Antropologia de
um ponto de vista pragmático de Kant, no qual estão presentes, ainda que de maneira
incipiente – e aqui nasce a terceira hipótese geral deste trabalho – os elementos que
constituirão o problema antropológico em As palavras e as coisas.
1. As relações antropológico-críticas
Apesar do título, o texto de Foucault ultrapassa os propósitos de uma mera introdução
ao texto. Nosso autor tem uma tese:
Da Crítica à Antropologia haveria uma relação de finalidade obscura e
obstinada. Mas é possível também que a Antropologia tenha sido modificada
em seus elementos maiores à medida que se desenvolvia a tentativa crítica: a
arqueologia do texto, se ela fosse possível, não permitiria ver o homem que a
precedeu? Quer dizer, a Crítica, a seu caráter próprio de « propedêutica » à
filosofia, adicionaria um papel constitutivo no nascimento e no devir de formas
concretas da existência humana. Haveria uma certa verdade crítica do homem,
filha da crítica das condições de verdade” (FOUCAULT, 2008, p.12-13).
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Foucault examina muito detalhadamente o contexto e as condições da redação do texto
que, segundo ele, teria se construído e modificado bastante antes da sua apresentação e
publicação como texto final em 1798. Antropologia e filosofia crítica (principalmente o projeto
da Crítica da razão pura) teriam mais relações entre si que nos mostram as datas de publicação
– a Antropologia estaria se gestando desde 1771 (FOUCAULT, 2008, p.12). Haveria no seu
intento não a resposta à última das quatro questões elencadas na Lógica2, mas uma
constituição pragmática do homem como cidadão do mundo. Pragmática aqui significando uma
espécie de ligação entre poder (können) e dever (sollen) a partir dos quais o homem, enquanto
cidadão, faz algo do próprio mundo e de si mesmo.
Em suma, poderíamos sintetizar três questões de fundo que estão na base da tese de
nosso autor tais quais abordadas na primeira metade do texto. A primeira é a de que a
Antropologia se engendraria num contexto de pesquisas em que Kant está voltado para
questões de ordem fisiológica, dietética e psicológica da constituição do ser humano 3. Daí o
texto apresentar um forte conteúdo moral e moralizante, presente em prescrições para a
manutenção da saúde, e na análise das degenerescências da alma quando o homem se
encontra fora de seu elemento e de sua sanidade.
O texto volta-se aqui para a necessidade da manutenção e do prolongamento da “boa
vida” humana, da busca pelo distanciamento em relação à doença 4, cujo princípio repousaria
no bom uso de sua liberdade (FOUCAULT, 2008, p. 28). A relação entre filosofia e medicina
formariam um conjunto onde:
2
De um ponto de vista weltbürgerlicher (como “cidadão do mundo”), o campo da filosofia se desdobra em quatro
questões: 1) O que posso saber? ; 2) O que devo fazer? ; 3) O que posso esperar? ; 4) O que é o homem. À primeira
pergunta, responderia a Metafísica, à segunda, a Moral, à terceira a Religião, à quarta, a Antropologia. Em suma,
se poderia fazer decorrer todas as outras da última, pois que todas se relacionam com ela. Cf. I. Kant. Logik, 1923,
p. 25.
3
Foucault cita e comenta várias passagens da correspondência de Kant com o médico alemão Cristoph Hufeland.
Os desdobramentos desses diálogos estariam presentes de maneira igualmente determinante no Conflito de
faculdades de Kant. Cf. Introduction à l’anthropologie, 2008, pp .27-31.
4
O capítulo final de História da loucura da idade clássica, intitulado O círculo antropológico parte basicamente
destas suposições: “Mas a verdade humana que descobre a loucura é a imediata contradição daquilo que é a
verdade moral e social do homem. O momento inicial de todo tratamento será portanto a repressão dessa
verdade inadmissível, a abolição do mal que ali impera [...]” (FOUCAULT, [1961] 1978, p. 565).
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Ordenamento medical e preceito filosófico se encaixam espontaneamente na
lógica de sua natureza: em uma palavra, uma filosofia moral e prática é uma
“Univerzalmedizin” na medida em que, sem servir a tudo nem por tudo, ela
não deve faltar em nenhuma prescrição. (FOUCAULT, 2008, p.29).
Haveria, assim, nesta tese da imbricação entre Crítica prática e antropologia, a
construção do Homem como o espaço mesmo do transcendental; e de um saber sobre ele que
se expressa aqui no seio de uma “fisiologia moral”. Na Antropologia de um ponto de vista
pragmático, “o conhecimento sobre o homem se encontra num ponto de cruzamento da
determinação de um privilégio metafísico, que é a alma, e do domínio de uma técnica que é a
medicina” (FOUCAULT, 2008, p. 72).
A segunda questão de fundo explorada por Foucault no exame das interdependências
entre antropologia e Crítica repousa nas relações entre o indivíduo e o Estado. Também nelas,
prevalece um conteúdo moral atrelada à pertença do Homem ao mundo jurídico, à vida
pública, mundana e empírica. A Antropologia manteria, assim, estreitas relações com uma
metafísica do Direito, questão discutida por Kant em correspondências com o filólogo alemão
Christian Schütz. As objeções de Schütz a Kant tocam:
O coração mesmo da preocupação antropológica, que é um certo ponto de
convergência e de divergência do direito e da moral. A Antropologia é
pragmática nesse sentido em que ela não considera o homem como
pertencendo à cidade moral dos espíritos (ela seria dita prática), nem à
sociedade civil dos sujeitos de direito (ela seria assim jurídica); ela o considera
como “cidadão do mundo”, quer dizer, como pertencendo ao domínio do
universal concreto, no qual o sujeito de direito, determinado pelas regras
jurídicas e submetido a elas é, ao mesmo tempo, uma pessoa humana que
porta, em sua liberdade, a lei moral universal”. (FOUCAULT, 2008, p. 26).
O que faz ressaltar assim o caráter pragmático da Antropologia é que ela remete o
homem a este universal concreto, que traduzirei aqui, com reservas, pelo difícil termo de uma
“materialidade transcendental”. O Homem torna-se o paradoxal efeito universal de sua própria
condição empírica particular, e isto na qualidade de membro político e jurídico de uma
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sociedade. O Homem de Kant na Antropologia é um “cidadão do mundo” (weltbürger), e nisto
reside seu caráter pragmático (FOUCAULT, 2008, p. 27).
O elemento a tornar esta condição humana possível na Antropologia é a liberdade. Aqui
se apresenta todo o problema de toda e qualquer antropologia, pois que o homem é, com
efeito, ser de liberdade (freihandelndes Wesen), mas é, igualmente, um ser de natureza
(Naturwesen), o que o configura, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto do saber sobre si
mesmo. A articulação de uma análise do homo natura sobre uma definição do homem como
sujeito de liberdade (FOUCAULT, 2008, p. 31) teria dotado a Antropologia de um duplo caráter:
empírico e transcendental. E nisto precisamente residiria seu maior problema
Como sujeito de uma dietética, o Homem modelo de normalidade na antropologia
kantiana tem o corpo inserido na construção de um saber sobre seu caráter de “ser de
natureza”. O saber sobre este corpo e sua dietética não é, entretanto, local e contingente, mas
se quer propedêutico e universal, desenvolvendo-se no seio de uma “didática antropológica”, o
que na Antropologia de um ponto de vista pragmático se define pela “maneira de conhecer
tanto o interior quando o exterior do homem”. (KANT, [1781] 2001, p. 25).
De outro lado, sendo também membro de um corpo jurídico, o homem é cidadão do
mundo e, ao mesmo tempo, legislador de si mesmo, ou seja, um ser de liberdade e de
possibilidade. Medicina, moral e Direito se unem aqui na constituição de um ser supostamente
conhecido e objetivado de fora pra dentro, mas também de dentro para fora, na medida em
que ele é capaz de arbítrio e da transformação de si mesmo. Como é possível, porém, este
encontro, quer dizer, qual seria o lugar, no Homem, dessas sínteses?
2. O caráter pragmático do sentido interno (Gemüt)
Uma terceira grande questão de fundo da tese de Foucault repousa sobre a análise do
sentido interno e retoma as relações antropológico-críticas no que elas têm de mais
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epistemológico. A Antropologia, de acordo com Foucault, teria o propósito, ainda que não
explícito, de sanar as dificuldades da síntese do múltiplo, de apontar uma direção para a
solução do problema da validade universal da representação e das relações necessárias entre
entendimento e sensibilidade.
De acordo com Foucault, Kant sustenta que a representação, apesar de não “devida” ao
objeto tem, na relação com ele, as condições de partilha de sentido e comunicação com o
outro. Para que isto seja possível, é preciso que o sujeito, para além de receptáculo passivo das
determinações empíricas, seja capaz de determinar a si mesmo a partir das representações
oriundas da sensibilidade. A Antropologia teria como propósito, ainda que de modo implícito,
lançar luz sobre a aporia da síntese entre o sujeito enquanto ser de liberdade referido às
possibilidades transcendentais de seu conhecimento, e como ser de natureza, preso às
determinações empíricas de sua existência.
Como é possível, entretanto, que o conhecimento do sentido interno – passividade e
forma pura do tempo na Crítica da Razão Pura, gerador de um mero conhecimento fenomenal
de si mesmo – possa ter aqui o caráter de síntese do conhecimento do homem como cidadão
do mundo? É que o conceito do qual a Antropologia pretende extrair seu caráter pragmático
não é a alma do homem, mas precisamente seu sentido interno. Compreendido como
apercepção empírica, o Gemüt tem, na Antropologia um caráter pragmático, quer dizer, para
além de puro e para além de empírico.
Voltando-se ao que há de interior no homem, o saber corre o perigo da recorrência à
psicologia, tanto de cunho empírico como racional. A Crítica da razão pura, mais
especificamente a dialética transcendental, expunha já as dificuldades do saber sobre o interior
do homem enquanto um saber do eu penso puro. Se, por outro lado, este conhecimento fosse
dotado de elementos empíricos da percepção do sujeito sobre si mesmo, deixaria de ser
racional (KANT, [1781] 2001, A 342). Ocorre que a Antropologia se pretende um saber outro
que qualquer uma destas psicologias. Rejeita-as tanto do ponto de vista formal – que ignora a
distinção entre o caráter puro da consciência de si (apercepção) e a consciência conteudal de si
mesmo (Gemüt) – como do ponto de vista empírico, que toma a alma e questões relativas à
manutenção de sua identidade e substância como interrogação (FOUCAULT, 2008, p. 36).
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De que maneira, porém, teria o sentido interno ganhado aqui este sentido
universalizável, transcendental, se ele remete, desde a Crítica da razão Pura, ao caráter
meramente empírico do conhecimento de si? É no espírito (Geist) que vai se encontrar o que
Kant denomina o “princípio vivificador” do Gemüt. O espírito dá vida ao Gemüt através de
Idéias:
Esta é, então, a função do Geist: não organizar o Gemüt de maneira a fazer
dele um ser vivente, ou o análogo da vida orgânica, ou ainda a vida do
Absoluto ele mesmo: mas lhe vivificar, fazer nascer na passividade do Gemüt,
que é aquela da determinação empírica, o movimento formigante das idéias
[...] Assim, o Gemüt não é simplesmente “o que ele é”, mas o que ele “faz de si
mesmo” (FOUCAULT, 2008, p. 39).
Vivificado pelo espírito, o sentido interno deixa de ser mera passividade e passa a ser
mobilizado por ideias que o constituem de um caráter pragmático: o da possibilidade de se
fazer a si mesmo, no “maior uso empírico possível de sua razão” (KANT [1781] 2001 A677; B
705). O sentido interno se desdobraria numa “dialética desdialetizada”, pois que é dotado do
caráter ativo da produção de ideias, mas voltado também para o domínio da experiência
(FOUCAULT, 2008, p.39).
O espírito seria a liberdade e a totalidade que transcende o Gemüt. (FOUCAULT, 2008,
p.40). Aqui estaria fundada a legitimidade da antropologia de cunho pragmático:
O espírito está na raiz da possibilidade do saber. E, por isso mesmo,
indissociavelmente presente e ausente das figuras do conhecimento: ele é este
recuo, esta “reserva visível” e invisível na distância inacessível da qual o
conhecer toma lugar e possibilidade. Seu ser é de não estar lá, desenhando,
nisso mesmo, o lugar da verdade” 5. (FOUCAULT, 2008, p. 40-41).
5
O ser deste “não estar lá” aparece mais tarde como o não-ser do homem no eterno recuo da origem na parte VI
do capítulo IX de As palavras e as coisas. Por se encontrar a meio caminho entre a determinação das positividades
do saber empírico e o reconhecer-se no a priori do saber sobre ele mesmo, o Homem se torna o lugar de uma
eterna origem recuada, ocupando esse espaço da verdade inteiramente infundada de si mesmo Cf. M. Foucault, As
palavras e as coisas, [1966] 2002, PP. 417-474)
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No cerne desta questão estariam as dificuldades do engendramento do homem como
certeza moderna. Pelo fato de poder determinar a si mesmo e de fazer uso (Gebrauch) do
mundo e de si mesmo é que o homem é um ser de liberdade: “Nós tocamos o essencial: o
homem, na Antropologia, não é nem homo natura nem sujeito puro de liberdade: ele é tomado
nas sínteses já operadas de sua ligação com o mundo” (FOUCAULT, 2008, p. 34).
Como se explica esta relação entre a função do Gemüt no sujeito, a antropologia e o
fundamento? É que precisamente ali onde o saber for capaz de unir num só discurso o lastro
desmistificador da experiência e a universalidade do entendimento, o saber alcançaria
supostamente seu grau máximo de verdade – a resposta à pergunta “o que é o homem?”
englobando todos os outros problemas da filosofia.
Uma suposição ainda a ser examinada com o devido cuidado nos abriria uma vereda na
interpretação do percurso de Foucault. A crítica à propedêutica antropológica estaria, de um
lado, na base de sua arqueologia das práticas de assujeitamento da medicina, da psiquiatria e
da psicologia (o homem, o louco, que ocupa o não lugar da verdade, o disparate entre razão e
desrazão). De outro, na genealogia das práticas de saber/ poder no Direito, e na gestão dos
ilegalismos, pautadas no modelo de homem weltbürger, ator livre de seu próprio destino que
encontra, no sentido interno, a síntese entre sua liberdade universal e sua pertença jurídicoestatal empírica.
Do ponto de vista estritamente epistemológico, a antropologia revela igualmente os
limites e dificuldades do próprio sujeito do conhecimento transcendental como síntese da
possibilidade do conhecimento humano sobre si mesmo. No sentido de uma contraantropologia foucauldiana, poderíamos afirmar o horizonte de uma “antropologia do
desconhecimento”:
Porque é duplo empírico-transcendental, o homem é também o lugar do
desconhecimento – deste desconhecimento que expõe sempre seu
pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite, ao
mesmo tempo, se interpelar a partir do que lhe escapa. É essa a razão pela
qual a reflexão transcendental, sob sua forma moderna, não mais encontra o
ponto de sua necessidade, como em Kant, na existência de uma ciência da
natureza (à qual se opõem o debate perpétuo e a incerteza dos filósofos), mas
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na existência muda, prestes porém a falar e como que toda atravessada
secretamente por um discurso virtual, desse não-conhecido a partir do qual o
homem é incessantemente chamado ao conhecimento de si” (FOUCAULT,
[1966], 202, p. 445)
É sempre difícil a tentativa da enunciação de uma hipótese de interpretação do texto de
um autor envolvendo períodos distintos de seu pensamento. Mas a maneira como aqui foi
apresentada a análise foucauldiana da Antropologia de Kant enseja, ainda que apenas a título
indicativo, uma ligação possível com o que chamaríamos aqui de uma contra-antropologia. O
conteúdo positivo do ethos filosófico de uma filosofia crítica de nós mesmos – nós mesmos
homens, mas também nós mesmos loucos, amorais, sexualmente impróprios, criminosos,
anormais – se vê:
Não mais na busca das estruturas formais que têm valor universal, mas como
investigação histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos
constituir, a nos reconhecermos como sujeitos disso que fazemos, pensamos e
dizemos. Nesse sentido, essa crítica não é transcendental, e não tem por fim
tornar possível uma metafísica: ela é genealógica na sua finalidade e
arqueológica no seu método. Arqueológica – e não transcendental – nesse
sentido em que ela não procurará extrair as estruturas universais de todo
conhecimento ou de toda ação moral possível, mas sim tratar os discursos que
articulam isso que pensamos, dizemos e fazemos como tantos acontecimentos
históricos. E essa crítica será genealógica nesse sentido em que ela não
deduzirá da forma disso que nós somos, o que nos é impossível de fazer ou de
conhecer, mas ela extrairá da contingência que nos fez ser o que nós somos, a
possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que nós somos, fazemos ou
pensamos”. (FOUCAULT [1984] 2001, p. 1393).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, M; KANT, I. Anthropologie d’um point de vue pragmatique & Introduction à
l’anthropologie. Paris, J. Vrin, 2008.
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
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FOUCAULT, Michel. [1966] As palavras e as coisas. Trad. Salma Muchail. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
_________________. Qu’est-ce que les lumières? [1984] In: Dits et écrits II (1976-1988). Paris,
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_________________. [1961] História da loucura na Idade Clássica. Trad. José T. Coelho Netto.
São Paulo: Perspectiva, 1978.
KANT, Immanuel. [1781]. Crítica da razão pura. Trad. Manuela P. dos Santos. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001
______________. [1800] Logik. In: Gesammelte Schriften. Bd. IX. Berlin und Leipzig, W. de
Grunter, 1923.
______________. [1798] Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. C. Martins. São
Paulo: Iluminuras, 2006.
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