Relato de Caso A importância da suspeita clínica da síndrome de Hamman na sala de urgência Importance of the suspicion of Hamman's syndrome in the emergency room RESUMO A síndrome de Hamman (pneumomediastino espontâneo) pode, com frequência, estar associada ao acometimento cervical. O enfisema cervical espontâneo, observado nesses pacientes, é definido como a dissecção aérea dos tecidos profundos e/ou superficiais do pescoço sem a determinação de uma causa aparente. Além do trauma, o enfisema subcutâneo pode advir de outras situações relacionadas à elevação da pressão intratorácica, assim como pode estar associada ao consumo de drogas inaladas. Apresentamos um caso raro de enfisema espontâneo acometendo o pescoço e o mediastino, de importante valor semiológico e que exige do médico assistente auto grau de conhecimento e suspeição. Luiz Carlos Conti-de-Freitas1 Juliano Borges Mano2 Hilton Marcos Alves Ricz3 Rui Celso Martins Mamede3 ABSTRACT Hamman's Syndrome (spontaneous pneumomediastinum) can be associated to neck extension. Spontaneous cervical emphysema observed in those patients is defined as air spread on deep and/or superficial neck tissues without an apparent cause. Beyond trauma, subcutaneous emphysema can happen in other related situation with rise of intrathoracic pressure, as well as can be associated to use of inhalated drugs. We present a rare case of a cervical and mediastinal spontaneous emphysema, with important semiologic value and that it demands a high degree of the medical knowledge and suspicion. Key words: Mediastinal Emphysema. Subcutaneous Emphysema. Chest Pain. Dyspnea. Tomography, X-Ray Computed. Descritores: Enfisema Mediastínico. Enfisema Subcutâneo. Dor no Peito. Dispnéia. Tomografia Computadorizada por Raios X. INTRODUÇÃO A síndrome de Hamman1 (pneumomediastino espontâneo) é definida como a presença de ar no interstício mediastinal, sem etiologia aparente, podendo, em cerca de dois terços dos casos, apresentar acometimento cervical. O enfisema cervical é um achado frequente em pacientes politraumatizados, especialmente nas vítimas de trauma cérvico-torácico pérfurocortante, sendo menos comum em traumas fechados. Entretanto, o surgimento de enfisema espontâneo é uma situação rara nos serviços de urgência2. Assim, o presente relato tem o objetivo de demonstrar a importância da avaliação clínica de pacientes portadores de síndrome de Hamman, ressaltando a dificuldade diagnóstica e a necessidade de conhecimento especializado da equipe médica assistente, por requerer um auto grau de suspeição clínica. RELATO DE CASO dor retro-esternal e cervical associado à sensação de abaulamento cervical e desconforto respiratório leve quando dirigia motocicleta, havia quatro dias. Negava tosse, odinofagia e disfonia. Não referiu história de trauma cervical e torácico, bronquite asmática, cirurgia prévia ou uso de drogas inalatórias. Ao exame físico, apresentava enfisema subcutâneo cervical e supraclavicular bilateral e desconforto respiratório, bulhas normofonéticas sem ruídos adventícios (sinal de Hamman negativo), com murmúrio vesicular bilateral preservado, além da frequência respiratória de 25/min; frequência cardíaca de 84 bpm; PA: 130x90mmHg, com saturação oxigênio de 96% ao ar ambiente. Ao exame radiológico do tórax havia pneumomediastino sem evidência de pneumotórax (Figura 1). A endoscopia digestiva revelou esofagite não erosiva, sem sinais de perfuração e pangastrite com erosões planas em antro, enquanto a bronco-fibroscopia demonstrou discreta hiperemia de pregas vocais, sem lesões da mucosa faringolaríngea. A traquéia e os brônquios segmentares não apresentavam lesões expansivas ou perfurações evidentes. Paciente masculino, de 24 anos, apresentou iniciou súbito de 1) Médico Assistente da Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. 2) Médico Adido da Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. 3) Docente da Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP Instituição: Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP Correspondência: Luiz Carlos Conti-de-Freitas, Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Av. Bandeirantes 3900 – 14048-900 Ribeirão Preto, SP. E-mail : [email protected] Recebido em: 10/01/2008; aceito para publicação em: 30/12/2008; publicado online em: 10/05/2009. Conflito de interesse: nenhum. Fonte de fomento: nenhuma. 122 Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 38, nº 2, p. 122 - 123, abril / maio / junho 2009 eleição tanto para determinar a extensão do enfisema cervical e do mediastino quanto afastar a etiologia pulmonar. O pronto diagnóstico e tratamento dos casos de perfuração esofágica é mandatório, uma vez que a lesão esofágica pode levar a quadro de mediastinite grave. O pneumomediastino espontâneo (síndrome de Hamman) é uma causa rara de enfisema cervical, que exige da equipe médica um alto grau de suspeição clínica. A maioria dos doentes apresenta boa evolução com tratamento conservador. REFERÊNCIAS Figura 1 – Radiografia simples de tórax demonstrando pnemomediastino (setas). O enfisema subcutâneo no pescoço e regiões supraclaviculares era evidente à tomografia computadorizada (TC) do pescoço e do tórax (Figura 2), alem do parênquima pulmonar com coeficiente de atenuação normal. Havia pneumomediastino de mínimo volume, sem evidências de adenomegalia mediastinal ou de processo expansivo. Foi iniciada antibioticoterapia de amplo espectro e oxigenioterapia. Houve involução do enfisema cervical, com melhora completa dos sintomas até o sétimo dia. 1. Hamman L. Spontaneous mediastinal emphysema. Bull John Hopkins Hosp. 1939;64(1):1-21. 2. Mihos P, Potaris K, Gakidis I, Mazaris E, Sarras E, Kontos Z. Sportsrelated spontaneous pneumomediastinum. Ann Thorac Surg. 2004;78(3):983-6. 3. Macklin CC. Transport of air along sheaths of pulmonic vessels from alveoli to mediastinum. Arch Intern Med. 1939;64:913-26. 4. Miura H, Taira O, Hiraguri S, Ohtani K, Kato H. Clinical features of medical pneumomediastinum. Ann Thorac Cardiovasc Surg. 2003;9(3):188-91. 5. Macia I, Moya J, Ramos R, Morera R, Escobar I, Saumench J, Perna V, Rivas F. Spontaneous pneumomediastinum: 41 cases. Eur J Cardiothorac Surg. 2007;31(6):1110-4. Figura 2 – Corte tomográfico axial do pescoço demonstrando extenso enfisema cervical (setas). DISCUSSÃO O provável mecanismo fisiopatológico do enfisema cervical espontâneo baseia-se na elevação da pressão intratorácica, com rompimento alveolar seguida de dissecção aérea, acompanhando os vasos sangüíneos até o hilo pulmonar, mediastino e pescoço3. Os sintomas que caracterizam a síndrome de Hamman são dor cervical e torácica, dispnéia, odinofagia, tosse, disfonia e disfagia. Além do enfisema cervical, outros sinais freqüentes são o enfisema torácico subcutâneo, anormalidades faringolaríngeas e o sinal de Hamman, caracterizado pela ausculta de crepitação associada às bulhas cardíacas4. A avaliação endoscópica ou radiológica contrastada do esôfago pode descartar uma possível etiologia esofágica do enfisema cervical. O exame endoscópico auxilia na detecção de lesões faríngeas ou de corpo estranho, principalmente nos casos associados à odinofagia, além de afastar etiologia tráqueobrônquica. Não obstante, alguns autores alertam para o risco de piora do enfisema cervical durante a realização da abordagem endoscópica das vias aerodigestivas5. A TC é o exame de Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 38, nº 2, p. 122 - 123, abril / maio / junho 2009 123