Conexões e desconexões entre o singular e o coletivo...1 Romina Moreira de Magalhães Gomes2 Frequentemente, recebemos em visita à instituição estudantes de psicologia que nos indagam: o que orienta seu trabalho, o sujeito, a lei, o juiz, as normas da instituição? A quem servimos como psicólogos que atuam na interface com o discurso jurídico? – podemos nos perguntar. Trata-se de questão fundamental para pensarmos nossa prática como psicólogos judiciais. Muitas vezes, vemo-nos diante de instituições que prescrevem estratégias e ações que resultam de um saber normativo e deixam de fora o sujeito em sua singularidade. Quando nos encontramos na instituição, o saber normativo pode parecer tão natural, conforme adverte JeanClaude Milner (2007), que pode ser tomado como “ordem das coisas” e causar adesão, sem que haja uma reflexão. A presença de uma tendência à burocracia nas instituições é um dado que nos leva a questionar: que lógica é essa que pode prescindir do sujeito, buscando tudo normalizar? Conforme mostrou o regime totalitário nazista, a burocracia é uma ação normativa que pode se colocar a serviço do controle total, cujo programa maior seria reduzir o sujeito à condição de objeto. A burocracia visa uma previsibilidade do funcionamento institucional e para tanto busca eliminar as contingências, bloquear as possibilidades de invenção e o aparecimento do sujeito. Do ponto de vista político, busca-se uma completa eliminação do diferente, de forma que a contingência não mais se manifeste no mundo. O sujeito, na sua simples existência, é uma ameaça ao movimento total (GOMES, 2008). No que se refere ao campo da saúde mental, é preciso advertir, conforme nos mostra a história da loucura, que a adesão ao saber normativo, ao deixar de lado o sujeito, tem como efeito o descuido, deixando-o entregue ao sofrimento, à deriva do campo do Outro. O que a história da loucura demonstra ainda se faz presente e bem perto de nossos olhos: basta ir a um Manicômio Judiciário, hoje eufemicamente denominado de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, para se ter uma amostra do que tento lhes falar. A lógica da adesão ao saber normativo, em detrimento do sujeito não faz mais do que perpetuar a falta de atenção ao sofrimento, favorecendo-se a ação destrutiva da pulsão de morte (GOMES, 2011). É longa a história de segregação e sofrimento a que os cidadãos em sofrimento mental foram submetidos graças aos enganos produzidos por saberes ditos científicos, desde o século XIX. Até os dias atuais, contudo, os frutos desse grande equívoco com relação à loucura ainda existem espalhados por nosso país. Franco Basaglia, em visita ao Brasil em 1979, passou pela cidade mineira de Barbacena, também conhecida como cidade dos loucos. Ao se deparar com a cena cotidiana das pessoas que viviam internadas em um manicômio, comparou-o a um campo de concentração nazista. 1 Texto apresentado no I Seminário Regional Psicologia e Políticas Públicas – Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. CREA, Belo Horizonte, 29/04/2011. 2 Psicanalista; Psicóloga Judicial do Núcleo Supervisor do PAI-PJ – Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário/ Projeto Novos Rumos – TJMG; doutoranda em Psicologia – Área de Concentração em Estudos Psicanalíticos, pela UFMG. Aprendemos com a história do século XX, após a Segunda Grande Guerra, que atrocidades acontecem quando uma engrenagem é colocada em marcha a serviço da segregação, sem que se questione o porquê de tal engrenagem e o saber que lhe serve de sustentação. Hannah Arendt (1983) mostrou que para as atrocidades cometidas em nome do governo nazista não existe punição capaz de se adequar. E propôs uma ampliação da noção de responsabilidade para que se possa contemplar todas as esferas envolvidas nas ações colocadas em marcha por esta engrenagem. Gostaria de tomar aqui essa proposta de ampliação da noção de responsabilidade, considerando-se as esferas que estão em jogo, tendo em vista as relações do sujeito ao Outro, a partir da proposta de se tomar a responsabilidade como resposta. Primeiro ponto: a resposta que o sujeito pode formular quando convocado pela Justiça a responder por seu ato fora da lei. As respostas que os cidadãos em sofrimento mental têm apresentado ao longo da experiência do PAI-PJ nos levam a interrogar as noções de periculosidade e incapacidade, ficções construídas em torno da loucura cujas origens são historicamente localizáveis, como mostrou Fernanda Otoni de Barros (2009). Ainda que o ato fora da lei tenha sido o que costumamos chamar de passagem ao ato – ou seja, que o ato tenha sido uma ruptura com o Outro e com a dimensão do sentido, aparecendo como um sem sentido sobre o qual alguns sujeitos não têm nem mesmo o registro de memória – quando chamados a responder, verificamos que podem construir novas respostas razoáveis, levando em conta o laço social. Essas respostas sobre o ato são essenciais para a orientação na sua relação com o Outro e o campo social de modo geral. Segundo ponto: a resposta do Estado ao ato fora da lei. O Estado é a instância que convoca o sujeito a formular uma resposta ao seu ato e responde com os mecanismos que a civilização construiu para regular as ações humanas. Neste tempo, em que o aparelho judiciário é acionado para oferecer resposta ao ato fora da lei, o paciente judiciário pode ser encaminhado pela autoridade judicial ao PAI-PJ. O acompanhamento pelo PAI-PJ tem início desde o inquérito e início do processo, com a entrada do Sistema de Justiça no caso. O acompanhamento inicia com o atendimento do paciente judiciário e seu encaminhamento aos dispositivos da rede aberta em saúde mental. Tece-se assim uma rede orientada pela singularidade do caso. A rede pode se tornar muito mais ampla do que o campo da saúde mental; constitui-se pelos recursos locais que podem se tornar pontos de interesse para um dado sujeito; portanto, variam de sujeito para sujeito, de acordo com o que promove laços para cada um. No caso do paciente judiciário, a rede inclui o sistema de saúde, justiça, recursos sociais, locais, próprios da sua rede familiar ou de convivência pessoal. Enquanto o processo segue em fase de instrução, o paciente judiciário segue em seu tratamento e a equipe mantém contato com o juiz, enviando relatórios periódicos que informam sobre o tratamento, a sua convivência social, etc. Em alguns casos, a pena é a medida judicial indicada. Quando é possível aplicar a pena restritiva de direitos, verificamos que muitos sujeitos respondem de modo surpreendente e têm cessadas suas relações com a justiça após o cumprimento da pena. Contudo, seja qual for a situação jurídica do paciente, se ele estiver em situação de sofrimento mental, terá o acompanhamento da rede de saúde junto com o cumprimento da medida judicial. Em alguns casos, quando se instaura o incidente de sanidade mental e a perícia atesta a presença de sofrimento mental em conexão com o ato, o juiz aplica a medida de segurança, determinando à equipe interdisciplinar do PAI-PJ a incumbência de relatar sobre a inserção do sujeito no tratamento e indicar qual o tratamento adequado de acordo com a singularidade do caso. A internação pode se reservar assim como um último recurso sobre o qual a equipe de saúde mental responsável pela condução do caso pode decidir, nos momentos de crise. O descompasso entre o sistema de justiça e o sistema de saúde existente devido às determinações de internação por tempo indeterminado é desse modo tratado, para que a indicação do tratamento mais adequado possa ser uma decisão clínica sem dispensar o Sistema de Justiça e seu fundamental papel na regulação das ações humanas. Passemos, neste ponto, ao que temos encontrado no trabalho que iniciamos no ano de 2010, no interior do estado de Minas Gerais. Encontramos o Judiciário - juízes, defensoria, juntamente com promotoria – abertos ao trabalho em rede. Saúde, Justiça e Sistema Social podem ser parceiros intersetoriais. Contudo, algumas vezes o discurso da saúde não é bem interpretado pelo discurso jurídico e vice-versa. Deste modo o PAI-PJ funciona como um mediador que articula essa rede intersetorial garantindo os direitos individuais previstos na Constituição em consonância com a singularidade clínica e social de cada caso. Um dispositivo conector para usar uma expressão de Fernanda Otoni de Barros (BARROS-BRISSET, 2010). Os juízes consideram serem muito bem vindas as informações sobre o tratamento fornecidas pela rede de saúde mental, pois podem subsidiar suas decisões para a aplicação da lei em consonância com a lei da saúde mental, lei 10.216/20013. Por outro lado, a não-exclusão dos cidadãos em sofrimento mental com relação ao sistema de justiça é ponto fundamental para o exercício da cidadania e para o tratamento que se dá no tecido social. Em alguns casos, verificamos que a palavra do juiz tem valor de orientação para o sujeito, podendo a equipe sugerir uma audiência, em que ele poderá ser escutado e receber orientações da autoridade judicial. Encontramos inclusive sujeitos que endereçam cartas aos juízes relatando sobre o tratamento ou solicitando audiência. Terceiro ponto: a responsabilização do Outro social. Em uma esfera macro, busca-se uma responsabilização dos municípios quanto aos seus cidadãos: acolhê-los em suas diferenças, propiciar-lhes a inserção no laço social, por meio da oferta de recursos e construção de redes, considerando-se as singularidades. Sabemos que a complexidade das redes sociais e de atenção à saúde mental varia de município para município. Mas, mesmo nos municípios menores, com dispositivos de atenção de menor complexidade, encontramos a possibilidade de articulação de uma rede de cuidados. As equipes de PSF, das UBS’s, CRAS e CREAS, além dos CAP’s, Centros de Convivência e Centros de Saúde, tem se tornado parceiras na atenção a esses casos. E, como já vimos, a rede pode se tornar muito mais ampla do que o campo da saúde mental, constituindo-se pelos recursos locais 3 A partir de 2010, com a Resolução 113 do Conselho Nacional de Justiça, o Poder Judiciário passa a se referenciar na lei 10.216/2001 em todo o país e não somente em Minas Gerais, onde atua o PAI-PJ. que podem se tornar pontos de interesse para o paciente. Trabalho, escola, cursos de capacitação, oficinas terapêuticas, atividades informais de geração de renda, e os mais variados recursos que são apontados por cada sujeito que tece, assim, sua rede singular. Em esfera que podemos chamar micro, busca-se a responsabilização das famílias, quando ainda existem vínculos ou a possibilidade de reconstituição dos laços familiares. Os Serviços Residenciais Terapêuticos se constituem como último recurso, quando se esgotam as possibilidades com a família, ou nos casos em que a construção interdisciplinar aponta para uma necessidade de separação entre sujeito e família. Cabe ressaltar que alguns cidadãos têm autonomia para morarem sozinhos, desde que possam contar com uma rede de cuidados à qual possam recorrer nos momentos de embaraço e sofrimento. Cada caso é um caso, de tal sorte que os SRT’s acabam sendo um recurso para aqueles que não tiveram esta oferta desde o início e a segregação das redes de atenção e suporte social produzidas pelo aprisionamento, em muitos casos, criou uma situação incontornável para o retorno à família. Temos notado, nesses 10 anos, que o fato do acompanhamento e da oferta de articulação de rede realizada pelo PAI-PJ se dar desde o início do processo até a cessação das relações do paciente judiciário com a justiça, além de propiciar a ampliação de recursos para lidar com as situações de sofrimento psíquico, tem possibilitado o não rompimento das relações do sujeito com seu território e família. Mas nada disso funciona sem incluir a solução do sujeito, seu modo de vida, seus gostos e embaraços na construção dessa saída. Constatamos ser fundamental a construção de um projeto individualizado que envolva os parceiros intersetoriais do campo da justiça, da saúde e social. Como aponta Fernanda Otoni de Barros (2010), a complexidade da atenção integral que envolve as lógicas discursivas institucionais diferentes exige soluções complexas envolvendo os diversos setores da sociedade e enlaçadas pelas possibilidades de resposta de cada sujeito: não basta tirar da justiça e encaminhar para a saúde tratar. A complexidade da situação não comporta solução singular, é uma resposta intersetorial, responsabilidade de todos, portanto. Ao longo dos dez anos de experiência do PAI-PJ, temos nos oferecido na função de secretários, mediadores da relação do sujeito com a justiça e com o tratamento. A existência desse lugar mediador, como afirma Barros (2010), que se caracteriza por dar lugar ao sujeito, escutando o modo singular como cada um pode tratar seu sofrimento, tem demonstrado que é possível prescindir de soluções segregativas, na atenção ao louco infrator. A experiência clínica com loucos infratores mostra que cada sujeito empreende um tratamento singular que envolve a construção de recursos capazes de moderar o gozo, o sofrimento. O que podemos assinalar como universal, no âmbito desse tratamento, é apenas o caráter de moderação sofrimento que cada solução singular porta. No trabalho que tem sido realizado em Minas Gerais, na rede de atenção ao cidadão em sofrimento mental da qual o PAI-PJ é parte, a orientação primordial é o SABER DO SUJEITO. O trabalho é construído em parceria com os dispositivos que oferecem variados recursos capazes de promover o laço social, a cidadania, além do tratamento em saúde mental. A rede, como nos ensinou Célio Garcia, remete a interação, conexão, inter-conexão. A horizontalidade da rede contrapõe-se ao organograma, com sua verticalidade e especialização. Nesse sentido, a orientação para o trabalho interdisciplinar e intersetorial, do qual o PAI-PJ é parte, não provém de um saber técnico ou especialidade, mas do saber que o sujeito vai entregando nos vários pontos da rede que ele constitui, na medida em que partimos do pressuposto que cada sujeito porta um saber sobre o modo de se tratar. Dessa forma, um sujeito chega até o programa porque está sendo convocado a responder por um ato, e essa resposta inclui a necessidade de tratamento, mas como esse tratamento irá acontecer é somente o próprio sujeito que pode nos indicar, escolhendo os pontos na rede da cidade aonde vai se conectar (GOMES, 2009). Jean-Claude Milner (2007) aponta que instituições como hospitais e prisões se servem do discurso normativo e dos profissionais “psi” para interferir no que há de mais íntimo a um sujeito, com o objetivo de adequá-lo à normalidade dos grupos. Bem, podemos perguntar como fazer frente a essa ideologia. O sujeito pode nos entregar o que tem de mais singular, mas devemos nós buscar integrá-lo ao coletivo, propor uma conexão integral aos grupos, abraçando o ideal de tudo normalizar? Milner indica um caminho ao propor certa desconexão entre o singular e o coletivo, um ponto cego da singularidade a ser preservado do controle e da exposição que a relação à justiça pode acarretar. Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah (1983). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Digrama e Texto. BARROS, F. O. (2009) Gênese do conceito de periculosidade. Tese (Doutorado em Sociologia e Política), Belo Horizonte: FAFICH, UFMG. BARROS-BRISSET, F. O. (2010) Por uma política de atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte, TJMG. BARROS, F. O. e outros (2010). Dossiê Ação Coordenada entre Justiça, Saúde Mental e Sociedade. Belo Horizonte: TJMG. FOUCAULT, M. (1973/2003) 3 ed. A verdade e as forma jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora. ________ (2003) 7 ed. 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