ETNIA QUILOMBOLA E POLÍTICAS PÚBLICAS: LUTAS E CONQUISTAS NO PARANÁ Angela Maria Gelinski1 Rosângela Bujokas de Siqueira2 RESUMO: O presente estudo discute as principais características de formação das Comunidades Quilombolas no cenário brasileiro, onde o sistema da escravidão foi considerado predominante para o desenvolvimento político e econômico do país, pautando-se basicamente na exploração dos negros africanos, os quais foram desumanamente escravizados. Assim, os quilombolas só passaram a ter seus direitos reafirmados pela Constituição Federal de 1988, a partir de longos processos de lutas e reivindicações. Busca-se abordar alguns aspectos históricos acerca da Etnia Quilombola no Brasil na perspectiva de resistência e luta, em seguida, destacar os principais direitos voltados a tal segmento, possibilitando uma discussão acerca do movimento social quilombola e por fim, visa-se refletir sobre as políticas públicas no contexto da etnia quilombola do Paraná, no âmbito das lacunas e dos avanços na área. Contudo, os resultados evidenciam que o acesso precário ao território tem sido uma das principais demandas vivenciadas no contexto atual das Comunidades Quilombolas, sendo que as políticas públicas da área ainda não dão conta de atender de maneira eficaz esta questão. Tal aspecto é reforçado principalmente pelas influências de poder e de interesses que a classe dominante (latifundiários) exerce sobre o Estado brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Quilombolas; Demandas; Políticas Públicas. INTRODUÇÃO: No Brasil, a dimensão ocupada pela escravidão, entre os séculos XVII e XVIII, contribuiu para que o negro enfrentasse várias formas de desigualdades e discriminação racial, onde seres humanos foram submetidos à condição de escravos, para servir aos privilégios do sistema colonial e imperial, considerados inferiores em relação aos brancos. Desta forma, os interesses econômicos preponderaram sobre o direito à vida e afastaram os negros do campo da cidadania. Em nosso país, a estrutura colonial formou-se basicamente pelo latifúndio monocultor, conhecido como engenho e ligado exclusivamente ao trabalho escravo, caracterizado pelo modelo agroexportador, priorizando as relações econômicas com a Europa. Assim, no período colonial, o sistema econômico dependia essencialmente da monocultura, que representou um 1 2 Assistente Social, email: [email protected] Professora do Curso de Serviço Social na Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO), e-mail: [email protected] 1 grande subsídio na geração de riqueza. Este modelo teve no trabalho do negro africano escravizado um fator determinante. Como trata Prado Júnior (1986, p. 122), “[...] são três os elementos constitutivos da organização agrária do Brasil colonial: a grande propriedade, a monocultura e o trabalho escravo”. Tais elementos fundamentaram a economia agrária brasileira. A escravidão foi reflexo da extrema desigualdade social, racismo e preconceito que perpassou a formação histórica brasileira, visto que seres humanos tiveram seus direitos negados por ocasião da cor de sua pele, onde foram excluídos e condenados pelo poder que liderava na época. O trabalho escravo também expressava as opções econômico-sociais do Estado. Diante deste contexto, o negro passou a criar seus próprios mecanismos de luta e resistência ao sistema posto pela escravatura, sendo esta a origem dos primeiros Quilombos, tidos como uma das principais formas de oposição a este tão injusto sistema econômicopolítico. A história dos quilombos revela a luta política e resistência deste segmento pelo reconhecimento de direitos. Carneiro (1966) enfatiza que os primeiros quilombos derivam da fuga de escravos para locais de refúgio, sendo caso emblemático o Quilombo dos Palmares, que foi liderado por Zumbi e teve seu auge na segunda metade do século XVII, considerado uma referência aos demais. Vários termos são utilizados para definir os grupos sociais afrodescendentes trazidos para o Brasil no período escravocrata. Segundo Silva e Ferraz (2012, p. 76), os termos mais utilizados são: “[...] quilombos, mocambos, terras de preto, comunidades remanescentes de quilombos, comunidades negras rurais, camponeses negros, remanescentes de comunidades de quilombos ou kilombos.” A luta por igualdade social faz parte da história de vida de muitos movimentos sociais, que buscam reconhecimento, como é o caso dos quilombolas. “[...] O significado de quilombo é reafirmação da luta pela sobrevivência, construindo uma realidade que garanta a igualdade, o convívio com a coletividade, a ancestralidade de uma história de quase quinhentos anos de exclusão” (BRASIL, 2004, p. 04). Após a Abolição formal da escravatura, oficializada pela Lei Áurea, decretada em 13 de maio de 1888, houve a formação de outros quilombos. Isso ocorreu porque para muitos exescravos essa era a única possibilidade de reconstruir a vida em liberdade. 2 Com a abolição os negros foram posteriormente impedidos de acessar as terras, conflito que evidenciou a total falta de apoio do Estado da época, tentando fazer com que os ex-escravos não pudessem ter acesso a nenhum patrimônio. Essa relação gerou uma liberdade meramente formal, mas não concreta. Com isso, grande parte dos ex-escravos ainda permaneceu sobre as relações de exploração e a aristocracia agrária perpetuou seu poder econômico também no âmbito político. A proibição do acesso a terra por parte dos ex-escravos foi fundamentada pela Lei n° 601, de 1850, também conhecida como a Lei de Terras. Esta Lei surgiu durante o Brasil Império e reafirmava o poder do Estado sobre os territórios (que passavam a ter valores exorbitantes), sendo muito significativa para compreender a divisão feita dos latifúndios na sociedade brasileira (SILVA; FERRAZ, 2012). Conforme explica Martins (1994), no Brasil, a relação direta entre os interesses privados da elite e o Estado gerou um fenômeno chamado patrimonialismo. Este fenômeno compreende a indistinção entre as esferas pública e privada no âmbito político, onde o Estado legitima seu poder sobre a sociedade. A questão do patrimonialismo ainda persiste, reconstruindo as antigas relações de poder que perpassam a formação da sociedade brasileira. Na entrada do período Imperial, o trabalho escravo já não era tão interessante para o sistema vigente, pois o processo de industrialização conquistava espaço na sociedade. A partir do sistema capitalista que começava a emergir, passou-se a valorizar as atividades realizadas pelo imigrante europeu, impulsionando o trabalho livre e enfatizando o desenvolvimento atrelado aos novos interesses econômicos e políticos. Diante deste legado histórico, cabe destacar que o segmento quilombola tem sua origem no movimento de vertente rural, na crescente organização dos trabalhadores do campo e na ascensão do movimento negro brasileiro, enquanto movimento organizado que luta pela afirmação da sua identidade étnica na categoria de afrodescendentes. Entretanto, Almeida (2008) argumenta que devido à usurpação das terras por domínio de grandes proprietários, o contexto do movimento quilombola deixa de estar focalizado unicamente no meio rural, passando a ocupar o cenário urbano, onde muitos componentes da etnia vivem em periferias e favelas, em situação de extrema desigualdade social. 3 O segmento quilombola enfrenta na atualidade grandes impasses que envolvem a questão da territorialidade, diante da enraizada luta pelo reconhecimento e demarcação justa das terras, também vivenciam constantes ameaças, opressões e violações, provocadas pelos grandes latifundiários. Tudo isso caracteriza a forma como o negro foi introduzido na sociedade brasileira, onde desde o início do regime colonial, ocupou a condição de raça inferiorizada e discriminada pelos demais. A organização política do movimento quilombola pauta-se na adoção de estratégias através das mobilizações e reivindicações, que lhe atribui um caráter de resistência às condições de exploração postas historicamente pelo sistema colonial. A partir disso, este segmento tem conquistado a politização da realidade enfrentada, através da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 é introduzido o reconhecimento jurídico formal dos povos e comunidades tradicionais, após longos processos de lutas e mobilizações da categoria, que representam todo um legado histórico e cultural da sociedade brasileira. Diante disso, o segmento quilombola passou a contar com direitos específicos a sua identidade étnica, previstos em parte dos dispositivos constitucionais, o que possibilitou o fortalecimento de suas bandeiras de lutas, com reconhecimento formal. Alguns direitos voltados à etnia quilombola foram regulamentados na Constituição Federal de 1988, tratando-se especialmente do Art. 68, este prevê o reconhecimento e legalização das terras tradicionalmente ocupadas pelas Comunidades Remanescentes de Quilombos, detalhado posteriormente pelo Decreto 4.887, de 2003. Também cabe destacar os artigos 215 e 216, que tratam especificamente do direito cultural (BRASIL, 2004). Outro mecanismo refere-se à Fundação Cultural Palmares (FCP), instituída em agosto de 1988, pela Lei Federal n° 7.688, que surge como resposta às reivindicações do movimento negro, participando ativamente da formulação e consolidação das políticas públicas, voltadas as comunidades quilombolas e ao movimento negro da sociedade brasileira (BRASIL, 2004). Ainda, um significativo elemento de conquista dos movimentos étnicos foi obtido através da Convenção n°169, na 76° Conferência Internacional do Trabalho, realizada em 1989, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que entrou em vigor no âmbito 4 internacional em 1919. No Brasil, esta Convenção passou a vigorar em 2003, tendo como meta reconhecer como critério fundamental os elementos de autoidentidade e a diversidade cultural existente na sociedade brasileira (SHIRAISHI NETO, 2007; ALMEIDA, 2008). Referente aos demais instrumentos jurídicos em prol dos direitos das comunidades quilombolas, destacam-se dois programas elaborados de forma específica a tal segmento étnico, sendo o Programa Brasil Quilombola (PBQ) e a Agenda Social Quilombola (ASQ), os quais atribuem ações e propostas dispersas na amplitude do governo, estabelecendo metas direcionadas à saúde, educação, regularização fundiária, assistência social e valorização da identidade cultural. Na perspectiva de viabilizar as pautas apresentadas pelo movimento negro, em 2003 foi implementada a Política Nacional de Promoção de Igualdade Racial (PNPIR). Já em 2010 foi criado o Estudo da Igualdade Racial, visando garantir à população negra a ampliação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica, onde a questão da igualdade racial passa a ser considerada premissa na formulação das políticas públicas (BRASIL, 2004). A caracterização dos direitos e das políticas públicas correlatas a etnia quilombola no país revelam os resultados da luta dos movimentos sociais da área. Embora os direitos dos quilombolas venham sendo regulamentados gradualmente no Brasil, os desafios para sua materialização ainda são imensos, principalmente aqueles relativos aos territórios tradicionais, que ainda enfrentam o ranço do latifúndio monocultor. Desta forma, tratar do segmento quilombola no cenário atual abrange todo um contexto de luta política e resistência às relações de poder e opressão, que se remontam na atualidade e criam entraves aos movimentos sociais, diante da constante busca por reconhecimento e garantia de direitos. OBJETIVOS: A etnia quilombola configura-se como um segmento historicamente discriminado, desde o período colonial, repercutindo até os dias atuais as mazelas deste processo. Assim, essa questão instiga a compreender o papel que as políticas públicas têm 5 exercido neste contexto social, que forma-se diante de um abrangente cenário de desigualdade social, luta política e conflito de interesses. Diante disso, o objetivo geral do presente estudo é conhecer as principais demandas das Comunidades Quilombolas: Invernada Paiol de Telha, João Surá e Rocio do Paraná e refletir sobre as lacunas e avanços das políticas públicas na área. Já, os objetivos específicos visam compreender o cenário histórico que permeia a luta do segmento quilombola no Brasil; mapear os dispositivos jurídicos e as políticas públicas da área; identificar as demandas das Comunidades Quilombolas do Paraná e refletir sobre as políticas públicas no contexto quilombola. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: Para obter o alcance dos objetivos propostos a metodologia utiliza é de natureza qualitativa e tem como meta aprofundar o conhecimento acerca de um aspecto da realidade social: as demandas das comunidades quilombolas do Paraná. Seu cunho qualitativo nos possibilita compreender as particularidades desta temática. Martinelli (2003) aponta alguns pressupostos importantes que fundamentam o uso da abordagem qualitativa: primeiramente, este tipo de pesquisa aproxima-se do reconhecimento das singularidades dos sujeitos; parte da importância de se conhecer a experiência social, atribuindo a questão dos valores, crenças, costumes e práticas sociais cotidianas; sendo assim, o pesquisador passa a compreender o contexto histórico dos sujeitos com uma visão muito mais ampla da realidade social. Como instrumentais para a coleta de dados o presente estudo conta com a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental. Os documentos elencados para a compreensão do objeto de estudo foram as novas cartografias sociais dos povos e comunidades tradicionais do Brasil, fascículos das comunidades quilombolas. As cartografias analisadas referem-se as três Comunidades Quilombolas específicas, sendo: Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, João Surá e Rocio do Paraná. A nova cartografia social é uma metodologia de articulação dos povos e comunidades tradicionais e expressa o cotidiano de luta e vivência social destes segmentos, através de mapas com símbolos e depoimentos, organizados em forma de cartilhas e distribuídos 6 gratuitamente (assim como disponibilizados na internet), como forma de dar visibilidade aos grupos étnicos e raciais e, em última instância, instrumentalizar a reivindicação por políticas públicas. Tais símbolos são criados pelas próprias Comunidades Quilombolas para relatar aspectos importantes do seu cotidiano, como: origem ancestral; práticas religiosas; hábitos alimentares; situações de risco; relação estabelecida com o Poder Público e com Organizações Não Governamentais, etc. Esta metodologia faz parte de um Projeto intitulado Nova Cartografia Social da Amazônia, que conta com uma rede de pesquisadores espalhados por diferentes Universidades do país e recebe financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Desta forma, os depoimentos utilizados ao longo das análises deste estudo foram retirados das novas cartografias sociais das Comunidades pesquisadas e seguem a mesma forma de identificação dos sujeitos que constam nos documentos, que são de domínio público. Nesta circunstância, aparecem os nomes, as idades e as comunidades de referência, conforme os próprios sujeitos disponibilizaram nos documentos oficiais. Para discussão dos dados foram definidos dois eixos de análise, sendo: (1) principais demandas das comunidades quilombolas e (2) lacunas e avanços das políticas públicas na área. A análise será feita a partir dos marcos regulatórios apresentados anteriormente neste estudo. RESULTADOS: Tratando-se das principais demandas e lacunas das políticas públicas da área quilombola, o estudo das novas cartografias sociais das Comunidades Quilombolas Invernada Paiol de Telha, João Surá e Rocio permitem entender que as demandas existentes são as mais diversas e apresentam alguns pontos em comuns, como por exemplo: o território, saúde, educação, preservação da identidade cultural e visibilidade social (ADRIÁNOPOLIS, 2009; GUARAPUAVA, 2009; PALMAS, 2010). Nas pautas levantadas pelas Comunidades Quilombolas, identifica-se que a demanda por território ganha maior relevância, essa questão acaba influenciando na existência de outras demandas e gerando uma série de dificuldades vivenciadas pelas famílias quilombolas. O acesso precário ao território impede o investimento em outras áreas fundamentais, como 7 saúde e educação. Pode-se entender que o acesso às políticas públicas básicas é uma das lacunas vivenciadas pelos quilombolas no Paraná. Além de se apresentar como um impedimento para a efetivação de políticas públicas, o acesso precário ao território tradicional repercute na dificuldade de preservação da identidade étnica, já que o território é um elemento fundamental para a permanência e reprodução do grupo, preservação da cultura, construção da vida material (sobrevivência) e imaterial (subjetividade). Tais constatações são visíveis na seguinte argumentação, que reforça as dificuldades vivenciadas pelos quilombolas, principalmente em relação às condições precárias de acesso ao território tradicional: “[...] hoje têm descendente que estão aí se batendo em busca da vitória, porque nós perdemos as nossas terras e a liberdade de conviver como nós convivíamos, hoje as coisas estão muito difícil [...]”, Domingos Gonçalves Guimarães, Paiol de Telha (GUARAPUAVA, 2009, p.3). Diante da histórica demanda territorial, que envolve uma questão política regional, seja por fatores de invasão, compra de terras por valores muito inferiores ou situações de expropriação, isso conduz ao entendimento de que a influência da herança patrimonial, assunto este abordado por Martins (1994), dificulta de fato a efetivação dos direitos correlatos ao segmento quilombola, favorecendo exclusivamente os interesses particulares da elite tradicional. Isso tudo reforça a compreensão de que existem várias limitações e dificuldades para a permanência na Comunidade, principalmente em decorrência das constantes invasões e repressão da elite local, como é enfatizado por um morador da Comunidade Quilombola João Surá: “[...] houve uma estratégia de entrada de fazendeiro. Que eles compravam uma terra vizinha e soltavam o gado nas plantações da terra do proprietário vizinho [quilombola] [...]” (ADRIANÓPOLIS, 2009, p.8). Neste contexto, os grandes latifundiários utilizam de diversas artimanhas pressionando os negros para que estes deixem suas terras. Contudo, além das emboscadas e perseguições, as formas de cultivar o latifúndio criam entraves para a agricultura de subsistência dos quilombolas, impedindo-os de manterem sua existência material. As plantações de soja transgênica e o cultivo de pinus são exemplos clássicos de culturas que interferem diretamente na sustentabilidade das terras de quilombos. 8 Tal demanda indica a necessidade urgente de definição de novas políticas públicas para este contexto complexo O conflito territorial evidenciado pelas Comunidades Paiol de Telhas, João Surá e Rocio revela parte dos desafios vivenciados na luta pelo acesso ao território tradicionalmente ocupado no Brasil. Ambas as Comunidades Quilombolas se identificam com algum destes processos, seja pela retomadas das terras, demarcação justa ou pelas respectivas titulações emitidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Desta forma, diante da demanda por reconhecimento e titulação das terras, é reforçada a grande lacuna existente no âmbito do artigo 68, do Decreto 4887/03, que diante da realidade apresentada pelas Comunidades Quilombolas acaba não sendo efetivado da maneira como deveria, pelo contrário, são postas várias implicações políticas que impedem a sua viabilização. Assim como os antigos quilombos, que trazem as marcas históricas de luta e resistência, as Comunidades Quilombolas na atualidade também permanecem na luta, para obterem maior reconhecimento, visibilidade social, igualdade e garantia de direitos. Em meio a tanta resistência, observa-se uma significativa diminuição dos integrantes das Comunidades, fato que contribui para a dispersão do grupo e a perda da identidade étnica. Essa característica apontada pelas Comunidades Quilombolas nas cartografias sociais revela que a realidade do Paraná é também a realidade nacional, conforme discussão apresentada por Almeida (2008), onde se atesta que devido a usurpação das terras o movimento quilombola vem perdendo o princípio de vertente ruralista e começa a compor suas relações sociais no cenário urbano, muitas vezes em condições precárias de sobrevivência. Cabe destacar que também são expressivas as demandas no âmbito de saúde e educação, que revelam o descaso desses serviços na área quilombola. Entre outras distintas demandas que compreendem a falta de acesso aos direitos sociais básicos, como: condições dignas de moradia, transporte, luz elétrica, água, saneamento básico, resgate e preservação das práticas culturais, esporte e lazer, assistência técnica, recuperação das escolas nas comunidades, espaço em políticas públicas, etc. O contexto histórico das Comunidades Quilombolas do Paraná trazem consigo as marcas de antigos conflitos econômicos, políticos e ideológicos, que contribuem para a 9 existência das demandas que foram evidenciadas. Assim, configuram-se as sequelas do período escravocrata que repercutem no cotidiano de tais Comunidades, que além da violência e do preconceito, sofrem os impactos do modelo econômico adotado pelo Estado brasileiro e de sua íntima relação com os interesses da classe dominante. Em relação ao outro eixo de análise, que compreende os avanços das políticas públicas na área quilombola. Primeiramente, cabe ressaltar que estas possuem um importante papel no âmbito da representação e materialização de parte das pautas de luta da etnia quilombola, assim, como de outros movimentos sociais, e podem ser vistas como respostas que o Estado deve oferecer para o atendimento das demandas apresentadas pela sociedade civil, neste caso em especial ao segmento quilombola. As Comunidades Quilombolas em discussão estão avançando em alguns aspectos relacionados às políticas públicas. Ambas já apresentam uma organização formal do segmento, por meio da elaboração dos Estatutos Quilombola e das Certidões de autoreconhecimento, emitidas pela Fundação Cultural Palmares, os quais são considerados objetos de conquista para estas Comunidades (ADRIÁNOPOLIS, 2009; GUARAPUAVA, 2009; PALMAS, 2010). Deste modo, a etnia quilombola aproxima-se dos princípios existentes na Convenção n° 169, a qual prevê a garantia do direito de autodefinição étnica e cultural, visando ampliar o acesso à educação, saúde e território, aos povos indígenas e tribais que trazem em seu contexto as marcas das desigualdades vivenciadas pelos domínios coloniais. Nas questões referentes à educação, a Comunidade Quilombola do Rocio vem avançando com a construção de escolas municipais e com a implantação de creches em duas dessas escolas. Aos poucos está sendo alcançada a efetivação da Lei n° 10.639/03, que visa promover a valorização do segmento étnico nacional, através da inclusão do ensino da história/cultura quilombola e História da África no currículo escolar, objetivo proposto pela Fundação Cultural Palmares (PALMAS, 2010). Conforme mostra a nova cartografia social, outras conquistas obtidas pela Comunidade Quilombola do Rocio foram: o Posto de Saúde com médico, equipe do Programa Saúde da Família (PSF) e agentes comunitárias da saúde; a instalação de luz elétrica e água encanada; pavimentação em algumas ruas da comunidade; construção da igreja; a construção 10 da sede da Associação de moradores e a acesso ao transporte coletivo até a Comunidade de Adelaide Maria Trindade Batista (PALMAS, 2010). Estes avanços correspondem às metas da Agenda Social Quilombola (ASQ), que visa articular as ações instituídas pelo Governo Federal a partir do Programa Brasil Quilombola (PBQ), mencionado anteriormente neste estudo. Tratando-se da Comunidade Quilombola João Surá, referente aos avanços das políticas públicas, primeiramente no âmbito da educação destacam-se: a construção da escola provisória de ensino fundamental e médio, denominada Diogo Ramos, a qual leva o nome de um ancestral da Comunidade; foi conquista da Biblioteca Arca das Letras e; a formação continuada para professores e integrantes do local (ADRIANÓPOLIS, 2009). O Quilombo João Surá vem obtendo algumas conquistas, como: a valorização da cultura tradicional, maior incentivo nas atividades de artesanato, contando com o centro comunitário para o uso dos quilombolas, a reativação de alguns pontos da Comunidade, entre estes: o funcionamento da Balsa das Andorinhas e a construção de ponte sobre o Ribeirão João Surá (ADRIANÓPOLIS, 2009). Observam-se significativos avanços nos aspectos culturais, que correspondem aos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, ficando sob a responsabilidade do Estado e dos municípios a valorização das manifestações culturais, crenças e costumes dos povos e comunidades tradicionais. Em relação aos avanços obtidos pela Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, que traz em seu contexto histórico as marcas da injustiça social, reflexo da desapropriação das terras, os quilombolas conseguiram o assentamento de 64 famílias segundo os critérios do estabelecidos pelo INCRA em 1998 e também o acampamento no Barranco em frente à fazenda desde 1995 (GUARAPUAVA, 2009). No âmbito da cultura destacam-se as práticas tradicionais religiosas e de cura, como: olhos d’água de São João Maria, o grupo de dança Kumdum Balê, benzedeiras e curadeiras, dança de São Gonçalo e festas religiosas (GUARAPUAVA, 2009). Trata-se de elementos tradicionais que compõem as características culturais da Invernada Paiol de Telha. A Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, caracteriza-se pela participação marcante nos espaços de formação e liderança na articulação com outros movimentos sociais. 11 Relacionado a isto, as Comunidades Quilombolas Paiol de Telha, do Rocio e João Surá atuam na unificação de suas reivindicações, juntamente com outros povos tradicionais do Paraná através da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná. Entretanto, uma das grandes conquistas obtidas pela etnia quilombola e demais povos tradicionais do Estado compreende a criação do Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná, que tem como meta possibilitar maior aproximação com o campo das políticas públicas (ADRIANÓPOLIS, 2009; GUARAPUAVA, 2009; PALMAS, 2010). Tratam-se de mecanismos que visam reforçar o viés de luta da etnia quilombola, entendidos como espaços fundamentais na luta por igualdade de direitos, esse aspecto é reforçado pela seguinte argumentação: “[...] Agora a gente aprendeu a ir em busca desses direitos nossos como eu falei né, e nunca desisti, sempre cada vez mais se reforça e busca, que nem as políticas públicas como diz o Alcione é poucas né mais aos pouquinho a gente vai conquistando porque vai lutando, vai buscando né”, Maria Arlete Ferreira da Silva, 65 anos (PALMAS, 2010, p.11). No que se refere a questão agrária, de acordo com as Comunidades Quilombolas esta ainda é uma problemática sem solução, cabendo ao Estado o papel de intervir no sentido de dar efetividade ao disposto no Art. 68 do Decreto 4887/2003, que visa garantir a propriedade definitiva das terras tradicionalmente ocupadas pelo segmento quilombola. Em suma, para que a população quilombola tenha os meios de trabalhar e permanecer na Comunidade, com garantias para a reprodução cultural, social, econômica e ancestral, fazse necessário que as terras sejam devidamente demarcadas e reconhecidas pelo INCRA. Como pode ser observado, houve alguns avanços por parte das políticas públicas para a etnia quilombola. Entretanto, é evidente a necessidade de plena efetivação destas, para que venham a ser pensadas e elaboradas conforme as demandas apresentadas no contexto social e nas particularidades das Comunidades Quilombolas do Paraná, considerando as pautas levantadas pelos segmentos étnicos e culturais nos espaços de participação democrática. O acesso e a permanência no território tradicionalmente ocupado é um elemento estrutural da luta deste povo, é o que, de fato, garantirá o resgate histórico de séculos de exploração e violação de direitos, conforme discutido ao longo deste trabalho. 12 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Compreende-se que a colonização do Brasil repercutiu no extermínio dos povos originários (indígenas) e na subalternização do negro, via trabalho escravo. A escravidão, servindo aos interesses econômicos, retirou dos negros o estatuto de cidadania, afastando-os do campo dos direitos humanos. Diante deste quadro, a fuga e resistência serviram de instrumento para o questionamento da situação de exploração e violência. A história dos quilombos é uma história de luta política por reconhecimento e por direitos, que atravessa os séculos e desemboca na luta contemporânea do movimento negro e das Comunidades Remanescentes de Quilombos. As Comunidades pesquisadas neste estudo permitiram refletir e atualizar esta problemática. Tal como no cenário nacional, o processo de colonização do Paraná se constituiu pautado nas conveniências das grandes elites tradicionais, fato que pode ser evidenciado nos relatos históricos dos quilombolas. Tal relação favorece a existência do fenômeno do patrimonialismo, categoria que têm seus reflexos na estrutura da sociedade de hoje e interfere no pleno acesso e igualdade de direitos, pois denota o vínculo existente entre o Estado e a classe dominante, interferindo no atendimento das demandas postas pelo segmento quilombola, especialmente no acesso a terra. Deste modo, os desafios para a materialização dos direitos e políticas públicas correlatas a etnia quilombola no Brasil ainda são imensos, principalmente em decorrência do projeto político hegemônico, que acaba atendendo aos interesses do grande capital, aqui no caso, os latifundiários e o agronegócio, negligenciando o atendimento das demandas quilombolas. Essa questão reforça que a incorporação do quilombo na ordem jurídica formal não tem sido suficiente para alterar as práticas de expropriação e invasão das terras, visto que a interferência destas práticas colabora com os casos de precariedade em que vivem os segmentos negros na atualidade. Assim, os resultados obtidos evidenciam que a demanda central dos quilombolas no Paraná se refere ao acesso e a permanência nos territórios tradicionais, sendo que as demais políticas (educação, saúde e cultura) tornam-se fragilizadas sem a titulação das terras. Os desafios para a conquista do território remontam o cenário estrutural que compõe a luta dos 13 negros no país, especialmente no que se refere às relações de poder que a classe dominante (diga-se os latifundiários) exerce sobre o Estado brasileiro. Diante deste cenário, pode-se considerar que o acesso ao território é, sem dúvida, a maior demanda da etnia quilombola no Paraná e as políticas públicas viabilizadas ainda não têm sido capaz de garantir o atendimento desta necessidade. Tal problemática só será efetivamente resolvida através de um intenso debate público, que revele as relações de força que permeiam o Estado brasileiro e influencie a materialização de direitos, especialmente através de uma ampla e democrática reforma agrária. REFERÊNCIAS: ADRIANÓPOLIS. Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. Fascículo 02, Comunidade Quilombola de João Surá. Adrianópolis-PR: UEA edições, 2009. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de Quilombo, Terras Indígenas, “Babaçuais Livre” “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2° Ed. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008. BRASIL. Programa Brasil Quilombola. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR. Brasília, 2004. Disponível em: <http://www.portaldaigualdade.gov.br/publicacoes/brasilquilombola_2004.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2013. CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 3° edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. GUARAPUAVA. Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil: Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha Fundão. Fascículo 01, Guarapuava-PR: UEA edições, 2009. MARTINELLI, Maria Lúcia (Coord.). O Uso de Abordagens Qualitativas na Pesquisa em Serviço Social: um instigante desafio. Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Identidade. São Paulo: NEP PUC/ SP, 2003. MARTINS, José de Souza. O Poder do Atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. 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