Normas diferenciadas: um exemplo de discriminação sexual institucionalizada Hábitos e convenções fortalecem crenças e paradigmas que poucos ousam questionar. Por exemplo, inúmeros psicólogos no Brasil, e provavelmente em outros países também, consideram natural a utilização de normas diferenciadas ao corrigir uma prova de um sujeito de sexo masculino ou feminino que tenha se submetido a um teste de interesses ou personalidade. Esta prática seria justificada se o teste fosse aplicado num contexto de diagnóstico, mas não é geralmente o caso, pois estes testes subjetivos servem, em princípio, para "ajudar" as pessoas a melhor determinar-se a respeito de seu futuro, carreira ou na escolha da formação e/ou da profissão. A utilização destes testes no contexto de orientação vocacional ou profissional possui claramente um objetivo de prognóstico, não de diagnóstico, e a escolha de utilizar normas separadas não só cria confusão, mas acima de tudo, se revela injusta. Por isto esta prática deveria ser banida, considerada ilegal, pois é antiética e discriminatória. A utilização de normas masculinas e femininas diferenciadas, no campo de interesses e de personalidade, não tem nenhuma base científica, é apenas o resultado de décadas de maus hábitos. É claro que a afirmação apresentada acima não é bem aceita nos ambientes oficiais (CFP outros CRP ou grupos organizados de psicólogos) e ainda menos pelos profissionais relutantes abandonar um hábito cuja legitimidade provavelmente nunca deu origem a longas reflexões discussões, pelo fato dela parecer, desde sempre, “evidente”. Portanto, num trabalho científico, única evidência consiste em sempre questionar as evidências! e a e a É relativamente simples mostrar que a prática de utilizar normas diferenciadas provoca confusão: imaginamos dois adolescentes com o mesmo nível de interesse científico que encontram um orientador/conselheiro. Com as normas separadas se um dos dois for uma menina, seu escore padronizado – qualquer seja o tipo escolhido - será mais elevado que o escore do rapaz. Se os dois se encontrarem na rua após a consulta e compararem seus resultados, a menina fará observar ao rapaz que ela é “mais feita” para estudos científicos que o seu camarada masculino, e ninguém nunca poderá explicar-lhe que esta constatação está definitivamente errada. A mesma observação pode ser feita a respeito dos interesses sociais: desta vez, com o mesmo nível, é o rapaz que receberá um escore padronizado superior ao da menina. Pode existir ainda pior: a diferença imposta pelas normas diferenciadas pode ser suficientemente grande para atribuir um resultado padronizado mais elevado a um rapaz, enquanto seu escore bruto é inferior ao de uma menina! Nesta altura vale a pena se perguntar: qual é o sentido deste tipo de avaliação? Os testes e instrumentos de avaliação não foram criados e desenvolvidos para evidenciar as diferenças? Qual é então o sentido de uma prática que tende precisamente a apagar estas diferenças, cuja interpretação constitui a base do prognóstico psicológico? Alguns podem contestar estes argumentos afirmando que as normas separadas foram introduzidas para evitar que a maioria das meninas fosse orientada para as profissões de tipo social, e a maioria dos rapazes para os estudos técnicos. É verdade que estas grandes diferenças, devidas a interesses fundamentalmente diferentes entre sexos, pelo menos em nossa sociedade, devem “ser corrigidas” de maneira a repartir melhor os sexos nos diversos setores profissionais, mas este papel de equilibrar a repartição deve ser assumido e dosado por um psicólogo orientador bem real, e não por um artifício de cálculo que ninguém nem pensa mais em questionar! © Moityca Eficiência Empresarial Ltda. 1 De fato, como acabamos de ver, o problema da escolha de normas psicométricas ultrapassa de longe o simples domínio técnico: concerne diretamente a responsabilidade social do psicólogo. Esta claro que se os resultados dos testes são usados para fomentar decisões, a escolha de normas específicas deve sempre ser acompanhada por uma reflexão crítica sobre todas suas implicações. Em particular é essencial entender que selecionar “o melhor” – que pode ser feito a partir de escores padronizados - não quer dizer que ele seja o “bom” – que só pode ser percebido utilizando escores absolutos. Esta diferenciação na seleção não proporciona necessariamente resultados equivalentes1. Para completar os cuidados que devem ser tomados com as normas, além das diferenciações masculino/feminino, é necessário também lembrar que a utilização de normas imprecisas, inadequadas ou obsoletas pode distorcer os resultados de teste mais fidedignos e ser fonte de decisões erradas ou imprecisas, gerando custos sociais inestimáveis. O controle das normas, de nosso ponto de vista, deveria ser um dever natural do usuário do teste durante sua atividade e não só dos editores que na maioria dos casos não dispõem de dados atualizados. Uma folha de cálculo do tipo Excel é um instrumento eficaz e simples de utilização que permite calcular periodicamente as normas (média e desvio padrão das respostas a um item). Se as normas apresentadas nos manuais dos testes aprovados pelo CFP a partir de 2001 são geralmente muito confiáveis, não devemos esquecer que como para tudo – elas envelhecem! Esperar 10 anos para recalculá-las é melhor do que o que acontecia, porém com o sistema centralizado elaborado para o Método Funcional a cada 100 aplicações as normas são afinadas e recalculadas a cada ano com base nos resultados coletados na prática. (por exemplo, a norma do LABEL foi recalculada em março 2010 (n=2640)). Antes de uma próxima avaliação de um candidato, verifique as normas que está utilizando e lembre-se deste artigo. O ato de selecionar é sempre complicado tanto do ponto de vista humano quanto técnico. Deve ser realizado em um quadro ético bem definido onde o selecionador deve criar as condições que forneçam a todos os candidatos oportunidades de sucesso equivalentes. A utilização de instrumentos com normas indiferenciadas e atualizadas é a primeira pedra de uma seleção bem sucedida... depois a competência do selecionador. Boa reflexão! Renzo Oswald São Paulo, 05 de junho de 2010 1 O objetivo da psicologia científica ou “diferencial” é descrever os componentes psíquicos do comportamento humano analisando-o de acordo com diversos “traços” aos quais são associados números. Estes números são supostos representar em qual nível de intensidade estes diversos traços manifestam-se na vida cotidiana, mas não representam valores absolutos; de fato é impossível conceber um nível zero para um traço psicológico, qualquer que seja ele. Os números utilizados em psicologia quantitativa – os escores em uma escala - representam apenas ordens relativas de traços medidos em pessoas diferentes. A psicologia científica “clássica” nunca utiliza uma escala absoluta (chamada também “escala de razão”), isto significa que os escores só permitem comparar os sujeitos entre eles. É necessário estar consciente que os instrumentos utilizados nesta abordagem não têm outro objetivo que o de evidenciar as diferenças dentro de um grupo de indivíduos e não permitem nenhuma inferência intra-pessoal. Isto significa que afirmar, por exemplo, que uma pessoa “é muito conscienciosa” na base de seus resultados em um teste subjetivo é enganosa, pois o teste só mostrou que “ela é mais conscienciosa que a maioria das pessoas”, sem conhecer o quanto a maioria das pessoas é conscienciosa!!! © Moityca Eficiência Empresarial Ltda. 2