A cidadania e participação social como caminhos para a Economia Solidária no Brasil Vitória Resende Soares Drumond Frederico Ferreira de Oliveira Resumo As transformações sociais ocorridas nos últimos anos possibilitaram a legitimação da luta dos movimentos sociais em prol da consolidação dos direitos no texto constitucional de 1988, criando assim um espaço no Brasil para o exercício do espírito democrático e cidadão. No cenário político-social do Brasil, o alcance dessa conquista só se tronou possível através das lutas e debates acerca dos movimentos sociais durante as décadas de 1970 e 1980, tornando latente a necessidade de estabelecer e reconhecer de fato estes movimentos e a participação da sociedade na concepção de uma cidadania de fato e não apenas de direito. Assim, este artigo apresenta um recorte da Economia Solidária como um importante exemplo de consolidação da conquista e acesso aos direitos civis, políticos e sociais. Também busca lançar-se no entendimento da base conceitual da cidadania a partir de diferentes autores e suas visões, ao mesmo tempo busca articular tais conceitos com a participação social e sua importância junto à luta para conquista da cidadania. Palavras Chaves: Cidadania, Economia Solidária. 1. A cidadania a partir das vertentes conceituais A essência do conceito de cidadania se baseia segundo Carvalho (2008) no amalgama dos direitos civis, dos direitos políticos e dos direitos sociais formando um conjunto de direitos que asseguraram aos cidadãos o amparo legal de suas necessidades, desejos e aspirações. Telles (2004) sugere que se questione e compreenda os direitos e a sua problematização para então compreender as dimensões e possibilidades na discussão da cidadania: “Os direitos são aqui tomados como práticas, discursos e valores que afetam o modo como desigualdades e diferenças são figurados no cenário público”. (TELLES, 2004, p.91) Stephan (2008) analisa que o direito é uma ferramenta vinculante entre os órgãos estatais de maneira geral, sendo necessária a participação do poder executivo ao propor e implementar as políticas públicas imperativas à satisfação dos direitos assegurados pela Constituição de 1988; já ao poder legislativo fica a incumbência de fiscalizar e preservar os valores, isto é, assegurar que as políticas públicas possam ser implementadas através de leis 1 que visem a sua correta colocação em prática, mas seguindo a interpretação dos preceitos constitucionais. Desta maneira a cidadania é vista como um processo que, para ser implementado, não depende somente da Constituição Federal de 1988, mas passa pelo viés da participação social junto ao poder público, seja ele executivo ou legislativo, ao corroborar na efetivação dos artigos e preceitos ali estabelecidos. A partir desta discussão, Dagnino (1994) apresenta que o conceito de cidadania é tomado nos dias de hoje como uma apropriação da sociedade ao buscar reivindicar a sua inserção em espaços e na luta de interesses, mas o cerne da questão está ligado a uma cultura democrática, isto é, a noção de cidadania constitui-se como “(...) fato de que ela organiza uma estratégia de construção democrática, de transformação social, que afirma um nexo constitutivo ente as dimensões da cultura e da política”. (DAGNINO, 1994, p. 103) A construção democrática e, por conseguinte, o alcance da cidadania é possível graças a um alargamento dos direitos democráticos previstos na Carta Magna de 1988, que na visão de Carvalho (2008) é a constituição com uma maior ênfase na liberalidade e na implantação da democracia de fato que a nação brasileira já teve em toda a sua história política, fazendo jus assim à alcunha de “Constituição Cidadã”. Neste tocante Tenório (1998, p. 15) remete a discussão da cidadania como uma ação política deliberativa, isto é, o cidadão deve buscar a sua participação ao praticar atos e ações democráticas em diferentes instâncias da sociedade para garantir o seu papel como sujeito social detentor de direitos. Assim o alcance da plenitude dos direitos instituídos na Constituição Cidadã segundo Dagnino (2004) deve passar como visto por Tenório (1998) pela constante participação da sociedade civil nos processos políticos para buscar assegurar que políticas e programas sociais possam de fato garantir o alcance da cidadania a todos de fato. De tal modo os cidadãos nas sociedades contemporâneas deixariam de ocupar o lugar de massa de indivíduos atomizados e despolitizados que compõem a esfera pública como meros espectadores e passariam a ser sujeitos ativos e participativos promotores de cidadania. Dagnino (1994) observa ainda que a cultura democrática, isto é, a busca pelos direitos passa pela formação de um novo sujeito social, aquele que compreende a sua participação 2 como um processo voltado para a mudança, para a luta da ampliação dos espaços da política, servindo assim como um instrumento para a construção de uma nação democrática de fato. Costa (2002) complementa o processo de participação quando recusa a fórmula rousseauísta segundo a qual a virtude cívica dos cidadãos individuais proporciona per se a constituição de um conjunto de cidadãos orientados para um bem comum. Para o autor a fonte da legitimidade política não pode ser a vontade dos cidadãos individuais, mas o resultado do processo comunicativo de formação da opinião e da vontade coletiva. Carvalho (2008) salienta que toda essa construção democrática política no seu cerne ainda possui entraves econômicos sérios, como a distribuição de renda, a diminuição da desigualdade social e o desemprego entre os membros da nação brasileira. A sociedade brasileira possui na visão de Telles (2004) uma incivilidade cotidiana, isto é, problemas sociais como violência, preconceitos e discriminações convivem no mesmo patamar que a descoberta dos direitos sociais, criando ambivalências no entendimento de direitos e privilégios, promovendo um ambiente de corporativismo por alguns e demanda de direitos por parte de outros. Esta realidade precisa ser enfrentada e combatida pela própria sociedade que deve ocupar o papel de agente de transformação social e superar o modelo de autoritarismo, culturalmente alicerçado na cultura brasileira. É com esse pensamento que Dagnino (1994) afirma que a efetivação da democracia se faz como um desafio ao buscar a superação do autoritarismo, possibilitando uma transcendência do nível institucional formal, isto é o poder público constituído em suas diferentes esferas, para uma nova relação social e um novo modelo de regime democrático.Costa (2002) relaciona a democracia com a esfera pública: Diferentemente dos tipos despóticos de governo que podem se sustentar através do mero uso da força, a democracia representa uma forma de dominação consentida, na qual as decisões necessitam ser permanentemente fundamentadas e justificadas dependendo sempre da anuência da comunidade política para que possam ser implementadas. Nesse processo, cabe à esfera pública um lugar central: ela se torna arena onde se dá tanto o amálgama da vontade coletiva quanto a justificação das decisões políticas previamente acertadas (COSTA, 2002, p 15). 3 Neste cerne Arroyo (1991) apresenta uma série de indagações e questionamentos que conduzem a uma visão da constituição da sociedade civil e de suas divisões sociais, marginalizando nitidamente àqueles que não possuem recursos financeiros, isto é, uma divisão de ricos e pobres, povo e povinho e com isso emerge um questionamento da validade e da capacidade dos menos favorecidos economicamente no anseio e na luta pela conquista dos direitos sociais no Brasil. Os pensamentos de Arroyo (1991) se configuram como preocupações corroboradas por Telles (2004) e Carvalho (2008) no que tange a segregação espacial entre as classes sociais brasileiras e com isso, a criação e acepção das demandas sociais geradas são negligenciadas pelo governo, por outros cidadãos e mesmo pela lei, pois são de segunda ordem, não se encontram aludidas no discurso neo-liberal dominante e dominado pelas altas classes sociais. Assim, a participação social não é fruto apenas de uma política pública ou de uma nova forma de política social, e vai além de uma conquista prevista a partir da Constituição Federal de 1988, para o alcance efetivo da cidadania para aqueles que estão à margem dos processos sociais, isto é, a participação social conforme os apontamento de Arroyo (1991, p. 78) é dirigida e orientada pelas camadas sociais marginalizadas tanto socialmente quanto economicamente que buscam um avanço no campo político, na história dos movimentos populares e na própria construção da cidadania. 2. Participação Social em Espaços Públicos e Políticos A participação social nos ambientes públicos e políticos foi marcada como uma contracorrente a partir das tensões sociais emergentes entre as décadas de 1970 e 1980, conforme é apresentado por Sader (2002) e Dagnino (2004) ao perceberem a intensificação das classes sociais marginalizadas na reinvindicação de demandas sociais (saúde, educação, moradia) e estruturais (saneamento, energia elétrica), além das questões e discussões de participação na vida social de maneira plena a partir do gênero, raça e etnia é que a luta dos movimentos sociais ganha a nova dimensão da participação. Para Costa (2002) os movimentos sociais emergem de um hiato entre os atores da esfera pública e o público. Assim, quando parte da platéia percebe que os temas que lhe 4 interessam não estão recebendo tratamento adequado pelos atores da esfera pública, estes seguimentos se organizam, buscando atenção pública para suas questões, ampliando portanto a região de input da esfera pública. Esse pensamento nos remete a uma construção de uma sociedade dividida em classes sociais e com isso o cidadão passa a ser visto como um objeto, aquele do qual pode se extrair algo de concreto, isto é, uma segregação social entre aqueles sujeitos pensantes e povo trabalhador, ou ainda em classe erudita e classe trabalhadora, classe opressora e classe oprimida e, sucintamente ricos e pobres. Este ambiente assim consolidado tornou-se por despertar e tornar latentes as diferenças sociais e as formas de inserção na sociedade como um todo e, por isso Sader (2002) e Dagnino (2004) apontam que as camadas oprimidas se organizam e partem para a luta e reivindicação de seus direitos e de sua inserção de maneira participativa na sociedade. Arroyo (1991) vai um pouco mais além ao observar a essência dessas formas de resistências e de lutas sociais empreendidas pelas camadas oprimidas ao comentar que a capacidade da educação, do conhecimento, de agir de modo racional e da proposição de idéias, isto é, ser parte e sujeito das camadas eruditas é que garante a sua capacidade de ser membro do corpo político. A afirmação acima citada é ainda vista com um certo olhar de estranhamento pela classe elitista brasileira ao buscar negar a participação dos assalariados, dos empregos comuns na luta por seus direitos e conquistas previstas a partir de 1988, porém, a cidadania passa a formar a constituição de sujeitos sociais ativos, isto é, os agentes políticos, que devem definir as demandas sociais que consideram como pertencentes ao conjunto de seus direitos para então ir lutar para o reconhecimento e aceitação dos mesmos. O reconhecimento das demandas sociais por parte das classes oprimidas e a sua ação de ir lutar para o atendimento das mesmas é que promove a construção da nova cidadania enquanto um processo para a consolidação do sujeito social ativo e participativo nos espaços públicos e políticos. Assim a população na visão de Arroyo (1991), os movimentos sociais, os sindicatos e mesmo as associações comunitárias ganham novos vultos e se politizam à medida que enfrentam novas disputas e, a força bruta, a luta é conjugada com conhecimento e educação: 5 “O povo vai construindo a cidadania e aprendendo a ser cidadão nesse processo de construção. O povo é agente de sua constituição como sujeito histórico”. (ARROYO, 1991, p. 75) Telles (2004) corrobora com Arroyo (1991) ao discutir que a pluralidade das opiniões em uma sociedade democrática deve ser expressa pelas camadas oprimidas para que os seus conflitos, as suas demandas, seus problemas possam ser compreendidos à luz da construção de critérios válidos e legítimos para a aspiração do alcance dos direitos civis, políticos e sociais que em sua essência foram a cidadania. Contudo é importante salientar que a participação social e mesmo a ação dos sujeitos excluídos e/ou marginalizados na história para a construção da cidadania no Brasil é mais presente do que oficialmente a história das classes dominantes nos relata com relação aos levantes de insatisfação com o regime político-administrativo do Brasil desde o seu período colonial até a conquista das diretas já em 1984. Essas novas relações sociais servem como pilar para o surgimento que Habernas (apud TELLES, 2004) conceitua como soberania popular descentralizada e pluralizada a partir dos múltiplos espaços públicos e na diferenciação dos direitos e aspirações sociais de cada grupo e movimento ao serem legitimadas através de atos públicos que buscam afetar a vida de todos em uma sociedade. A soberania popular descentralizada e pluralizada garante a legitimidade dos ideais demandados pelas diferentes parcelas da sociedade marginalizada, não há como compreender de maneira igualitária todas as demandas e aspirações sociais, cada comunidade, cada movimento, cada associação possui em seu núcleo necessidades e desejos isolados ou também, necessidades e desejos paritários que podem e devem ser discutidos e reivindicados com outros grupos ou movimentos sociais. 3. Economia Solidária: participação social e alcance da cidadania A observação no cenário nacional implica a uma percepção cada vez maior a respeito da participação dos movimentos sociais, das ações populares e do aumento de iniciativas que 6 busquem promover a geração de trabalho e renda às parcelas da população excluídas do formalismo do mercado neoliberal. A Economia Solidária se torna uma fonte de estudo e observação dos fenômenos descritos acima como um elemento integrador para a promoção da participação social e o alcance da cidadania pelos seus integrantes. Neder (2008) apresenta que esse setor vem se consolidado no Brasil como uma alternativa viável de trabalho, geração de renda e inclusão social ao apresentar os seguintes dados: No mapeamento nacional da economia solidária, iniciado em 2004 e atualizado em 2007 foram identificados aproximadamente 22 mil Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) e Entidades de Apoio, Assessoria e Fomento (EAF) que atuam, em 2.934 municípios do Brasil, correspondendo a 53% dos municípios brasileiros, com uma movimentação financeira na ordem de oito bilhões de reais ao ano, e envolvendo diretamente cerca de dois milhões de membros associados nessas organizações. (NEDER, 2008, p.08-09) A Economia Solidária demonstra que é visivelmente grande e que envolve uma parcela significante da população brasileira, merecendo assim estudos e pesquisas que compreendam seus impactos junto à sociedade e ao próprio mercado. Para que se compreenda o termo Economia Solidária, Corrêa (2009) compreende que é preciso dar uma ênfase àqueles que a compõem, isto é, seus sujeitos ativos: desempregados qualificados ou não, àqueles totalmente excluídos sejam dos processos de desenvolvimento de tecnologias ou dos programas oficiais do governo como saúde, habitação, educação, previdência social, sejam aqueles ainda marginalizados pela distribuição de renda e do sistema econômico oficial. Se por um lado temos já mencionado quem são os sujeitos e os contemplados com as ações da Economia Solidária, é preciso então descrever o conceito da economia solidária a partir da visão de autores e pesquisadores. Inicialmente Laville (apud LECHAT, 2002, p. 07) descreve o conceito de economia solidária como “(...) conjunto de atividades econômicas cuja lógica é distinta tanto da lógica do mercado capitalista quanto da lógica do Estado”, isto porque, a economia solidária busca 7 envolver e desenvolver-se a partir das relações humanas cujo laço social é priorizado através da reciprocidade, da solidariedade para promover formas comunitárias de propriedade. A reciprocidade, a solidariedade são conceitos chaves para o estabelecimento de uma democracia participativa e mesmo da cidadania plena, que na visão de Martins (2009) são exigências para que um novo modelo para a constituição de regulação da vida cotidiana possa assegurar a distribuição de renda, o respeito aos direitos sociais individuais e coletivos aos segmentos sociais excluídos, assegurando assim o respeito às diferenças sócio-econômicas das comunidades excluídas. A visão de Martins (2009) é corroborada por Corrêa (2009) ao perceberem que o sentido da solidariedade que envolverá as iniciativas da Economia Solidária não devem ser confundidas como práticas paternalistas, caridade e mesmo filantropia, pois o comprometimento junto ao trabalho a ser realizado de maneira coletiva, as práticas de cooperativismo e a ação comunitária comprometida perpassa pela ética e pelo estabelecimento das relações humanas, assim como numa nova ética nas relações laborais, econômicas e comerciais que os envolvidos na Economia Solidária irão assumir. Gaiger (2009) apresenta que o histórico da economia solidária no Brasil apresenta-se como uma perspectiva positiva e com uma promissora vertente de estudos ao encontrar apoio de ativistas, agências públicas e privadas de financiamento de estudos e pesquisas que buscam analisar a viabilidade de longo prazo dos empreendimentos de Economia Solidária ao serem vistos como uma expressão da conquista dos movimentos sociais em prol de uma mudança social e na promoção de uma visão estratégica de construção socialista. A defesa da Economia Solidária é, portanto na visão de Martins (2009) uma justificativa para que a solidariedade seja entendida como uma nova metodologia de ação para a implementação e desenvolvimento de programas sociais com viés democratizantes. E, Corrêa (2009) discute que a Economia Solidária não deve se ater somente na proposição de indicadores ou no fortalecimento de práticas econômicas que visem única e exclusivamente a geração de novos postos de trabalho e emprego ou mesmo na reintegração dos trabalhadores ao mercado formal de trabalho, pois com isso estaria assumindo uma características de mercado capitalista reproduzindo os aspectos da política neo-liberal. 8 O fator a ser favorecido ou mesmo consolidado é a maneira compartilhada do trabalho, da promoção da geração de emprego e renda a partir dos conhecimentos, dos saberes das experiências locais para o fortalecimento da identidade local, da comunidade solidária e assim a conquista plena da Economia Solidária. O trabalho, ou mesmo a força de trabalho, tão valorizado pelo mercado capitalista é visto a partir de um novo prisma: o trabalho consorciado, que para Gaiger (2009, p. 26) o trabalho consorciado é um agente de valorização dos próprios produtores: (...) confere à noção de eficiência uma conotação bem mais ampla, referida igualmente à qualidade de vida dos trabalhadores e à satisfação de objetivos culturais e ético-morais. Esse espírito distingue-se da racionalidade capitalista – que não é solidária e tampouco inclusiva – e da solidariedade popular comunitária – desprovida dos instrumentos adequados a um desempenho sócio-econômico que não seja circunscrito e marginal. Na visão de Gaiger (1999) o solidarismo e a cooperação no trabalho efetivam o favorecimento da viabilidade e da competitividade entre os empreendimentos econômicos populares solidários não impondo as regras tradicionais do mercado capitalista através de práticas exploratórias de trabalho. Enquanto perspectiva, a Economia Solidária deve ter como base, tanto em suas relações internas quanto as externas, a solidariedade. Ou seja, se para viabilizar o negócio, um empreendimento econômico solidário deve buscar uma estruturação que seja competitiva no mercado convencional no que se refere à organização da produção e distribuição, as relações internas devem ser orientadas pela solidariedade. As relações solidárias, no ambiente interno, são de mais fácil implementação, pois não sofrem as pressões do mercado convencional, organizado prioritariamente a partir de práticas competitivas, porém os valores do capitalismo (dos ganhos individuais, o outro visto como adversário , não como companheiro) estão tão arraigados nos trabalhadores e são tão difundidos pelas instituições que a solidariedade não se dá espontaneamente (ANTEAG, 2007, p 26). 9 Martins (2009) abre uma importante observação ao apontar que as iniciativas de redes sociais devem possuir canais que facilitem o exercício do poder da coletividade, para que indivíduos isolados ou lideranças oportunistas acabem por transformar as iniciativas de trabalho coletivo e solidário em novos modelos capitalistas de apropriação de recursos. Como exemplo pode-se citar que Corrêa (2009) infere ao apresentar que deve haver uma articulação entre diferentes empreendimentos de populares e solidários a fim de aumentar as possibilidades da realização de negócios solidários entre si, fomentando a rede e a colaboração solidária. Contudo não deve-se criar uma rede de negócios utópicas que exclua o mercado capitalista, os empreendimentos da Economia Solidária devem sempre possuir a maior rede de contatos para o estabelecimentos de novos negócios e que busquem a promoção e valorização de suas atividades e iniciativas. A cidadania e a participação social são vistos como elementos integradores para a concretização das ações da Economia Solidária ao promover às parcelas marginalizadas, excluídas do mercado formal de trabalho e do capitalismo com seus desdobramentos nas políticas econômicas neo-liberais o acesso aos direitos políticos, sociais e civis como membros de uma sociedade democrática plena. A transgressão é assim uma marca dos movimentos sociais e mesmo da Economia Solidária ao não concordar com a manutenção de práticas sociais excludentes e da formalização do mercado de trabalho, isto é, novas formas devem ser concebidas e conquistadas pela própria sociedade como um espaço do diálogo entre os diferentes e excluídos. Neder (2008) justifica tais pensamentos ao expor que o território da identidade nacional deve ser extrapolado pelos membros da Economia Solidária ao visualizar um cenário ainda dotado de pensamentos e discursos liberais clássicos e voltados para um Estado e uma sociedade capitalista centralizadora, mas ao mesmo tempo enquadra-se a partir do território da pluralidade transformadora, pois a Economia Solidária é portadora de uma série de novos valores identificados com a emancipação da própria sociedade em oposição aos princípios de regulamentação e controles que exercem os pólos estatais e o mercado capitalista. Um empreendimento de Economia Solidária, em sua atuação questiona a organização hierárquica e alienante do trabalho onde a gestão e execução das atividades não se concentram 10 na mesma pessoa, a distribuição dos resultados em função do capital e a atuação não reflexiva no mercado convencional. A autogestão é então o conceito norteador para os empreendimentos de Economia Solidária, que Bensadon (2010, p. 2) demarca a diferenciação de um modelo organizativo para com o sistema capitalista: pois toma como características os aspectos subjetivos dos sujeitos participantes, dentre eles “[...] o coletivo, as emoções, a experiência, a linguagem, a história, a mudança cultural, as contradições, a singularidade das experiências e a gestão”. (BENSADON, 2010, p. 5) Já para ANTEAG (2004, p. 42) a autogestão é lida como autonomia: as pessoas congregadas em organizações sociais possuem o poder para criarem suas regras, seus regulamentos, suas normas a partir de sua realidade, de sua cultura, de suas necessidades. O conceito ainda por ser compreendido como autodeterminação ao se referir à autonomia, no que tange às decisões e no controle pertencente aos próprios trabalhadores que realizam a gestão de um determinado empreendimento. Essa distinção se faz importante na visão da ANTEAG (2004, p. 42) como uma capacidade de diferenciação dos cidadãos que gerem empreendimentos de Economia Solidária ao percebem que a autonomia e autodeterminação constroem novos laços para a autogestão e para a criação de uma nova consciência a respeito da realidade que os cerca. A idéia de autogestão é um processo na visão de Cançado e Cançado (2009, p. 67) como avanço em relação aos níveis de consciência dos membros dos empreendimentos de Economia Solidária confirmando a visão da ANTEAG (2004): [...] a autogestão seja alcançada, à medida que é um processo, deve estar presente a consciência crítica. Lembrando que a consciência crítica também não é estática, podem também ser compreendida como um processo de educação (a exemplo da autogestão), propomos que exista um paralelo entre construção da autogestão nos empreendimentos de econômica solidária e a evolução da consciência do grupo para a consciência crítica. (CANÇADO; CANÇADO, 2009, p. 67) A autogestão conduz aos membros dos empreendimentos de Economia Solidária a uma nova percepção de sociedade, de cidadania e de um estreitamento nos interesses de participação social, seja no próprio movimento ou na reinvindicação de direitos sociais ao 11 passar a ser detentor como apresentado por Cançado e Cançado (2009) de uma consciência crítica a respeito da sociedade de maneira geral. Tenório (1998, p.16) infere nessa argumentação aos destacar que as organizações do terceiro setor, no caso abordado os empreendimentos de Economia Solidária, são fundados a partir a partir de uma coordenação dos meios e dos fins, isto é, o desempenho gerencial almejado dessas organizações é o de propiciar a gestão social, as privilegiar as relações subjetivas cujo objetivo central dessas relações é o bem comum, e não lógica do mercado, da hierarquização, da segregação, do distanciamento entre o pensar e o agir solidários. Desta maneira Arroyo (2008, p. 78) apresenta que a cooperação econômica é baseada na interação social a partir de uma construção cultural estratégica na qual os objetivos dos cooperados, e neste estudo lê-se nos membros dos empreendimentos de Economia Solidária, são comuns, as ações e os benefícios são compartilhados e distribuídos com equidade para todos os membros participantes do empreendimento cooperado. Perceber os empreendimentos de Economia Solidária é buscar se envolver com projetos, parcerias e práticas sociais que enaltecem a diferença perante outros empreendimentos inscritos no mercado formal do capital, pois a cooperação e a confiança segundo dados da ANTEAG (2004a, p. 12) prevalecem sobre o espírito de competição, de concorrência e do individualismo que destroem os laços sociais, a busca pelos direitos sociais e de construção de um novo modelo de vida e de sociedade. Assim a Economia Solidária se configura como uma forma de organização econômica, que tem, contudo, bases distintas de relacionamento focada nas pessoas e não no capital corporificada na organização coletiva da gestão dos empreendimentos com vistas à prática da solidariedade. Portanto, a Economia Solidária é vista com um processo de economia plural, integradora, socializante, democratizadora, solidária e coletiva para aqueles que se integram e busquem conviver e articular tais conceitos e ações com outras comunidades e territórios alcançando a cidadania, participando de uma sociedade democratizada e construindo um novo modelo para o mercado de trabalho capitalista. 4. Considerações Finais 12 Superar os comportamentos sociais impostos desde o período colonial para a criação de um Estado Democrático de fato representa ainda um caminho que muitos cidadãos brasileiros terão de construir em conjunto com toda a sociedade, isto é, superar a dominação, a exclusão social, a divisão de classes e compreender e respeitar a participação social como um espaço da democracia e da cidadania de todos. A Economia Solidária com seus inúmeros desdobramentos que são possíveis através da solidariedade como forma de trabalho remete a um questionamento de como é possível criar novos modelos e novas formas de cidadania com cidadãos simples, marginalizados do processo educacional, mas que possuem em seu seio uma necessidade e um desejo na edificação de Brasil mais justo e mais unido. A participação social no tocante à reivindicação de seus direitos abre espaço para que o próprio Estado se questione se políticas públicas estão realmente assegurando e favorecendo a todos os membros da comunidade ou se está apenas servindo para a criação de clientelismos, manutenção do paternalismo ou até mesmo consolidando políticas centralizadoras. É importante o questionamento frente às experiências sociais de grande vulto, como no caso a Economia Solidária, para que o Estado e mesmo a sociedade em geral desmistifique os movimentos sociais não somente como cidadãos revolucionários ou de guerrilhas, mas como membros de uma nação que buscam o crescimento e o reconhecimento do Brasil junto a outras nações desenvolvidas como um país democrático, inovador e solidário. Outros estudos devem ser empreendidos na compreensão dos desdobramentos nesta pesquisa apresentada para que outras experiências sociais possam ser socializadas com a comunidade acadêmica e mesmo com a sociedade em geral provando que a participação social é fruto da democracia e da cidadania conquistadas legalmente no Brasil. Referências Bibliográficas ANTEAG - Associação nacional dos trabalhadores em empresas de autogestão e participação acionária. Autogestão e economia solidária: uma nova metodologia. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 2004. 13 ________. Autogestão e economia solidária: uma nova metodologia. 2. vol. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 2004(a). ARROYO, João Cláudio Tupinambá. Cooperação econômica versus competitividade social. IN: Rev. Katál. Florianópolis. v. 11, n. 1, p. 73-83 jan./jun. 2008. ARROYO, Miguel. Educação e exclusão da cidadania. In: ARROYO, Miguel; BUFFA, Ester; NOSELLA, Paolo. Educação e cidadania: quem educa o cidadão. 13.ed. 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