UMA REFLEXÃO SOBRE O FENÔMENO RELIGIOSO A PARTIRDE UM DIÁLOGO COM FREUD Antonio Carlos S. Guimarães Resumo: o presente artigo se propõe a fazer algumas reflexões sobre o fenômeno religioso a partir de uma crítica à noção freudiana de religiosidade elaborada em ‘O mal-estar na civilização’. Pondo em cena também a figura de Kierkegaard, o autor enfoca o reducionismo da noção psicanalítica de natureza humana, fazendo uma relação dialética desta com certas perspectivas da filosofia oriental, para as quais a alma tem a potencialidade divina. Palavras-chave: psicanálise, Kierkegaard, propósito, filosofia, iluminação O que olha o abismo com olhos de águia; o que se prende ao abismo com garras de águia: é este o destemido. (Nietzsche) oloquemos em cena o homem cujas idéias fazem titubear o crente desavisado, o homem que, numa carta, disse reconhecer fazer parte daqueles que vieram para “atrapalhar o sono do mundo”, Sigmund Freud (1856-1939). Perguntado certa vez o que diria caso fosse colocado frente a frente com Deus, disse que reclamaria ao Altíssimo não ter sido equipado de um aparelho mental mais qualificado. Essa passagem é no mínimo curiosa, dado que poucas mentes foram tão profícuas quanto a dele. Ademais, Freud duvidou. Não uma dúvida qualquer, duvidou com originalidade e método, evidenciando os pontos fracos do crente, fazendo este remexer na cama de insônia e de preocupação. C FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. 591 Quem lê O mal-estar na civilização, um texto de 1929, pode vislumbrar um pouco do que estamos falando. Para Freud, a vida é árdua e para suportá-la não podemos abrir mão de medidas paliativas. A religião, para ele, é uma dessas medidas. Mas toma o cuidado de dizer que não está preocupado em mostrar as fontes mais profundas da religiosidade, antes fala da religião tal como a exercita o homem comum (FREUD, 1978). Para o pai da psicanálise, a questão do propósito da vida, que a religião se colocou como capaz de resolver, não recebeu resposta satisfatória e parece decorrer da presunção humana, tanto que pouca gente se pergunta sobre o propósito da vida dos animais, exceto quando o destino destes interfere no nosso. Dever-se-ia colocar a questão de maneira menos ambiciosa: o que as pessoas, concretamente, de acordo com seus comportamentos, mostram ser a intenção das suas vidas? Buscam a felicidade, propósito nada metafísico e que domina o funcionamento do aparelho psíquico. De acordo com o princípio que regula o id, simplesmente buscamos experimentar intensas sensações de prazer e evitar o sofrimento. Noutros termos, esse propósito não pode ser executado, pois o sofrimento nos ameaça de três lados: do nosso corpo, naturalmente sujeito à decadência, do mundo externo e dos nossos relacionamentos com os outros, uma espécie de acréscimo gratuito. A dose de verdade que nos tirou o sono foi que o sofrimento provém da nossa própria constituição psíquica. Como diria Schopenhauer, somos como porcos espinhos no inverno. Assim, como a infelicidade é menos difícil de experimentar, fomos ficando mais modestos e o princípio do prazer cedeu lugar ao princípio da realidade: agora ser feliz significa simplesmente escapar ao sofrimento. Ou seja, nada de querer ficar rico, basta conseguir pagar as contas. Freud mostra diversos meios que as pessoas utilizam para tentar escapar ao sofrimento, meios que representam um constante jogo de adaptação e escolha, adequados à constituição psíquica de cada um. Uma escolha extrema é perigosa, assim como não se deve apostar todas as fichas num único número da roleta. E, para ele, a religião restringe a dinâmica desse jogo de possibilidades, pois prega um único caminho. Como? Através da técnica de depreciar o valor da vida, deformando o quadro do mundo de modo delirante, o que pressupõe uma intimidação da inteligência (FREUD, 1978). Nessa linha de raciocínio, qual é, para Freud, a origem da religiosidade? O mal-estar na civilização começa basicamente com essa questão. Freud recebe uma carta de Romain Rolland o qual, após ter lido a obra O futuro de uma ilusão, diz concordar com Freud que a religião é uma ilusão; não, porém, quanto à fonte dela. Para Romain Rolland, a fonte da energia religiosa é um certo 592 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. “sentimento oceânico”, um sentimento de imensidão, de vínculo com as pessoas, com a natureza e com o universo, porém algo meramente subjetivo, não um artigo de fé, não garante uma imortalidade pessoal. Mas isso soa estranha à psicanálise. Qual é, então, a explicação para esse sentimento que Freud diz não ter? Ora, no contexto psicanalítico, nada é mais certo do que o sentimento do nosso ego. Percebemos o nosso ego como autônomo e distinto de tudo, apesar de continuado para dentro, sem nítida demarcação, pela instância inconsciente do id. Somente em dois casos as fronteiras do ego parecem se diluir: em casos patológicos e no auge do sentimento de amor, quando duas pessoas se conduzem como se fossem uma. Todavia, nem sempre o ego foi assim delimitado, deve ter passado por um processo de desenvolvimento. Com efeito, o recém-nascido não distingue seu ego do mundo externo. Aprende a fazê-lo gradativamente, reagindo a estímulos, como a presença-ausência do seio materno, o primeiro objeto de contraste entre o ego da criança e algo externo. A criança vai experimentando sensações de sofrimento e desprazer e percebendo que certos sofrimentos são de origem interna, o que constitui o primeiro passo para a criação do princípio de realidade. Para Freud, o sentimento oceânico nada mais é do que a persistência no adulto dessa fase primitiva do ego que ainda não se distinguia das coisas (FREUD, 1978). Que direito tem tal sentimento de ser considerado como fonte das necessidades religiosas? Nenhum, pois um sentimento só pode ser fonte de energia se ele próprio for expressão duma necessidade intensa. E não há na infância nenhuma necessidade tão intensa quanto a de proteção do pai. Tal necessidade, sendo permanentemente sustentada pelo medo superior do Destino, leva-nos a projetar/criar a imagem de um pai engrandecido (Deus), capaz de nos proteger e satisfazer nossas necessidades existenciais. Ou seja, a religião decorre duma projeção da insegura mente humana, sendo uma ilusão psicológica (FREUD, 1978). Para Freud, os mandamentos “Amai ao próximo como a ti mesmo” e “Amai teus inimigos” são impossíveis de serem cumpridos. São contrários à própria natureza humana, egoísta e dotada duma cota considerável de agressividade (FREUD, 1978). Não passam de artifícios da civilização para conter essa agressividade pronta a se manifestar a qualquer momento. Tanto que só podemos vincular certo número de pessoas pelos laços do amor quando deslocamos nossa agressividade para algum objeto, por isso os habitantes de países vizinhos costumam viver em conflito. Freud conclui seu raciocínio cético dizendo que o sentimento oceânico se vinculou à religião posteriormente e foi uma primeira tentativa de FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. 593 “consolação religiosa” e nos dá um conselho, citando as palavras de Schiller: “Regozige-se aquele que aqui em cima respira, na rósea luz!” (FREUD, 1978, p. 138). Ou seja, nos conformemos, aceitemos a realidade tal é, nua e crua, não há nada além de nós, carentes, dos animais, da natureza e do universo frio e silencioso. A morte do pai não corresponde ao que pretendemos aqui. Tal empresa, não raro, pode representar a morte do próprio filho, dado que este tem a imagem daquele interiorizada pelo processo de identificação. Processo não menos doloroso é o de luto e melancolia decorrentes da perda de um objeto tão caro a nós. Mas talvez a expressão melhor não seja perda e sim nova atribuição de significado às coisas, dado que, em condições normais, ninguém muda por completo. Nesse sentido, morremos e nascemos a cada momento. Logo, não há necessidade de matar quem nos constitui, ainda mais quem tem tantos pais como o autor destas linhas. Quando lemos O desespero humano, de Kierkegaard (1813-1855), ficamos quase convencidos do que o ser humano é desesperado por natureza. Para Kierkegaard, com efeito, o que difere o homem do animal é a sua capacidade de se desesperar. As pessoas normalmente parecem viver fugindo de si, buscando não se sabe o que, porém sempre tentando se preencher com algo externo. Tal busca, com o tempo, com a repetição das experiências e rotinas exigidas pelo cotidiano, com nossa dificuldade de fazer de cada momento uma novidade, leva ao tédio. Um dia, a angústia do tédio nos força a, dialeticamente, mudar a direção do caminho para dentro de nós mesmos. O que encontramos dentro de nós? Primeiramente a decepção de perceber que a imagem que fazíamos de nós mesmos não corresponde ao que somos. Depois encontramos o vazio. Um professor amigo nos contou o dia em que foi conhecer um deserto. Nunca, disse ele, tinha se deparado com um silencio tão aterrador. Talvez nunca tinha se colocado tão próximo de si, ou seja, do seu vazio. Quem teria a coragem de olhar assim de frente para si diante do desespero? Quando se sentia angustiado Kierkegaard dizia: “Seja bem vinda angústia! Esmaguemos a finitude!” Lancemos no ar a provocante pergunta de Nietzsche: Qual é a dose de verdade que cada um suporta? A sorte nossa, acreditamos, foi a criação da homeopatia: pequenas doses de verdade convêm mais ao nosso espírito acostumado ao trivial. Enquanto Freud duvidou, Kierkegaard, porém, do fundo do abismo, encontrou o fio da fé. Mas cada coisa no seu tempo. Com efeito, a psicanálise freudiana como teoria da personalidade, representa uma imagem reducionista do ser humano. Uma imagem cuja base 594 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. é herdada da biologia de Darwin. O colega Schiavo (2004), no interessante artigo Conceitos e interpretações da religião, coloca a interpretação freudiana da religião como fazendo parte da explicação racionalista e materialista. O reducionismo ao qual nos referimos decorre da idéia de que, para nós, o ser humano, em essência, é muito mais do que matéria e razão. O problema das nossas teorias, a propósito, inclusive desta que estamos defendendo, é que só podem expressar/representar certas dimensões da realidade. São fragilizadas por um sem fim de aspectos, como as limitações próprias da subjetividade de quem teoriza, ainda mais de quem só especula, a restrição da linguagem e o próprio dinamismo da realidade. Consciente ou inconscientemente, criamos modelos explicativos que priorizam certos aspectos do real e menosprezam outros. Modelos que só funcionam dentro de determinados domínios. Aceitar nossas limitações é sinal de bom senso. Freud olhou com profundidade para o ser humano através dum modelo simples que ajuda muito a nos desvendarmos. Olhou para a força da energia humana, porém, acreditando tratar-se somente duma energia biológica. Temos a convicção, porém, de que, em essência o ser humano é muito mais do que isso. Que tem habitando dentro de si, no seu âmago, um espírito, um espírito capaz de desenvolver potencialidades talvez ao infinito, capaz de evoluir, e transcender sobremaneira a matéria. Aqui no ocidente, infelizmente, supervalorizamos a razão em detrimento de outras potencialidades. O sentido da intuição, por exemplo, foi relegado para os cantos da nossa casa, ao custo duma asfixia do espírito. Desvendar a nós, nos construir, dar sentido ao mundo e à nossa vida, porém, é a mais árdua e difícil tarefa que há. Se o ser humano fosse somente razão e matéria perecíveis, pouca esperança haveria para nós. Por mais que nossa mente nos iludisse, um dia o véu cairia e só haveria desespero, somente choro e ranger de dentes. Mas no fundo de nós há uma luz divina que não quer se apagar, que pode nos infundir fé, nos alimentar, dando sentido e beleza à vida. A própria psicanálise pode e muito - para quem tem dinheiro, claro! - dar sua contribuição ao nosso árduo e belo processo de autoconhecimento. Inegável as vantagens para quem se der ao direito de fazer uma análise, olhando a fundo para a construção que fez de si, deixando aflorar seus conteúdos, procurando vencer resistências e olhando para seus mecanismos de defesa. O processo de análise pessoal pode, com todo direito, servir como um primeiro e importante passo de busca da essência de nós mesmos. Toda busca decorre dum anseio às vezes vago e duma insatisfação consigo e com a vida. Esse primeiro momento é doloroso, causa um profundo medo e malFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. 595 estar, pois o espírito não se faz conhecer assim tão facilmente e o indivíduo sofre a decepção de gradativamente ir vendo suas ilusões. Kierkegaard acredita que o desespero humano, ao qual, segundo ele, estamos fadados, desespero de nos confrontarmos com nosso vazio, decorre do fato de não nos aceitarmos como somos: dependentes de Deus. Numa bela imagem, diz que Deus está o tempo todo olhando para a música de cada um. Quando olha para alguém que está alegre, festivo, diz consigo que esse não é o tom correto. Mas quando vê alguém sem saída, sofrendo a cortante dor do desespero diz: Eis o tom! Agora só resta ao desesperado o salto da fé, a entrega a Deus, dado que já não tem mais outro lugar aonde ir, atitude ainda não tão confortável, pois para ele Deus é absolutamente real e absolutamente incompreensível. Decorre disso e da singularidade de cada existência, para Kierkegaard, a impossibilidade de haver uma teologia. Mas o processo de busca da verdade, esse amor à sabedoria, essa abertura do espírito, essa construção e emergência do novo ser não é só dor. Seria se em essência só fôssemos matéria. A dor excessiva provavelmente decorre da nossa ignorância, do nosso momento e grau de ser. Ignorância do espírito que desconhece sua riqueza, beleza e força. Espírito que se encarcerou numa camisa de força conceitual, imaginando-se e fazendo-se comum, impondo a si, por conseguinte, uma impossibilidade de além-fronteiras. A imagem muito usada de que o espírito é como uma águia criada entre galinhas é pertinente. Ou, como diz um poeta, a alma é feita da mesma matéria de que são feitos os sonhos. Tal não significa senão que em essência o espírito é divino. Expressão do mesmo espírito da Divindade, pois uma verdade só tem sentido quando nela nos reconhecemos. A Divindade é transcendente e imanente ao mesmo tempo. Por isso é quase impossível uma delimitação entre o sagrado e o profano, pois nosso espírito tem a capacidade de fazer de cada ato, coisa ou momento, sagrados, belíssimos, ricos de sentido, como o fazem as crianças. Conta-se, a propósito, que certo missionário cristão foi para a África para evangelizar certos povos. Conseguiu junto a uma tribo uma aceitação tão rápida que atribuiu o sucesso à própria ação de Deus. Todos os dias dirigia ao povo as palavras de Deus e recebia uma reverência incomum. Tamanha foi sua decepção quando descobriu que o que veneravam não era ele, tampouco sua mensagem, já que sequer entendiam suas palavras. Adoravam era a cadeira na qual costumava sentar! Notável essa capacidade do espírito de sacralizar as coisas! Como se diz no Zen Budismo: O segredo do Zen é uma veneração por tudo o que existe. Uma experiência religiosa, uma manifestação do sagrado, não representa a presença do inteiramente Outro em nós. Representa a presença do 596 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. inteiramente Nós. O sagrado somos nós ou nós somos o sagrado. Nós somos a Divindade ou a Divindade é nós, tanto faz. Lembremos, pois, a bela passagem do Evangelho de João em que Cristo diz: “Eu e o Pai somos um!”, passagem que encerra uma verdade profunda do espírito. A psicanálise, por conseguinte, não dispõe de instrumentos para ir além de certo ponto nessa trajetória. Deixar o paciente no divã, à vontade, trazendo à luz seus conteúdos inconscientes para serem trabalhados, dentro do seu referencial teórico-explicativo já é um grande passo. Entendemos a limitação do modelo freudiano quando, ainda no Mal-estar na civilização, um outro amigo de Freud relaciona o fenômeno religioso à prática de yoga. Diz que através de tais práticas podemos evocar sensações que significam um regresso a estados primordiais da mente há muito recobertos e Freud (1978, p. 138) atribui isso a vinculações com certo número de “obscuras modificações da vida mental”, como os transes e êxtases. Freud teria também pouco ou nada a dizer diante dum fenômeno espiritual como Ramana Maharshi, diante do qual o próprio Jung, ao prefaciar a obra Ensinamentos espirituais, diz que a noção de Eu superior ali descrita representa algo que a psicologia está muito além de propor (JUNG apud MAHARSHI, 1998, p. 9). Diante de São Francisco a explicação freudiana no Mal estar na civilização é engenhosa, contanto que não atinge o cerne da questão (FREUD, 1978). Menos ainda Freud conseguiria, à luz da sua teoria, explicar mestres espirituais como Sai Baba, Krishnamurti, Iogananda e Buda. O que dizer sobre o fenômeno da mediunidade? Como explicar dentro dos moldes do humano demasiado humano a infinita beleza e criatividade dos gregos, obcecados pela excelência em tudo o que faziam? Para os gregos, com efeito, a maior obra de arte que se poderia construir era o próprio ser humano. Em todos os domínios foram brilhantes. Quando Platão (427-346a.C.), para quem filosofia, religião e mito não se separavam, criticava os Sofistas, muita gente atribui isso ao fato dele ser um aristocrata aborrecido com alguém que cobrava para ensinar filosofia. Nada mais rasteiro. O que Platão não entendia era o desencantamento do ceticismo sofístico. A perplexidade foi por não entender como alguém podia viver a filosofia senão como algo sagrado, como busca desinteressada da verdade. Também Sócrates (469-399a.C), que não era aristocrata, não entendia tal comércio. E para quem não está satisfeito, o que dizer de Diógenes de Sinope (424-323a.C.), o sábio mendigo, que fazia coro à crítica? Diante do sagrado, diante de algo maior, do néctar do espírito, ficamos perplexos, encantados. Não raro ficamos em silêncio. Como diria LaoTsé: Quem sabe, não diz; quem diz, não sabe! Se vale a pena se levantar a FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. 597 cada dia, trabalhar, lutar, estudar, interagir com as pessoas e criar filhos, é porque tudo isso nos faz e porque nosso espírito pode dá um sentido a tudo isso. Trata-se da extraordinária aventura de formação do nosso espírito. A vida pode ter sentido porque há a iluminação espiritual, diante da qual Freud, como qualquer um de nós tem de se calar admirado. Além do silêncio, que parece estar gradativamente esvaindo-se do nosso meio, a linguagem mais apropriada para cantar o sagrado é a linguagem mítico-poética. Como diria inteligentemente Heidegger, a poesia é a linguagem do Ser. Não é por acaso que muitos textos ditos sagrados são escritos em tal linguagem. Como falar de algo intangível, belo e inefável como a manifestação do sagrado, senão com linguagem semelhante? Um mito como o de Eros e Psiqué, por exemplo, consegue com sua rica expressividade evidenciar bem a manifestação do sagrado1. Poucos textos são mais belos do que Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. Ao lê-lo, pela primeira vez entendemos o significado de fazer amor com as palavras. Por incrível que pareça, o espírito humano-divino pode, assim como a um toque suave, transformar em beleza tudo a sua volta, pode, todavia, fazer-se monossilábico, transformando a si e às coisas ao redor em palidez. Trata-se do fenômeno do desencanto, da dessacralização da vida, fenômeno que mereceria todo um desenvolvimento a parte. Dado que essa vivência religiosa, ou processo de busca do que é essencial, deveria decorrer da manifestação da liberdade do espírito, este por infinitas razões, encarcera-se numa identidade que criou de si, identifica-se com um papel, cria sistemas explicativos da realidade, apega-se aos dogmas e a certas práticas religiosas, habita preguiçosamente as instituições que criou, impedindo seu movimento e limitando suas possibilidades de experienciar a realidade. Trata-se do estranho fenômeno do exílio do espírito. Mas, como dizia Goethe, é bom lembrar que: “Pálida, amigo, é toda teoria, mas a árvore da vida é verdejante” (CHUC, 1997, p. 61). Óbvio que cada um deve exercitar sua busca de acordo com suas possibilidades, seu grau de ser e suas condições psicológicas. Exigir demais de si é uma injustiça consigo, como o é exigir de menos. Porém, difícil entender alguém que se apega, quer a um sistema religioso ou filosófico pelo resto da vida. Normalmente as pessoas se tornam seguidoras, quer de um santo ou de um filósofo, e pronto. Como se isso as eximisse da necessidade do esforço nessa busca existencial. É comum, pois, criarmos referenciais que mais parecem formas de auto-proteção do que atitudes que vêm do nosso âmago, o que empobrece o emergir da nossa singularidade. 598 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. Nesse sentido, Freud tem razão, nossas práticas religiosas parecem ilusórias. Convém, pois, mostrarmos a passagem em que ele fala do sentido mesmo em que as exercitamos: Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão [1927c], estava mito menos interessado nas fontes mais profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião – o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui. O homem comum só pode imaginar essa Providência sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido. Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens, enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso. Tudo é tão patentemente infantil, tão estranho à realidade, que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão da vida. Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o número de pessoas de hoje que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável e, não obstante isso, tentam defendê-la, item por item, numa série de lamentáveis atos retrógrados (FREUD, 1978, p. 139). O fato de muitas pessoas praticarem a religião como uma fuga de si – e o ser humano foge de si de várias formas -, longe está de invalidar o sentido profundo da mesma. É perfeitamente natural que o sentimento de desamparo infantil nos leve à projeção duma imagem mental de Deus, e quantas imagens não criamos. Natural também que se abram igrejas-empresas ao deusdará e a religião seja exercitada como uma arrogante forma de riqueza e poder, mas ninguém pode apagar a luz do espírito. Por mais que institucionalizemos o espírito no meio de todas as regras possíveis, eis que o sopro do mesmo se faz mostrar de alguma forma. O sentido profundo da vivência religiosa nunca pode ser sinônimo de intimidação da inteligência e da pregação de um único caminho ou uma ocasião para fuga da realidade, senão Freud tem toda razão e ponto final. Muito menos que tenha essencialmente o sentido kierkegaardiano do salto no escuro da fé, pois o espírito tem sua própria seiva. É tão comum nos identificarmos com nossas projeções, que não raro o fenômeno da converFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. 599 são é antecedido de uma dor profunda, a uma profunda decepção consigo. Entendemos, pois, o desespero humano como um momento nosso diante do real. Obviamente qualquer ego que construímos jamais terá continuamente a soberania que às vezes sonhamos. Contanto que a plasticidade do espírito seja imensa, capaz, portanto, de recriar/reformular nosso ego, nossa força não vem desse resultado, mas da essência mesma que o plasma. Claro que os diversos pontos aqui tratados poderiam ser mais desenvolvidos, muitos merecendo um escrito à parte. Esperamos, porém, ter atingido informal e razoavelmente nossos objetivos, com uma linguagem quiçá inapropriada, própria de quem ainda está no jardim de infância da espiritualidade: o objetivo de insistir na convicção de que habita em nós uma essência divina que anseia por renascer. O diálogo com Freud como ponto de partida se deu pela força persuasiva do seu modelo instintual, capaz de seduzir com seu desencanto. Nosso primeiro contato com o Mal-estar na civilização nos trouxe enorme desconforto interior. Mas nossa trajetória filosófico-espiritual nos tornou, acreditamos, um “crente avisado”, que faz questão de ruminar silenciosa e abertamente as idéias para perceber a raiz, força e a extensão das mesmas. Ele nos tornou alguém que admira as singulares e criativas manifestações do espírito e que experimenta uma profunda decepção e alegria quando os grandes mestres espirituais afirmam, serenamente, que a grande maioria das pessoas vive como se estivesse dormindo, como na imagem platônica dos prisioneiros da caverna. Decepção por não se excluir dessa condição humana e alegria por reavivar em si a convicção da divindade do espírito. Assim, por mais que nossas atitudes representem um paliativo contra a dureza do dia-a-dia, por mais que os delírios de massa se manifestem nas igrejas, por mais que o princípio do prazer impere e o mal-estar nos assole, há no fundo de nós uma voz que nunca se cala: a voz suave da iluminação espiritual, alimento da iniciação espiritual e da nossa evolução consciente, atitude capaz de irradiar sentido em tudo o que nos cerca. Irradiar sentido até mesmo diante do frio realismo da razão. Os momentos finais de Freud, narrados devotamente pelo Dr. Jones, evidenciam exaustão e sofrimento intenso de luta contra o câncer, mas revelam, não obstante, estóica resignação e aceitação implacável da realidade, sinônimo de grandeza de alma (JONES, 1979, p. 778). Grandeza cuja marca na constituição da nossa civilização nos trouxe uma maior consciência sobre nós, seguida dum mal-estar necessário. Daí em diante, ouçamos as mensagens de bem-estar dos grandes mestres espirituais, mensagens que decorrem da experiência direta da realidade do espírito, ao nosso alcance. 600 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. Nota 1 No mito de Eros e Psique encontramos a rica expressão de diversos aspectos que compõem a essência do sagrado: temos a imagem da natureza divina da alma humana, da queda originária, dos obstáculos aos quais a alma deve passar na sua trajetória, da constante relação entre consciência e inconsciência com a qual nos debatemos, além da belíssima imagem da iluminação espiritual. Referências ALVES, R. O que é religião? 2. ed. São Paulo: Loyola, 2000. BRANDÃO, J. de S. Eros e psiqué. In: MITOLOGIA Grega. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. V. II, p. 209-251. CHAUÍ, M. Kierkegaard - vida e obra. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. V-XIV. CHAVES, S. Fenômeno religioso: seus elementos internos. Goiânia, 2005. Texto não publicado. CHUC, P. V. 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Also putting on scene the FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008. 601 Kierkegaard’s figure, the author focuses on reductionism of the psychoanalytic concept of human nature, establishing a dialectical relation between some prospects of this Eastern philosophy, for which the soul has the divine capability. Key words: Freudian psychoanalysis, Kierkegaard, purpose of life, oriental philosophy, lighting ANTONIO CARLOS S. GUIMARÃES Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Professor de Filosofia na Universidade Católica de Goiás (UCG). Graduando Psicologia na UCG. E-mail: [email protected] 602 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 591-602, jul./ago. 2008.