APÓS A VIGÉSIMA TERCEIRA HORA Desrespeitosa, como não poderia - porém deveria - deixar de ser, a nota coberta da platinada (que não possui dignidade suficiente pra carregar nome de deusa romana) sobre a morte de Goulart de Andrade revela a perda da ética entre pares de lida. Assombreados pelo excessivo intervencionismo da corporação à qual não precisariam pertencer, mas prestar serviços, ditos profissionais de comunicação somam um mísero minuto em dois noticiários como que pudessem contemplar a dimensão do trabalho do falecido jornalista, que sempre honrou o termo e a função de "repórter". Tal medida cronológica sequer serve para dar início ao imenso currículo do inventor do famoso bordão "Vem comigo!". Pelo contrário, tenta enclausurar num tempo assaz exíguo uma história que ultrapassa a fria torpeza das barreiras infrutiferamente impostas pelas famílias donas dos conglomerados empresariais de mídia, nesse caso Marinho. O pai do "capeta" não foi simplesmente um contratado pela Bandeirantes (por meio da qual conheci seu jeito único de retratar as realidades nas suas mais variadas facetas), ou pelo SBT. Quer seja num plantão ou no comando, as madrugadas ganhavam outros contornos ante suas enigmáticas lentes, transformando um espaço antes pouco ou nada valorizado das grades de programação em deliciosas viagens pela diversidade de uma outra Sampa, que reconhecíamos também ser nossa e adotávamos como se fosse de qualquer cidade. Para além de um simples front man das pautas ou scripts, aquele verdadeiro menino sem razão de idade, um dia batizado de Luís Filipe por ninguém menos que Carmen Miranda, revelava o humano e o desumano de cada um de nós, dando voz e vez a anônimos desprezados, marginalizados e congêneres, muito antes de se falar em democratização dos meios nesse país, isso em pleno regime autoritário ou mesmo no alvorecer embrionário de uma pretensa democracia. Sim, apesar de estarem diante de uma palmilhada de 60 anos de jornalismo televisivo, vindo dos idos do preto & branco, os autores da "menção horrorosa" preferiram pintá-lo desordenadamente com cores berrantes, talvez a se aproveitar ou quem sabe até olvidados de que estejamos em plena semana do folclore. Não obstante o imenso respeito a ser cultivado pela memória do também recém-finado Geneton Moraes Neto, é absurdo o quadro comparativo a que somos involuntariamente expostos. De um lado, um destemido entrevistador de personalidades cujo talhar de brecha em suas agendas constitui por si só ato heroico e portanto merecedor de extensas reportagens nos telejornais em sua memória. De outro, um moribundo clownesco, que teimava em trazer pretos e pobres aos televisores da família do cidadão médio, ao qual se obrigam a registrar firma em seu livro de condolências. E pra isso, segundos bastam, ironizam uns e outros. Diriam os mais incautos (incultos?) que a diferença pudesse estar na existência da chancela global em uma das estrelas. Porém, há que se lembrar que o carioca mais paulistano do multiverso já trabalhava em fantásticas noites de domingo muito antes do pernambucano sonhar com o plim-plim. Em resumo, não bastasse a desatenção quanto à condução na direção de ser cordial e simpática, a central Ali Kamel de factoides também chegou atrasada à parada onde reencontraria o bonde da mínima decência, expediente esse eternamente encampado pelo homem que tratava putas e pedreiros com a mesma cordialidade com que se dirigia a urologistas e ufólogos. Nem por isso seria de outro planeta. Quiçá somente ele, possuidor de sesquipedal humildade a ponto de ser octogenário e ainda assim empregar incomparável retidão e temperança no trato com seus estagiários da Cásper Líbero (Fundação responsável pela TV Gazeta, sua última casa de labuta), fosse enfim terráqueo nesse mundo de valores cada vez mais alienantes e distantes da quentura do sangue arterial, o mesmo que corre incessantemente pelas ruas e calçadas de uma urbe que não dorme. Luciano d'Miguel desde a mais tenra infância é mais madrugueiro que qualquer linha de ônibus