Uma Perspectiva Inclusiva da Avaliação Thereza Penna Firme* Contam que o célebre autor de Histórias Infantis Hans Christian Andersen, um pobre, modesto e dedicado sapateiro de Copenhague na Dinamarca, em sua banca de trabalho, onde remendava e costurava sapatos, costurava e remendava também a alegria e a emoção das crianças que por ali passavam a caminho da escola lá pelos idos do século IX. Famoso pelos seus contos de fada, Andersen foi, segundo estudiosos, “a primeira voz autenticamente romântica a contar histórias para as crianças e buscava sempre passar padrões de comportamento que deveriam ser adotados pela nova sociedade que se organizava, inclusive apontando os confrontos entre “poderosos” e “desprotegidos”, “fortes” e “fracos”, “exploradores” e “explorados”. Andersen também pretendia demonstrar a idéia de que todos os homens deveriam ter direitos iguais”(http//pt.vikipedia.org/wiki/Hans Christian Andersen). Um dia, Hans decidiu caminhar até a escola para onde aquelas crianças corriam depois de passar momentos fascinantes junto a ele, de quem possivelmente não desejariam se afastar jamais. Foi então que ele viu indignado, na saída da escola, uma cena humilhante de um menino “feinho” , tal como era ali percebido, ser agredido, empurrado e xingado pelos outros meninos, sem que qualquer iniciativa de proteção dos adultos fosse tomada. Hans o puxou para perto dele e ali mesmo, sentado no muro da escola, contoulhe a história que acabava de inventar especialmente para o “menino feinho”: “O Patinho Feio” , que não é preciso contar aqui porque tantas vezes contamos essa história às nossas crianças. O menino parou de chorar, foi feliz para casa, contou o ocorrido ao pai, que imediatamente procurou o extraordinário “psicólogo sapateiro” ou talvez * Doutora, Ph.D em Educação em Psicologia da Criança e do Adolescente, Consultora em nível Nacional e Internacional em Avaliação, Professora aposentada da UFRJ e Coordenadora do Centro de Avaliação da Fundação Cesgranrio. Email: [email protected] “filósofo” ou, por certo “educador”, para agradecer-lhe a transformação de seu menino, ontem patinho feio, hoje cisne de rara beleza! Hans tinha costurado a autoestima de seu filho. Este pai era editor de histórias infantis e levou toda a obra rascunhada de Andersen para publicá-la. Foi assim que nasceu o que hoje temos o privilégio de conhecer: esta literatura de sabedoria e criatividade que já atravessa séculos.Tudo isso foi aqui contado por uma única razão: refletirmos sobre o que vêm acontecendo em escolas do mundo inteiro, onde crianças e jovens se agridem e não se respeitam entre si, chegando a situações extremas de violência, onde professores também são envolvidos e todo esse clima emaranhado como um nó que não se consegue “desatar”. É preciso competência para entender e solucionar o conflito. É preciso descobrir quem deu o nó. É preciso compreender como ele aconteceu. Essencialmente, estamos diante de um fenômeno de falta de respeito ao outro e, corajosamente, nós, educadores, precisamos reconhecer que as crianças e os jovens nos imitam. Até que ponto nossa atitude não estará, ainda que inconscientement, provocando essa reação desordenada de comportamentos? Nesse ponto, eu prefiro inocentar professores e alunos e denunciar a avaliação tal como vem sendo praticada. Com a melhor das intenções, erramos em nossa psicologia quando, no processo avaliativo, agredimos a autoestima do aluno, confundindo seu desempenho com o seu valor como pessoa. É aí que se dá o nó da avaliação. É aí que o aluno se sente “incapaz”, “lento”, “feinho” e outras coisas mais, porque “tirou notas baixas”, “perdeu pontos”, “foi reprovado” . É aí que ele se sente o “patinho feio”. É nesse momento que a autoestima é seriamente afetada, gerando um emaranhado de atitudes e comportamentos, que expressam perda e fracasso, no caminho desgovernado da violência. Porque não desatar esse nó criado pela avaliação incompetente, mudando a perspectiva do enfoque avaliativo para uma Visão Inclusiva1 segundo a qual ninguém é excluído e a justiça social é a preocupação por excelência. Não se deve culpar a vítima, mas indagar porque e como o sistema escolar está fracassando com nossas crianças, em vez de por que e como estas crianças estão fracassando. O papel do avaliador- no caso, o professoré buscar corrigir os fatores que sustentam a injustiça social, descobrindo os elementos que contribuem para os problemas sociais e sua solução. Avaliadores de várias partes do mundo estão em discussão a respeito dessa inclusão por meio da qual os vários interesses e as múltiplas perspectivas são representados no processo avaliativo. Todos têm voz e voto para chegarmos juntos ao juízo de valor sobre uma criança, um jovem, uma escola, um sistema, uma sociedade. Esta é a transformação do nó em nós. Avaliação só tem significado se juntos, em comunhão, entendemos o problema e encontramos a solução. É dessa maneira que garantimos a representação dos pontos de vista dos interessados , no fenômeno em questão, seja ele aprendizagem, ensino ou desempenho de um programa ou sistema. Interação e responsividade são imprescindíveis na avaliação. Assim, para preservar o respeito à pessoa, no caso a criança, foco da avaliação, o educador precisa conhecer seu contexto e abrir espaço para que o julgamento sobre seu desempenho inclua o entendimento de todos os fatores que atuam sobre ela. Inclusive, a própria criança é sumamente importante para falar de si mesma e sobretudo valorizarse, independente de qualquer situação de fracasso. Avaliação é um processo coletivo, feito por nós. Portanto, a criança, o jovem são, através da avaliação de todos nós, reconhecidos no seu valor e encorajados a perceber suas dificuldades e trabalhar por corrigi-las, mas todos juntos, porém. E nessa abordagem, seja qual for nosso procedimento ou método avaliativo, um fator crucial é a atitude do avaliador. “Tirar o aluno de sala”? “Mandá-lo embora”? “Suspende-lo”? “Expulsá-lo”? Estas são geralmente atitudes de desespero de um professor ou 1 Mertens, Donna (2003) “The Inclusive View of Evaluation: Visions for the New Millenium”, In Donaldson,S.I. e Scriven, M. Evaluating Social Programs and Problems. Visions for the New Millennium, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers. gestor que, de fato, perdeu a esperança do resgate. Porque não tentarmos, sempre nós, a solução para o nó? Uma nova maneira de descobrir a realidade é apreciar em vez de depreciar, ver mais longe e mais profundo em vez de ver apenas na superfície mais palpável. Aprender a ver o invisível., com os olhos do coração que comovem e com os da sabedoria, que desvelam e transformam. É o que se chama Avaliação Apreciativa2 ou seja, descobrir a realidade no seu lado mais promissor e, na sombra dessa luz projetada, descobrir com competência e ética, o que deve ser corrigido e de fato corrigi-lo. Para isso é preciso desaprendermos o que temos feito na prática avaliativa mais corrente, estimulando a criatividade no processo e provocando maior satisfação nos envolvidos. Assim, propiciamos a eles condições de serem ouvidos e compartilharem suas aspirações. Contudo, a ênfase na direção positiva na Avaliação Apreciativa não elimina a percepção dos aspectos negativos, apenas ressalta os positivos, para fortalecer a capacidade de admitir falhas e a iniciativa de resolvê-las. O fator crucial é segurar a autoestima para realizar o salto da transformação e do aperfeiçoamento contínuo. Estudos sobre autoestima3 e a experiência profissional tem destacado o papel crucial dessa apreciação do autoconceito, no ajustamento pessoal e no desenvolvimento harmonioso dos grupos humanos e das organizações, enfatizando que autoestima está relacionada com autoconfiança e tolerância à autocrítica e à frustração. O aumento da autoestima eleva o nível de aprendizagem e de competência profissional. Ao contrário, as pessoas tendem a não atuar bem quando se espera menos delas. É necessário, portanto, descobrir meios efetivos de elevar a autoestima dos alunos, dos outros atores envolvidos no processo educativo e das organizações, simultaneamente, tornando públicos os sucessos alcançados, o que, por certo, resultará em contínuo aperfeiçoamento. Além disso, quanto mais elevada for a autoestima de um indivíduo, mais positivos serão seus sentimentos em relação a outros indivíduos e, mais positivamente, ele é capaz de perceber os sentimentos de outros a seu respeito. Em síntese, a avaliação apreciativa, nesse contexto tradicional e conservador da avaliação, é um desafio. É desfazer o nó, ou seja, o bloqueio da decepção e da desesperança e abrir caminhos desobstruídos de crescimento individual e social. Para isso, precisamos abraçar o “patinho feio” e, junto com ele, descobrir o cisne deslumbrante que está dentro dele. É preciso levar conosco o que foi deixado de lado, excluído, abandonado e resgatá-lo. É necessário incluir, apreciar e, sobretudo, amar, antes de ensinar. Avaliação é isso. Artigo publicado na Revista Pátio/ Artmed – Ano XIII – maio/julho 2009 – pp: 44 a 47. 2 Preskill, H. and Catsambas, T.T (2006) Reframing Evaluation Through Appreciative Inquiry. Thousand Oaks: Sage Publications, Inc. 3 Sears, P.S. and Shermans. (1964) In Pursuit of Self-esteem. Belmont: Wadsworth Publishing Co. Coopersmith, S. “Studies in Self-Esteem” Scientific American, 1968, 218,2,96-106. Penna Firme, T. (1969) Effects of Social Reinforcement on Self-Esteem of Mexican American Children. Stanford, California: Stanford University Tese de Doutorado (Ph.D)