OLHARES PLURAIS - Artigos 59 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir A POLÍTICA COMO “PASTOREIO” OU BREVE REPARO A UMA OBSERVAÇÃO DE FOUCAULT SOBRE “O POLÍTICO” DE PLATÃO Élcio Verçosa Filho1 Artigo submetido em: set./2015 e aceito em: jan./2016 RESUMO O presente artigo trata da problemática da política como “pastoreio”, revisitando a discussão desenvolvida por Michel Foucault sobre o tema, em confronto com o que nos disseram os filósofos gregos clássicos, sobretudo Platão, considerando-se o lugar do intelectual público no mundo da política. Palavras-chave:: política como pastoreio – Foucault – filosofia grega clássica – intelectual público ABSTRACT This paper deals with the problem of politics as "shepherding", " herding", revisiting the discussion developed by Michel Foucault about this subject and confronting it with the teaching of the Greek Classical Philosophic Tradition - Plato in special – about the subject, subject considering the place of the public intellectual in the realm of politics. Keywords: politics as shepherding – Foucault - Greek Classical Philosophic Tradition -public intellectual INTRODUÇÃO A analogia entre o projeto de emancipação moderno, defendido e de certo modo implementado pela figura típica do intelectual, e a promessa religiosa, cristã, de salvação, foi fortemente sugerida por Michel Foucault ao falar da nova perspectiva “pós-moderna” de autonomia radical e de luta contra o poder que ele via emergir no final da década de 1970. A passagem em que Foucault tece essa analogia é luminosa e vale v a pena ser reproduzida: 1 Élcio Verçosa Filho, tradutor de obras de filosofia clássica, é doutor em Filosofia da Religião pela PUC de São Paulo e pós-doutorando doutorando em História da Filosofia na USP. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 60 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir As lutas às quais me refiro [feministas, ecológicas, “identitárias” em geral] têm como alvo um poder que existe no Ocidente desde a Idade Média, uma forma de poder que não é exatamente nem um poder político nem jurídico, nem um poder econômico nem um poder de dominação étnica, e que, no entanto, teve grandes efeitos estruturantes dentro das nossas sociedades. Esse poder é de origem religiosa, aquele que pretende conduzir e dirigir os homens ao longo de toda a sua vida e em cada uma das circunstâncias dessa vida, um poder que consiste em querer controlar a vida dos homens em seus detalhes e desenvolvimento, do nascimento à sua morte, e isso para lhes impor uma certa maneira de se comportar, com a finalidade de garantir a sua salvação. salva . É o que poderíamos chamar de poder pastoral. (FOUCAULT, 1994, p. 73). Segundo Foucault, a rebelião contemporânea contra todo poder pastoral e, por extensão, contra toda forma de poder, foi por assim dizer inoculada progressivamente pelo próprio poder pastoral e suas técnicas de constituição do indivíduo, técnicas sucessivamente religiosas – o auto-exame exame e a confissão – e seculares – a consciência crítica autônoma e o Esclarecimento2. Continuando na analogia analog proposta pelo autor,, é como se pudéssemos definir o espírito dessa época pós-moderna que é a nossa como uma espécie de ultraprotestantismo histórico. Sabemos que a tendência essencial do protestantismo é a atomização e a consequente dispensa de pastores.. Na congregação perfeita há apenas irmãos, ovelhas sem pastor, que respondem imediatamente a Deus. Com efeito, Foucault parece ter apreendido perfeitamente o “problema teológico-político” político” como o problema central do mundo moderno3 – e, mais especificamente, especificamente da filosofia no mundo moderno -, sem, no entanto, dar-se se perfeitamente conta de todas as suas implicações, especialmente no que elas têm de radicalmente divergentes da posição da filosofia no seu sentido original, da filosofia clássica, frente ao que ele chama repetidamente de a “questão do poder”. 1 UM EQUÍVOCO REVELADOR? REVELADOR A questão demandaria um longo discurso, que não seria apropriado desenvolver aqui. O tema deste artigo é bem mais pontual: qual o significado historicamente concreto da metáfora do “rebanho” ebanho” e da política como “pastoreio” que Foucault coloca no centro da sua discussão, como alvo e contraponto das novas modalidades de luta contra o poder? 2 Foucault pensa a própria psicanálise como uma expressão tardia, mas genuína, dessas técnicas. Ver o que ele diz a respeito da “intelectualização” da sexualidade ou do prazer em “O verdadeiro Sexo”, Foucault: Ética, Sexualidade, Política, op.cit.,, p. 84. 3 Embora não tenha provas para afirma-lo, afirma lo, desconfio fortemente que, ao escrever a primeira parte do seu s “A filosofia analítica da política”, ele tivesse em mente a discussão entre Leo Strauss e Alexandre Kojève (On ( Tyranny)) a respeito da relação entre filosofia e política nos mundos antigo e moderno. A polêmica StraussKojève teve grande repercussão no ambiente ambiente filosófico e político francês das décadas de 60 e 70, tendo sido o livro no qual ela está contida objeto de numerosas reedições. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 61 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir Começando pelo início, nosso objetivo é chamar a atenção para um pequeno, porém significativo equívocoo da parte do sábio francês. Foucault afirma que o “poder pastoral”, e inclusive a própria imagem do poder social como a condução de “rebanhos humanos”, teria sido uma invenção do cristianismo, que, levado pelas metáforas pastorais herdadas da tradição bíblica, teria com elas substituído aquilo que, segundo ele, os gregos entendiam como “o cuidado de si”, uma modalidade estritamente individual de autogoverno a partir do conhecimento de si mesmo e do uso correto da razão. Ora, pareceparece-nos que Foucault foi vítima, aqui, ui, daquilo que Rousseau chamou de “ilusão retrospectiva”. rospectiva”. Tanto não é certo que os gregos não conheciam ou não usavam a imagem do pastoreio para referir-se referir ao governo dos seres humanos, como o exato oposto deve ser afirmado: foram eles, os gregos, grego que a usaram da maneira mais lúcida e consequente para figurar o entendimento correto da questão do poder social, da “política política” em estilo grego.4 Foi, mais precisamente, um grego: Platão. E exatamente no Político,, que Foucault cita nominalmente ao afirmar a inexistência, inexistência na “literatura grega e romana”, da representação do político como pastor. Foucault cita a imagem da “tecedura” para indicar a ciência política em contraposição ao pastoreio. Embora seja verdade que, na última seção do Político,, a tecedura t é indicada como a analogia mais perfeita da obra do político (provavelmente porque é mais “exata”, mais “científica” do que a arte de pastorear), cumpre reconhecer que é por razões pedagógicas, e essencialmente por razões pedagógicas, que o Estrangeiro, Estrangeiro, protagonista do diálogo, deixa em segundo plano (o que não implica em abandono) a “grande analogia” do pastor divino e, depois, do pastor humano, em favor da “pequena analogia” da tecedura para designar a arte real ou política. O que está em jogo aí é uma questão de método, é a diferença entre o grande exemplo e o pequeno exemplo, e a necessidade de se começar pelo segundo, do pequeno, para, daí, ascender na direção de questões e argumentações de maior complexidade (Pol. ( 287b). Enfim, não há, como parece par pensar Foucault, no Político,, oposição entre pastoreio e tecedura, mas, antes, complementariedade. Nesse diálogo, que tem como objeto a “definição da arte do político” (πολιτικοῦ τέχνης - 267a), Platão (ou a figura do sábio no diálogo, o Estrangeiro de Eléia) afirma com om todas as letras que a política é “a arte de pastorear homens (ἀνθρωπονομικῆς ( τέχνης - 266e)”, e que o “homem político e real” é o condutor “de direito” dos “rebanhos 4 Ressalte-se se logo de saída que o questionamento da representação de Foucault da política como pastoreio que empreendemos aqui refere-se se exclusivamente à filosofia antiga. Os traços de dominação “psicológica” e “individual” que ele descobre na noção especificamente cristã de pastoreio estão notavelmente ausentes da noção especificamente clássica e filosófica e parecem ser em em grande parte originais do cristianismo – o que reforça o acerto de boa parte da sua interpretação, especialmente no que diz respeito às técnicas de controle espiritual mais uma vez ausentes – ao menos parcialmente - da proposta política de Platão. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 62 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir humanos” (ἀνθρώπων ἀγέλαις γέλαις)...repartidos em cidades” (295e)5. De forma f ainda mais escancarada, arada, o Estrangeiro diz que a política é apenas uma das “muitas formas [divisões, manifestações - phaneron]] da arte de pastorear (νομευτικῶν ( τεχνῶν)” )” e que ela é a “ciência que cuida [epimelein] dos homens que vivem em comunidade” (267d). Quando falamos em “ilusão “ilusã retrospectiva” ctiva” para fazer referência ao equívoco de Foucault não quisemos apenas citar uma uma expressão famosa. E consideramos uma falta imperdoável e uma satisfação das mais mesquinhas querer “se mostrar”, ”, como diz o povo, em cima de um homem de tamanha competência comp – uma competência que o humilde autor deste ensaio sequer sonharia ter. Usamos a expressão e apontamos o erro – se é de erro que se trata - porque cremos que eles comunicam uma realidade das mais exatas, na medida em que a omissão de Foucault nos parece pa terr uma motivação bem característica, que pode ajudar a entender certos enganos essenciais. Como muitos outros antes e depois dele, Foucault projeta sobre os antigos – mais especificamente sobre Sócrates - uma noção que os antigos (e, provavelmente, Sócrates)) jamais sonharam ter. Não entraremos em discussões filológicas que ultrapassam em muito a competência do nosso parco grego. Não pretendemos tentar demonstrar a verdade ou falsidade de certas leituras a respeito da filosofia grega e seu sentido que já estãoo mais do que cristalizadas no ambiente ambiente acadêmico brasileiro. Gostaríamos apenas de fazer uma observação singela: como quer que se interprete o fato de Sócrates ser descrito a caminhar pela Ágora e interpelar os cidadãos atenienses para testar a sua (deles) (deles sabedoria, ou, mais concretamente, como quer que se interprete as diversas conversas narradas por Xenofonte nas suas lembranças do mestre6, nas quais ele se detém a examinar as opiniões das mais diferentes classes de cidadãos sobre o belo, o justo, justo o pio e o bom (sobre a política, enfim), não existe razão para pensar que o “cuidado de si” (o cuidado da alma) implicado no elenchos socrático se estendesse ao conjunto da cidade ou que ele acreditasse que a filosofia pudesse democratizar-se se e constituir-se, constituir como um Esclarecimento avant la lettre, lettre no princípio da ação da cidade como um todo entendida como o conjunto – o “grande número” – dos seres humanos atualmente vivendo ali. Se é ao menos possível desconfiar que esse não fosse o pensamento de Sócrates (que nos seja concedida cedida ao menos essa dúvida), nos parece mais do que seguro afirmar que essa constituição universal de indivíduos críticos e (auto)conscientes – que “cuidam de si” - por meio da difusão da filosofia estava longe de ser o pensamento de Platão. Embora E não faça sentido desenvolvê-la la aqui, a imagem reproduzida mais acima da política como a ciência que tem como objeto a condução de rebanhos humanos diz praticamente tudo o que há para dizer 5 6 Cf tb. 261d. Os textos pertinentes, aqui, são obviamente a Apologia de Sócrates e os Memoráveis,, ambos de Xenofonte. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 63 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir a esse respeito. Principalmente quando consideramos que a diferença diferença específica dos pastores platônicos para os pastores modernos – os intelectuais fautores do “Esclarecimento” - reside justamente na diferença específica entre as duas concepções de filosofia - platônica e moderna - e na concepção radicalmente distinta distinta que uma e outra têm da relação entre filosofia e poder. 2 O FILÓSOFO E O INTELECTUAL Numa outra ocasião, disse que a moderna “República “República das Letras”, Letras a classe dos intelectuais públicos – de Bayle a Sartre, passando por Zola, Voltaire, Rousseau e tantos outros - encarnava, como um projeto de salvação da humanidade pela popularização da filosofia e do conhecimento científico (justamente o que conhecemos como “iluminismo” ou “Esclarecimento”), a figura ra platônica do filósofo-rei, filósofo rei, invertendo o seu sentido. Chegou a hora de tentar explicar o que se quis dizer com isso em umaa ou duas palavrinhas que devem servir para qualificar a nossa discordância ou, melhor dizendo, o nosso reparo, à observação de Foucault ult sobre a política como “pastoreio”. “pastoreio” Para Platão, é exatamente porque não há possibilidade de universalização do “cuidado de si” filosófico, é precisamente porque nem todos os seres humanos têm a possibilidade de serem filósofos, é precisamente por isso que jamais existirão rebanhos humanos que não precisem de cuidados, que não tenham necessidade de um pastor. O “cuidado de si” é característica essencial do filósofo, um tipo humano específico, ainda que o mais alto e excelente, mas cuja proporção é mínima em relação à humanidade em geral (292e (292e-293a)7. Reside aí, mais que em qualquer outra coisa, a rejeição platônica da democracia, que tanta polêmica causa entre estudiosos e admiradores contemporâneos do filósofo ateniense.8 Reconhecendo esse fato, que para Platão é algo tão óbvio que sequer precisa ser demonstrado – é apenas um “dado” da natureza reconhecido na experiência do próprio e de outros tempos , o filósofo exerce o governo que é seu “de direito” (já que é ele o único detentor da ciência real e a ciência iência é o único título legítimo, “natural”, de mando no mundo humano – 259b) não popularizando o seu saber, esclarecendo seus compatriotas ou a humanidade com as suas descobertas (ou mesmo estimulando o “pensamento crítico”), crítico”), o que, repito, é visto por Platão Pl como não apenas insensato, mas impossível, e insensato exatamente por ser impossível, mas, 7 “Podemos Podemos acreditar”, pergunta o Estrangeiro, “que numa cidade toda a multidão seja capaz de adquirir essa ciência? – Impossível – E será que que numa cidade de mil habitantes, haveria cem ou cinquenta capazes de chegar a adquiri-la la de maneira satisfatória? – Nesse caso, a política seria a mais fácil de todas as artes; pois sabemos muito bem que em toda a Grécia não encontramos tal proporção, por mil, nem entre os campeões do jogo de damas, e muito menos a encontramos entre os reis. Pois só merecem, realmente, o título de rei os que possuem a ciência real, quer reinem ou não, não como dissemos anteriormente” (grifo meu). 8 Cf. Sara Monson, Plato’s Democratic Entanglements, Entanglements Princenton Univ. Press, Princenton, 2000. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 64 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir ao contrário, ele assim o faz sabendo o que dizer e o que calar em cada lugar e oportunidade9, sabendo como agir de acordo com cada ser humano ou grupo de seres humanos (cada “rebanho”) segundo a sua natureza e em cada situação individual (é isso que Platão chama caracteristicamente ente de “distribuir a justiça” em 297b), lançando mão com a maior habilidade possível de todos os diferentes recursos – as “artes” – disponíveis oníveis na cidade (a mentira e a verdade, a coação e a sedução, a violência e a retórica – cf. 304b) para formar um tecido perfeito e bem cosido segundo a “justa medida”, o que significa muito propriamente operar segundo os ditames da “ciência” ou da “arte real”, que para Platão é ao mesmo tempo piedade, justiça e sabedoria – a suprema virtude ou areté. Mas o ponto essencial de todo o discurso do Político,, de todo o discurso político de Platão e, por extensão, da filosofia política clássica, que com frequência passa despercebido ao comentador, é que o filósofo platônico, apesar de ser o único verdadeiro político, o único pastor genuíno que tem o saber saber necessário ao cuidado excelente dos rebanhos humanos, não está nem um pouco interessado em exercer o poder. E por or que o exerceria? Que vantagens o exercício do poder poderia oferecer a ele, ele que tem como experiência cotidiana os deleites indolores da pesquisa squisa e da contemplação contemplação do eterno? Por que o filósofo trocaria a visão cotidiana do “sol” da natureza pelas sombras fugidias da caverna e da convenção?10 O que o levaria a deixar a bem aventurada autarquia em que vive para cuidar daqueles que não sabem, e, é provável, jamais saberão exercer o necessário “cuidado de si”? Na linguagem platônica, o sábio interessado – ardentemente interessado - em trocar a sua sabedoria pelos favores da cidade, em ser “útil” à cidade, para brilhar na condução dos rebanhos humanos anos (sempre pelo “bem deles”), ), não tem o nome de filósofo. É a figura do sofista, a, e não a do filósofo, que Platão representa como interessada, interessada com efeito mui interessada, no exercício do poder.11 Era o sofista, e não o filósofo, quem ocupava, na Grécia clássica, ssica, o lugar desse que, a partir da formulação madura do projeto moderno, em fins do século XVII, chamamos de “intelectual”,, essa figura de sábio que acredita com ardor e convicção na utilidade do pensamento, na conversão necessária e benéfica do pensamento pensame em ação. Era o sofista quem propunha e praticava a “politização da filosofia” (STRAUSS, 1953, 9 Fedro, 275d-e. Numa passagem-chave da República (519c e ss), Platão o representa tendo de ser obrigado pela força (ele fala em “forçá-lo lo a cuidar dos outros e guarda-los” guarda – 520a) a voltar ar para a caverna e ocupar-se ocupar dela depois de ter enxergado diretamente a realidade iluminada pela luz do sol. 11 O Estrangeiro de Eléia diz que os sofistas “se agitam em torno das coisas públicas”(πόλεων públicas”(πόλεων πράγματα - 291b)e que eles são “perigosos” justamente porque são “difíceis de distinguir dos verdadeiros políticos e do verdadeiro homem real” (291c) 10 OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 65 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir p. 34) ou, como talvez hoje seja mais apropriado dizer, a filosofização do poder.12 Como insiste Cálicles no seu combate de vida e morte com Sócrates, filosofia filosofi não dá camisa, é ocupação de rapazes imberbes e sem ambição, sem virilidade, de natureza frágil, marca característica de uma vida “inútil” e eminentemente privada passada no comércio de coisas sem valor, que deve ser deixada de lado assim que crescemos em em nome das coisas mais belas e nobres, proporcionadas pelo envolvimento nos negócios da cidade e por po uma vida orientada para a busca da glória, para os grandes feitos, as grandes realizações (Górgias Górgias 484c)13. Para Platão, o problema implicado nessa postura específica, típica, nessa relação específica e típica entre saber e poder, po não se reduz essencialmente ao fato de o sofista usar o saber para ganhar dinheiro ou honrarias, ou mesmo ao fato de ele supostamente ignorar o que ensina (os caracteres que compõem compõe classicamente o sofista platônico como figura do “impostor”), normalmente os aspectos mais geralmente ressaltados a propósito da crítica platônica da sofística. O problema essencial, radical, reside na inversão da hierarquia natural das atividades humanas, s, da natureza humana, do bem humano, encarnada no fato de o sofista usar a sabedoria, que é o mais “alto” e deve ser buscada e cultivada por si mesma, como instrumento e meio para um fim que é manifestamente mais baixo do que ela (que, (que em definitivo, não é ela), e que por isso deveria ser governado e não governar (STRAUSS, op. Cit., p. 116).. Pouco importa como o fim prático da atividade filosófica seja definido nem as imagens, o mais das vezes belíssimas, comoventes, patéticas, que são usadas para descrevê-lo descrevê (salvação da humanidade; libertação das correntes da ignorância; elevação do homem, etc.): etc.) para Platão, e com ele toda a filosofia clássica, todo fim está, por definição, abaixo da sabedoria na ordem da vida humana e do seu bem. No caso da cidade e da política, que estamos discutindo, essa inversão sofística tem ainda um significado icado pontual sobre o qual parece importante refletir. Ela significa que o sofista, sendo parte nas reivindicações da cidade, sendo, na verdade, uma parte da cidade – para Platão o grande problema de definir o político e a arte que lhe é própria é que diversos saberes e diversos sábios (todos, potencialmente, do agricultor ao magistrado14), as diversas “partes” da cidade, competem pela posse da ciência real e, com ela, pelo título legítimo ao poder -,, enxergará apenas a parte que lhe toca, ficando cego para a forma própria do objeto – 12 Bem a propósito, Foucault observa que os Estados modernos são com frequência “Estados filosóficos” ou “Estados-filosofia”, ”, que se organizam e reconhecem como filosofia. “A filosofia analítica do poder”, op. Cit., p. 40. 13 Cf. tb. 482c onde Cálicles acusa Sócrates de “insolência juvenil”. 14 O Estrangeiro designa 9 ou 10 classes de pessoas e atividades que compõem as “partes” da cidade e que se deve distinguir para obter, por separação dialética, o eidos da cidade e, com ele, da ciência real. Podemos destacar: cardadores, agricultores, pastores pastores de animais, arquitetos, comerciantes, advogados/oradores, sacerdotes e sofistas (288e). Noutra passagem, ele diz que são “milhares” os rivais do verdadeiro político (279a. cf. 267e267e 268d) OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 66 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir a cidade - cujo direito de cuidar ele reivindica15. Como parte que não reconhece a forma do todo, que não conhece o todo, o uso “político” - no sentido mais ordinário do termo de “parcial”, “faccioso”, “interessado” - que o sofista faz da razão acaba levando à destruição da própria razão. É importante notar que o erro político do sofista é ao mesmo tempo, e essencialmente, um erro dialético: não sendo versado na arte da divisão (diairesis)) ele não reconhece o objeto próprio da arte real, obtido pela separação em relação às outras artes que constituem as diversas “partes” da cidade (a divisão dialética descobre que a arte real não se confunde com nenhuma delas), e por isso, acaba se tornando apenas uma parte entre outras, ignorante do objeto fundamental,, da política no seu aspecto “arquitetônico” de coordenação das partes num todo harmonioso. Na realidade, os sofistas se aproveitam justamente da dificuldade dificuld de fazer essa distinção para convencer a cidade da legitimidade da sua pretensão de poder e, claro, da verdade da sua sabedoria (291c). Que o erro tem a ver de alguma forma com a relação entre parte e todo fica claro na definição final da ciência política política como “ciência arquitetônica”, como a arte que decide como e quando usar das outras artes, e que por isso encontra-se encontra “acima” delas (304b). As consequências desse desvirtuamento são desastrosas: em e pouco tempo, sob a sua atuação eminente “prática”, “útil”, “útil”, diríamos “engajada”, a razão se transformará em apenas mais uma opinião entre outras, perdendo completamente a autoridade “divina” que, segundo a filosofia, filosofia, deveria ter. Ao submeter a razão às exigências da caverna e aos seus limites, às paixões que vigoram vigoram dentro da caverna, o sábio que deseja ardorosamente ser “útil” e que busca, consumido pela paixão de beneficiar o seu rebanho, abrir uma u fenda para fazer entrar a claridade, claridade, só conseguirá com o seu esforço reforçar as paredes que aprisionam, construir, r, como alguém já disse, a “caverna da caverna”, sem encontrar uma saída que leve à luz do sol. Numa palavra, no que diz respeito aos conflitos da cidade, que segundo a filosofia clássica o verdadeiro político e condutor teria de mediar com a autoridade e a independência perfeitas de quem “sabe”, o sofista será apenas e sempre parte do problema – levando-o, o, aos olhos de Platão, a um agravamento agravame nada desprezível - e nunca à sua solução.16 15 “Todos aqueles que desempenham um papel nessas constituições, exceto exceto os que possuem conhecimentos, devem ser rejeitados como falsos políticos, partidários e criadores das piores ilusões, e visionários eles próprios, momos e grandes charlatães e, por isso, os maiores sofistas de todos os sofistas” (303c). Ao chamar os falsos f políticos de “partidários” ou “facciosos” (στασιαστικούς) ( ) o Estrangeiro sugere que o erro deles é entender a “parte” – meros – pelo todo, pela “forma” – eidos -, que dá a imagem do todo. Cf. D. Roochnik, “Residual Ambiguity in Plato’s Statesman” in Gramata, The Internet Journal of the International Plato Society, Society p. 10., Acesso: Março de 2005, 16 Ao lado de outras razões mais importantes, o filósofo é o único a ter o direito legítimo de governo porque não é parte da cidade, porque ele (e a filosofia) não tem lugar na cidade: ele é atopos, atopos como a própria cidade OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 67 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir Num livro hoje clássico, um dos mais cuidadosos estudiosos da filosofia platônica afirmou sem nenhuma reserva que toda a obra de Platão é dirigida à crítica da noção de “intelectual” (STRAUSS, op. Cit.,., p. 56). 56) É nesse sentido que se deve interpretar o que foi exposto até aqui. CONCLUSÃO Mas basta de tagarelar sobre Platão. Pararemos por aqui, com esses poucos apontamentos superficiais. É tema de acalorados debates a relação entre filosofia e política no pensamento do filósofo ateniense e dos clássicos como um todo. Não ão é a hora nem o lugar de se meter nisso. A respeito, apenas apenas uma última observação: não é raro encontrar quem faça a transição da República ou do Político ou das Leis para o pensamento político moderno sem as reservas devidas, afirmando em geral uma retomada da filosofia antiga pela filosofia moderna sem uma solução ução de continuidade relevante, algo como um “retorno ao paganismo” que teria deixado definitivamente para trás o cristianismo e os princípios da visão de mundo que ele inspirou – como a “política do pastoreio”, entre muitas outras. outras. Mas o estudo atento dos autores modernos e clássicos, e o confronto cuidadoso dos respectivos textos, parecem mostrar que a realidade vaai em outra direção: a filosofia moderna, concebida nos termos em que a descrevemos, não representa apenas uma ruptura com o cristianismo, mas também, e de forma muito mais consistente, com a filosofia em seu sentido clássico. Na verdade, ela parece estranhamente mais distante da filosofia clássica bem entendida do que desse mesmo cristianismo contra o qual fez juras estridentes de travar uma guerra sem fim. Cabe a nós não deixar que essa estridência nos desvie do que interessa. Face ao cristianismo, e desde, pelo menos, Maquiavel, Maquiavel, esse genial arauto do anticristo, a filosofia colocou-se se como missão conduzir os rebanhos humanos para a salvação possível, estabelecendo como dever do sábio cuidar e eventualmente salvar as suas ovelhas pela conscientização a respeito dos seus reais interesses e do mundo como ele é, animando-as animando a aderir ao projeto de reconstruir esse mundo – na política, na técnica, na cultura -, visto como inóspito e intratável, à imagem de um novo saber que é poder, num projeto emancipatório de dimensões universais. Parece inegável que, desde o princípio, sua pretensão foi fazer do ofício do sábio uma nova modalidade de sacerdócio – que a missão apaixonadamente assumida pelos intelectuais públicos modernos possa ser descrita como um “sacerdócio” laico é algo que essess mesmos intelectuais jamais se negaram a reconhecer -,, destinado a eliminar derrisoriamente o reconhece (cf. a representação de Sócrates em As Nuvens, de Aristófanes,). Observe-se Observe que é também por isso que ele não tem interesse em governar. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 68 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir progressivamente,, por meio da distribuição universal dos benefícios da ciência e da razão, da “eficácia” do novo pensamento científico, a influência do sacerdócio que o precedeu. No plano propriamente filosófico, essa essa eliminação foi figurada como a instituição da crítica no lugar do conformismo, da luz no lugar das trevas, da autonomia no lugar da tutela, da liberdade no lugar da opressão, como um chamado, dirigido à humanidade, a uma reconsideração lúcida, sem ilusões, desencantada, do que a vida humana é e do que ela pode ser. A salvação proposta pela filosofia moderna sempre foi, portanto, em essência, uma autoauto salvação. A fé nas capacidades autoredentoras do ser humano é a sua marca m característica, da qual a técnica é apenas a expressão mais conspicuamente visível. Na sua concepção original, esse projeto dependia inteiramente do princípio de que todos os seres humanos normalmente constituídos seriam aptos (diríamos, por natureza?) natureza a desenvolver, em alguma medida suficiente, a capacidade de filosofar, de pensar com a própria cabeça, de “cuidar de si”, uma capacidade que os levaria necessariamente, progressivamente, à constituição de um mundo em que poderiam sentir-se sentir se confortáveis, diferente do mundo original, do mundo criado, não cultivado, diferente da condição original do ser humano, desamparado rado desde a barriga da mãe. O projeto dependia, numa palavra, de que a filosofia – ou, modernamente, a “ciência” - se tornasse não apenas um poder entre outros, mas o grande poder social, o instrumento eficaz da salvação humana e a única prerrogativa legítima de poder. Um poder destinado a ser de todos. Um poder democrático universal. Encaradas as coisas em seus termos corretos e concretos, tais tais como os textos nos dão a ver, é difícil conceber algo mais distante da filosofia clássica que esse projeto coletivo, messiânico, semi-religioso religioso de poder. E mais difícil ainda concebê-la concebê la como advogando um universal cuidado de si como resultado do processo process de esclarecimento e da sua superação. O historicismo nos faz crer que sabemos mais e melhor o que pensavam os autores do passado do que eles mesmos sabiam. O que nos leva a dizer, como se apenas repetíssemos uma verdade banal, que eles não teriam levado em conta na sua discussão de um determinado tema um determinado enfoque ou um determinado argumento para nós decisivo porque na época simplesmente não podiam saber o que apenas aos tempos posteriores seria revelado, e assim por diante com todas as épocas numa espécie de escada da consciência ou da sabedoria na qual cada época ocupa necessariamente uma posição mais “alta” em relação à época anterior, a toda época anterior. Ocorre também o contrário e, paradoxalmente, pelas mesmas razões: os antigos tiveram “intuições” geniais, das quais podemos fazer uso – a política como tecedura, aplicada por Foucault às lutas pós-modernas, pós é um exemplo -,, desde que as destaquemos do contexto original – naturalmente “superado” - em que unicamente elas faziam sentido. Por falta de refletir – ou de levar a sério, o que dá no mesmo – sobre a especificidade do conceito OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 69 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir clássico da filosofia como “sabedoria”, Foucault foi apenas um dos grandes escritores da modernidade a projetar sobre os antigos noções que os antigos sim conheceram, conhec mas que rejeitaram lúcida e conscientemente (como “erros”) no desenvolvimento dialético da sua discussão. Por essa razão, no caso específico que discutimos – a “política como pastoreio” -, ele se revelou muito mais um adepto do pensamento moderno, do projeto moderno de esclarecimento e da sua interpretação específica da filosofia antiga, do que o defensor e teorizador de uma “ruptura” ou de um “salto” que estaria em vias de superá-lo. superá Nada de novo sob o sol: a “ilusão” de Foucault, se é lícito exprimir-se exprimi se assim, vem apenas confirmar a concepção já consagrada (Giddens, Bauman, etc) de pós-modernidade pós modernidade como modernidade consumada, realizada, “alta modernidade”, enfim. Como se disse, não é algo tão incomum. REFERÊNCIAS (Grego/Francês) Paris: ARISTÓFANES. Les Nuées in Comédies. Edição Crítica Bilingüe (Grego/Francês), Belles Lettres, 2008. FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política (Ditos e Escritos V). São Paulo: Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2012. _______. La philosophie analytique de la politique. In: Dites et Écrits III. 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