5 a política como pastoreio

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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
A POLÍTICA COMO “PASTOREIO”
OU
BREVE REPARO A UMA OBSERVAÇÃO DE FOUCAULT SOBRE “O POLÍTICO”
DE PLATÃO
Élcio Verçosa Filho1
Artigo submetido em: set./2015 e aceito em: jan./2016
RESUMO
O presente artigo trata da problemática da política como “pastoreio”, revisitando a discussão
desenvolvida por Michel Foucault sobre o tema, em confronto com o que nos disseram os
filósofos gregos clássicos, sobretudo Platão, considerando-se o lugar do intelectual público no
mundo da política.
Palavras-chave:: política como pastoreio – Foucault – filosofia grega clássica – intelectual
público
ABSTRACT
This paper deals with the problem of politics as "shepherding",
"
herding", revisiting the discussion
developed by Michel Foucault about this subject and confronting it with the teaching of the
Greek Classical Philosophic Tradition - Plato in special – about the subject,
subject considering the
place of the public intellectual in the realm of politics.
Keywords: politics as shepherding – Foucault - Greek Classical Philosophic Tradition -public
intellectual
INTRODUÇÃO
A analogia entre o projeto de emancipação moderno, defendido e de certo modo
implementado pela figura típica do intelectual, e a promessa religiosa, cristã, de salvação, foi
fortemente sugerida por Michel Foucault ao falar da nova perspectiva “pós-moderna” de
autonomia radical e de luta contra o poder que ele via emergir no final da década de 1970.
A passagem em que Foucault tece essa analogia é luminosa e vale
v
a pena ser
reproduzida:
1
Élcio Verçosa Filho, tradutor de obras de filosofia clássica, é doutor em Filosofia da Religião pela PUC de São
Paulo e pós-doutorando
doutorando em História da Filosofia na USP.
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As lutas às quais me refiro [feministas, ecológicas, “identitárias” em geral] têm
como alvo um poder que existe no Ocidente desde a Idade Média, uma forma de
poder que não é exatamente nem um poder político nem jurídico, nem um poder
econômico nem um poder de dominação étnica, e que, no entanto, teve grandes
efeitos estruturantes dentro das nossas sociedades. Esse poder é de origem religiosa,
aquele que pretende conduzir e dirigir os homens ao longo de toda a sua vida e em
cada uma das circunstâncias dessa vida, um poder que consiste em querer controlar a
vida dos homens em seus detalhes e desenvolvimento, do nascimento à sua morte, e
isso para lhes impor uma certa maneira de se comportar, com a finalidade de
garantir a sua salvação.
salva . É o que poderíamos chamar de poder pastoral.
(FOUCAULT, 1994, p. 73).
Segundo Foucault, a rebelião contemporânea contra todo poder pastoral e, por
extensão, contra toda forma de poder, foi por assim dizer inoculada progressivamente pelo
próprio poder pastoral e suas técnicas de constituição do indivíduo, técnicas sucessivamente
religiosas – o auto-exame
exame e a confissão – e seculares – a consciência crítica autônoma e o
Esclarecimento2.
Continuando na analogia
analog proposta pelo autor,, é como se pudéssemos definir o espírito
dessa época pós-moderna que é a nossa como uma espécie de ultraprotestantismo histórico.
Sabemos que a tendência essencial do protestantismo é a atomização e a consequente dispensa
de pastores.. Na congregação perfeita há apenas irmãos, ovelhas sem pastor, que respondem
imediatamente a Deus. Com efeito, Foucault parece ter apreendido perfeitamente o “problema
teológico-político”
político” como o problema central do mundo moderno3 – e, mais especificamente,
especificamente
da filosofia no mundo moderno -, sem, no entanto, dar-se
se perfeitamente conta de todas as suas
implicações, especialmente no que elas têm de radicalmente divergentes da posição da
filosofia no seu sentido original, da filosofia clássica, frente ao que ele chama repetidamente
de a “questão do poder”.
1 UM EQUÍVOCO REVELADOR?
REVELADOR
A questão demandaria um longo discurso, que não seria apropriado desenvolver aqui.
O tema deste artigo é bem mais pontual: qual o significado historicamente concreto da
metáfora do “rebanho”
ebanho” e da política como “pastoreio” que Foucault coloca no centro da sua
discussão, como alvo e contraponto das novas modalidades de luta contra o poder?
2
Foucault pensa a própria psicanálise como uma expressão tardia, mas genuína, dessas técnicas. Ver o que ele
diz a respeito da “intelectualização” da sexualidade ou do prazer em “O verdadeiro Sexo”, Foucault: Ética,
Sexualidade, Política, op.cit.,, p. 84.
3
Embora não tenha provas para afirma-lo,
afirma lo, desconfio fortemente que, ao escrever a primeira parte do seu
s “A
filosofia analítica da política”, ele tivesse em mente a discussão entre Leo Strauss e Alexandre Kojève (On
(
Tyranny)) a respeito da relação entre filosofia e política nos mundos antigo e moderno. A polêmica StraussKojève teve grande repercussão no ambiente
ambiente filosófico e político francês das décadas de 60 e 70, tendo sido o
livro no qual ela está contida objeto de numerosas reedições.
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Começando pelo início, nosso objetivo é chamar a atenção para um pequeno, porém
significativo equívocoo da parte do sábio francês. Foucault afirma que o “poder pastoral”, e
inclusive a própria imagem do poder social como a condução de “rebanhos humanos”, teria
sido uma invenção do cristianismo, que, levado pelas metáforas pastorais herdadas da tradição
bíblica, teria com elas substituído aquilo que, segundo ele, os gregos entendiam como “o
cuidado de si”, uma modalidade estritamente individual de autogoverno a partir do
conhecimento de si mesmo e do uso correto da razão. Ora, pareceparece-nos que Foucault foi
vítima, aqui,
ui, daquilo que Rousseau chamou de “ilusão retrospectiva”.
rospectiva”. Tanto não é certo que
os gregos não conheciam ou não usavam a imagem do pastoreio para referir-se
referir
ao governo
dos seres humanos, como o exato oposto deve ser afirmado: foram eles, os gregos,
grego que a
usaram da maneira mais lúcida e consequente para figurar o entendimento correto da questão
do poder social, da “política
política” em estilo grego.4 Foi, mais precisamente, um grego: Platão. E
exatamente no Político,, que Foucault cita nominalmente ao afirmar a inexistência,
inexistência na
“literatura grega e romana”, da representação do político como pastor.
Foucault cita a imagem da “tecedura” para indicar a ciência política em contraposição
ao pastoreio. Embora seja verdade que, na última seção do Político,, a tecedura
t
é indicada
como a analogia mais perfeita da obra do político (provavelmente porque é mais “exata”, mais
“científica” do que a arte de pastorear), cumpre reconhecer que é por razões pedagógicas, e
essencialmente por razões pedagógicas, que o Estrangeiro,
Estrangeiro, protagonista do diálogo, deixa em
segundo plano (o que não implica em abandono) a “grande analogia” do pastor divino e,
depois, do pastor humano, em favor da “pequena analogia” da tecedura para designar a arte
real ou política. O que está em jogo aí é uma questão de método, é a diferença entre o grande
exemplo e o pequeno exemplo, e a necessidade de se começar pelo segundo, do pequeno,
para, daí, ascender na direção de questões e argumentações de maior complexidade (Pol.
(
287b). Enfim, não há, como parece
par
pensar Foucault, no Político,, oposição entre pastoreio e
tecedura, mas, antes, complementariedade.
Nesse diálogo, que tem como objeto a “definição da arte do político”
(πολιτικοῦ τέχνης - 267a), Platão (ou a figura do sábio no diálogo, o Estrangeiro de Eléia)
afirma com
om todas as letras que a política é “a arte de pastorear homens (ἀνθρωπονομικῆς
(
τέχνης - 266e)”, e que o “homem político e real” é o condutor “de direito” dos “rebanhos
4
Ressalte-se
se logo de saída que o questionamento da representação de Foucault da política como pastoreio que
empreendemos aqui refere-se
se exclusivamente à filosofia antiga. Os traços de dominação “psicológica” e
“individual” que ele descobre na noção especificamente cristã de pastoreio estão notavelmente ausentes da noção
especificamente clássica e filosófica e parecem ser em
em grande parte originais do cristianismo – o que reforça o
acerto de boa parte da sua interpretação, especialmente no que diz respeito às técnicas de controle espiritual mais
uma vez ausentes – ao menos parcialmente - da proposta política de Platão.
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humanos” (ἀνθρώπων ἀγέλαις
γέλαις)...repartidos em cidades” (295e)5. De forma
f
ainda mais
escancarada,
arada, o Estrangeiro diz que a política é apenas uma das “muitas formas [divisões,
manifestações - phaneron]] da arte de pastorear (νομευτικῶν
(
τεχνῶν)”
)” e que ela é a “ciência
que cuida [epimelein] dos homens que vivem em comunidade” (267d).
Quando falamos em “ilusão
“ilusã retrospectiva”
ctiva” para fazer referência ao equívoco de
Foucault não quisemos apenas citar uma
uma expressão famosa. E consideramos uma falta
imperdoável e uma satisfação das mais mesquinhas querer “se mostrar”,
”, como diz o povo, em
cima de um homem de tamanha competência
comp
– uma competência que o humilde autor deste
ensaio sequer sonharia ter. Usamos a expressão e apontamos o erro – se é de erro que se trata
- porque cremos que eles comunicam uma realidade das mais exatas, na medida em que a
omissão de Foucault nos parece
pa
terr uma motivação bem característica, que pode ajudar a
entender certos enganos essenciais. Como muitos outros antes e depois dele, Foucault projeta
sobre os antigos – mais especificamente sobre Sócrates - uma noção que os antigos (e,
provavelmente, Sócrates)) jamais sonharam ter. Não entraremos em discussões filológicas que
ultrapassam em muito a competência do nosso parco grego. Não pretendemos tentar
demonstrar a verdade ou falsidade de certas leituras a respeito da filosofia grega e seu sentido
que já estãoo mais do que cristalizadas no ambiente
ambiente acadêmico brasileiro. Gostaríamos apenas
de fazer uma observação singela: como quer que se interprete o fato de Sócrates ser descrito a
caminhar pela Ágora e interpelar os cidadãos atenienses para testar a sua (deles)
(deles sabedoria,
ou, mais concretamente, como quer que se interprete as diversas conversas narradas por
Xenofonte nas suas lembranças do mestre6, nas quais ele se detém a examinar as opiniões das
mais diferentes classes de cidadãos sobre o belo, o justo,
justo o pio e o bom (sobre a política,
enfim), não existe razão para pensar que o “cuidado de si” (o cuidado da alma) implicado no
elenchos socrático se estendesse ao conjunto da cidade ou que ele acreditasse que a filosofia
pudesse democratizar-se
se e constituir-se,
constituir
como um Esclarecimento avant la lettre,
lettre no princípio
da ação da cidade como um todo entendida como o conjunto – o “grande número” – dos seres
humanos atualmente vivendo ali.
Se é ao menos possível desconfiar que esse não fosse o pensamento de Sócrates (que
nos seja concedida
cedida ao menos essa dúvida), nos parece mais do que seguro afirmar que essa
constituição universal de indivíduos críticos e (auto)conscientes – que “cuidam de si” - por
meio da difusão da filosofia estava longe de ser o pensamento de Platão. Embora
E
não faça
sentido desenvolvê-la
la aqui, a imagem reproduzida mais acima da política como a ciência que
tem como objeto a condução de rebanhos humanos diz praticamente tudo o que há para dizer
5
6
Cf tb. 261d.
Os textos pertinentes, aqui, são obviamente a Apologia de Sócrates e os Memoráveis,, ambos de Xenofonte.
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a esse respeito. Principalmente quando consideramos que a diferença
diferença específica dos pastores
platônicos para os pastores modernos – os intelectuais fautores do “Esclarecimento” - reside
justamente na diferença específica entre as duas concepções de filosofia - platônica e moderna
- e na concepção radicalmente distinta
distinta que uma e outra têm da relação entre filosofia e poder.
2 O FILÓSOFO E O INTELECTUAL
Numa outra ocasião, disse que a moderna “República
“República das Letras”,
Letras a classe dos
intelectuais públicos – de Bayle a Sartre, passando por Zola, Voltaire, Rousseau e tantos
outros - encarnava, como um projeto de salvação da humanidade pela popularização da
filosofia e do conhecimento científico (justamente o que conhecemos como “iluminismo” ou
“Esclarecimento”), a figura
ra platônica do filósofo-rei,
filósofo rei, invertendo o seu sentido. Chegou a hora
de tentar explicar o que se quis dizer com isso em umaa ou duas palavrinhas que devem servir
para qualificar a nossa discordância ou, melhor dizendo, o nosso reparo, à observação de
Foucault
ult sobre a política como “pastoreio”.
“pastoreio”
Para Platão, é exatamente porque não há possibilidade de universalização do “cuidado
de si” filosófico, é precisamente porque nem todos os seres humanos têm a possibilidade de
serem filósofos, é precisamente por isso que jamais existirão rebanhos humanos que não
precisem de cuidados, que não tenham necessidade de um pastor. O “cuidado de si” é
característica essencial do filósofo, um tipo humano específico, ainda que o mais alto e
excelente, mas cuja proporção é mínima em relação à humanidade em geral (292e
(292e-293a)7.
Reside aí, mais que em qualquer outra coisa, a rejeição platônica da democracia, que tanta
polêmica causa entre estudiosos e admiradores contemporâneos do filósofo ateniense.8
Reconhecendo esse fato, que para Platão é algo tão óbvio que sequer precisa ser demonstrado
– é apenas um “dado” da natureza reconhecido na experiência do próprio e de outros tempos , o filósofo exerce o governo que é seu “de direito” (já que é ele o único detentor da ciência
real e a ciência
iência é o único título legítimo, “natural”, de mando no mundo humano – 259b) não
popularizando o seu saber, esclarecendo seus compatriotas ou a humanidade com as suas
descobertas (ou mesmo estimulando o “pensamento crítico”),
crítico”), o que, repito, é visto por Platão
Pl
como não apenas insensato, mas impossível, e insensato exatamente por ser impossível, mas,
7
“Podemos
Podemos acreditar”, pergunta o Estrangeiro, “que numa cidade toda a multidão seja capaz de adquirir essa
ciência? – Impossível – E será que
que numa cidade de mil habitantes, haveria cem ou cinquenta capazes de chegar a
adquiri-la
la de maneira satisfatória? – Nesse caso, a política seria a mais fácil de todas as artes; pois sabemos
muito bem que em toda a Grécia não encontramos tal proporção, por mil, nem entre os campeões do jogo de
damas, e muito menos a encontramos entre os reis. Pois só merecem, realmente, o título de rei os que possuem a
ciência real, quer reinem ou não,
não como dissemos anteriormente” (grifo meu).
8
Cf. Sara Monson, Plato’s Democratic Entanglements,
Entanglements Princenton Univ. Press, Princenton, 2000.
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ao contrário, ele assim o faz sabendo o que dizer e o que calar em cada lugar e oportunidade9,
sabendo como agir de acordo com cada ser humano ou grupo de seres humanos (cada
“rebanho”) segundo a sua natureza e em cada situação individual (é isso que Platão chama
caracteristicamente
ente de “distribuir a justiça” em 297b), lançando mão com a maior habilidade
possível de todos os diferentes recursos – as “artes” – disponíveis
oníveis na cidade (a mentira e a
verdade, a coação e a sedução, a violência e a retórica – cf. 304b) para formar um tecido
perfeito e bem cosido segundo a “justa medida”, o que significa muito propriamente operar
segundo os ditames da “ciência” ou da “arte real”, que para Platão é ao mesmo tempo
piedade, justiça e sabedoria – a suprema virtude ou areté.
Mas o ponto essencial de todo o discurso do Político,, de todo o discurso político de
Platão e, por extensão, da filosofia política clássica, que com frequência passa despercebido
ao comentador, é que o filósofo platônico, apesar de ser o único verdadeiro político, o único
pastor genuíno que tem o saber
saber necessário ao cuidado excelente dos rebanhos humanos, não
está nem um pouco interessado em exercer o poder. E por
or que o exerceria? Que vantagens o
exercício do poder poderia oferecer a ele,
ele que tem como experiência cotidiana os deleites
indolores da pesquisa
squisa e da contemplação
contemplação do eterno? Por que o filósofo trocaria a visão
cotidiana do “sol” da natureza pelas sombras fugidias da caverna e da convenção?10 O que o
levaria a deixar a bem aventurada autarquia em que vive para cuidar daqueles que não sabem,
e, é provável, jamais saberão exercer o necessário “cuidado de si”?
Na linguagem platônica, o sábio interessado – ardentemente interessado - em trocar a
sua sabedoria pelos favores da cidade, em ser “útil” à cidade, para brilhar na condução dos
rebanhos humanos
anos (sempre pelo “bem deles”),
), não tem o nome de filósofo. É a figura do
sofista,
a, e não a do filósofo, que Platão representa como interessada,
interessada com efeito mui
interessada, no exercício do poder.11 Era o sofista, e não o filósofo, quem ocupava, na Grécia
clássica,
ssica, o lugar desse que, a partir da formulação madura do projeto moderno, em fins do
século XVII, chamamos de “intelectual”,, essa figura de sábio que acredita com ardor e
convicção na utilidade do pensamento, na conversão necessária e benéfica do pensamento
pensame
em
ação. Era o sofista quem propunha e praticava a “politização da filosofia” (STRAUSS, 1953,
9
Fedro, 275d-e.
Numa passagem-chave da República (519c e ss), Platão o representa tendo de ser obrigado pela força (ele fala
em “forçá-lo
lo a cuidar dos outros e guarda-los”
guarda
– 520a) a voltar
ar para a caverna e ocupar-se
ocupar
dela depois de ter
enxergado diretamente a realidade iluminada pela luz do sol.
11
O Estrangeiro de Eléia diz que os sofistas “se agitam em torno das coisas públicas”(πόλεων
públicas”(πόλεων πράγματα - 291b)e
que eles são “perigosos” justamente porque são “difíceis de distinguir dos verdadeiros políticos e do verdadeiro
homem real” (291c)
10
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p. 34) ou, como talvez hoje seja mais apropriado dizer, a filosofização do poder.12 Como
insiste Cálicles no seu combate de vida e morte com Sócrates, filosofia
filosofi não dá camisa, é
ocupação de rapazes imberbes e sem ambição, sem virilidade, de natureza frágil, marca
característica de uma vida “inútil” e eminentemente privada passada no comércio de coisas
sem valor, que deve ser deixada de lado assim que crescemos em
em nome das coisas mais belas
e nobres, proporcionadas pelo envolvimento nos negócios da cidade e por
po uma vida orientada
para a busca da glória, para os grandes feitos, as grandes realizações (Górgias
Górgias 484c)13.
Para Platão, o problema implicado nessa postura específica, típica, nessa relação
específica e típica entre saber e poder,
po
não se reduz essencialmente ao fato de o sofista usar o
saber para ganhar dinheiro ou honrarias, ou mesmo ao fato de ele supostamente ignorar o que
ensina (os caracteres que compõem
compõe classicamente o sofista platônico como figura do
“impostor”), normalmente os aspectos mais geralmente ressaltados a propósito da crítica
platônica da sofística. O problema essencial, radical, reside na inversão da hierarquia natural
das atividades humanas,
s, da natureza humana, do bem humano, encarnada no fato de o sofista
usar a sabedoria, que é o mais “alto” e deve ser buscada e cultivada por si mesma, como
instrumento e meio para um fim que é manifestamente mais baixo do que ela (que,
(que em
definitivo, não é ela), e que por isso deveria ser governado e não governar (STRAUSS, op.
Cit., p. 116).. Pouco importa como o fim prático da atividade filosófica seja definido nem as
imagens, o mais das vezes belíssimas, comoventes, patéticas, que são usadas para descrevê-lo
descrevê
(salvação da humanidade; libertação das correntes da ignorância; elevação do homem, etc.):
etc.)
para Platão, e com ele toda a filosofia clássica, todo fim está, por definição, abaixo da
sabedoria na ordem da vida humana e do seu bem.
No caso da cidade e da política, que estamos discutindo, essa inversão sofística tem
ainda um significado
icado pontual sobre o qual parece importante refletir. Ela significa que o
sofista, sendo parte nas reivindicações da cidade, sendo, na verdade, uma parte da cidade –
para Platão o grande problema de definir o político e a arte que lhe é própria é que diversos
saberes e diversos sábios (todos, potencialmente, do agricultor ao magistrado14), as diversas
“partes” da cidade, competem pela posse da ciência real e, com ela, pelo título legítimo ao
poder -,, enxergará apenas a parte que lhe toca, ficando cego para a forma própria do objeto –
12
Bem a propósito, Foucault observa que os Estados modernos são com frequência “Estados filosóficos” ou
“Estados-filosofia”,
”, que se organizam e reconhecem como filosofia. “A filosofia analítica do poder”, op. Cit., p.
40.
13
Cf. tb. 482c onde Cálicles acusa Sócrates de “insolência juvenil”.
14
O Estrangeiro designa 9 ou 10 classes de pessoas e atividades que compõem as “partes” da cidade e que se
deve distinguir para obter, por separação dialética, o eidos da cidade e, com ele, da ciência real. Podemos
destacar: cardadores, agricultores, pastores
pastores de animais, arquitetos, comerciantes, advogados/oradores, sacerdotes
e sofistas (288e). Noutra passagem, ele diz que são “milhares” os rivais do verdadeiro político (279a. cf. 267e267e
268d)
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a cidade - cujo direito de cuidar ele reivindica15. Como parte que não reconhece a forma do
todo, que não conhece o todo, o uso “político” - no sentido mais ordinário do termo de
“parcial”, “faccioso”, “interessado” - que o sofista faz da razão acaba levando à destruição da
própria razão.
É importante notar que o erro político do sofista é ao mesmo tempo, e essencialmente,
um erro dialético: não sendo versado na arte da divisão (diairesis)) ele não reconhece o objeto
próprio da arte real, obtido pela separação em relação às outras artes que constituem as
diversas “partes” da cidade (a divisão dialética descobre que a arte real não se confunde com
nenhuma delas), e por isso, acaba se tornando apenas uma parte entre outras, ignorante do
objeto fundamental,, da política no seu aspecto “arquitetônico” de coordenação das partes num
todo harmonioso.
Na realidade, os sofistas se aproveitam justamente da dificuldade
dificuld
de fazer essa
distinção para convencer a cidade da legitimidade da sua pretensão de poder e, claro, da
verdade da sua sabedoria (291c). Que o erro tem a ver de alguma forma com a relação entre
parte e todo fica claro na definição final da ciência política
política como “ciência arquitetônica”,
como a arte que decide como e quando usar das outras artes, e que por isso encontra-se
encontra
“acima” delas (304b). As consequências desse desvirtuamento são desastrosas: em
e pouco
tempo, sob a sua atuação eminente “prática”, “útil”,
“útil”, diríamos “engajada”, a razão se
transformará em apenas mais uma opinião entre outras, perdendo completamente a autoridade
“divina” que, segundo a filosofia,
filosofia, deveria ter. Ao submeter a razão às exigências da caverna e
aos seus limites, às paixões que vigoram
vigoram dentro da caverna, o sábio que deseja ardorosamente
ser “útil” e que busca, consumido pela paixão de beneficiar o seu rebanho, abrir uma
u
fenda
para fazer entrar a claridade,
claridade, só conseguirá com o seu esforço reforçar as paredes que
aprisionam, construir,
r, como alguém já disse, a “caverna da caverna”, sem encontrar uma saída
que leve à luz do sol. Numa palavra, no que diz respeito aos conflitos da cidade, que segundo
a filosofia clássica o verdadeiro político e condutor teria de mediar com a autoridade e a
independência perfeitas de quem “sabe”, o sofista será apenas e sempre parte do problema –
levando-o,
o, aos olhos de Platão, a um agravamento
agravame
nada desprezível - e nunca à sua solução.16
15
“Todos aqueles que desempenham um papel nessas constituições, exceto
exceto os que possuem conhecimentos,
devem ser rejeitados como falsos políticos, partidários e criadores das piores ilusões, e visionários eles próprios,
momos e grandes charlatães e, por isso, os maiores sofistas de todos os sofistas” (303c). Ao chamar os falsos
f
políticos de “partidários” ou “facciosos” (στασιαστικούς)
(
) o Estrangeiro sugere que o erro deles é entender a
“parte” – meros – pelo todo, pela “forma” – eidos -, que dá a imagem do todo. Cf. D. Roochnik, “Residual
Ambiguity in Plato’s Statesman” in Gramata, The Internet Journal of the International Plato Society,
Society p. 10.,
Acesso: Março de 2005,
16
Ao lado de outras razões mais importantes, o filósofo é o único a ter o direito legítimo de governo porque não
é parte da cidade, porque ele (e a filosofia) não tem lugar na cidade: ele é atopos,
atopos como a própria cidade
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Num livro hoje clássico, um dos mais cuidadosos estudiosos da filosofia platônica afirmou
sem nenhuma reserva que toda a obra de Platão é dirigida à crítica da noção de “intelectual”
(STRAUSS, op. Cit.,., p. 56).
56) É nesse sentido que se deve interpretar o que foi exposto até
aqui.
CONCLUSÃO
Mas basta de tagarelar sobre Platão. Pararemos por aqui, com esses poucos
apontamentos superficiais. É tema de acalorados debates a relação entre filosofia e política no
pensamento do filósofo ateniense e dos clássicos como um todo. Não
ão é a hora nem o lugar de
se meter nisso. A respeito, apenas
apenas uma última observação: não é raro encontrar quem faça a
transição da República ou do Político ou das Leis para o pensamento político moderno sem as
reservas devidas, afirmando em geral uma retomada da filosofia antiga pela filosofia moderna
sem uma solução
ução de continuidade relevante, algo como um “retorno ao paganismo” que teria
deixado definitivamente para trás o cristianismo e os princípios da visão de mundo que ele
inspirou – como a “política do pastoreio”, entre muitas outras.
outras. Mas o estudo atento dos
autores modernos e clássicos, e o confronto cuidadoso dos respectivos textos, parecem
mostrar que a realidade vaai em outra direção: a filosofia moderna, concebida nos termos em
que a descrevemos, não representa apenas uma ruptura com o cristianismo, mas também, e de
forma muito mais consistente, com a filosofia em seu sentido clássico. Na verdade, ela parece
estranhamente mais distante da filosofia clássica bem entendida do que desse mesmo
cristianismo contra o qual fez juras estridentes de travar uma guerra sem fim.
Cabe a nós não deixar que essa estridência nos desvie do que interessa. Face ao
cristianismo, e desde, pelo menos, Maquiavel,
Maquiavel, esse genial arauto do anticristo, a filosofia
colocou-se
se como missão conduzir os rebanhos humanos para a salvação possível,
estabelecendo como dever do sábio cuidar e eventualmente salvar as suas ovelhas pela
conscientização a respeito dos seus reais interesses e do mundo como ele é, animando-as
animando
a
aderir ao projeto de reconstruir esse mundo – na política, na técnica, na cultura -, visto como
inóspito e intratável, à imagem de um novo saber que é poder, num projeto emancipatório de
dimensões universais. Parece inegável que, desde o princípio, sua pretensão foi fazer do ofício
do sábio uma nova modalidade de sacerdócio – que a missão apaixonadamente assumida
pelos intelectuais públicos modernos possa ser descrita como um “sacerdócio” laico é algo
que essess mesmos intelectuais jamais se negaram a reconhecer -,, destinado a eliminar
derrisoriamente o reconhece (cf. a representação de Sócrates em As Nuvens, de Aristófanes,). Observe-se
Observe que é
também por isso que ele não tem interesse em governar.
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progressivamente,, por meio da distribuição universal dos benefícios da ciência e da razão, da
“eficácia” do novo pensamento científico, a influência do sacerdócio que o precedeu. No
plano propriamente filosófico, essa
essa eliminação foi figurada como a instituição da crítica no
lugar do conformismo, da luz no lugar das trevas, da autonomia no lugar da tutela, da
liberdade no lugar da opressão, como um chamado, dirigido à humanidade, a uma
reconsideração lúcida, sem ilusões, desencantada, do que a vida humana é e do que ela pode
ser. A salvação proposta pela filosofia moderna sempre foi, portanto, em essência, uma autoauto
salvação. A fé nas capacidades autoredentoras do ser humano é a sua marca
m
característica, da
qual a técnica é apenas a expressão mais conspicuamente visível.
Na sua concepção original, esse projeto dependia inteiramente do princípio de que
todos os seres humanos normalmente constituídos seriam aptos (diríamos, por natureza?)
natureza a
desenvolver, em alguma medida suficiente, a capacidade de filosofar, de pensar com a própria
cabeça, de “cuidar de si”, uma capacidade que os levaria necessariamente, progressivamente,
à constituição de um mundo em que poderiam sentir-se
sentir se confortáveis, diferente do mundo
original, do mundo criado, não cultivado, diferente da condição original do ser humano,
desamparado
rado desde a barriga da mãe. O projeto dependia, numa palavra, de que a filosofia –
ou, modernamente, a “ciência” - se tornasse não apenas um poder entre outros, mas o grande
poder social, o instrumento eficaz da salvação humana e a única prerrogativa legítima de
poder. Um poder destinado a ser de todos. Um poder democrático universal.
Encaradas as coisas em seus termos corretos e concretos, tais
tais como os textos nos dão a
ver, é difícil conceber algo mais distante da filosofia clássica que esse projeto coletivo,
messiânico, semi-religioso
religioso de poder. E mais difícil ainda concebê-la
concebê la como advogando um
universal cuidado de si como resultado do processo
process de esclarecimento e da sua superação. O
historicismo nos faz crer que sabemos mais e melhor o que pensavam os autores do passado
do que eles mesmos sabiam. O que nos leva a dizer, como se apenas repetíssemos uma
verdade banal, que eles não teriam levado em conta na sua discussão de um determinado tema
um determinado enfoque ou um determinado argumento para nós decisivo porque na época
simplesmente não podiam saber o que apenas aos tempos posteriores seria revelado, e assim
por diante com todas as épocas numa espécie de escada da consciência ou da sabedoria na
qual cada época ocupa necessariamente uma posição mais “alta” em relação à época anterior,
a toda época anterior. Ocorre também o contrário e, paradoxalmente, pelas mesmas razões: os
antigos tiveram “intuições” geniais, das quais podemos fazer uso – a política como tecedura,
aplicada por Foucault às lutas pós-modernas,
pós
é um exemplo -,, desde que as destaquemos do
contexto original – naturalmente “superado” - em que unicamente elas faziam sentido. Por
falta de refletir – ou de levar a sério, o que dá no mesmo – sobre a especificidade do conceito
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clássico da filosofia como “sabedoria”, Foucault foi apenas um dos grandes escritores da
modernidade a projetar sobre os antigos noções que os antigos sim conheceram,
conhec
mas que
rejeitaram lúcida e conscientemente (como “erros”) no desenvolvimento dialético da sua
discussão. Por essa razão, no caso específico que discutimos – a “política como pastoreio” -,
ele se revelou muito mais um adepto do pensamento moderno, do projeto moderno de
esclarecimento e da sua interpretação específica da filosofia antiga, do que o defensor e
teorizador de uma “ruptura” ou de um “salto” que estaria em vias de superá-lo.
superá
Nada de novo
sob o sol: a “ilusão” de Foucault, se é lícito exprimir-se
exprimi se assim, vem apenas confirmar a
concepção já consagrada (Giddens, Bauman, etc) de pós-modernidade
pós modernidade como modernidade
consumada, realizada, “alta modernidade”, enfim. Como se disse, não é algo tão incomum.
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(LCL 168), 1923
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