Jornal da Escola Superior da Defensoria Pública da União 3 º Trimestre de 2016/ Ed. Nº 06, ano 2 GÊNERO E DIREITO A contínua construção das diferenças de gênero Por Nara Rivitti – Defensora Pública Federal de 2ª Categoria em São Paulo – SP https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/35/Jean-Baptiste_Sim%C3%A9on_Chardin_003.jpg Editorial Por Fernando Mauro Barbosa de Oliveira Junior Página 3 Caminhos da Justiça: A Defensoria Pública da União e a Pesquisa de Necessidades Jurídicas Por André Carneiro Leão Página 4 Dignidade trans: visibilidade e cidadania contra a violência sistêmica Por Daniela Lorena León Graça e Pedro Rennó Marinho A assimetria de poder entre homens e mulheres e as implicações das discriminações de gênero em aspectos como remuneração e patrimônio, violência de gênero e ocupação de espaços de poder levam a questionamento sobre as relações de gênero e as necessidades de mudança. O sistema de sexo-gênero, entendido como a constituição simbólica e a interpretação sócio-histórica das diferenças anatômicas entre os sexos, é o modo essencial (e não contingente) a partir do qual a realidade social se organiza, divide e vive. É constitutivo da vida na sociedade contemporânea, que se fundamenta em premissas de diferenças entre os sexos muito além das anatômicas. Como diz a célebre frase de Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se mulher. Os seres humanos nascem com características sexuais específicas, e a partir delas são atribuídos – e ensinados – os conteúdos de gênero. Os gêneros masculino e feminino respondem a construções culturais que se sobrepõem aos sexos biológicos para estabelecer uma fronteira entre eles que vai muito além das diferenças fisiológicas. Estas diferenças, que comportam divisão de papéis, de espaços sociais e de percepções psicológicas entre os gêneros, são persistentemente prejudiciais às mulheres. Como resultado, os sistemas de sexo-gênero historicamente conhecidos, que sofreram grandes mudanças com o tempo, colaboraram para a opressão e a exploração da mulher. Os conteúdos da associação sexo-gênero se alteram conforme a época histórica. No nosso tempo atual, guarda contornos bem específicos. A perspectiva histórica é fundamental para se compreender o quanto essas catego- Página 5 A prisão domiciliar – Um outro enfoque Por Carolina Soares C. Lucena de Castro Página 7 Entrevista Entrevista com Ari Areia e Helena Vieira Página 8 Notas www.dpu.def.br/esdpu Página 10 Escola Superior 1 rias são socialmente construídas. Por exemplo, Laqueur destaca que “o lugar-comum da psicologia contemporânea – de que o homem deseja o sexo e a mulher deseja relacionamentos – é a exata inversão das noções do pré-Iluminismo que, desde a Antiguidade, ligava a amizade aos homens e a sensualidade às mulheres”. 1 Assim, as representações sociais de homens e mulheres mudam conforme as necessidades e valores de cada época. Apesar da dominação masculina nas sociedades centrais ser muito anterior, é relevante observar que o sistema de sexogênero hoje vigente tem suas raízes na Ilustração. Durante a Ilustração se preconizava a ideia de que todos os homens nasciam livres e iguais e dotados de razão, pensamento que contém potente carga revolucionária, considerada à época. Entretanto, apesar do esforço de revolucionárias como Olympe de Gouges (guilhotinada) e Mary Wollstonecraft, a Revolução Francesa não estendeu às mulheres a liberdade e a igualdade, que permaneceram adstritas ao universo masculino. É emblemático na formulação teórica da subordinação feminina contemporânea o livro V de Emílio ou da Educação, de Rousseau, que se dedica à educação das mulheres: Las doncellas deben ser atentas y laboriosas, pero no basta con esto; desde muy pequeñas deben estar sujetas. (…) Es preciso acostumbrarlas a la sujeción cuanto antes, con el fin de que nunca les sea violenta; a resistir todos sus caprichos, para sujetarlos a las voluntades ajenas. Si quisieran estar siempre trabajando, sería conveniente obligarlas a que algunas veces holgasen. La disipación, la insustancialidad, la inconstancia, son defectos que fácilmente nacen de sus primeros gustos extraviados y siempre cumplidos; para atajar esos excesos, enseñadlas a que se venzan continuamente. En nuestras desatinadas costumbres, la vida de una mujer honesta es una perpetua lucha consigo misma. 2 Aos homens, a educação para a liberdade; às mulheres, a educação para a obediência. Para fundamentar essa distinção, na Ilustração já não era mais possível recorrer unicamente à religião e, como em tantos outros temas, recorreu-se a argumentos da 1 Laqueur, T. Inventando o sexo. Rio de janeiro: Relume-Dumará, 2001, p. 15. 2 Rousseau, J. J. Emilio o la Educación. Consultado em <http://www.medellin.edu.co/sites/Educativo/ repositorio%20de%20recursos/Rousseau_JeanJacques-Emilio%20O%20La%20Educacion.pdf>, p. 415. 2 www.dpu.def.br/esdpu ordem da natureza. Aprofunda-se a partir da Ilustração uma visão dicotômica da realidade, do masculino associado a elementos como cultura, liberdade, universalidade, mente, razão, entendimento, ética da justiça, competitividade, lazer, e o feminino associado a elementos como natureza, necessidade, particularidade, corpo, paixão, sentimentos, ética do cuidado, caridade, ser. A nascente preocupação com as crianças na época vem atrelada à atribuição às mães das responsabilidades da criação, alterando as relações familiares até então existentes e constituindo a ideia de maternidade tal qual hoje concebida. O desenvolvimento das democracias ocidentais inaugurou um novo campo social e político de igualdade e liberdade: o campo da cidadania, do qual as mulheres foram excluídas. A adstrição das mulheres ao âmbito doméstico-privado é o mecanismo pelo qual a tradição ilustrada e liberal consumou a exclusão das mulheres das promessas ilustradas de igualdade e liberdade. Com isso não se ignora que muitas mulheres eram parte importante da mão de obra, (mal) remunerada ou escravizada, mas que, apesar de participarem minimamente desse espaço público, não tinham voz ou direitos e acumulavam toda a tarefa reprodutiva doméstica, arcando com o cuidado (não remunerado) da classe trabalhadora. Os diferentes trabalhos (no lar e no mercado) não gozam – nem hoje nem nas origens do sistema capitalista - do mesmo reconhecimento social. A valoração hierárquica, resultado de uma larga tradição patriarcal, estabeleceu uma visão da sociedade dividida em duas esferas. A esfera pública, masculina, é centrada nos âmbitos social, político e econômico-mercantil, regida por critérios de êxito, poder, direitos de liberdade e propriedade universais. Já a esfera privada (doméstica), feminina, é centrada no lar e baseada em laços afetivos e sentimentais, e desprovida de qualquer ideia de participação social, política ou produtiva. A face visível é sempre a pública-masculina, enquanto a face privada-feminina é invisibilizada e não remunerada. Assim, na construção contemporânea de masculino e feminino, são atribuídos espaços sociais diferentes a cada um dos gêneros, com prejuízo às mulheres. Essa diferença entre os gêneros é Escola Superior transformada em uma questão de natureza, suprimindo-se as construções sociais. A diferente função reprodutiva é posta como elemento central para a determinação dos papéis sociais. A maternidade, dentro do casamento heterossexual, torna-se o destino inato das mulheres. Para assegurar que o homem não transmita sua herança senão aos seus próprios descendentes, o adultério feminino é duramente apenado, enquanto o masculino é penalmente irrelevante. Literatura, brinquedos e outras representações sociais – destacam-se, entre as formas mais contemporâneas, a novela e a publicidade servem para reafirmar e naturalizar as diferenças e desaconselhar o desvio das normas de gênero. As normas penais punem o desvio. Leis civis retiram direitos das mulheres, criando sua dependência legal do homem. Apesar de o âmbito doméstico ser feminino, permanece a autoridade masculina, gerando níveis alarmantes de violência doméstica que persistem ainda hoje, mesmo depois de se por de manifesto as relações de poder que estruturam a família e a sexualidade. Todas as tarefas de cuidados são atribuídas às mulheres, que continuam a arcar de forma desproporcional com os cuidados de crianças e demais dependentes, como filhos, maridos e irmãos deficientes, pais idosos, sem qualquer remuneração. Na prática cotidiana da Defensoria Pública constata-se não só esse ônus desigual, mas como isso tem repercussões profundas na vida laboral das mulheres (muitas vezes mais descontínuas) e consequentemente na sua condição socioeconômica. Diversos estudos sobre a masculinidade também evidenciam como os estereótipos de gênero afetam os homens, que, por exemplo, figuram em estatísticas criminais de homicídios como agentes e como vítimas em quantidades muito mais elevadas. Neste campo, às instituições cabe lutar para combater os estereótipos de gênero e suas consequências nefastas, buscando a redução das desigualdades existentes. O direito, que por muito tempo foi um instrumento de criação e manutenção das desigualdades, deve hoje ser utilizado como um meio de transformação social em busca de uma sociedade mais justa e igualitária.