O futuro da Antropologia - Revista Espaço Acadêmico

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Revista Espaço Acadêmico, nº 88, setembro de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/088/88melo.pdf
O futuro da Antropologia
Marina Félix de Melo *
Rigor crítico, descentralização sistemática relativamente
à sua própria cultura, prudência e modéstia nas conclusões:
eis, provavelmente, o que resume de maneira mais
simples a ética da prática científica. (Godelier, 1992)
Este ensaio é gerado a partir da inquietação acerca do futuro da antropologia. Objetivamos
perpassar um pouco a história desta disciplina, levando em consideração, acima de tudo, as
hodiernas perguntas sobre as quais esta ciência tem se debruçado, a saber, “de onde viemos?”,
“para onde vamos?”, “o que fazemos?”, “o que queremos?”, enfim, temos aqui um elenco de
questionamentos da antropologia sobre si mesma, questões não inéditas na literatura, que
debatem e refletem sobre a disciplina.
Percebemos na antropologia contemporânea um perfil menos etnocêntrico e mais relativista,
comparando-a a seu passado. Nesta tentativa mais atual de reconstruir a disciplina, há uma
intenção em se evitar noções estritamente evolucionistas. É também nesta reconstrução da
ciência que percebemos um desligamento dos estudos sobre os povos ditos “primitivos”, o
que não significa que estes foram esquecidos, porém, passamos a dispor de uma ciência que
circula por problemas de grupos atuais, gerando tendências como a antropologia visual, da
doença, da indústria, da educação, de gênero etc. De acordo com Laplantine, tentamos
visualizar o “outro” por nossas lentes (leia-se ocidentais), mas sabendo que nossos olhos são
regados por uma cultura diferente e que a neutralidade axiológica não cabe aos estudos
antropológicos, uma vez que o pesquisador dispõe dos valores da sociedade da qual é oriundo
(LAPLANTINE, 1987). No Brasil, na década de 1970, esta ciência social se especializa,
construindo pilares para a antropologia visual, por exemplo, (PARÉS, 2008), surgem
programas de pós- graduação e a disciplina passa a ter um contato com o exterior. É nesta
mesma época em que as perguntas postas no início deste ensaio se dão e, deste modo, a
antropologia resvala por um pensamento mais crítico na época (“o que somos?; “o que
fazemos?”) e, logo, passa a trabalhar com a idéia de subjetividade científica e a lançar um
pensamento crítico e questionador.
Maurice Godelier (1992), em artigo intitulado “O Ocidente, Espelho Partido: uma avaliação
parcial da antropologia social, acompanhada de algumas perspectivas”, recobre o fato de a
disciplina, como as demais ciências sociais, ter nascido no ocidente. Observar a relação entre
o ocidente e a antropologia é relevante não apenas pelo fato do ocidente viver em um sistema
capitalista que tende a se perpetuar por um tempo indeterminado, mas a relação também
concerne ao campo de como se dão estas relações neste sistema que aponta “o outro” como
exótico. Porém, cabe questionarmos: quem é este “o utro”? quem é o “exótico”?. Em primeira
face, vale salientar que o “outro” não significa “exótico”, necessariamente e, por uma outra
mão, a concepção de “exótico” é dissipada não somente nos estudos antropológicos (ditos
*
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco / PPGSUFPE.
mais antigos), bem como também é vendida pelo sistema capitalista vigente em forma de
pacotes turísticos, por exemplo. Há séculos a Europa vê o Brasil como um lugar do “exótico”,
mas as limitações geográficas eram intensas há 500 anos para se vender este exotismo como
turismo, algo que é consumido e depois dispensado, momentâneo. Um francês que deseja ver
o exótico pode, em um período de férias, “comprá- lo” em um pacote turístico com destino às
Américas Central ou do Sul ou para a África, enfim, o que não procede em caso inverso.
Assim, observamos como os “não-exóticos” das lentes ocidentais são, de fato, as minorias.
Lançando luz à tradição clássica e ao presente da disciplina, começamos a observar como se
dará o futuro da antropologia. Não nos dispomos a fazer sugestões do que deve ser feito ou
fazer meras adivinhações de como será a continuidade deste processo. Não obstante, é preciso
pontuar uma linha de atuação e de possibilidades para a antropologia mediante a conjuntura
na qual ela está inserida e aos problemas aos quais se debruça. Sua noção clássica, do estudo
de povos ditos “primitivos”, está fadada ao esgotamento, uma vez que não mais tendemos à
época das navegações e do modelo original de colonização. Na medida em que o mundo se
altera, as problemáticas também se transformam e nas ciências sociais isto não se dá apenas
na antropologia, mas também em disciplinas como a sociologia, afinal, o objeto de estudo
desta última também se transforma, e não apenas o objeto, mas a forma de como lidar com
este. Um exemplo a ratificar tal assertiva pode ser conferido nos estudos sobre relações raciais
sob a óptica sociológica. No Brasil, autores que se lançaram fervorosamente ao tema,
principalmente entre os anos de 1870 a 1930, hoje são piamente criticados e renegados em
obras contemporâneas, o que não significa que estes estudiosos mais recentes sejam ingênuos
de modo a não contextualizarem os autores mais clássicos, a exemplo de Nina Rodrigues,
Oliveira Viana, Sílvio Romero, dentre outros.
Por muito tempo, a antropologia buscou distinguir seu campo de seu objeto de estudo. Esta
separação atualmente tende a ser dada apenas na esfera formal e metodológica. Isto ocorre na
medida em que a multi e a interdisciplinaridade englobam a disciplina, ocorrendo a fusão dos
termos e, como bem destaca Lévi-Strauss, povos desaparecem e povos se retraem a cada dia,
“essas populações continuam a diminuir” (LÉVI-STRAUSS, 1986: 19) – leia-se populações
“primitivas”. A antropologia de gabinete fora substituída pela de campo, mas seu próprio
trabalho de campo passa a ser revisto e criticado. As aspas já se fazem presentes quando nos
referimos aos “primitivos”, não obstante, até quando os teremos? Este termo hoje já não se
encaixa em muitas comunidades indígenas, nas quais os índios portam um mundo de cultura
ocidentalizada, quando a tradicional forma de viver destes povos é disseminada. Destas,
podemos ver por um conceito de alteridade mínima, como versa Mariza Peirano (1999), que o
outro passa a ser você, o homem da “moderna cultura ocidental”, porém, limitado pela
exclusão imposta no mundo ocidental.
De acordo com Godelier, um dos campos inaugurados e já dominados pela perspectiva
antropológica é o de relações de gênero. (GODELIER, 1992: 08). Tais relações representam
uma fonte de preocupação relevante para os estudos atuais, uma vez que as noções de
machismo ou de homofobia, por exemplo, se distribuem de acordo com a cultura vigente em
cada sociedade. Com a chamada globalização, passamos a ter contato com os
comportamentos de outros grupos sociais e o senso comum começa a questionar seus próprios
valores (morais, sexuais), bem como os dos outros grupos, algo que pode ser estimulado pela
indústria cultural - pela mídia - na medida em que esta estabelece padrões sociais a serem
seguidos, propondo que o que é “feio” e o “belo”, o “certo” e o “errado”. Não estamos a dizer
que não é típico do senso comum o questionamento, muito pelo contrário, mas cabe à
antropologia e às ciências afins sistematizar alguns fenômenos para, com suas ferramentas,
interpretá- los. A observação sobre o que tem representado os estudos de gênero para a
antropologia, e o fato destes estarem longe de se esgotar, nos remetem também a outras áreas
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de atuação da disciplina como, por exemplo, a antropologia urbana, industrial, da educação
etc. Godelier nos le mbra que a sociologia já trabalha nestas linhas, mas é sabido que ela tem
resvalado por uma fusão entre campo e objeto, objetividade e subjetividade, e que vem se
inserindo em um sistema de interdisciplinaridade. Desta maneira, a sociologia tende a analisar
os mesmos temas que a antropologia, porém, sob outras perspectivas. São por estas que temos
exemplos como os estudos de Morgan (1871) sobre o parentesco, nos quais ele adere a
observações e interpretações diferentes de um mesmo sistema visto por viajantes, ou seja, por
‘outros olhos’. Fica também patente que não fora apenas com a antropologia que houve uma
subdivisão de áreas, isto também aconteceu nas outras ciências sociais.
No tocante às investigações sobre religião, a antropologia busca ter uma ferramenta a mais
para compreender conjunturas que aparentemente se destinam aos conteúdos de ciência
política e economia. Os estudos que também estão em fase de construção e em andamento são
os que tocam às idéias de identidades nacional e cultural. Mariza Peirano, por exemplo, se
debruçou em autores como Florestan Fernandes, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Roberto
Cardoso de Oliveira, Roberto Da Matta e Otávio Velho para uma interpretação antropológica
da sociedade a partir deste fio condutor da religiosidade, que também tem sido bastante usado
nas pesquisas sobre pensamento social brasileiro. Dessa maneira, tais estudos visam não
apenas a ampliação da antropologia para outros horizontes, mas também propõem uma
interdisciplinaridade entre as diversas ciências afins, como a sociologia e a ciência política
dentro das Ciências Sociais, à guisa de exemplo, bem como buscam uma maior integração
entre as diferentes linhas de pesquisa existentes no interior de cada uma dessas ciências.
Estudos sobre relações raciais também vêm ganhando destaque nos estudos antropológicos
hodiernamente. As discussões sobre Gilberto Freyre no Brasil hoje podem ser realizadas com
novas bases de argumentação, das quais muitas estão ligadas a autores mencionados acima no
tocante aos temas de identidades nacional e cultural. Esta vertente também passa a ser
destaque, e em grande medida nos estudos sociológicos, principalmente com a conjuntura
brasileira que discute o sistema de cotas para negros em universidades públicas. A
antropologia mais uma vez pode, bem como deve, não ser um mero suporte, um
complemento, para os estudos sociológicos sobre relações raciais, porém, deve estudar a
temática e trabalhar não apenas com a sociologia em um âmbito de interdisciplinaridade, mas
sim com as demais áreas do conhecimento, principalmente em uma época na qual muitos
estudiosos passam a rejeitar as interpretações da biologia como sendo a voz mãe da
explicação entre as diferentes raças. Sílvio Romero e Nina Rodrigues (1888) com suas teorias
racialistas, por exemplo, viam no fenômeno biológico da mestiçagem a explicação para os
males do País. Todavia, autores como Lilia Moritz Schwartz (2000), sob uma perspectiva
renovada, entendem a raça como sendo um fenômeno social. Logo, podemos observar que a
cada dia mais cientistas sociais se debruçam sobre a temática das relações sociais, estando
esta longe desta se tornar um consenso entre os pesquisadores, gerando mais inquietações e
estímulos para novas pesquisas e perspectivas.
Octávio Gonçalves (2004), em síntese do pensamento de Fernández Díaz, versa: “Não
podemos esquecer que o futuro da antropologia depende também do seu financiamento, pelo
que a mesma se vê confrontada com a necessidade de ter que demonstrar o que é e para que
serve (...)” (GONÇALVES, 2004). Logo adiante, ele ainda toca no objeto de estudo da
disciplina, “a circunstância de estarmos perante o desaparecimento acelerado dos chamados
‘primitivos’ pode parecer que é também a antropologia que caminha para o seu próprio
desaparecimento, mercê da perda do seu objecto clássico de estudo” (Ibid). O autor elenca
uma série de postulados para a antropologia futura, citando que esta ciência social não precisa
e não deve buscar, para sobreviver, leis gerais provindas das ciências naturais, fomentando
um debate bastante comum nas ciências sociais.
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Outro autor que também disserta sobre o futuro da disciplina é Francine Saillant. Para este, a
antropologia tende a buscar novas formas de relacionamento e de comunicação entre os
estudiosos, como já foi posto este debate na década de 1990. Para Saillant, o pluralismo deve
ser o próprio objeto desta ciência social. “Que eu saiba, o único lugar onde o antropólogo
constitui maioria é no departamento de antropologia, e, no interior desses departamentos, a
diversidade é a regra” (SAILLANT, 2004).
Por fim, podemos dizer que o futuro desta disciplina, além de não ser algo mistificado,
imprevisível, deve ser visto como um esforço a ser desempenhado por aqueles que se lançam
a esta como um meio de conquista e que a vêem como uma disciplina prática, com uma
função em seu meio social. Eis então o porquê de sua existência e da quebra da perspectiva de
que as ciências sociais são meramente teóricas, sem aplicação empírica, ou seja, será o
próprio desenvolvimento da antropologia que nos dirá para onde a disciplina caminhará. O
futuro, apesar de próximo, é uma construção do presente e, sem espanto, com lições do
passado.
Referências
EVANS-PRITCHARD, E. E., História do Pensamento Antropológico. Edições 70, 1989.
GODELIER, Maurice. O ocidente, espelho partido: uma avaliação parcial da antropologia social,
acompanhada de algumas perspectivas. Conferência disposta em forma de texto – 16ª reunião nacional da
ANPOCS, Caxambu. 1992.
GONÇALVES, Octávio. O Futuro da Antropologia, 2004. Disponível em: psicologiaefilosofia.no.sapo, acesso
em julho de 2005.
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1987.
PARÉS, Luis Nicolau. Algumas considerações em torno da antropologia visual, 2008. Disponível em:
http://antropologia.org.br/colu/colu3.html, acesso em julho de 2008.
PEIRANO, Mariza. “Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada)”. In: SERGIO, Miceli (org.), O que ler
na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré/Anpocs, 1999.
RUBIM, Christina de Rezende. Um pedaço de nossa história: historiografia da antropologia brasileira. Rio de
Janeiro, 1997.
SAILLANT, Francine. Identidade, invisibilidade social, alteridade: Experiência e teoria antropológica no
centro das práticas curativa, 2004. Disponível em: www.imaginario.com.br/artigo/a0001_a0030/a000802.shtml , acesso em julho de 2005.
STRAUSS, Claude Lévi-. “O futuro da etnologia”. In: Minhas palavras. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.
Ed. Brasiliense, 1986.
______. “A noção de estrutura em etnologia”. In: Antropologia Estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz e
Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
WOLF, Eric R. Cultura, ideologia, poder e o futuro da antropologia. Entrevista realizada por Lins Ribeiro.
2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo, acesso em julho de 2005.
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