O COTIDIANO ESCOLAR COMO COMUNIDADE COMPARTILHADA Janete Magalhães Carvalho - UFES INTRODUÇÃO A pesquisa, de natureza teórico-bibliográfica, buscou refinar “hipóteses” e aprofundar a temática em questão, ou seja, analisar o campo de possibilidades da comunidade escolar se situar como uma comunidade compartilhada no cotidiano escolar. O referencial utilizado centrou-se na teorização a partir do aporte teórico da hermenêutica do “sujeito da compreensão” de Santos (1989, 1996, 2000, 2002, 2003, 2004), em seus pressupostos sobre uma “comunidade interpretativa” que busca pelo processo de mediação, baseando-se no diálogo, na leitura e na tradução, a construção do comum no espaço e no tempo. Para Bauman (2004), a expressão comunidade é, nos dias de hoje, outro nome do paraíso perdido e alimenta a denominada “comunidade imaginada” no sentido da diferença entre a vivência numa realidade não comunitária ou até mesmo hostil e a busca do aconchego da coletividade. Nessa perspectiva, questiona-se: qual o campo de possibilidades de vivência da comunidade escolar na atualidade? Bauman (2003) argumenta que, se não ter comunidade significa não ter proteção e vivenciar a ausência de solidariedade, alcançar a comunidade poderá significar perder a liberdade, visto que segurança e liberdade são dois valores desejados, mas difíceis de serem combinados. Se o princípio da comunidade equilibra-se entre o desejo de segurança e o de liberdade, a relação entre liberdade e segurança é considerada de modo diferente quando é olhada do ponto de vista dos muitos que se encontram na situação das camadas desprivilegiadas da sociedade. A individualização parece ser pródiga e generosa para a elite, mas é assumida com toda a força pela população de modo geral, visto ser o processo de individualização das referências uma das características da “supermodernidade” (AUGÉ, 1994). 2 No mundo globalizado da “supermodernidade”, os espaços públicos estão esvaziados. A elite, que poderia ter aprovado políticas para eliminar a pobreza, preferiu, em lugar disso, comprar proteção, alimentando o crescimento da indústria privada de segurança. Por sua vez, as ruas inseguras mantêm as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da procura dos conhecimentos e habilidades necessários para participar da vida pública. A universalidade da cidadania seria a condição preliminar, pois, se somos todos interdependentes neste mundo, que rapidamente se globaliza, o princípio da comunidade não pode se fundar na mesmice combinada com um mínimo de diferença. Enfim, se todos precisamos ganhar controle sobre as condições de nossas vidas, para a maioria de nós, esse controle só poderá ser obtido coletivamente. Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesses e responsabilidades em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos (BAUMAN, 2003, p. 134). Parece, assim, que a palavra comunidade nunca foi utilizada de modo mais indiscriminado e vazio do que nas décadas em que as comunidades, no sentido sociológico, passaram a ser pouco encontradas na vida real. Para Sennett (1988), o sentido de comunidade se baseia na necessidade de pertencer não a uma sociedade em abstrato, mas a algum lugar em particular, assim como na relação estabelecida entre o espaço público e o espaço privado e na ocupação conseqüente e dialógica do espaço público. E, sendo assim, a possibilidade de o princípio da comunidade se efetivar relacionase com o respeito à pluralidade e incremento da produtividade dialógica. Nesse duplo sentido, o da dialogicidade e o da pluralidade, temos na atualidade duas perspectivas acerca do princípio da comunidade, fundamentadas em aportes teóricos diferenciados: a primeira, que busca situar o “sujeito da compreensão” pelo processo de mediação, baseando-se no diálogo, na leitura e na tradução como práticas de mediação para 3 a construção do comum _ constituição do sentido comum e/ou consenso _ no espaço e no tempo; a segunda, que visualiza a aspiração à unidade e/ou o consenso como um perigo a ser evitado, visto que importa a prática da diferença e da multiplicidade e o incremento de estratégias pluralizantes não redutíveis a um denominador comum, portanto, sempre singulares. Neste estudo, buscamos aprofundar o aporte teórico de Boaventura de Sousa Santos sobre o paradigma emergente da ciência pós-moderna associado aos pressupostos necessários para a constituição de uma “comunidade interpretativa”. O COTIDIANO ESCOLAR COMO COMUNIDADE INTERPRETATIVA E PLURAL O campo de possibilidades de a escola se constituir como uma comunidade interpretativa relaciona-se com as características de a escola assumir e atuar de acordo com a “nova ciência”. Para Santos (1996, 1989), tem-se que considerar o duplo movimento: da ruptura com o paradigma da ciência moderna para a emergência de um novo paradigma da ciência pósmoderna; e o da ruptura com a perspectiva da dicotomia entre o senso comum e o conhecimento científico. Os dois movimentos/rupturas rompem com a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia da modernidade, considerando que as rupturas indicam a atitude epistemológica que permite reconfigurar conhecimentos para além das regularidades propostas pela modernidade. Procuram, também, ultrapassar a concepção de que o conhecimento, para ser científico, precisa desconsiderar o senso comum, visto que o senso comum deverá ser recuperado, reconfigurado, tornado ciência e vice-versa. Assim, o conceito de dupla ruptura epistemológica envolve a incorporação do senso comum como conhecimento relevante e necessário para a redefinição das teorias e práticas. O conhecimento científico deixa de ser o único conhecimento considerado legítimo e o 4 senso-comum é renovado pela contribuição apresentada pelo conhecimento científico que, também, por sua vez, se redefine pela incorporação do senso comum. Para a escola, isso significa a consideração do saber de experiência feito e da realidade cotidiana de alunos, professores e comunidade escolar, em sua relação com o saber científico acumulado pela humanidade. Isso porque a dupla ruptura epistemológica seria o modo de operar da hermenêutica que desconstrói a ciência, inserindo-a numa realidade que a transcende. “Uma desconstrução que não é ingênua, nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipação e a criatividade da existência individual e social, valores que só a ciência pode realizar, mas que não pode realizar enquanto ciência” (SANTOS, 1989, p. 42). O segundo princípio decorrente para o cotidiano escolar é o da adoção de práticas solidárias, construídas por meio da produtividade dialógica crítica sobre as condições concretas de vida de grupos sociais oprimidos, na busca de interesses, mesmo que mínimos, comuns. A produção democrática do projeto político-pedagógico da escola, em relação às condições objetivas de sua realização, aparece como um possível primeiro passo. De acordo com Santos (2000), uma comunidade compartilhada é uma comunidade interpretativa, cujo auditório (comunidade encarada na perspectiva do conhecimento argumentativo) está em permanente formação e é a fonte central do movimento. Dois inimigos do conhecimento são apresentados por Santos (2000): os monopólios de interpretação e a renúncia à interpretação. Nessa perspectiva, dois pressupostos se destacam: o primeiro de que, no sistema capitalista mundial, a realidade social não pode ser reduzida à argumentação e ao discurso; o segundo de que a retórica e/ou a dialógica não é libertadora por natureza. Isso porque, além da argumentação, do discurso, da linguagem, há, também, trabalho e produção, silêncio e silenciamentos. “Sem ter em conta a dialéctica entre momentos argumentativos e não-argumentativos é impossível entender a construção e destruição sociais de auditórios e comunidades” (SANTOS, 2000, p. 106). Os auditórios e comunidades possuem uma dimensão não apenas local, mas translocal, que permite a interpenetração de conflitos e consensos globais com conflitos e consensos locais e, dessa forma, o princípio da comunidade interpretativa envolve tanto 5 uma “sociologia das ausências”, uma “sociologia das emergências”, como uma “teoria da tradução” (SANTOS; NUNES, 2003). Para Santos (2004), um procedimento capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiência envolve a superação e a crítica da razão metonímica, visto que esta é obcecada pela idéia da totalidade sob a forma da ordem. Uma terceira consideração óbvia é que essa tem sido a forma de racionalidade dominante na gestão e organização dos espaços-tempos do cotidiano escolar, baseados em rotinas, prescrições, passividade, imobilidade, dentre outras características. Mas por que esse tipo de razão tão limitada e tão criticada na literatura pedagógica teve e tem a primazia na forma assumida pela escola nos últimos séculos? Porque a razão metonímica não se insere no mundo pela via da argumentação e da retórica. Impõe-se pela eficácia de sua imposição e, essa eficácia, manifesta-se pela dupla via do pensamento tecnicista/produtivista e do pensamento legislativo e, assim sendo, em vez da busca da razoabilidade dos argumentos e do consenso, opera pela coerção tornada “legítima”. Dessa forma, “A crítica da razão metonímica é, pois, uma condição necessária para recuperar a experiência desperdiçada” (SANTOS, 2004, p. 785). Alguns procedimentos necessários ao questionamento da razão metonímica seriam, para Santos (2004): a proliferação das totalidades, ou seja, a não ampliação da totalidade proposta pela razão metonímica, fazendo-a coexistir com outras totalidades (totalidades, portanto, sempre parciais e plurais); a demonstração de que qualquer totalidade é feita de heterogeneidade e que as partes que a compõem têm vida própria fora dela; a revelação de outras relações alternativas que têm estado ofuscadas pelas dicotomias hegemônicas (SANTOS, 2004). Assim, importa que a escola não seja concebida como uma parte homogênea do sistema educacional, que seja analisada e vivida em sua singularidade, buscando a afirmação de práticas alternativas e a superação das práticas verticais, homogeneizadoras. Importa também que, no interior da escola, seja considerada a pluralidade que a habita em termos de classe, raça, credo, etnia, cultura, etc. A forma apontada por Santos para questionar a razão metonímica seria a sociologia das ausências combinada com a sociologia das emergências. 6 Pela sociologia das ausências, busca-se uma investigação que demonstre que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que existe. Nesse sentido, a sociologia das ausências trataria de questionar, no âmbito escolar, se a escola existente poderia ser proposta e realizada de outra maneira De acordo com Carvalho (2004), a escola moderna assumiu uma forma de organização que, entretanto, não é a única possível, mas, apenas, a que historicamente lhe foi dada, baseada em ritos, exercícios, invocação de autoridade, silêncio e imobilidade, relações impessoais, formais e burocráticas, visando à despersonalização dos papéis e/ou dos atores sociais e produzindo a alienação do professor e do aluno com relação aos fins do seu trabalho. Em face ao exposto, torna-se evidente que a escola da modernidade industrial ainda é a que persiste e parece efetivar-se, intensamente, na dicotomia entre os lugares e os espaços-tempos da criação e da ação política. Santos (2004), apontando as cinco lógicas ou modos de produção da não-existência com suas respectivas formas sociais, afirma outras formas para superá-los. Assim, à monocultura do saber e do rigor do saber/ignorância contrapõe uma ecologia dos saberes baseada no questionamento, diálogo e confrontação entre os saberes; à monocultura do tempo linear contrapõe uma ecologia das temporalidades; à lógica classificatória do social/inferior contrapõe uma ecologia das interdependências mútuas e do reconhecimento; à lógica da escala dominante opõe a ecologia das “trans-escalas” presentes na complexidade dos ecossitemas; à lógica produtivista/improdutivo contrapõe a ecologia da produtividade. Nessa perspectiva, caberia à escola: exercitar o trabalho do conhecimento tecido em rede, interdisciplinar e transversalizado; interpenetrar, pelas práticas coletivas, os espaçostempos da ação pedagógica e política; trabalhar a questão da diferença e da pluralidade; analisar o espaço-tempo escolar e o conhecimento em sua tensão entre o local, o regional e o global; compreender que o erro é produtivo e buscar formas alternativas de aprendizagem e avaliação. 7 Dessa forma, conseguir-se-á que a sociologia das ausências não se confunda com uma sociologia ausente. Portanto, a sociologia das ausências dilata o presente e se move no campo das experiências sociais, contra a razão metonímica e a sociologia um futuro de múltiplas possibilidades, movendo-se, assim, no campo das expectativas sociais, contra a razão proléptica, ou seja, contra a crença do “futuro certo”. Sendo a razão proléptica a figura pela qual se refutam ou destroem antecipadamente as objeções do adversário, produz uma monocultura do tempo linear, pois dilata enormemente o futuro, visto que o projeta numa direção linear e irreversível e, portanto, num tempo homogêneo e vazio. Assim, a sociologia das emergências consiste em substituir o vazio do futuro segundo o tempo linear, por um futuro de possibilidades plurais e concretas, que se vão construindo no presente. Para Santos (2004, p. 796), A sociologia das emergências é a investigação das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas. Enquanto a sociologia das ausências amplia o presente, juntando ao real existente o que dele foi subtraído pela razão metonímica, a sociologia das emergências amplia o presente, juntando ao real amplo as possibilidades e expectativas futuras que ele comporta [...]. A ampliação simbólica operada pela sociologia das emergências visa analisar, numa dada prática, experiência ou forma de saber o que nela existe apenas como tendência, projeto ou possibilidade futura. Para proceder à investigação do campo de possibilidades futuras utilizando a sociologia das emergências, deve-se: conhecer melhor o que nas realidades investigadas faz delas pistas ou sinais; fortalecer essas pistas e sinais; usar de um conhecimento argumentativo que, em vez de demonstrar, convence, que, em vez de se querer racional, se quer razoável, visto ser um saber que avança na medida que identifica saberes ou práticas emergentes (SANTOS, 2004). Os campos sociais onde a multiplicidade e diversidade das experiências disponíveis e possíveis (conhecimentos e agentes) poderão revelar-se, no âmbito social e escolar, são: 8 experiências de conhecimentos; experiências de desenvolvimento, trabalho e produção; experiências de reconhecimento; experiências de democracia; e experiências de comunicação e informação. Cabe, portanto, à escola propiciar experiências que incentivem: a pesquisa em suas várias formas, a associação entre conhecimentos e trabalho, o compartilhamento da gestão e organização dos espaços e tempos escolares, as experiências dialógicas e heterológicas associadas, também, à utilização das novas tecnologias de comunicação e informação. Santos (2004) argumenta que a razão metonímica e a razão proléptica conduziram a um excessivo desperdício da experiência e estão, por isso, hoje desacreditadas. Afirma, porém, que o descrédito das soluções não acarreta consigo o descrédito dos problemas, visto que estes permanecem e necessitam de respostas. Nesse sentido, Santos (2004) aponta fragilidades e relativismos da hermenêutica da desconstrução, visto que, para essa perspectiva, a fragmentação e a atomização social não são um problema; são antes uma solução, e o próprio conceito de sociedade susceptível de fornecer o cimento capaz de dar coerência a essa fragmentação é de pouca utilidade, pois, segundo essa mesma perspectiva, a transformação social não tem sentido, nem direção, uma vez que ou ocorre caoticamente ou o que se transforma não é a sociedade, mas o nosso discurso sobre ela. Para Santos, a alternativa é o trabalho de tradução, no qual as duas sociologias estão estreitamente associadas. Assim, o trabalho de tradução incide tanto sobre os saberes como sobre as práticas e os seus agentes. A tradução entre saberes assume a forma de uma hermenêutica diatópica, que consiste no trabalho de interpretação entre duas ou mais culturas com vistas a identificar as diferentes respostas que fornecem para elas. Nesse sentido, a escola deveria atuar como um espaço de incremento da produtividade dialógica transcultural. Nesse sentido, o currículo escolar e, nele, o livro didático, as preleções dos professores e professoras, etc. podem funcionar produzindo um espaço do outro sempre ocupado pela idéia fixa estereotipada (violento, sujo, desordenado, mal-educado, etc.), desconhecendo e desconsiderando a ambivalência das posições e dos entrelugares nos quais todos nós estamos situados. 9 Importa, assim, pensar o currículo escolar a partir dos processos e produtos que estão em circulação nas práticas discursivas engendradas no trato da questão da diferença no cotidiano escolar. A hermenêutica diatópica parte da idéia de que todas as culturas são incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo confronto com outras culturas. Para Santos (2004), admitir a relatividade das culturas não implica adotar o relativismo como atitude filosófica. Implica, sim, conceber o universalismo como uma particularidade dos interesses que o sustentam. A crítica do universalismo decorre da crítica da possibilidade da teoria geral. A hermenêutica diatópica pressupõe, pelo contrário, o que designo por universalismo negativo, a idéia da impossibilidade da completude cultural (SANTOS, 2004, p. 804). Dessa forma, o trabalho de tradução assenta-se num pressuposto sobre o qual deve ser ampliado o campo de produção de discursos emancipatórios e, para tanto, propõe conceitos alternativos baseados em estratégias, como a hermenêutica diatópica e/ou o diálogo transcultural, que vem a ser: [...] uma prática de interpretação e de tradução entre culturas, do diálogo entre culturas por intermédio do qual se amplia a consciência da incompletude de cada cultura envolvida no diálogo e se cria a disponibilidade para a construção de formas híbridas de dignidade humana mais ricas e mais amplamente partilhadas. O conhecimento resultante será coletivo, interativo, intersubjetivo e reticular [conhecimento em rede] (SANTOS; NUNES, 2003, p. 56). Contudo, a necessidade de instauração do diálogo e/ou da hermenêutica diatópica acontece num quadro de histórias de trocas desiguais e de relações de poder assimétricas entre culturas. Por isso, para Santos e Nunes (2003, p. 56), a resposta reside em “dois imperativos interculturais”, a saber: [...] das diferentes versões de uma dada cultura deve ser escolhida a que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura. [...] as pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a 10 diferença os inferioriza, e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza . Assim, o trabalho de tradução tem lugar entre práticas sociais e seus agentes e, esse trabalho, visa a esclarecer o que une e o que separa os diferentes movimentos e as diferentes práticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulação ou agregação entre eles, pois o trabalho de tradução tem que identificar o que une e o que separa os diversos saberes, agentes, movimentos e organizações. Dado que não há uma prática social ou um sujeito coletivo privilegiado em abstrato para conferir sentido e direção à história, o trabalho de tradução é decisivo para definir em concreto, em cada momento e contexto histórico, quais as constelações de práticas com maior potencial contra-hegemônico (SANTOS, 2004, p. 806). Mas quais as condições e procedimentos da tradução? INTERROGANDO O CAMPO DE POSSIBILIDADES DO COTIDIANO ESCOLAR COMO COMUNIDADE COMPARTILHADA; INTERPRETATIVA E PLURAL. As interrogações sobre o campo de possibilidades do cotidiano escolar constituir-se como uma comunidade compartilhada remetem a questões, tais como: O que traduzir? – os campos sociais onde diferentes mundos-da-vida normativos, práticas e conhecimentos se encontram e interagem. A seleção dos saberes e práticas entre os quais se realiza o trabalho de tradução é sempre resultado de uma convergência ou conjugação de sensações de experiências de carência, de inconformismo e da motivação para as superar de forma específica. Do ponto de vista da comunidade escolar, deve o trabalho de tradução dirigir-se aos conhecimentos científicos em sua relação com os conhecimentos e/ou saberes de “experiência feitos”, tecidos em rede, como para a tradução dos espaços e tempos e dos 11 lugares marcados pela individualização que impedem a emergência de novas práticas e atitudes voltadas para a identificação de interesses comuns. Quem traduz? – os grupos sociais, visto que os saberes e as práticas só existem na medida em que são usados ou exercidos por grupos sociais. Por isso, o trabalho de tradução é sempre realizado entre representantes desses grupos sociais. Na perspectiva do cotidiano escolar, essa deveria ser uma responsabilidade coletiva, ou seja, a constituição de uma comunidade escolar fundada no princípio da produtividade dialógica. Quando traduzir? – no domínio das zonas de contato, considerando as diferentes temporalidades que intervêm, contrapondo-se à lógica da monocultura do tempo linear. Sendo assim, diríamos que, do ponto de vista da escola, sempre que possível, o cotidiano escolar deve estar voltado para a superação da razão metonímica e da razão proléptica e, nesse sentido, propiciar oportunidades de contatos entre os agentes escolares, nas salas de aula (professores e alunos), nos locais de recreação (professores, alunos e equipe técnica), nas reuniões político-pedagógicas (professores e direção, professores, corpo técnico-administrativo, direção, alunos e comunidade), etc. visando a eliminar o domínio das certezas e do futuro certo e produzir alternativas ao existente, coletivamente orientadas. Como traduzir? – o trabalho de tradução é, basicamente, um trabalho argumentativo, assente na intenção de partilhar o mundo com quem não partilha o nosso saber ou a nossa experiência. É preciso buscar, na comunidade escolar, o núcleo de estereótipos sobre política e educação, incrementando o diálogo em todas as instâncias e níveis, pois o que momentaneamente substitui a certeza, produz insegurança, mas pode significar a semente de uma nova configuração. Para que traduzir? – o trabalho de tradução é o procedimento que nos resta para dar sentido ao mundo depois de ele ter perdido o sentido e a direção automáticos que a modernidade ocidental pretendeu conferir ao planificar a história, a sociedade e a natureza. “A necessidade da tradução reside em que os problemas que o paradigma da modernidade ocidental procurou solucionar continuam por resolver e a sua resolução parece mesmo cada vez mais urgente” (SANTOS, 2004, p. 813). Do ponto de vista da escola, para 12 (re)significar o sentido da escola e do campo de possibilidades de a escola se constituir, entre o espaço de liberdade e de segurança, como uma comunidade compartilhada. Para Santos (2004, p. 814), As expectativas são as possibilidades de reinventar a nossa experiência, confrontando as experiências hegemônicas, que nos são impostas, com a imensa variedade das experiências cuja ausência é produzida activamente pela razão metonímica ou cuja emergência é reprimida pela razão proléptica. A possibilidade de um futuro melhor não está, assim, num futuro distante, mas na reinvenção do presente, ampliado pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências e tornado coerente pelo trabalho de tradução. Por isso, cabe ao coletivo escolar tematizar os fundamentos e argumentações de suas práticas discursivas para que possa ocorrer, pela análise das ausências, das emergências e pela estratégia da tradução e subversão do discurso alienígena, um texto articulado ao vivido coletivamente por professores e alunos, e que seja situado na tensão entre o local e o global, e se constitua de modo dialógico e heterológico, interpretativo e plural. REFERÊNCIAS AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. ______. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 13 CARVALHO, J. M. Do projeto às estratégias/táticas dos professores como profissionais necessários aos espaços-tempos da escola pública brasileira. In: ______ . (Org.). Diferentes perspectivas da profissão docente na atualidade. Vitória: EDUFES, 2004. p. 9-45. SANTOS, B. de S. (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: “Um discurso sobre as ciências” revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. ______. (Org.). A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. ______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. ______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1996. ______. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. SANTOS, B. de S.; NUNES, J. A. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B. de S. (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 25-68. 14 SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.