A DIALÉTICA ESSÊNCIA/APARÊNCIA DA ATIVIDADE DO

Propaganda
A DIALÉTICA ESSÊNCIA/APARÊNCIA DA ATIVIDADE DO PROFESSOR: EM
BUSCA DO REAL DA ATIVIDADE REALIZADA
Júlio Ribeiro Soares 1
Wanda Maria Junqueira de Aguiar 2
RESUMO
Dada a complexidade que a constitui, a atividade humana não se reduz apenas àquilo o que se
faz ou o que se tem a fazer. O que não se faz, ou o que se faz no lugar daquilo o que se
gostaria de fazer, também constituem a atividade. Feitas estas considerações, apontamos que o
nosso objetivo neste trabalho consiste em discutir a importância da apropriação do real da
atividade para se compreender e transformar a atividade docente realizada. Para dar conta
desse objetivo, seguimos um caminho metodológico de pesquisa bibliográfica, que foi discutir
algumas questões teóricas relativas ao nosso objeto de investigação, tais como: que
importância pode ter a investigação sobre o real da atividade realizada pelo professor para o
seu desenvolvimento (transformação) profissional? Como poderíamos pensar a atividade
docente a partir dessa noção de atividade, isto é, de que ela é dialeticamente constituída de
essência e aparência? Como a atividade prescrita atravessa a atividade docente realizada? Que
condições materiais (objetivas e subjetivas) podem contribuir, dialeticamente, com o
desenvolvimento da atividade do professor na escola, especialmente na sala de aula? Como
resultado de discussão dessas questões, podemos ressaltar que a atividade docente, assim
como todo trabalho humano, não se efetiva apenas por meio de atividades prescritas, pois a
atividade realizada é muito mais complexa do que aparenta. Com isso, queremos enfatizar
que, além da dimensão objetiva do planejamento e de outras condições materiais, a atividade
realizada pelo professor é mediada também por múltiplos pendores, necessidades e
motivações que o constituem. É na dimensão subjetiva do professor que está, portanto, a
chave do real da atividade docente realizada.
Palavras-Chave: Atividade Docente; Real da Atividade; Subjetividade
INTRODUÇÃO
Para a perspectiva sócio-histórica da psicologia, a categoria atividade ocupa lugar
central na explicação do processo de constituição do homem, de modo que nos ajuda a
compreender o homem para além idéia de natureza humana, cujas características seriam
universais e imutáveis. No fundo, ela traz os fundamentos explicativos da noção de
desenvolvimento do humano como processo histórico, social e dialético.
1
Doutor em Psicologia da Educação pela PUC de São Paulo e Professor do Departamento de Educação da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
2
Doutora em Psicologia Social pela PUC de São Paulo e Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia da Educação da referida instituição.
2
Para fomentar o início dessa discussão, destacamos, então, um pensamento no
qual Marx afirma que “toda a assim chamada história universal nada mais é do que a
produção do homem pelo trabalho humano” (1978, p. 15), o que evidencia o trabalho não
apenas como uma atividade de produção de mercadoria, de objetos culturais, mas igualmente
de produção do próprio homem. Evidencia, ainda, que o homem não é outra coisa senão uma
criação do próprio homem, isto é, das relações e práticas sociais da humanidade.
N’A Ideologia Alemã, Marx e Engels (1999, p. 27) afirmam que podemos
distinguir os homens dos animais por vários meios, como a consciência, a religião ou algo
mais. Para eles, no entanto, esses meios são apenas aparência de uma realidade, aquilo o que
se manifesta no campo empírico da nossa percepção. Ao ir além desse postulado, ressaltam
que os homens só “começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus
meios de vida”. Com isso, são enfáticos ao afirmar que, “produzindo seus meios de vida, os
homens produzem, indiretamente, sua própria vida material”.
Na mesma perspectiva acima, Vigotski (2007, p. 30) afirma que é “a atividade
voluntária, mais do que o intelecto altamente desenvolvido, [que] diferencia os seres humanos
dos animais filogeneticamente mais próximos”. A gênese da constituição humana seria
mediada, portanto, pela atividade da qual participa.
No seio de toda essa discussão acerca da atividade predomina a idéia de que o
homem só pode ser explicado a partir da compreensão da história de suas ações no mundo. É,
pois, na atividade social, ou seja, na relação com outros homens nos mais diferentes espaços
sociais, que ele se constitui como ser genérico e singular ao mesmo tempo.
Conforme apontam Aguiar e Ozella (2006, p. 224), “esse homem, constituído na e
pela atividade, ao produzir sua forma humana de existência, revela – em todas as suas
expressões – a historicidade social, a ideologia, as relações sociais, o modo de produção”.
Ao mesmo tempo em que esse homem revela o todo que o constitui como humano
genérico, ele também “expressa a sua singularidade, o novo que é capaz de produzir, os
significados sociais e os sentidos subjetivos. Indivíduo e sociedade vivem uma relação na qual
se incluem e se excluem ao mesmo tempo” (idem, 2006, p. 224). Contraditoriamente,
portanto, esse homem é parte e totalidade do que chamamos humanidade.
Ao falarmos de atividade humana, estamos nos referindo não a processos
dicotômicos entre atividade externa e atividade interna. Uma é constitutiva da outra numa
relação que é dialética e histórica. Por isso, ao atuar sobre uma dada realidade (atividade
externa), o homem provoca não apenas a transformação do objeto. Ele, que é o praticante da
3
ação, também se transforma, objetivando-se nessa realidade (atividade interna), ao mesmo
tempo em que o objeto é subjetivado.
De acordo com Leontiev (1983, p. 66), isso assim se explica porque os indivíduos,
“al influir sobre el mundo exterior lo transforman y con esto ellos se transforman también”. E
assim continuam a produzir e reproduzir a linguagem, a cultura, a sociedade, enfim, a história
da própria humanidade; ao mesmo tempo, é se apropriando dessa história que os homens se
objetivam como humanos; diríamos que objetivam sua subjetividade.
Nessa perspectiva, podemos dizer que, por estarem sempre implicados pela
atividade, os homens nunca param de se desenvolver. Aqui, convém ressaltar que entendemos
o desenvolvimento humano como um processo contraditório de tensão, mudanças e revolução
do sujeito, e não como algo linearmente evolutivo. Com isso, as pessoas estão sempre
gestando novas formas de necessidades, que são cada vez mais “complexas”, ao mesmo
tempo em que estão sempre constituindo novas formas de satisfazê-las.
Feitas estas considerações iniciais, gostaríamos de ressaltar que, dada a
importância que tem a atividade para o processo de constituição do homem, muitos
pesquisadores já se dedicaram, e ainda se dedicam, a estudá-la articulando-a a diversas
temáticas em diferentes áreas do conhecimento humano. No nosso caso, voltamo-nos mais
para o lado da psicologia e da educação, tendo como temática central (problema de estudo) a
atividade docente. Por isso, aqui, o nosso principal objetivo é discutir, no âmbito da
psicologia do trabalho, mais precisamente a partir da vertente francesa da clínica da atividade
e da psicologia sócio-histórica, a atividade docente como atividade humana subjetiva.
A NOÇÃO DE ATIVIDADE NA PSICOLOGIA DO TRABALHO DE YVES CLOT
Como podemos perceber nas considerações iniciais deste trabalho, a nossa
referência teórico-metodológica é a psicologia sócio-histórica, cuja base epistemológica é o
materialismo histórico-dialético. Esta é também a principal referência de Yves Clot na
discussão da categoria atividade no âmbito de sua psicologia do trabalho, a qual denomina
clínica da atividade.
Que relação pode haver entre a abordagem da clínica da atividade, conforme
propõe Clot (2006), e a atividade docente? Para que melhor possamos discutir (e não
propriamente responder) essa questão, convém ressaltar, antes, alguns pontos relacionados à
gênese da clínica da atividade no âmbito da psicologia do trabalho. Mais adiante,
explicaremos o que significa a clínica da atividade em Clot.
4
Para começar essa discussão, diríamos, com base em Clot, que, por meio de
estudiosos como Wisner (ergonomia), Le Guillant (psicopatologia do trabalho), e alguns
outros, a França tem duas “razões para a psicologia do trabalho não se transformar na
psicologia industrial 3 ” (2006a, p. 100). Apesar de interessantes, a análise das idéias desses
teóricos não pode ser aprofundada neste trabalho. No entanto, podemos destacar pelo menos
algumas questões presentes em Wisner e Le Guillant que são cruciais ao entendimento da
clínica da atividade.
No caso de Le Guillant, a grande questão a implicar Yves Clot é o modo pelo qual
aquele define o processo de origem e desenvolvimento da doença no ambiente de trabalho.
Com a visão de que a origem dos conflitos, sejam eles individuais ou coletivos, está
relacionada ao processo histórico, às condições de existência em geral, os estudos de Le
Guillant acerca de casos de adoecimento em trabalho tornaram-se clássicos. Dentre esses
estudos, se destacam “a neurose das telefonistas” e “incidências psicopatológicas da condição
de empregada domestica” (Le Guillant, 2006).
Com relação a Wisner, este “utiliza-se do pensamento da psicologia soviética de
Leontiev” (Clot, 2006a, p. 2), e é um ergonomista muito importante na França, de modo que
são seus textos que embasam “a Clínica da Atividade na análise do trabalho concreto” (Clot,
2008, p. 68). Foi ele quem apresentou a idéia de que o trabalho real (ou realizado) não
corresponde ao trabalho prescrito, uma das questões mais importantes da clínica da atividade.
Mas não são apenas teóricos franceses que embasam o pensamento de Clot.
Estudiosos de outros países também o ajudam a pensar o trabalho como atividade,
destacando-se, entre eles, Ivar Oddone (a partir do trabalho clínico (transformação) que este
realizava junto a trabalhadores da Fiat, em Turim), e Vigotski 4 (cuja idéia de
desenvolvimento como processo de mudança é o seu maior baluarte teórico).
De acordo com o próprio Clot (2006, p. 144; 148; 2006a, p. 100), a idéia da
clínica da atividade surgiu a partir do trabalho de Oddone, cuja preocupação era saber o
“como”, e não propriamente “o que” os trabalhadores sabiam acerca de seu trabalho.
Interessado por essa questão, diz, então, que criou um “dispositivo metodológico”, o qual
denominou clínica da atividade, “que seria o meio de mudar a psicologia do trabalho junto
3
Entenda-se, neste caso, que a psicologia industrial a qual Clot se refere é a psicologia do trabalho americana. A
principal diferença entre elas é que a perspectiva americana objetiva adaptar o homem ao trabalho. Na
perspectiva francesa, com Wisner, Le Guillant, Schwartz, Clot, e outros, esse objetivo é invertido.
4
Vigotski “não é um psicólogo do trabalho, mas, em certo sentido, ele inventou essa idéia grande, a qual eu acho
muito importante, que é o desenvolvimento do objeto e o método da psicologia” (Clot, 2008, p. 68). Com isso,
Clot ressalta uma das mais importantes idéias de Vigotski que visa contribuir com a psicologia do trabalho: o
verdadeiro estudo de um objeto só se faz por meio da provocação do seu desenvolvimento.
5
com os trabalhadores, e vice-versa, pois esse dispositivo permite que os trabalhadores, com a
psicologia do trabalho, desenvolvam sua capacidade de agir”.
Clot (2006a, p. 101) esclarece que criou não uma ‘psicologia clínica do trabalho’,
mas “uma ‘clínica do trabalho’, que visa (...) desenvolver a capacidade de agir dos
trabalhadores sobre eles mesmos e sobre o campo profissional”. Assim sendo, afirma que “a
clínica da atividade é um dispositivo clínico que nós utilizamos para pesquisar o que não foi
realizado para restaurar o possível da atividade, para ver e mostrar o que não é possível” (p.
105). Dessa forma, o que se busca é não apenas compreender o trabalho para transformá-lo,
mas igualmente transformá-lo para compreendê-lo (Clot, 2006, p. 137).
ATIVIDADE DOCENTE E SUBJETIVIDADE
Como podemos pensar a atividade docente a partir da noção de atividade em
Clot? É a atividade docente profundamente atravessada pela atividade prescrita? O
planejamento da atividade de ensino é suficientemente necessário ao desenvolvimento de uma
aula, de modo que esta contribua significativamente para os processos de aprendizagem? Que
condições materiais determinam o desenvolvimento da atividade docente? É a atividade do
professor uma atividade subjetiva, mediada por múltiplos pendores, necessidades e
motivações? Ao tomarmos a psicologia sócio-histórica como referência teórico-metodológica,
todo trabalho humano é sempre uma atividade subjetiva, sem negar, com isso, a dimensão
objetiva que a constitui.
Aqui, gostaríamos de ressaltar que, além da própria abordagem teóricometodológica, o que nos leva a discutir a atividade docente a partir da noção de atividade em
Clot é, sobretudo, o fato de reunirmos algumas leituras e discussões do “grupo de estudo” da
atividade docente coordenado pelas professoras Wanda Junqueira de Aguiar e Claudia Davis
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação (Psicologia da Educação) da PUC de
São Paulo. É um grupo que tem contribuído substancialmente com a discussão da atividade
docente numa perspectiva que é histórica e dialética.
Levando em conta a perspectiva da atividade apontada por Clot (2006),
enfatizamos que, para se compreender a atividade docente, devemos levar em conta que ela
não se constitui apenas por meio daquilo o que o professor tem a fazer, daquilo o que seria o
seu plano de trabalho (atividade prescrita ou tarefa), ou daquilo o que consegue fazer em sala
de aula (atividade realizada) com seus alunos.
Clot (2006, p. 65) ressalta que atividade não é apenas isso, pois ela “não se volta
unicamente para o objeto da tarefa”. Pensando na atividade docente, diríamos que ela não se
6
volta apenas para aquilo o que deve ser feito pelo professor, nem se reduz àquilo o que ele faz
em sala de aula na relação com os alunos. Ela também se volta, continua Clot (idem), “para a
atividade dos outros que se baseiam nessa tarefa, e para suas outras atividades”. Assim sendo,
a atividade docente não é uma atividade isolada, mesmo que ela seja executada
individualmente, pois, ao ser mediada por valores e práticas sociais de apenas um professor,
ela não deixa de ter como referência o que outros professores fazem, como fazem e por que o
fazem, sem, com isso, perder a singularidade que a constitui.
Para esclarecer a diferença entre tarefa e atividade, valemo-nos de Aguiar e Davis,
que definem “tarefa [como] tudo que se refere ao prescrito, tudo que se inscreve na ordem do
que deve ser realizado”. Com relação a atividade, as autoras a definem como “aquilo que foi
efetivamente cumprido” (no prelo – p. 8). No entanto, também chamam atenção, com base em
Clot, para o fato de que aquilo o que não se faz, por conta de diferentes motivos, também
constitui a atividade do sujeito.
Nessa perspectiva, Clot propõe “que se acrescente às tradicionais dimensões do
trabalho prescrito e do trabalho real, o real da atividade, isto é, que se ultrapasse a simples
análise do que deve ser feito e do que efetivamente se faz, para incorporar as vivências
internas do sujeito” (Lima, 2006, p. 114).
O real da atividade docente é, então, aquilo o que o professor não faz, aquilo o que
ele não consegue ou não pode fazer, aquilo o que tenta fazer (sem conseguir), aquilo o que
pensa ou sonha fazer. Além disso, é “aquilo que se faz para não fazer aquilo que se tem a
fazer ou ainda aquilo que se faz sem querer fazer. Sem contar, aquilo que se tem de refazer
(Clot, 2006, p. 116).
Daí a necessidade de, na análise em que se pretende alcançar o real da atividade,
levarmos em conta não apenas a atividade realizada, mas também “as atividades suspensas,
contrariadas ou impedidas, e mesmo as contra-atividades” (Clot, 2006, p. 116); pois o que se
faz é apenas “uma ínfima parte do que é possível” (Santos, 2006, p. 36). Como enfatiza
Vigotski (2004, p. 69), “cada minuto do homem está cheio de possibilidades não realizadas”.
Ao enfatizar o real da atividade, a preocupação de Clot se volta não apenas para o
objeto da tarefa, mas sobretudo para o sujeito da atividade e o sujeito para quem essa
atividade é dirigida. Por isso, afirma que “a atividade é uma prova subjetiva em que cada um
enfrenta a si mesmo e aos outros para ter uma oportunidade de conseguir realizar aquilo que
tem a fazer” (idem, 116). Esse é, portanto, o fundamento de que o sujeito nunca está sozinho
na execução de uma atividade. No caso do professor, são inúmeras as mediações que o
constituem em sua atividade, em seu processo de transformação; mediações que vão desde a
7
formação escolar e familiar, passando pela história de sua participação na comunidade e
contato com os mais diversos recursos e formas de manifestações culturais, à relação com os
alunos em sala de aula.
Mas como apreender o real da atividade docente? Para discutir essa questão,
buscamos a contribuição de Vygotsky, que afirma: “estudar alguma coisa historicamente
significa estudá-la no processo de mudança; esse é o requisito básico do método dialético (...)
uma vez que ‘é somente em movimento que um corpo mostra o que é’” (1991, p. 74).
Esse é, também, um requisito básico de Clot na sua proposição metodológica. E
isso se evidencia quando afirma que “o pensamento se desenvolve na discussão, na
confrontação e, portanto, a controvérsia é a fonte do pensamento” (2006a, p. 5). Na
perspectiva metodológica da clínica da atividade, “os operadores, os trabalhadores,
transformam-se em sujeitos da interpretação e da observação e não se reduzem a objeto da
interpretação e da observação dos pesquisadores” (p. 6). Mas, como ocorre esse processo? Por
se tratar de uma proposta dialética, que visa apreender o processo de mudança do sujeito a
partir da análise da atividade, Clot propõe dois tipos complementares de procedimentos, que
são a autoconfrontação simples e a autoconfrontação cruzada.
Antes, porém, da realização das autoconfrontações, é preciso que o pesquisador
filme o sujeito em atividade e edite os episódios que melhor revelam sua forma de agir; no
caso deste trabalho, seria a forma de agir do professor em sala de aula. Feito isso, o passo
seguinte é a análise da atividade do sujeito por meio da realização de autoconfrontações
simples e cruzadas.
Com relação a autoconfrontação simples, Clot a define como uma “atividade em
si em que o trabalhador descreve sua situação de trabalho para o pesquisador” (2006, p. 135),
que, por sua vez, participa com perguntas e questionamentos.
Aguiar e Davis (no prelo, p. 18), ao transpor essa discussão para o campo da
atividade do professor, ressaltam que, “na autoconfrontação simples, a discussão fica centrada
na observação de dois agentes: a) o professor, que, ao se ver na tela, fala sobre o que fez e o
que poderia (ou não) ter feito; e, b) o pesquisador, que, querendo se assegurar de ter
compreendido bem os comentários do docente, tece conjecturas sobre eles”.
Com relação a autoconfrontação cruzada, além dos agentes que constituem a
autoconfrontação simples (pesquisador e sujeito), aquela se caracteriza, fundamentalmente,
pela participação de um par do sujeito na análise. Segundo Clot, “pede-se a trabalhadores da
mesma profissão que discutam seu trabalho. A descoberta prática é de que o diálogo
profissional é uma fonte de pensamento individual” (2006a, p. 106).
8
Aguiar e Davis (no prelo, p. 18) apontam que “a autoconfrontação cruzada reúne
os dois sujeitos, além do(s) pesquisador(es)”. Assim sendo, ao invés de comentar a sua
atividade (realizada) apenas para o pesquisador, o sujeito (no caso, o professor) faz isso
também para o seu par, que deve ser um sujeito criteriosamente convidado pelo pesquisador e
cuja experiência deve equiparar-se a do sujeito participante da pesquisa.
Na tentativa de compreender e transformar a atividade docente, o nosso ponto de
partida, seja na autoconfrontação simples ou na autoconfrontação cruzada, é sempre a análise
e interpretação daquilo o que o sujeito faz; da atividade realizada em sala de aula.
Ao se ver na tela, o sujeito confronta-se com a sua própria imagem, de modo que
é implicado a pensar nas possibilidades de suas ações, nas possibilidades daquilo o que
poderia ter feito, mas não fez. É também implicado a pensar nos impedimentos de suas ações,
naquilo o que gostaria de ter feito, mas estava/sentiu-se impedido de fazer.
É a partir desse ponto inicial, aparente da realidade, ou melhor, da atividade
realizada, ponto esse que está sendo mediado por imagens do próprio sujeito em ação e
discussão do pesquisador, e até mesmo de outros sujeitos, que podemos avançar em busca das
zonas mais fluidas e profundas do sujeito e da atividade, no caso do real da atividade.
Por meio desse processo de análise e interpretação, revela-se não apenas aquilo o
que o professor faz ou tem a fazer. Aquilo o que ele não faz, ou não consegue fazer, ou estar
impedido de fazer, ou pretende fazer, tudo isso constitui o sujeito e a atividade a qual realiza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir este trabalho, ressaltamos mais uma vez que a teoria da atividade de
Clot pode ter grande importância no processo de compreensão da atividade docente, de modo
que nos possibilita pensá-la concretamente, para além de mera aparência da realidade. Ao
postular que podemos pensar a atividade a partir daquilo o que denomina como real da
atividade, Clot aponta possibilidades de resgate do homem como sujeito coletivo no processo
de mudança não apenas de si, mas também da realidade na qual atua.
A aceitação da proposta metodológica de Clot no âmbito da academia brasileira,
assim como européia, tem se dado pela importância atribuída ao trabalhador na análise e
interpretação de sua atividade, mais precisamente daquilo o que, por algum motivo, não foi
realizado. Com isso, tenta-se, conjuntamente, restaurar o possível da atividade. E também
discutir os seus impedimentos, aquilo o que não foi possível fazer. Nessa perspectiva, o
trabalhador deixa de ser mero objeto de adaptação às diversas situações de trabalho, para
desse processo participar ativamente, com suas afecções, necessidades e motivos.
9
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola (2007). Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
AGUIAR, Wanda Maria J. e DAVIS, Claudia (no prelo). Formação Profissional, Atividade e
Subjetividade: aspectos indissociáveis da docência.
AGUIAR, Wanda Maria J. e OZELLA, Sergio. (2006). Núcleos de Significação Como
Instrumento Para a Apreensão da Constituição dos Sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão.
26 (2), 222-245.
CLOT, Yves (2006). A Função Psicológica do Trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes.
CLOT, Yves (2006a). Entrevista. Cad. Psicol. Soc. Trab. [online]. São Paulo, vol. 9, n. 2.
Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151637172006000200008&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 22 Jul 2009.
CLOT, Yves (2008). Entrevista. Mosaico: estudos em psicologia. Belo Horizonte, vol. II, n.
1.
CLOT, Yves (2006b). Prefácio à Edição Brasileira. In: LIMA, Maria Elizabeth A. (Org.).
Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho. Petrópolis, RJ:
Vozes.
DUARTE, Newton (1993). A Individualidade Para-Si: contribuição a uma teoria históricosocial da formação do indivíduo. Campinas, SP: Autores Associados. (Coleção Educação
Contemporânea).
DUARTE, Newton (2004) (Org.). Crítica ao Fetichismo da Individualidade. Campinas, SP:
Autores Associados.
GONZÁLEZ REY, Fernando (2003). Sujeito e Subjetividade: uma aproximação históricocultural. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.
LE GUILLANT, Louis (2006). Introdução a uma Psicopatologia Social. In: LIMA, Maria
Elizabeth A. (Org.). Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do
trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes.
LEONTIEV, Alexis (s/d). O Desenvolvimento do Psiquismo. São Paulo: Moraes.
LEONTIEV, Alexei N. (1983). Actividad, Conciencia y Personalidad. Habana: Pueblo y
Educación.
LEÓNTIEV, A. N. (2004). Artigo de Introdução Sobre o Trabalho Criativo de L. S. Vigotski.
In: VIGOTSKI, Lev S. Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes.
LIMA, Maria Elizabeth Antunes. (2006). Resenha do livro A função psicológica do trabalho
de Yves Clot. Cad. Psicol. Soc. Trab. [online]. dez., vol. 9, n. 2 [citado 26 Julho 2009], p.
112-114.
Disponível
na
World
Wide
Web:
<http://pepsic.bvs-
10
psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151637172006000200010&lng=pt&nrm=isoISSN> 1516-3717.
MARX, Karl (1978). Manuscritos Econômico-Filosóficos e Outros Textos Escolhidos. São
Paulo: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores).
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich (1999). A Ideologia Alemã. 11. ed., São Paulo: Hucitec.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich (2007). A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo.
SANTOS, Marta (2006). Análise Psicológica do Trabalho: dos conceitos aos métodos.
Laboreal. Porto (Portugal), vol. II, n. 1.
VIGOTSKI, Lev S. (2007). A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes.
VIGOTSKI, Lev S. (2004). Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes.
VYGOTSKY, Lev S. (1991). A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes.
Download