Hemofilia: profilaxia primária e secundária – recomendações do protocolo brasileiro Suely Meireles Rezende Médica hematologista Professora adjunta do Departamento de Clínica Médica Universidade Federal de Minas Gerais Colaboradora do Ministério da Saúde Roteiro • Parte 1 – Conceitos e objetivo – História – Justificativa – Modalidades de profilaxia primária • Parte 2 – Protocolo brasileiro de profilaxia primária Hemofilia As hemofilias congênitas são distúrbios hemorrágicos resultantes da deficiência dos fatores VIII (hemofilia A) ou IX (hemofilia B) da coagulação, devido a defeitos (mutações) nos genes que codificam estes fatores. 1 : 5.000-10.000 (Hemofilia A) Prevalência 1 : 30.000-40.000 (Hemofilia B) 1: 25.000.0000 -100.000.000 Ampla distribuição geográfica Manifestação Clínica: Hemorragias Formas clínicas Classificação Grave Articular (hemartroses) Muscular Intracraniana Hematúria Outras Nível de fator < 0.01 IU/mL - < 1% do normal Moderada 0.01- 0.05 IU/mL- 1-5% do normal Leve > 0.05- <0.040 IU/mL- >5%<40% do normal Fonte: Scientific and Standardization Comittee communication, 2000) Profilaxia Profilaxia é o tratamento realizado com injeção endovenosa do concentrado de fator deficiente em antecipação a hemorragia ou para prevenir sangramento. Berntop, 2003 Reposição Sob demanda Profilaxia primária Definição Tratamento administrado mediante sangramento clinicamente evidente Tratamento regular, contínuo*, iniciado na ausência de doença osteocondral articular e iniciado antes dos 3 anos e antes da segunda hemartrose clinicamente evidente de grande articulação** Profilaxia secundária Tratamento regular, contínuo*, iniciado após 2 ou mais hemartroses em grande articulações** e antes do início de doença articular Tratamento regular, contínuo*, iniciado após o início de doença articular Profilaxia terciária Profilaxia Tratamento administrado para prevenir sangramento por período intermitente inferior a 45 semanas por ano. *Com intenção de tratar por 52 semanas por ano; a frequência de infusão deve ser de pelo menos 45 semanas (85%) do ano; ** grandes articulações: tornozelo, joelho, cotovelo, ombro Baseado em Srivastava et al, 2013 Objetivo O objetivo principal da profilaxia é a prevenção da artropatia hemofílica, sendo este o maior benefício relatado por estudos a longo prazo Justificativa • A artropatia hemofílica devido a hemartroses de repetição é a maior causa de morbidade em pessoas com hemofilia; • Em pacientes com a forma grave da doença, as hematroses podem ocorrer até 30–35 vezes ao ano; • Poucas hemartroses, em uma única articulação, podem ser suficientes para levar a alterações patológicas irreversíveis História Hemofilia A grave (<2%) CFVIIIr 25UI/kg/dia x tratamento sob demanda Avaliação aos 6 anos Manco-Johnson et al, NEJM 2007 Profilaxia primária - benefícios • A profilaxia contínua é superior ao tratamento sob demanda para atrasar ou prevenir o desenvolvimento da artropatia hemofílica; • Redução da frequência de sangramentos; • Melhor rendimento escolar; • Prevenção de hemorragia intracraniana ?; • Melhora a inserção social; • Redução das internações/cirurgias. Profilaxia primária - problemas • Custo – Consumo de CF é ~3x maior que o tratamento sob demanda • Falta de aderência pela alta frequência de infusões • Problemas com acesso venoso – Infecção: 6%-29% (Santagostino, 1998) – Trombose: 53%-81% (Journeycake, 2001; Price, 2004) – Problemas mecânicos • Infecções por patógenos emergentes (negligenciável com o uso de fatores recombinantes); • Aumento da incidência de inibidores? Perguntas sem resposta clara 1- Quando começar? 2- Quando interromper? 3- Qual dose? 4- Qual periodicidade da dose? 5- Como medir os efeitos do tratamento a longo prazo O protocolo deve ser individualizado com relação a idade de início/término, acesso venoso, fenótipo hemorrágico, atividade do paciente e disponibilidade de concentrados (Srivastava et al, 2013) Quando começar? Qual periodicidade? - Início variável Em geral, antes de 2 anos ou após a primeira hemartrose. - De 1 a 3 vezes por semana Berntop, 2003; Ljung 2013 Qual dose? Modelo sueco • Suécia - Esquema de altas doses • Profilaxia a partir de um ano na maioria dos pacientes • Alguns pacientes com frequência de 1x/sem • Dose: 10-15 U/kg/dia ou 25-40U/kg em dias alternados ou pelo menos 3x/sem para HA e 3050U/kg a cada 3 dias ou pelo menos 2x/sem para HB • Doses ajustadas de acordo com dosagem de atividade do fator (>1% na pré-infusão desejável) Qual dose? Modelo holandês • Holanda - Esquema de dose intermediária • Profilaxia começou no início dos anos 70 • Indicação: pacientes com hemofilia A e B graves após 1a ou 2a hemartrose espontânea • Idade média de início 2.4 anos • Dose: 15-25U/kg FVIII 2-3x/sem ou 30-50U/kg FIX 12x/sem • Doses ajustadas individualmente, conforme critério clínico – níveis não são levados em conta • 93% dos pacientes <20 anos em profilaxia Bunschoten, 1998; van den Berg, 1994, 2003 Quando interromper? • Brackmann, 1992: até 18 anos • Berntop, 1995: usar indefinidamente • Fischer, 2001: 22% de 49 pacientes em estudo prospectivo interromperam profilaxia na vida adulta sem evidências de complicações • van Dijk, 2005: 45% dos pacientes com HA grave suspenderam a PP aos 18 anos. • Fischer, 2011: troca múltipla = profilaxia contínua após os 18 anos Haematologica 2011 53% PP por toda a vida; 25% mudaram para tratamento sob demanda, mantendo-a por toda a vida; 22% restantes migraram de tratamento várias vezes. Suspender a PP aos 18 a se o paciente tiver <1 sangramento por ano por 2 a consecutivos e retornar ao esquema profilático se o paciente apresentar 9 episódios de sangramento em 1 a ou 7 por ano por 2 a consecutivos ou 6 por ano por 3 a consecutivos. Referências bibliográficas • Manco-Johnson M et al. Prophylaxis versus Episodic Treatment to Prevent Joint Disease in Boys with Severe Hemophilia. NEJM, 2007; 357: 535-544. • Berntorp E et al. Consensus perspectives on prophylactic therapy for haemophilic: summary statement. Haemophilia, 2003; 9: 1-4. • Blanchette VS. Prophylaxis in the haemophilia population. Haemophilia, 2010: 16: 181–188. • Fischer K et al. A modeling approach to evaluate long-term outcome of prophylactic and on demand treatment strategies for severe hemophilia A. Haematologica 2011;96:738-743. • Srivastava A et al. Guidelines for the management of hemophilia. Haemophilia, 2013; 19: e1–e47. Ser feliz é... Protocolo brasileiro de profilaxia primária Hemofilia no Brasil • O Brasil possui a 3ª maior população mundial de pacientes com hemofilia (WFH Survey, 2011) • O último corte cadastral demonstra a população de pacientes com hemofilia no Brasil: – 9.120 pacientes com hemofilia A – 1.801 pacientes com hemofilia B • Aproximadamente 70 casos novos de hemofilia grave por ano no Brasil Fonte: Hemovida WebCoagulopatias, Ministério da Sáude, 31/12/2012 Protocolo brasileiro de profilaxia primária para hemofilia grave • Construído pelo Comitê de Assessoramento Técnico (CAT) em Coagulopatias do Ministério da Saúde e finalizado em setembro de 2011 • Aprovado pela Comissão de Incorporação Tecnológica (CONITEC) do Ministério da Saúde • Disponível para consulta em http://portal.saude.gov.br/portal/saude/Gestor/visualizar_texto.cfm?idtxt=37769 • Ação iniciada em dezembro de 2011 • No presente: 96 pacientes incluídos – 81 pacientes com hemofilia A – 15 pacientes com hemofilia B Critérios de inclusão 1- Ter diagnóstico confirmado de hemofilia A ou B grave, isto é, com dosagem de fator VIII ou IX menor que 2%; 2- Ter idade até 36 meses e já ter apresentado pelo menos um episódio de hemartrose em qualquer articulação ou hemorragia intracraniana; 3- Ser registrado e acompanhado regularmente em um Centro de Tratamento de Hemofilia; 4- Assinar termo de consentimento e responsabilidade; 5- Ser avaliado e obter aprovação da equipe multiprofissional; 6- Ter pesquisa de inibidor negativa ou quantificação de inibidor inferior a 0,6 UB/mL. Este teste deve ser realizado imediatamente antes da inclusão. Critérios de exclusão • Pico histórico de inibidor superior a 5 UB/mL, confirmado em pelo menos 2 ocasiões com intervalo de 1-2 meses entre as dosagens; • Idade igual ou superior a 3 anos; • Família não aderente de acordo com avaliação da equipe multiprofissional; • Recusa do responsável, mediante assinatura do termo de esclarecimento e responsabilidade. Outros critérios • Avaliação hematológica, psico-social e de enfermagem, devendo obter aprovação desta equipe. Recomenda-se avaliação músculo-esquelética antes da inclusão e periodicamente durante todo o tratamento. • Será utilizado o concentrado de FVIII ou FIX para hemofilia A ou B, respectivamente, devendo, sempre que possível, ser administrado pela manhã. • O paciente deverá ser mantido no programa até a idade de 18 anos, desde que não apresente algum dos critérios de exclusão. • Caso haja dificuldade de acesso venoso, em qualquer momento do tratamento, deverá ser avaliada a necessidade de implantação de catéter venoso central. A aquisição e implantação do cateter serão de responsabilidade dos centros de hemofilia e deverá ser realizada por equipe experiente e capacitada. Dose - Protocolo canadense Prevenção de artropatia pode ocorrer com individualização da dose escalonada? Critérios de admissão idênticos ao do estudo americano Dose: profilaxia com doses escalonadas 50 U/kg 1x/sem (i) Após 2 hemartroses na mesma articulação dentro de 3 meses consecutivos ou; (ii) Após 3 hemartroses em qualquer articulação em qualquer período de tempo ou (iii) Após 3 sangramentos dentro de 3 meses consecutivos. 30 U/kg 2x/sem 25 U/kg 3x/sem Blanchete, 2010 Qual dose? Estágio Dose e freqüência das infusões de concentrado do fator deficiente Estágio A 50 UI por Kg, uma vez por semana Estágio B 30 UI por Kg, duas vezes por semana Estágio C 25 UI por Kg, três vezes por semana, em dias alternados (aumentar 5 UI por Kg se houver persistência do sangramento) Consumo de fator (IU/kg/ano) 3.360* 3.990* 6.918** *Consumo similar ao protocolo holandês de doses intermediárias **Consumo similar ao protocolo sueco de altas doses Baseado em Blanchete, & Ljung, 2013 Acompanhamento da profilaxia primária • Durante o tratamento, o paciente deverá ser acompanhado pela equipe multiprofissional e deverá realizar consulta eletivas e exames conforme definido no protocolo. A avaliação músculo-esquelética deve ser realizada utilizando o Hemophilia joint health score (Anexo 5). • A pesquisa de inibidor contra os fatores VIII e IX deverá ser realizada de acordo com orientações do Manual de diagnóstico de inibidor e tratamento de hemorragias em pacientes com hemofilia congênita e inibidor, Ministério da Saúde, 2008 • Todas as infusões devem ser registradas na planilha de infusão domiciliar (Anexo 7) pelo paciente/familiar e retornada ao centro para registro no sistema HEMOVIDAWEB Coagulopatias. Novas doses para PP somente poderão ser liberadas mediante esta prestação de contas. • Os resultados de exames de sorologia e inibidor devem ser registrados no Sistema HEMOVIDAWEB Coagulopatias. Planilha de infusão domiciliar – Anexo 7 PROFILAXIA PRIMÁRIA PARA HEMOFILIA GRAVE PLANILHA DE INFUSÃO DOMICILIAR Nome:_____________________________________________ Centro de Tratamento: ________________________________ Data nascimento: ___/___/____ Dados gerais Produto Registro no centro: ________________ Registro Hemovida:________________ Telefone: _____________________________________ Motivo da infusão Hemorragia Hemorragia* Continuidade Data Hora Peso Nome comercial Lote Nº UI Profilaxia artic musc out Local# Lado& Assina tura Anexo 1 - Termo de consentimento e responsabilidade Anexo 2 - Avaliação inicial da Enfermagem Anexo 2a - Evolução da Enfermagem Anexo 3 - Avaliação inicial do Serviço Social Anexo 3a - Evolução do Serviço Social Anexo 4 - Avaliação inicial da Psicologia Anexo 4a - Evolução da Psicologia Anexo 5 - Hemophilia Joint Health Score Anexo 6 - Cartilha de profilaxia primária para familiares e pacientes Anexo 7 - Planilha de infusão domiciliar Anexo 8 - Cronograma Anexo 9 - Agenda de seguimento Anexo 10 - Resultado de exames http://portal.saude.gov.br/portal/saude/Gestor/visualizar_texto.cfm?idtxt=37769 Profilaxia secundária Profilaxia secundária de longa duração para hemofilia grave sem inibidor - Justificativa • Esta modalidade de profilaxia secundária é a mais complexa, tendo-se em vista que pacientes que não iniciaram profilaxia em idade tenra (profilaxia primária) apresentam lesões osteo-esqueléticas graves e muitas vezes irreversíveis. A instituição da profilaxia nesta situação não recupera a funcionalidade osteo-esquelética, mas reduz o número de sangramentos e melhora a qualidade de vida, incluindo redução de faltas no trabalho e na escola. • No Brasil, o número estimado de pacientes com hemofilia grave é de 3.421 (HEMOVIDA WEBCOAGULOPATIAS, 14/05/2012). • A instituição de profilaxia para estes pacientes deverá levar em conta o fenótipo da doença (quadro hemorrágico) e a farmacocinética do fator em cada paciente de forma individualizada. • Assim, caso aproximadamente 50% dos pacientes necessite profilaxia para o controle das hemorragias, cerca de 1.700 pacientes serão candidatos imediatos a esta modalidade no Brasil. Profilaxia secundária de longa duração para hemofilia grave sem inibidor • Autorizada pelo Ministério da Saúde em abril de 2012 para pacientes com hemofilia grave que não preenchem critérios para profilaxia primária – Pacientes com mais de 3 anos; – Pacientes que já apresentaram 2 ou mais hemartroses – Não iniciar com 1 dose por semana – já iniciar com duas doses por semana – Demais critérios semelhantes ao da profilaxia primária Profilaxia secundária de curta duração para hemofilia grave sem inibidor • Iniciar após tratamento da hemorragia aguda • Produto: concentrado de fator VIII ou IX • Indicações – Articulação-alvo: de 4-12 semanas • Considerar sinovectomia se não houver resposta – Hematoma de ileo-psoas: de 4-12 semanas – Hemorragia intracraniana: de 3-12 meses. Se recorrente, manter PS de longa duração Evolução da distribuição de concentrado de fator VIII de 2005 a 2012 4,00 3,20 3,50 3,00 2,50 2,00 1,50 1,00 0,76 1,02 1,08 1,08 1,20 1,33 2006 2007 2008 2009 2010 1,55 0,50 0,00 2005 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011² 2011² 2012³ 2012³ Fonte: Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados, Ministério da Saúde, 2013 Profilaxia secundária de curta duração para hemofilia grave com inibidor • Iniciar após tratamento da hemorragia aguda • Produtos: CCPA (75 UI por kg de peso 3 vezes por semana) ou CFVIIar (90 mcg por kg de peso por dia em dias alternados/diariamente) • Indicações – Mesmas para pacientes com hemofilia sem inibidor • Não está liberado uso destes produtos para profilaxia secundária de longa duração. Casos especificos devem ser discutidos individualmente. Futuro • Profilaxia “individualizada” – Uso de testes globais da coagulação para mensurar dose adequada para cada indivíduo; – Testes de farmacocinética – Melhor avaliação do fenótipo da hemofilia • Uso de concentrados de longa duração Conclusões • A profilaxia primária é eficaz na prevenção da artropatia hemofílica, sendo este o maior benefício relatado por estudos a longo prazo. • A profilaxia primária é o tratamento de escolha para pacientes com hemofilia grave. Deve ser iniciada precocemente, idealmente antes dos 3 anos de idade e antes da segunda hemartrose • Não está indicada para pacientes com hemofilia moderada ou leve, isto é, com níveis de atividade de fator superiores a 2%. • O paciente deve ser acompanhado por equipe multidisciplinar durante todo o tratamento através de consultas eletivas e o centro de hemofilia deve registrar todas as infusões e motivos para monitorar eficiência do tratamento. • O tratamento futuro será cada vez mais individualizado, de acordo com fenótipo hemorrágico e farmacocinética do fator e o uso de produtos de longa duração Referências bibliográficas • Ministério da Saúde. Protocolo Brasileiro de Profilaxia Primária para Hemofilia Grave. Brasília. Ministério da Saúde, 2011. http://portal.saude.gov.br/portal/saude/Gestor/visualizar_texto. cfm?idtxt=37769 • Ministério da Saúde. Manual de tratamento das coagulopatias hereditárias. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2005. • Ministério da Saúde. Manual de diagnóstico de inibidor e tratamento de hemorragias em pacientes com hemofilia congênita e inibidor, 2008. • Rezende SM et al. Registry of inherited coagulopathies in Brazil: first report. Haemophilia. 2009;15:142-9. • World Federation of Hemophilia. Report on the Annual Global Survey 2011. www.wfh.org (acesso em 14-05-2013). Obrigada pela atenção Suely Meireles Rezende [email protected]