CONHECIMENTO CIENTÍFICO E SOCIEDADE1 A especialização das ciências O conhecimento humano (científico, artístico, religioso, etc.) não capta todos os aspectos que compõem a realidade. Para produzir ciência criamos modelos e teorias que simplificam ou fragmentam esta realidade. A força da ciência provém desta simplificação do “real” a fim de poder estudá-lo e agir sobre ele, resolvendo problemas concretos. Sua debilidade é porque desta maneira a ciência (assim como a tecnologia) começa separar-se dos problemas da sociedade, que são reais, mais complexos que aqueles resolvidos pela ciência. As teorias científicas são como redes criadas por nós e destinadas a capturar o mundo... São redes racionais que não devem ser confundidas com uma representação completa de todos os aspectos do mundo real, nem mesmo se forem muito bem sucedidas, nem mesmo se parecem fornecer excelentes aproximações da realidade (POPPER, 1984). Os sistemas teóricos são criações do espírito humano, mas não são subjetivos e individuais, sofrem influência decisiva da cultura e época em que são produzidos. Formam um paradigma que serve para classificar o mundo e, de uma forma particular, conhecê-lo. As leis da ciência não são produzidas apenas com base nas observações, sempre trabalhamos com pré-noções, teorias, interpretações anteriores, de modo que a observação sempre é seletiva. O que o olhar do cientista capta depende de seus objetivos e de sua experiência anterior. Em torno de cada área do conhecimento científico (que chamamos de disciplina) existe certas regras, princípios, normas culturais e/ou práticas que organizam o mundo antes de seu estudo aprofundado. Essa classificação prévia é que separará o que é vivo daquilo que não é; os fenômenos físicos dos químicos, o urbano do rural, etc. Depois de consolidada a disciplina, ou seja, um determinado campo do conhecimento, estas distinções parecem evidentes. Em certos momentos, porém, estas certezas são questionadas: antes a ciência tratava a doença só como um fenômeno biológico e material, mas hoje os fatores psicossomáticos e ambientais também são considerados. Uma determinada disciplina não é definida pelo objeto que estuda, mas é a disciplina que de certa forma o constrói. O que determina e delimita um campo de estudo é mais o objetivo da disciplina do que seu objeto. A principal vantagem do enfoque especializado e baseado em disciplinas bem delimitadas é que este permite aprofundar o conhecimento de uma área específica, cada vez se conhece mais detalhes daquele objeto de pesquisa. A desvantagem é que quanto mais especializado se torna o conhecimento há uma tendência deste desligar-se dos problemas concretos da sociedade. 1 Além das citações específicas, o texto está baseado em: CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 7a Ed. São Paulo: Ática, 1996, 440p. 1 A interdisciplinaridade A interdisciplinaridade (a reunião de conhecimentos de diversas áreas) nasceu a partir da tomada de consciência de que o conhecimento do mundo por meio de uma disciplina particular é parcial e geralmente insuficiente para dar respostas adequadas aos problemas reais. A decisão de buscar superar os limites do conhecimento especializado é uma opção política e na maioria dos casos visa a resolução de problemas práticos, mas não é uma exigência para se fazer ciência hoje. O domínio de conceitos periféricos de uma disciplina é muito útil para ampliar a visão do cientista, mas normalmente não é “pré-requisito” necessário à atividade científica, não é usado diretamente no trabalho cotidiano deste. A interdisciplinaridade pode ser utilizada com objetivos diferentes: Uma perspectiva considera que o objetivo da abordagem interdisciplinar e criar uma nova maneira de visualizar um determinado objeto/problema. Esta nova visão tenderá a ser mais adequada, pois examinará uma quantidade bem maior de aspectos do mesmo. Mas ao mesclar as diferentes disciplinas, pode-se obter um enfoque original do objeto ou problema estudado, levando à formação de uma nova disciplina (a informática, por ex., foi formada inicialmente a partir de especialistas de diferentes áreas, como engenheiros, físicos e lógicos). Uma segunda perspectiva considera que a abordagem interdisciplinar não se destina a criar e sistematizar um novo campo de conhecimento, mas seria uma “prática” específica visando resolver problemas concretos ligados à vida cotidiana. Esta visão procura enfrentar as questões políticas próprias à interdisciplinaridade (por exemplo, a decisão sobre quais disciplinas são mais importantes para a resolução do problema). Considera que o trabalho interdisciplinar é uma negociação entre diferentes pontos de vista, para enfim decidir sobre a interpretação considerada adequada tendo em vista a ação; e esta ação será resultado de uma escolha ética e política. O sentido da objetividade científica O ideal científico contemporâneo se caracteriza pela separação e distinção entre o sujeito e o objeto do conhecimento, ou seja, busca-se através de um conjunto de métodos e técnicas evitar que o pesquisador interfira nos fenômenos que se pretende estudar ou que a interpretação dos resultados tenha influência de sua subjetividade. O conhecimento científico estabelece assim a noção de objetividade que não deve ser entendida como algo absoluto, mas como um esforço metodológico que se apóia em regras aceitas pela comunidade científica (paradigma vigente). A objetividade é sempre relativa, referese a uma dada sociedade e suas convenções organizadas. Um laboratório, por exemplo, é o lugar onde se pode praticar certos experimentos controlados, é construído de maneira tal que as experiências que ali se realizam podem ser analisadas e reproduzidas por qualquer outro cientista, de acordo com os conceitos previstos pelo paradigma. Apenas neste sentido pode-se afirmar que o conhecimento científico é objetivo. O laboratório permite dar as ciências o porte de um discurso universal, não no sentido amplo, mas unicamente em relação aos métodos de verificação, pois permite comprovar a validade do resultado de uma pesquisa por qualquer outro cientista, em qualquer parte do planeta. 2 Existe neutralidade científica? A idéia de que é possível manter a objetividade científica, de que os resultados obtidos por um pesquisador podem ser reproduzidos por outro, isto é, não dependem da boa ou má vontade do cientista, nem de suas paixões; não significa que a ciência seja neutra ou imparcial. É preciso diferenciar objetividade de neutralidade científica. As disciplinas científicas são ligadas a múltiplos mecanismos sociais ou mesmo lutas sociais, são estas demandas e a maneira pelas quais os grupos ligados a uma determinada disciplina procuram responder a estas questões é que determinam a fisionomia da disciplina. A decisão de pesquisar este ou aquele tema, de conservar ou rejeitar um modelo de análise depende de motivos complexos que não são inteiramente justificados pela razão (envolve fatores econômicos, técnicos, políticos, dentre outros). Quando o cientista escolhe certa definição de seu objeto, decide usar um determinado método e espera obter certos resultados, sua atividade não é neutra nem imparcial, mas feita por escolhas dentre um leque de possibilidades. No entanto, como afirma Fourez (1995), muitas vezes o pesquisador não tem consciência deste fato, pois: (...) toda a formação dos cientistas parece destinada a fazer com que esqueçam a que pode servir a ciência. Tudo se passa como se tratasse de produzir resultados científicos sem se colocar a questão de suas implicações sociais, e sem se preocupar com suas finalidades.(...) Tudo contribui para fazer do cientista um artesão mais ou menos cego à questão social (FOUREZ, 1995, p.101). Um cientista que está trabalhando na obtenção de opções de culturas, visando gerar empregos e aumentar a renda em uma região em que predomina a agricultura familiar, mas que está com problemas devido a grande pressão de uma grande monocultura e outro que está pesquisando o aperfeiçoamento de uma máquina importada para colheita da cana em áreas maior declividade; fizeram escolhas diferenciadas e que não são neutras no aspecto social e político. Os filósofos da escola Frankfurt entendem que a origem do problema deve-se à adoção da racionalidade instrumental como a única razão válida, desprezando a racionalidade substantiva. A razão instrumental traduz conhecimento como domínio e controle da Natureza, busca a eficácia na ação e gera a técnica, enquanto a racionalidade substantiva busca o propósito para a própria vida e gera valores (éticos, religiosos, estéticos). Mas como, na maioria destes casos, a definição de qual pesquisa será realizada, já não cabe ao cientista individual, o melhor caminho para perceber a impossibilidade de uma ciência neutra é observar como a pesquisa científica é realizada em nosso tempo. Durante séculos, os cientistas trabalharam individualmente em seus pequenos laboratórios. Mas o cientista isolado, artesão, já não existe mais. Não se pode mais fazer ciência em laboratório de fundo de quintal. Quem quiser fazer ciência, tem de se submeter às instituições científicas e as suas regras. De 3 cavaleiros solitários, os cientistas transformaram-se em um exército hierarquizado. De artesãos, em funcionários de instituições. É o que se denomina industrialização da ciência. As pesquisas são financiadas pelo Estado (nas universidades e institutos), pela iniciativa privada (em seus laboratórios) e por ambos (nos centros de investigação do complexo industrial-militar). São pesquisas que exigem altos investimentos econômicos e das quais esperam-se resultados que nem sempre a opinião pública conhece. Além disso, os cientistas de uma mesma área de investigação competem por recursos, tendem a fazer segredo de suas descobertas, pois dependem delas para conseguir fundos e vencer a competição com outros (CHAUÍ, 1995, p. 282). O senso comum vê a ciência desligada do contexto de sua realização e de suas finalidades, por isso tende a acreditar na neutralidade científica, na idéia de que o único compromisso da ciência é o conhecimento verdadeiro e desinteressado e a solução de nossos problemas. A ciência se torna ideologia. A ideologia cientificista, utilizada pelas classes dominantes, usa esta imagem idealizada para consolidar a idéia de neutralidade da ciência. Busca-se dissimular a origem e a finalidade da maioria das pesquisas, destinadas a controlar a Natureza e a sociedade, segundo os interesses dos grupos que controlam os financiamentos das instituições científicas. Questões para responder e discutir 1) Comente os problemas decorrentes da especialização do conhecimento científico e explique os motivos da baixa freqüência de utilização da interdisciplinaridade (na segunda acepção apresentada). 2) O que significa a afirmação de que a objetividade do conhecimento científico é sempre relativa? 3) Explique esta frase: “O que determina e delimita um campo de estudo é mais o objetivo da disciplina do que seu objeto”. Dê um exemplo referente às ciências agrárias. 4) Quais as conseqüências da industrialização da ciência para a produção do conhecimento científico? 5) Diante das questões apresentadas no texto, na opinião do grupo, qual deve ser o papel do pesquisador na área de Ciências Agrárias? 4