DEMOCRATIZAÇÃO E POLÍTICA SOCIAL NOTAS SOBRE A CONJUNTURA BRASILEIRA ATUAL O Brasil representa, hoje mais do que nunca, um desafio à análise que busca integrar as dimensões político-institucionais, econômicas e sociais no quadro internacional determinado pelas decorrências do "ajuste econômico", inspirado no "Consenso de Washington" (Williamson, Bresser Pereira) e das pressões internas por democratização política. A dificuldade de análise surge pela complexidade inaudita da realidade brasileira. A plena consolidação democrática convive com uma crise macro-econômica profunda, que abala inclusive as bases de um padrão de desenvolvimento que possibilitou ao país um crescimento econômico vigoroso no passado. Acostumado a uma trajetória de crescimento de sua economia, no curso deste século, com resultados excepcionais, o país é confrontado com insondáveis dificuldades de assimilação desta quebra do seu padrão histórico de acumulação. Uma leitura desta crise pode ser feita a partir das dificuldades de um país com dimensões continentais e com a base industrial de que dispõe o Brasil para, em um contexto internacional de reorganização econômica e novas configurações políticas, retomar sua trajetória de crescimento ; este agora incorporando as dimensões sociais. O objetivo central deste trabalho é analisar as relações complexas entre o processo de democratização política, consolidado a partir dos anos 1980, e a implementação de políticas sociais no Brasil, neste contexto de reajuste estrutural necessário ao desenvolvimento. O POLÍTICO E O SOCIAL A década de 1980 trouxe a consolidação de um longo processo de transição política, iniciado em verdade em 1974, como projeto institucional do governo Geisel. A "distensão", sob a inspiração de corrente norteamericana expressa fundamentalmente na obra do politólogo Samuel Huntington, tornou-se o vetor de uma política de transformação do caráter autoritário do regime militar. Sob o comando 368 Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT operacional do General Golbery do Couto e Silva, autor de obras relevantes no campo da geopolítica, foi posto em marcha um programa de abertura política lenta e gradual (Couto E Silva 1955, 1957 et 1981). Este programa buscava aproximar as elites políticas já estabelecidas nos marcos do sistema representativo existente, para um processo de co-responsabilização com os rumos do que seria uma "democracia brasileira". Tratava-se, entre outras metas, de voltar a enquadrar certas instituições responsáveis pela articulação e agregação de interesses nos limites do sistema representativo global. Era o caso específico, por exemplo, de partidos políticos e sindicatos, que, durante os anos 1964-1974, tinham sido extintos, redefinidos e/ou postos sob estrita vigilância das corporações de segurança nacional. A natureza mesma da sociedade civil, baseada na livre negociação dos interesses, tinha sido substituida por um conceito estatista calcado na definição de segurança nacional brasileira. Tratava-se, em verdade, de restabelecer certo equilíbrio sistêmico ; sem o qual é impossível o funcionamento de uma sociedade de classes através dos mecanismos concomitantes de mercado econômico e representação política diferenciada. Sindicatos teriam de voltar a representar os interesses dos trabalhadores, enquanto participantes do mercado econômico ; partidos políticos teriam de possuir liberdade mínima para articular e representar a vontade política da população. Desde o início (1974), esta abertura política esteve centrada na possibilidade de um pacto efetivo entre as elites. Setores sociais emergentes e forças políticas radicais (esquerda tradicional, esquerda guerrilheira, novos movimentos sociais e novo sindicalismo) não deveriam ser elevadas à condição de atores reconhecidos. O êxito do "modelo Golbery" pressupunha um controle estrito dos atores políticos habilitados formalmente pelo Estado. Todavia, como é usual ocorrer na história, os meandros da vida foram muito mais sinuosos e surpreendentes do que deixava antever a arquitetura simplificadora dos construtores das catedrais do autoritarismo. Ao longo do período mais agudo do regime militar (1968-1973), a economia havia apresentado ritmo vertiginoso de crescimento. Os anos do chamado "milagre econômico brasileiro", implicaram a emergência de novos estratos sociais, com ampliação notável do número de trabalhadores nos setores modernos da economia urbana e rural, bem como a expansão dos setores modernos de serviços e do contingente estudantil, marcadamente universitário. Estavam dadas as condições para o surgimento da massiva diferenciação política e social. Surgem novas estruturas sociais, configuram-se novos atores que vão agregar interesses específicos que não encontram lugar no sistema representativo desenhado pela elite militar. É a conjuntura histórica que marca o surgimento avassalador de intensos movimentos sociais reivindicatórios, à margem do sistema político convencional. Não reconhecidos pela ditadura, nem pelo bipartidarismo existente desde 1965 (Ato Institucional n° 2), os movimentos sociais englobam os mais variados interesses, do lumpesinato urbano aos setores de classe média que lutavam por subsídios habitacionais frente ao Banco nacional de habitação, como exemplos contundentes de pressões legítimas socialmente, mas ilegítimas políticamente (Nascimento & Barreira,1993). L'ÉTAT ET LE MARCHÉ AU BRÉSIL 369 Paralelamente, o mesmo processo ocorreu com o movimento sindical. Oprimido pela estrutura corporativista da ordem política herdada de 1930, centrada na verticalização (sindicato único, federações, confederações) e no financiamento de suas atividades baseado na contribuição sindical compulsória controlada pelo Ministério do trabalho, os sindicatos buscam romper os limites através da massiva negociação salarial por categorias. Antes centrada na capacidade de arbitragem e decisão do aparelho da Justiça do trabalho, estas negociações extrapolam a ordem estatal através do surgimento do "Novo sindicalismo", como principal corrente que redefine historicamente o contexto trabalhista brasileiro. Criam-se as centrais sindicais, forja-se o nascimento do Partido dos trabalhadores (PT). O corte histórico, iniciado com a "abertura de 1974" ilustra a existência de novas realidades. Não se trata da "reinvenção do social" a partir de movimentos como o "Novo sindicalismo", pois as preocupações com as externalidades negativas do crescimento econômico na sociedade estão presentes desde a revolução de 1930. O que ocorre, a partir de 1964, é a subsunção do social sob a ordem política controlada pela ditadura militar. Na verdade, desde seu início, a nova ordem autoritária teve óbvias preocupações com o estado social da nação. Mesmo antes da famosa frase do Presidente Médici, que em pleno auge do milagre econômico constatou políticamente a anomalia ("O país vai bem, o povo vai mal", 1970), a própria criação do Banco nacional de habitação e outros programas governamentais estiveram centrados na mesma duplicidade, na qual o lugar das políticas sociais no Brasil é historicamente confundido com o lugar de políticas estritamente econômicas (Schmidt 1983). A substância desta orientação ao social talvez possa ser melhor entendida pelo estudo da tradição positivista, coração do código ideológico das elites políticas, militares e administrativas que empolgaram o poder desde a modernização do país iniciada em 1930. No edifício positivista comtiano o Estado moderno é o pináculo de uma ordem baseada no domínio do pensamento científico, e que tem a "proteção social" como imperativo categórico. Não se trata, como no modelo marxista, de um processo que dependa diretamente da luta de classes no âmbito da sociedade civil. Trata-se de um item programático da atividade do Estado, ontologicamente definido como "O grande protetor". No âmbito do próprio movimento revolucionário de 1930, especialmente na conjuntura de 1937-1945, esta versão foi exacerbada a ponto de tomar características fascistas e corporativas (Trindade, 1988). Ou seja, as políticas governamentais de natureza econômica, no âmbito do regime autoritário, sempre contemplaram as dimensões sociais, implicita ou explicitamente. As dificuldades políticas do regime iniciaram-se com a demanda de representação política autônoma por parte dos atores sociais emergentes. Foi o nó górdio do regime, daí a abertura iniciada controladamente em l974. Fatos e processos posteriores de mobilização levaram à superação dos limites da ordem e do projeto Golbery. A agonia do regime autoritário foi acelerada por fatores externos (a segunda crise do petróleo, o choque dos juros internacionais e o virtual desaparecimento do 370 Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT crédito externo com a crise da dívida mexicana), que levaram à implosão do modelo econômico. Fatores econômicos combinaram-se com os fatores políticos de expansão da participação. Movimentos sociais, partidos políticos e novos setores trabalhistas ajudam a construir o fim da etapa autoritária. O dilema brasileiro está centrado na dramática coincidência da ascensão política de forças abertas à incorporação do social no modelo de desenvolvimento, com a crise econômica que obstaculiza em grau extraordinário a execução de programas visando a satisfação da cidadania social. A OPACIDADE DA COMPARAÇÃO Dadas as circunstâncias que envolvem o Brasil e seu processo de redefinição atual, é preciso uma qualificação da problemática específica. Esta qualificação tem por objetivo discriminar as potencialidades encerradas no caso brasileiro vis-à-vis outros países com os quais é frequentemente comparado. A operação de comparabilidade deve levar em conta peculiaridades intransferíveis, caso contrário as projeções do possível histórico vão configurar distorções analíticas comprometedoras da própria comparação. A ciência política comparada dominante entre os anos 1960 e 1980, fortemente marcada pela hegemonia norteamericana (Almond, Verba, Apter, Huntington) ressaltou sobremaneira o "procedimento político-representativo e institucional" como critério de corte distintivo entre diferentes sociedades nacionais. Estudos de caso, geralmente inspirados em etnografias políticas de países asiáticos, africanos e latinoamericanos inspiraram a formulação de teorias de "desenvolvimento político". A referência culminante e normativa era sempre dada pelos cânones democráticorepresentativos dos países de padrão civilizatório ocidental plenamente desenvolvidos. Sejam os estudos de Duverger sobre sistemas partidários, sejam as projeções funcionalistas de progresso material baseado no mercado econômico competitivo e na diferenciação das estruturas institucionais de autores como Almond e Huntington, todos sublinhavam as "pré-condições do desenvolvimento político". O Ocidente desenvolvido apresentava inúmeras diferenças : maior ou menor participação do Estado no sistema de regulação econômica, sistema partidário multi ou bipolarizado, sistema eleitoral baseado no voto proporcional ou distrital, sistema de governo parlamentarista ou presidencialista, forma republicana ou monárquica, etc. Naturalmente, as combinações sempre variaram, e inúmeras expressões mais complexas dessas dimensões eram apresentadas como viáveis e recomendáveis caminhos de progresso aos subdesenvolvidos do terceiro e quarto mundos : do sistema eleitoral misto alemão, ao sistema presidencial mitigado francês, ou mesmo a fórmula de governo partilhado do Conselho da República na Suiça. Autores como Schmitter, Liphjard e Whitehead nos Estados Unidos e na Europa, L'ÉTAT ET LE MARCHÉ AU BRÉSIL 371 O’Donnel e Lamounier na América Latina, refinaram sobremodo os quadros de referência iniciais dos founding fathers da moderna política comparada. Aplicaram, sobre extensivos estudos de caso, os crivos dos acontecimentos históricos mais marcantes entre 1970 e 1980 : envolvimento político-militar dos Estados unidos em várias partes do mundo, avanços e recuos da socialdemocracia européia, luta pelos direitos civis nos USA, golpes militares na Ásia e América Latina e decorrentes manifestações dos "milagres econômicos" sob regimes políticos extremamente repressivos, o início do fim do bloco do socialismo real, e assim por diante. Em relação aos estudos iniciais da moderna topologia política, teoricamente inspirados na dependência necessária entre crescentes níveis de diferenciação estrutural (economia e sociedade) e correlatos níveis de desenvolvimento político, muito pode ser dito, muitos reparos podem ser feitos. Não é preciso destacar o óbvio etnocentrismo que orientou a démarche interpretativa dos estudos de caso no campo da política comparada. Talvez mais importante é o destaque que pode ser dado ao simplismo assumido pela separação da dimensão político-institucional. A dimensão propriamente política — do corpo institucional do Estado aos ingredientes do sistema representativo — foi constantemente exacerbada. O preço foi, e tem sido, um isolamento artificial das variáveis de natureza política, desta forma obstaculizando interpretações com maior capacidade explicativa para fenômenos que em si mesmo são complexos e absolutamente interdependentes. O lugar próprio da história nacional dos chamados "paises atrasados", seu desenvolvimento institucional típico, suas formas estatais, suas peculiaridades econômicas e culturais, foram frequentemente desleixados, desprezados como foco de análises. Feita tábula rasa de fenômenos intransponíveis e irredutíveis, estava aberto o caminho para o conformismo metodológico. A homogeneização da história contemporânea, ao redor dos padrões vigentes que orientam a formulação de políticas econômicas e sociais internacionais — a partir dos centros comandados pelos países centrais, notadamente Banco mundial, OCDE, Fundo monetário internacional — submete a análise de políticas a crivos que, deshistoricizados, apagam percursos próprios nacionais. Isto ocorre com fenômenos como a "construção do Estado democrático", a "construção do Estado de bem-estar social", etc. Em uma escala micro-orientada, fenômenos de mobilidade social (horizontal e vertical) têm sido constantemente descontextualizados da própria história das formações capitalistas particulares, sendo avaliados segundo um "padrão de países do capitalismo avançado". Perdem-se informações vitais para o entendimento do desenrolar da história contemporânea dos países não-centrais. Isto ocorre tanto ao nível político-institucional quanto ao nível de fenômenos societais básicos. Eles se traduzem nos debates sobre "a melhor Constituição política", como por exemplo o papel diferenciado dos poderes republicanos (judiciário, executivo, legislativo) no campo institucional. Também se traduzem na análise do "trabalho doméstico" e na análise da "política social", de modo particular e exemplar. Na escalada das "análises sociais" deste contexto de fragilidade da ordem 372 Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT pública, onde está em jogo a possibilidade histórica da cidadania, o mesmo ocorre com a incorreta interpretação de fenômenos societais de longa duração, como o são aqueles referentes à mobilidade social, por exemplo. O "trabalho doméstico" e o "campesinato" — como formas expressivas de um modo de produção capitalista ainda em formação — têm sido lugares privilegiados de equívocos analíticos. Isto porque, pela ânsia de uma aproximação homogeneizadora, sustentáculo do comparativismo econômico e político, dimensões histórico-sociológicas cruciais são esquecidas propositadamente. O trabalho doméstico, do ponto de vista dos próprios atores, pode ser encarado como ascensão social no coração de uma sociedade onde em grande parte se manifesta a carência absoluta de meios de reprodução humana. Portanto, de um ponto de observação endógeno, ele pode ser visto como instrumental em uma escala de participação ascendente nos meios de reprodução, no acesso a bens e serviços ausentes nos espaços originários dos próprios atores. A convivência da economia campesina, no complexo do agro-business em formação, pode ser entendida com os mesmos critérios históricos-sociais tão caros à interpretação de uma sociologia radical, uma sociologia que não aceita a esterilização das formas, mas se fundamenta na realidade processual dos fatos históricos. A efetiva convivência funcional entre a economia campesina e as formas contratuais capitalistas, no mundo agrário latinoamericano, necessita ser encarada como uma peculiaridade desta formação, não necessariamente uma excrescência, uma negação das formas abstratas. Desta forma, os processos reais históricos de formação social e política são relativizados, impõem-se modelos de análise que não levam em conta particularidades na perspectiva do tempo histórico e social. O Brasil, de modo particular, tem sido uma vítima contumaz destas projecções. Estaria um "novo etnocentrismo" em marcha forçada para a homegoneização final da história ? Seria isto mais um ângulo do conformismo que se abate sobre os "tempos pós-socialistas" ? Três abordagens disciplinares vêm colaborando, no entanto, para a superação dessas limitações, em nossos dias. Uma vem do campo da antropologia, que através dos estudos etnográficos e comparativos traz de volta o respeito pela diferença cultural de povos e nações. Outra vem da sociologia da modernidade, com seus estudos sobre o desencaixe tempo-espaço, e a relativização dos critérios de racionalidade. Outra vem da Escola regulacionista, com seu apego a variáveis já presentes na teoria clássica da economia política, mas que foram eventualmente esquecidas pelas tendências do neo-classicismo. Antropologia, sociologia e economia — após a superação do extremo funcionalismo departamentalizador — conseguem inspirar um quadro de referência mais rico e potencialmente mais apto à explicação de fenômenos como o que tratamos aqui. Exemplares, neste sentido, são as obras recentes de Touraine (1992), Rawls (1993), bem como as revisões analíticas da formação brasileira contemporânea de Alfredo Bosi (1992) e de Wanderley G. dos Santos (1993). L'ÉTAT ET LE MARCHÉ AU BRÉSIL 373 No caso brasileiro são autores centrais para a reflexão sobre a indecisão política, como nota crucial para o entendimento de impasses pervasivos à toda estrutura social e institucional (Schmidt, Nascimento, Pécaut 1993). As relações entre "democratização e política social" não podem ser tratadas sem levar em conta os avanços acima enunciados, nem as peculiaridades históricas imanentes ao caso estudado (Brasil, hoje). Qualquer consideração que extrapole os limites das condições historicamente dadas, em cada uma das suas dimensões, não seria uma análise adequada, mas simplesmente um exercício formalista a mais. AS AMBIGUIDADES DO CASO BRASILEIRO No caso brasileiro, especialmente a partir dos anos 1960, a modernização econômica não tem apresentado sincronia positiva em relação à modernização política. O crescimento econômico se dá em um contexto de fechamento político. A abertura política se dá num quadro econômico de muitos estrangulamentos. Ao longo desta relação problemática, outras realidades sociais se impuseram, trazendo consigo enormes pressões não-atendidas. De outro lado, a incorporação do social surge como imperiosa necessidade econômica (mercado ampliado, eficiência global) e política (extensão da cidadania social). O cimento das novas relações emergentes por sua vez também oscila globalmente entre diferentes tônicas político-ideológicas. O lugar do conceito de república não está bem definido na prática política brasileira ; incluindo-se nele o caráter secular do regime representativo. A incorporação política de novos atores, principalmente via partidos políticos, não chegou ainda ao ponto de redefinir a substância de uma ordem social balizada pela existência de um Estado democrático republicano. Persistem formas de clientelismo e de corporativismo extremado no interior do aparelho estatal. Clientelismo e corporativismo são componentes históricos do sistema e da cultura política brasileiros que têm resistido persistentemente aos avanços formais da democratização nacional. É também digna de registro a influência doutrinária do pensamento social católico, por exemplo. Além das dimensões mais generalizantes e abstratas das orientações emanadas das encíclicas papais, notadamente a Rerum novarum (1891) e a Quadrogesimo Anno (1931), é crucial destacar nestes documentos a representação do social que eles projetam. A economia política católica comportaria uma organização social centrada na existência de uma familia forte integrada em corporações distribuidas pelas distintas classes sociais, reforçada pelo Estado em termos do "princípio de subsidiaridade". Sendo a Igreja católica um ator político importante no cenário brasileiro, cabe uma curta reflexão sobre as implicações deste fato. No campo das políticas sociais a presença do pensamento católico é de fundamental importância. Ou seja, nas relações intercaladas entre Estado e mercado, no campo social propriamente dito, a posição 374 Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT do pensamento e da prática originadas da doutrina católica assume particular centralidade. Historicamente, desde o periodo colonial, a Igreja católica tem exercido importância crucial no campo ideológico e no desenho e governo das próprias instituições nacionais brasileiras. Sua influência no espectro ideológico e político não é nada desprezível, ainda hoje em dia. A coalescência das relações entre Igreja e Partido dos trabalhadores, por exemplo, é um dado marcante a sublinhar as notas constitutivas do campo político brasileiro da atualidade. Uma outra ambiguidade está no fato de que o Brasil, ao contrário da América Latina como um todo, vai tentando entrar em patamares modernizadores das relações políticas e sociais pelo fortalecimento de tendências à esquerda do espectro político geral. Tanto a derrubada do ex-Presidente Collor de Melo, como a solidificação da candidatura de "Lula" à presidência da república, bem como os atuais episódios deflagradores do inquérito geral sobre a corrupção parlamentar na confecção do orçamento nacional (Comissão parlamentar mista de inquérito sobre o orçamento), tem corroborado as posições da esquerda políticamente organizada, principalmente ao redor do Partido dos trabalhadores. Movimentos correlatos, e de caráter extrapartidário, como o "Movimento pela ética na política", têm reforçado as tendências democratizantes, hoje com forte atuação na política brasileira. Todos estes movimentos e mobilizações têm encontrado na Igreja católica um respaldo e um depositário de energias e recursos mobilizatórios intransferíveis. A Igreja, no atual quadro histórico, é um ator político de primeira grandeza. De particular importância são suas relações com o Partido dos trabalhadores. A iminência de uma participação eleitoral, com amplas possibilidades de vitória, tornam as relações entre a Igreja católica e o Partido dos trabalhadores um fulcro de importância para a análise do futuro possível, especialmente no que diz respeito ao papel do Estado nas políticas sociais. Diante desta possibilidade, qual o papel a ser exercido pela Igreja católica no contexto de avanço democrático com tentativa de reforma e secularização plena do Estado republicano ? Seguindo a matriz fundadora, discriminada pelos documentos originais criadores da doutrina social católica, restam questões cruciais a serem respondidas. Na formulação de políticas sociais, onde a educação é fundamental para países como o Brasil, bem como em outras dimensões das políticas de compensação social, para a Igreja as concepções estatais e republicanas (laicas) apresentam inúmeras dificuldades conceituais e políticas. Resta saber, em campos específicos (saúde : controle da natalidade, aborto livre ; educação : pública ou privada, laica ou religiosa ), como seria o resultado de uma possível hegemonia controlada pelo Partido dos trabalhadores, com profundas influências da matriz católica que lhe serve de suporte. Uma outra ambiguidade está localizada na Constituição brasileira, promulgada em outubro de 1988 e com processo de revisão aberto em outubro de 1993, por falta de referências mais realistas sobre o precário sistema estatal brasileiro. Foram promulgados direitos e deveres sem as necessárias contrapartidas baseadas em L'ÉTAT ET LE MARCHÉ AU BRÉSIL 375 recursos efetivos para a implantação real. A legislação complementar, que deveria ser elaborada a partir de 1989, evoluiu muito pouco até o momento. Assim, institutos jurídicos fundamentais ligados a um conceito formal e avançado de cidadania estão pairando no vácuo da falta de legislação. Este é o caso exemplar do mandado de injunção que, por alegada falta de meios (orçamento e pessoal) concedidos ao poder judiciário, não tem sido implementado de acordo com a lei definitória, inscrita na Constituição de 1988, em função da defesa efetiva do cidadão desprovido frente à possibilidade de implementação de políticas públicas. Ou seja, por falta de considerações conectadas à história real dos processos de representação e de processamento de demandas — no âmbito do sistema político brasileiro — a Constituição democrática de 1988 paira no ar como um arco de possibilidades não preenchidas. No caso de análises sobre "déficits sociais" (falta de educação básica, precariedade da presença estatal no ensino superior, baixa cobertura em saúde e assistência pública, desorganização do sistema previdenciário, falta de transporte coletivo, etc.) o mesmo viés parcial tem afetado os resultados. Propõem-se metas globais públicas a serem atingidas, sem a pertinente previsão dos meios institucionais e dos recursos econômicos para tais implementações. Outra ambiguidade está materializada no próprio funcionamento dual da sociedade econômica brasileira. Crescimento baseado numa minoria de consumidores e produtores formais (cerca de 30 % da população), a formação social brasileira tem gerado uma massa enorme de desviantes. Estes não têm encontrado formas de integração societária, e assim têm alimentado a proliferação de massas marginais fora dos controles estatais. O comportamento característico de uma sociabilidade marginal é hoje traço típico e majoritário, especialmente nas camadas urbanas das maiores cidades brasileiras. Essas forças componentes das novas ondas massivas de marginalização sócio-econômica não têm expressão política própria no sistema representativo. Seu papel como lumpesinato político ainda é uma incógnita. O avanço político das forças progressistas deverá se confrontar com o fenômeno, esperandose que a repressão e o controle não sejam as únicas alternativas disponíveis. De qualquer modo, este se configura como o maior desafio político no futuro imediato. DESAFIOS DA MODERNIDADE Além das dificuldades estruturais, fica evidente que as possibilidades políticas também encerram enormes obstáculos para o pleno esclarecimento dos caminhos futuros que poderão ser tomados pelo Brasil. A crise brasileira impõe desafios contundentes : — consolidação do processo democrático ; — construção da cidadania social ; — redefinição do modelo econômico e inserção internacional ; 376 Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT — definição do estilo de modernidade. Sem o enfrentamento destas dimensões mutuamente dependentes, será impossível ao país romper os impasses que o tem paralisado, especialmente a partir dos anos 1980. O processo político, ainda em fase de consolidação, tem que enfrentar questões elementares em uma ordem democrática. No caso brasileiro, o mais evidente são matérias relativas à representação das populações estaduais no parlamento, com o fenômeno da subrepresentação política das áreas mais densas do país ; a legislação eleitoral que permite "siglas partidárias de aluguel" ; o sistema de prebendas adjudicado à representação parlamentar e a manipulação de fundos para as campanhas políticas. O encaminhamento destas questões específicas, todavia, depende do enfrentamento da problemática social como um todo. Por sua vez, a construção da cidadania social tem a ver com o gerenciamento dos conflitos criados pelo extremo dualismo da sociedade brasileira. A marginalidade massiva nas grandes cidades, por exemplo, requer um tratamento inadiável. O mesmo ocorre no setor rural, onde 25 % dos trabalhadores canavieiros da zona da mata de Pernambuco é composta por crianças de 7-17 anos, num universo de 200 000 pessoas (Centro Josué De Castro, 1993), por exemplo. É o Germinal brasileiro... Esta situação é disfuncional para a existência de uma sociedade de mercado democrática. Por sua vez, os aspectos econômicos da grave crise brasileira são a síntese dos paradoxos das ambiguidades que caracterizam o quadro atual. Elementos como a quebra do padrão histórico de acumulação, as dificuldades estruturais de realizar um ajustamento no padrões do Consenso de Washington, a perda de capacidade de financiamento do Estado e sua virtual falância decorrente, a indecisão das elites diante de alternativas, estão claros. No entanto, eles se realizam num contexto que frequentemente confundem o analista. Daí a dificuldade de objetivar-se um conhecimento eficaz sobre uma sociedade de dimensões como o Brasil. Nesta linha, técnicos do Banco mundial, em seminário realizado em novembro de 1993, concluiram que "não compreendem o fenômeno brasileiro" (Gazeta Mercantil, 1993). Os técnicos "suspenderam trabalhos e a definição de posições e decidiram instaurar uma ampla discussão sobre o Brasil, perplexos com a resistência da inflação e a capacidade dos brasileiros de se adaptar a ela". Efetivamente, não é fácil entender um país que, com uma taxa de inflação superior a 2 000 % ao ano, apresenta o segundo maior crescimento na América Latina, superando os aderentes preferenciais ao modelo internacional. O Brasil produzirá este ano pelos menos US$ 21 bilhões a mais do que produziu no ano passado, ou "quase um Chile" ! Nesta economia coexistem, comprovadamente, formas modernas e trabalho escravo, no entanto. A mesma ambivalência se apresenta na questão da inserção do país na economia internacional : enorme capacidade de desenvolvimento de um projeto nacional autônomo, asfixiado pela indecisão das elites em assumir e executar este projeto. Todos estes fatores encaminham à questão da definição do estilo de modernidade a ser encaminhado pelas elites políticas e econômicas. Trata-se de contornar o dualismo constitutivo da formação social, buscando a integração às L'ÉTAT ET LE MARCHÉ AU BRÉSIL 377 conquistas modernas do mundo contemporâneo. Esta decisão está distante das pautas de decisão brasileira, configurando assim um enorme paradoxo. Integração social, desenvolvimento econômico, democratização política — no caso brasileiro — não podem estar calcados simplesmente em modelos históricos realizados no primeiro mundo. É o grande desafio, acima das crenças no automatismo do funcionamento das estruturas sócio-econômicas! Paris, janvier 1994 Maurício DIAS DAVID Université Paris XIII, GREITD, CRBC/EHESS Benício VIEIRO SCHMIDT IEDES/GREITD, Paris et Universidade de Brasilia - UNB 378 Maurício DIAS DAVID - Benício VIERO SCHMIDT BIBLIOGRAFIA BOSI (A.), 1992, Dialética da colonização, São Paulo, Cia. das Letras. BRESSER PEREIRA (L. C.), A crise do estado. Ensaios sobre economia brasileira, São Paulo, Nobel. CENTRO JOSUÉ DE CASTRO, 1993, Relatório de pesquisa sobre trabalho infantil na agricultura, Recife, Centro Josué de Castro. NASCIMENTO (E) & BARREIRA (C.), 1993, Brasil urbano. Cenários da ordem e da desordem, Rio de Janeiro, ed. José Olympio. Problèmes d’Amérique latine, Paris, 1993, n° 9. RAWLS (J.), 1993, Justice et démocratie, Paris, Seuil. SANTOS (W. G. dos), 1993, As razões da desordem, Rio de Janeiro, Rocco. SCHMIDT (B.), 1983, O Estado e a política urbana no Brasil, Porto Alegre, IPM. SILVA, COUTO E (G.), 1955, Planejamento estratégico, Rio de Janeiro, ed. José Olympio. 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