fontes literarias

Propaganda
FONTES
LITERÁRIAS:
CONTRIBUIÇÕES
DO
BILDUNGSROMAN
PARA
ESTUDOS E PESQUISAS NO CAMPO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
LÉO ANTÔNIO PERRUCHO MITTARAQUIS - UNIVERSIDADE FEDERAL DE
SERGIPE.
[email protected].
PALAVRAS-CHAVE:
BILDUNGSROMAN,
LITERATURA, EDUCAÇÃO.
Este trabalho é resultado de subsídios proporcionados pelo processo de construção do
projeto de pesquisa em andamento (O aprendizado de Stephen Dedalus em James Joyce:
cultura escolar, formação religiosa e literatura sob a perspectiva do Bildungsroman) e que está
vinculado à linha de estudos e pesquisa intitulada História, Sociedade e Pensamento
Educacional do Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.
Neste campo, visa-se colaborar para o desenvolvimento das atividades acadêmicas inerentes a
esta linha de estudo, levando em consideração que, de acordo com a mesma, compreendem-se
as formas de educação como passíveis de ocorrer tanto no âmbito da cultura escolar, como
mediante ações extraescolares que também promovem o aprendizado (as produções inerentes
ao campo literário estão incluídas no espectro dessas ações).
O objetivo deste artigo é perceber e analisar, nas obras selecionadas1, aspectos da
História da Educação relacionados a este campo: formação doméstica2; educação religiosa;
práticas educativas no internato; cultura escolar (incluindo cultura material), entre outros que
eventualmente se façam perceber no desenvolvimento da pesquisa. Identificar e compreender
as representações de instituições escolares e de práticas educativas não formais nos romances
selecionados. Perceber as potencialidades do estudo da História da Educação através da
investigação do gênero literário Bildungsroman.
Quanto à metodologia, o trabalho proposto vincula-se aos pressupostos da História
Cultural, tendo como foco prioritário a História da Educação, a Literatura e, no âmbito desta
última, o gênero Romance de Formação. O conjunto de princípios (fundamentos teóricometodológicos) a partir dos quais será possível levar a efeito a investigação proposta valer-seá dos conceitos apropriados pelos campos inter-relacionados (História da Educação e
Literatura), a saber: romance de formação (Bildungsroman), cultura escolar, aprendizado,
representações3 e pertencimento.
Ainda tratando-se, aqui, dos procedimentos metodológicos, cumpre obsevar a leitura
sucessiva e sistemática das obras adotadas; a identificação textualmente explicitada dos
principais aspectos constituintes do objeto; a descrição e análise das representações contidas
nas obras a partir das categorias já citadas. Estes procedimentos são tomados no intento de
proporcionar ao pesquisador maior familiaridade com os problemas, visando-se torná-los
mais explícitos, além de produzir suportes para a construção das hipóteses. E isto envolveu
levantamento bibliográfico, análise de exemplos (estudos/pesquisas similares e teorias
diretamente relacionadas com a natureza do projeto) que estimulam a compreensão. Além
disso, foi mantido, constantemente, o exercício de aproximação das referências inerentes à
trajetória escolar dos personagens, principalmente os personagens criados por James Joyce4
(sua presença no âmbito da cultura escolar) e as teorias interpretativas das normas e práticas
da cultura escolar, da história das disciplinas escolares5 e cultura material escolar. As ações de
leitura de produções literárias, as descrições, as caracterizações e compreensões destes textos
(no intuito de proporcionar uma avaliação crítica dos mesmos), as classificações, as
teorizações e o conjunto de problemas concernentes ao objeto foram levados a efeito sob a
ótica da História da Educação.
No campo de estudos e pesquisas em História da Educação, este artigo se insere no
gênero romance de formação (Bildungsroman). A expressão Bildungsroman (o Dicionário
Alemão-Português, da Porto Editora6, reconhece a expressão como palavra composta) reúne
dois termos: bildungs e roman. Na junção dos termos é possível perceber-se o significado:
romance de construção, de formação ou de educação.
No que concerne à definição do gênero literário Bildungsroman, o termo pode ser
definido como um romance cujo tema fulcral é o desenvolvimento moral, físico, psicológico e
intelectual do personagem principal, sendo este geralmente jovem. Romances que possuem
características do gênero Bildungsroman descrevem a trajetória de desenvolvimento de um
jovem protagonista ou o desenvolvimento do personagem desde a tenra infância à maturidade.
Romances que possuem características do gênero Bildungsroman descrevem a
trajetória de desenvolvimento de um jovem protagonista ou o desenvolvimento do
personagem desde a tenra infância à maturidade. O protótipo literário do Bildungsroman é o
livro "Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister", escrito pelo escritor alemão Joham
Wolfgang Von Goethe. A sequencia contínua de fatos ou operações que apresentam certa
unidade ou que se reproduzem com certa regularidade na construção do discurso educacional
se manifesta nas produções literárias inseridas no gênero Bildungsroman. O escritor se
manifesta ciente da importância do exercício de orientação do desenvolvimento intelectual do
sujeito, ou seja, da educação (LUKACS:1994). Ao produzir um ensaio sobre "Os anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister", Georg Lukacs observa que o autor da obra, Goethe,
detém a seguinte percepção pedagógica:
Ele atribui uma importância extraordinária à consciente orientação do
desenvolvimento humano, à educação. Os complicados mecanismos da torre,
das cartas de aprendizado etc., servem precisamente para sublinhar esse
princípio consciente e educativo. Com traços muito sutis e discretos, com
algumas breves cenas, Goethe dá a entender que a evolução de Wilhelm
Meister foi, desde o princípio, controlada e conduzida de uma forma
determinada (LUKACS, 1994).
Percepção semelhante é manifestada por Yves Stalloni, professor de Letras Modernas
da Universidade de Toulon: "Trata-se da narrativa da aprendizagem, da transformação de um
jovem" (STALLONI, 2007, p. 106).
O Bildungsroman ainda detém um alto grau de importância como referência nos
estudos acadêmicos. Fato que legitima, tecnicamente, a orientação por esta perspectiva
literária deste projeto. O termo tem sido alvo do interesse de diversos estudiosos e
pesquisadores, tanto na Europa, nos Estados Unidos, como no Brasil. Vale destacar, na
produção brasileira, o trabalho de alta densidade publicado pela professora de literatura alemã
da UNESP, Wilma Patrícia Maas, "O cânone mínimo - O Bildungsroman na história da
literatura”, no qual a autora observa que:
As circunstâncias de origem do Bildungsroman são contemporâneas desse
esforço pela atribuição de um caráter nacional à literatura de expressão
alemã. Trata-se de uma forma literária de cunho eminentemente realista,
com raízes fortemente vincadas nas circunstâncias históricas, culturais e
literárias dos últimos trinta anos do século XVIII europeu. Compreendido
pela crítica como um fenômeno "tipicamente alemão", capaz de expressar o
"espírito alemão" em seu mais alto grau, o Bildungsroman firmou-se como
um conceito produtivo em quase todas as literaturas nacionais de origem
européia, tendo sido assimilado também nas literaturas mais jovens, como as
americanas (MAAS, 2000).
O conceito de Bildungsroman tem provocado interesse constante. Além de Wilma
Patrícia Maas, o germanista e professor de Teoria e Literatura Comparada, Marcos Vinicius
Mazari, ao citar "Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister", observa que: "No centro do
romance está a questão de formação do indivíduo, do desenvolvimento de suas
potencialidades sob condições históricas dadas" (MAZZARI, 1999).
Observe-se que, se a produção de um dado discurso resulta em obra de cunho literário,
artístico ou técnico-científico, e esta, ainda que seja da forma mais elementar, dispõe dados
que, percebidos, reunidos, analisados e interpretados, produzem conhecimento, vale dizer,
formação/educação, o objeto literário (que no status de prioridade, é o alvo de maior interesse
nesta produção acadêmica), mesmo produzido em ambiente extraescolar, é frequentemente
adotado pelas instituições educacionais: os autores e suas obras são referências qualificadas
no processo de formação humanística do aluno.
Entre diversos gêneros literários, interessa aqui (e, com efeito, é o objeto mesmo), o
gênero Bildungsroman: romance de formação. No intuito de fundamentar as intenções deste
trabalho, a partir dos pontos de referência supracitados, buscou-se neste artigo, como um dos
suportes teóricos para o desenvolvimento da pesquisa, o conceito de Bildungsroman. Este
termo remete às obras da literatura que tratam da formação do personagem e que trazem
traços da formação do escritor. Neste processo de formação inclui-se a educação. Nestas
condições, personagens e autores agem e interagem na e com a realidade social em maior ou
menor grau. O sujeito (personagem/autor) então se forma educacionalmente a partir de
condições e de situações do entorno, porém, mantém a si mesmo como o centro gravitacional
de todo o processo, mesmo quando responde aos estímulos exteriores.
A magnitude e consciência das ações que influem em sua formação (por iniciativa
própria e por meio dos educadores) se apresentam relacionadas a uma dada fase da sua vida
(infância, adolescência, maturidade). Sua perspectiva do Eu se mantém, em certa medida,
incólume, não obstante os conflitos que enfrenta. Segundo Lukács:
Por isso, o ideal que vive nesse homem e lhe determina as ações tem como
conteúdo e objetivo encontrar nas estruturas da sociedade vínculos e
satisfações para o mais recôndito da alma. Desse modo, porém, ao menos
como postulado, a solidão da alma é superada. Essa eficácia pressupõe uma
comunidade íntima e humana, uma compreensão e uma capacidade de
cooperação entre os homens no que respeita ao essencial. Mas essa
comunidade não é nem o enraizamento ingênuo e espontâneo em vínculos
sociais e a consequente solidariedade natural do parentesco (como nas
antigas epopeias), nem uma experiência mística de comunidade que, ante o
lampejo súbito dessa iluminação, esquece e põe de lado a individualidade
solitária como algo efêmero, petrificado e pecaminoso, mas sim um lapidarse e habituar-se mútuos de personalidades antes solitárias e obstinadamente
confinadas em si mesmas, o fruto de uma resignação rica e enriquecedora, o
coroamento de um processo educativo, uma maturidade alcançada e
conquistada (LUKÁCS, 2000).
A perspectiva do Bildungsroman, no que concerne à percepção que se deve ter do
personagem concebido para e na obra literária, se afasta da concepção mitificada do sujeito
moralmente obrigado à sociabilidade extrovertida, sempre acessível e pronto a participar,
numa condição dada como natural, sob as normas de procedimento predefinidas, de uma
comunidade; cumprir obrigações impostas pelos valores que constituem os laços familiares;
aderir a uma ideologia ou crença religiosa.
O romance de formação (Bildungsroman) traz em sua narrativa, a trajetória de vida do
personagem e dos métodos utilizados, de acordo com os valores do entorno estabelecidos para
este fim, no intuito de assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral
desse sujeito.
O início dessa trajetória de vida é configurado, comumente, no âmbito familiar
(JOYCE, 2012). A educação neste perímetro leva em conta a produção de dados e atividades
voltadas para a determinação da conduta da criança, para o rudimentar exercício de
conhecimento e para o imaginário. Nesse âmbito (familiar) a criança toma consciência de suas
funções, das obrigações e do papel que desempenha diante dos pais e demais pessoas que lhes
forem apresentadas como referência de autoridade. É o início da socialização primária, um
laboratório para a criança experimentar níveis de relação social e os conceitos morais
(limitação de gestos, oralidade e pensamento) que se ampliarão mais adiante na cultura
escolar, onde o filho é investido involuntariamente com o status de aluno, o que o obrigará a
buscar algum nível de adaptação, no intuito de sobreviver no novo ambiente (JOYCE, 2012).
Este se manterá tanto acolhedor quanto hostil. Contradições próprias de um corpus social, no
qual se exige capacidade mínima de articulação com a comunidade.
O outro espaço, presente e tomado de maneira amplamente funcional pelo escritor na
construção da narrativa que foca a trajetória de vida do personagem, é o da cultura escolar
(seu primeiro contato com livros didáticos; com as condições de conduta impostas e
representadas mediante a autoridade pedagógica; os conflitos vividos pelo personagem diante
do discurso educacional da instituição escolar; a evolução intelectual do personagem). O
discurso educacional também se faz presente no exercício do autoconhecimento e a tomada de
consciência da alteridade e, ao mesmo tempo, o ver-se diante de uma contraeducação (no
sentido que se entende o termo contracultura), que se manifesta nos diálogos travados por
Hans Castorp com Setembrini. E a própria trajetória de vida do escritor como intelectual.
(MANN:2005). Portanto, o uso estético da linguagem escrita, em geral de forma híbrida,
conciliando o discurso direto e o indireto, deve ser percebido como fonte, qualificado como
fonte literária, útil aos estudos e pesquisas realizados no campo da História da Educação.
Ora, não há Literatura sem leitura, a qual, sob a percepção dos estudos em História,
Sociedade e Pensamento Educacional é apreendida como prática cultural. Segundo Roger
Chartier, os campos da História da Leitura (no qual a Literatura está incluída) e da História da
Educação podem estabelecer diálogos convergentes de diversas maneiras. (CHARTIER,
2001). O termo mesmo, leitura, é indissociável da aprendizagem. É nessa perspectiva que
James Joyce concebe o personagem Stephen Dedalus nas obras "Retrato do artista quando
jovem" e "Ulisses". Ainda que o discurso interior (seus pensamentos) do personagem se
constitua em momentos marcantes da narrativa, o autor não o isola do mundo. Pelo contrário:
sua individualização é uma resposta aos eventos que se dão a sua volta.
A educação no âmbito familiar leva em conta a produção de dados e atividades
voltadas para a determinação da conduta da criança, para o rudimentar exercício de
conhecimento e para o imaginário. No caso de "O retrato do artista quando jovem" a narrativa
é iniciada tratando de alguns desses aspectos. James Joyce apresenta as linhas paterna e
materna de ação pedagógica e os atores pedagógicos coadjuvantes (governanta e tio).
Ora, a grande pluralidade institucional no mundo social implica também a
distribuição social de conhecimentos dentro das sociedades modernas.
Assim, há que se reconhecer o papel original da família na aquisição de
padrões comuns e de um quadro social de referências relativas a um sistema
social. Nesse processo as crianças vão aprendendo a cumprir papéis e
assumir valores básicos de referência a esse sistema, dando-se tanto uma
ação objetiva da sociedade para a pessoa quanto uma ação subjetiva de
recepção por parte da mesma. Nesse sentido, a família é um agente original e
imediato de socialização da criança (CURY, 2006).
Nesse âmbito (familiar) a criança toma consciência de suas funções, das obrigações e
do papel que desempenha diante dos pais e demais pessoas que lhes forem apresentadas como
referência de autoridade. É o início da socialização primária, um laboratório para a criança
experimentar níveis de relação social e os conceitos morais (limitação de gestos, oralidade e
pensamento) que se ampliarão mais adiante na cultura escolar, onde o filho é investido
involuntariamente com o status de aluno, o que o obrigará a buscar algum nível de adaptação,
no intuito de sobreviver no novo ambiente. Este se manterá tanto acolhedor quanto hostil.
Contradições próprias de um corpus social, no qual se exige capacidade mínima de
articulação com a comunidade.
O contato com a música, mediante a execução de peças em saraus domésticos, ainda
que reúna poucas pessoas da família (mãe, pai, filho, tio e mais alguns parentes)7 é quase
como um ritual de iniciação no campo estético que, independentemente de qual discurso
artístico seja (musical, pictórico, literário, dramatúrgico), proporciona uma primeira
aproximação com a realidade da arte e com as implicações do ato consciente de percebê-la.
No caso específico do objeto em questão, a música apresentada ao menino por sua mãe,
mediante composições tocadas no piano, é o contato primeiro do garoto com a estética,
oferecendo-lhe um privilégio: conhecer em casa, mesmo dentro de certas limitações, o que o
mundo lhe apresentará de forma mais ampla posteriormente. Quanto a isso, observa Bourdieu:
A imersão em uma família em que a música é não só escutada (como ocorre
nos dias de hoje com o aparelho de alta fidelidade ou rádio), mas também
praticada (trata-se da mãe musicista mencionada nas memórias burguesas) e,
por maior força da razão, a prática precoce de um instrumento de música
"nobre"- e, em particular, o piano - têm efeito, no mínimo, produzir uma
relação mais familiar com a música que se distingue da relação sempre um
tanto longínqua, contemplativa e, habitualmente, dissertativa de quem teve
acesso à música pelo concerto e a fortiori, pelo disco; aliás, trata-se de uma
situação mais ou menos semelhante à relação com a pintura daqueles que só
a descobriram tardiamente, na atmosfera escolar do museu, que se distingue
da relação entabulada com ela por quem nasceu em um universo assombrado
pelo objeto de arte, propriedade familial e familiar, acumulada pelas
sucessivas gerações, testemunho objetivado de sua riqueza e de seu bom
gosto, às vezes "feito em casa" à distância das geleias e da roupa bordada
(BOURDIEU, 2007).
Assim, Stephen Dedalus é uma criança privilegiada no que diz respeito a ser
apresentada à realidade da percepção estética. Terá consciência mais tarde de que a música
(uma arte) é um diferencial que deve se orientar pelo equilíbrio, pela harmonia, o que,
consequentemente, lhe empresta beleza. A prática do piano assistida por Stephen (o
personagem) é familiar a Joyce (o autor), pois, na infância, em casa, era comum que os
amigos de seus pais viessem passar a noite tocando o instrumento. A memória, nesse caso, é
uma memória dos momentos aconchegantes em família e também dos primeiros momentos do
seu processo de formação.
Nesse sentido, a prática musical, por exemplo, apresentada ao personagem quando
ainda criança é exemplo do que Bourdieu e Passeron denominam exercício do poder
matrilinear. Ou seja, como tal relação é compreendida neste projeto: o compromisso de
formação assumido pela mãe se fundamenta na relação marcada pela ideia de que a presença e
ajuda do outro são necessárias para preservar sua própria situação social ou para poder viver e
aprender em segurança.
Senão é o caso de se ignorar a dimensão propriamente biológica da relação
de imposição pedagógica, isto é, a dependência biologicamente
condicionada que é correlativa da impotência infantil, é preciso ainda
afirmar-se que não se pode fazer abstração das determinações sociais que
especificam em todos os casos a relação entre os adultos e as crianças.
Inclusive quando os educadores não são outros senão os pais biológicos, isto
é, da as determinações ligando-se à estrutura da família ou à posição da
família na estrutura social (BOURDIEU; PASSERON, 2008).
O garoto Stephen Dedalus é apresentado pelo autor, James Joyce, em "Retrato do
artista quando jovem", como totalmente dependente da mãe até um determinado momento de
sua vida (de Stephen). Essa dependência filho/mãe, esse sentimento de necessidade constante
da presença materna, não é rara em literatura. Também se encontra, por exemplo, no primeiro
volume de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust: o pequeno não consegue dormir
sem que a mãe venha lhe dar o último beijo do dia 8.
Isso não quer dizer, no caso do personagem Stephen Dedalus, que sua formação
educacional, que ascende ao status de erudita (capítulos IV e V de "Retrato do artista quando
jovem") se deva tão somente às orientações estéticas de sua mãe. O colégio jesuíta onde é
internado, por sua natureza institucional mesma, encarrega-se de ampliar sua formação. O
futuro professor saberá, ainda que sofra alguns reveses, apreender dados que lhe serão mais
que úteis na elaboração de sua visão de mundo. É, pois, no colégio jesuíta, sob o regime de
internato, que Stephen Dedalus tem seu primeiro e marcante contato com a cultura escolar.
No que concerne aos objetivos supracitados deste artigo, James Joyce oferece a
possibilidade de se compreender a dinâmica desta cultura, isto é, como o discurso de
disciplina e de transmissão de conhecimento opera. Como também perceber as relações
sociais entre alunos/alunos e alunos/autoridade pedagógica (professores, prefeitos, diretor).
No entender de Diana Gonçalves Vidal, a percepção das possibilidades inerentes ao estudo da
cultura escolar implica que ao incorrer
No desafio de compreender a conformação da cultura escolar em suas diferentes
dimensões, sincrônicas e diacrônicas, é essencial distinguir os modos como ela se
manifesta nos objetos produzidos pela e para a escola e nas práticas instaladas no
seu interior pela ação dos sujeitos escolares (VIDAL, 2009).
Para que se possa levar adiante a distinção proposta por Vidal, faz-se necessário que se
busque compreender melhor o conceito de cultura escolar. Em Dominique Julia, sob a ótica
deste projeto, é possível encontrar larga explicação da expressão. Segundo o historiador
francês:
Poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que
definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de
práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou
simplesmente de socialização). Normas e práticas que não podem ser
analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são
chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, utilizar dispositivos
pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores
primários e demais professores. (JULIA, 2001).
No que concerne a este artigo, observa-se que o tema apresenta suporte, em seu
discurso, também no exercício da memória. E a recordação é constituída, nesse caso, por
referências produzidas, também e principalmente, no âmbito escolar. Nesse sentido, é
indispensável o aporte de Augustin Escolano, que percebe, na manifestação da memória do
sujeito sobre sua trajetória de formação no âmbito escolar, reflexões sobre sua formação:
Es posible que al reactivar los contenidos de la memoria los sujetos
reflexionen sobre los aprendizajes personales y sociales de aquella lejana
etapa de su desarrollo y sobre las permanencias, metamorfosis y cambios de
las pautas de cultura que se gestaron en las primeras experiencias formativas.
Todos estos patrones con que nos modeló la cultura escolar constituyen una
bildung compartida, una sociabilidad común que nos permite entendernos
como miembros de una misma generación y como herederos, desde la óptica
de las continuidades, de una tradición disponible que, si bien está sujeta a
cambios y transformaciones, también asegura determinadas pautas culturales
estables (ESCOLANO, 2011).
Portanto, a narrativa joyceana sobre os anos de aprendizagem de Stephen Dedalus em
"O retrato do artista quando jovem", é, concomitantemente, uma reconstituição pessoal (mas
que, todavia, se vale de elementos familiares ao campo da História da Educação) da cultura
escolar (em espaços definidos para a constituição e manutenção desta cultura) que o autor
vivenciou e que se deixou representar (nesta cultura) por um personagem que traz as
características que contribuem para a compreensão de que as obras abordadas (em menor ou
maior grau) neste artigo se insere no gênero Bildungsroman, romance de formação.
A percepção da cultura escolar é indissociável da cultura material escolar e, por
conseguinte, do espaço escolar. Este último é o campo tanto físico como simbólico (objetivo e
subjetivo) em que um tipo de cultura se manifesta.
Ora, o termo cultura, aqui, deve ser compreendido como atividade humana que, no
caso, é caracterizada como escolar. Assim, o local, sob as configurações específicas,
representa, com suas disposições, a cultura própria da escola. Segundo Viñao Frago:
Qualquer atividade humana precisa de um espaço e de um tempo
determinados. Assim acontece com o ensinar e o aprender, com a educação.
Resulta disso que a educação possui uma dimensão espacial e que, também,
o espaço seja, junto com o tempo, um elemento básico, constitutivo, da
atividade educativa (VIÑAO FRAGO, 2001).
A trajetória pedagógica do personagem principal, nas produções literárias pertencentes
ao gênero Bildungsroman inicia-se, primeiramente, no ambiente familiar. Mas logo prossegue
no âmbito escolar, no espaço físico descrito por James Joyce. Pois o autor não ignora o papel
do lugar no processo de formação do personagem.
No que concerne a este artigo, em que a trajetória pedagógica é parte principal da
estruturação temática e é, como já foi observado, proveniente do processo de estudo e
pesquisa do objeto dado, cultura escolar é um conceito a ser utilizado levando-se em
consideração realidades componentes dessa cultura.
Fundamentando-se, ainda mais, a funcionalidade pedagógica deste estudo, aponta-se,
aqui, a natureza heurística também inerente ao discurso no âmbito do gênero Bildungsroman.
A trajetória de vida/aprendizagem implica não só no conhecimento obtido via ação direta do
preceptor, mas, também, do ato individual volitivo e autônomo de conhecer. O que sugere um
processo de crescimento, de consciência teleológica (conhecer em nome de um fim),
compromisso existencial que não pode depender somente dos insumos provenientes do
pensamento pedagógico e formativo institucional, seja este religioso ou laico. Até por que, é
sabido que, a partir dos anos sessenta do século passado, principalmente, a concepção de
Bildungsroman foi desengajada da taxionomia ideológica e nacionalista. E, assim, as mesmas
produções literárias, outrora percebidas apenas como resposta, no campo da estética, ao
contexto histórico, foram reavaliadas, reanalisadas. Além de outras novelas e romances serem
inseridos no gênero.
Evidentemente, não se está a afirmar, aqui, o não reconhecimento contemporâneo às
relações entre estética e ideologia, retórica e realidade. Inócuo e irresponsável seria negar as
transições culturais, muito menos as íntimas ligações pessoais (ainda que varie sensivelmente
a magnitude destas) com os eventos históricos. Afinal, os personagens nascem, crescem e
tomam posição diante da realidade. E a formação não se realiza de forma suave, orquestrada
por um organismo perfeito e equilibrado: ocorrem choques, traumas, sublevações - referências
estas muito caras à narrativa literária. É óbvio que reconhecem (mediante a pena do autor),
assim como o escritor e o leitor o fazem, dadas situações sociais.
Em "Ulisses", de James Joyce, Stephen Dedalus é professor de História Romana e
sabe, ainda que sofra alguns reveses, apreender dados que lhe serão mais que úteis na
elaboração de sua visão de mundo9. Mas não é somente disso que está a tratar-se aqui.
Preocupa-se, isso sim, com o cuidado de não descambar para a mera solução dialética, a qual,
no caso, redundaria em engessamento das reflexões.
Os personagens que dão "vida" ao discurso estético do Bildungsroman experimentam
sentimentos pessoais e não totalmente transferíveis: dores e alegrias; sensações de fracasso ou
êxito. Compreendidas, certamente, em termos universais, contudo, no eixo de sua trajetória de
vida, muito próprias da criança, do adolescente ou do adulto modelado pelo escritor.
Portanto, é de entendimento, mediante a presente produção, que o estudo do objeto
pode contribuir para ampliação do número de obras pesquisadas e estudadas no segmento
(gênero) Romance de Formação, possibilitando, com este trabalho, que outros pesquisadores,
a partir do interesse despertado, sintam-se estimulados a continuar o estudo e a pesquisa do
objeto, haja vista que, dada a complexidade das obras adotadas, este artigo tenha sido
elaborado sob a ciência de que os resultados a serem alcançados estarão longe de ser
conclusivos, pois, não é visado aqui o esgotamento (e nem isso é possível) das fontes
bibliográficas, mas, sim, dentro dos limites do pesquisador, indicar possíveis caminhos para
as futuras ações de pesquisa sobre o objeto diante das inúmeras possibilidades de abordagem.
1
Predominarão as produções literárias (constitutivas de sua obra) do escritor James Joyce em razão destas
mesmas, assim como a trajetória de vida do autor, estruturarem o corpo do objeto de pesquisa para
doutoramento: O aprendizado de Stephen Dedalus em James Joyce: cultura escolar, formação religiosa e
literatura sob a perspectiva do Bildungsroman.
2
“Conjunto de práticas educativas realizadas no âmbito do espaço doméstico ou da ‘Casa’, que antecedem e se
desenvolvem paralelamente à construção, aceitação e afirmação da escola formal”. VASCONCELOS, Maria
Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de Janeiro. Ed. Gryphus, 2005, p.
xvi.
3
“Articulação de três modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de
classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas através das quais a realidade é
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer
uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e
uma posição; por fim as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns ‘representantes’ (instâncias
coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da
comunidade”. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Col. Memória e
Sociedade. Lisboa: Difel, 2002, p. 23.
4
No processo de formação do personagem, concebida por James Joyce, em "Retrato do artista quando jovem", a
comunicação pedagógica entre Stephen Dedalus e a autoridade pedagógica (prefeito/professor) evoluirá, com o
tempo, a partir do progresso intelectual do aluno, para uma comunicação pedagógica informacional. Contudo,
tendo em vista as sequelas resultantes dos choques desproporcionais ocorridos entre o aluno e a autoridade, foi a
anulada a possibilidade de se estabelecer um elo e consequente franca vinculação. E o efeito da lacuna se
refletirá na visão de mundo (no que concerne, também, à cultura escolar) de Stephen Dedalus. Notadamente
quando consciente de sua posição de professor.
5
“Para o estudo das disciplinas escolares sugiro considerá-las como organismos vivos. As disciplinas não são,
com efeito, entidades abstratas com uma essência universal e estática. Nascem e se desenvolvem, evoluem, se
transformam, desaparecem, engolem umas às outras, se atraem e se repelem, se desgarram e se unem, competem
entre si, se relacionam e intercambiam informações (ou as tomam emprestadas de outras) etc. Possuem uma
denominação ou nome que as identifica frente às demais, ainda que em algumas ocasiões, como se tem
advertido, denominações diferentes mostram conteúdos bastante similares e, vice-versa, denominações
semelhantes oferecem conteúdos nem sempre idênticos. Tais denominações constituem, além disso, sua carta de
apresentação social e acadêmica. Ao mesmo tempo, as disciplinas escolares podem também ser vistas como
campos de poder social e acadêmico, de um poder a disputar. De espaços onde se entre mesclam interesses e
atores, ações e estratégias”. VIÑAO, Antonio. A história das disciplinas escolares. In: Revista brasileira de
história da educação, n° 18, set./dez. 2008, p. 204.
6
Bildungsroman: novela didático-pedagógica, romance didático-psicológico. Dicionário alemão-português. Col.
Dicionários Acadêmicos Porto Editora. Lisboa. Porto Editora, 1978, p. 102.
7
“Devin, um homem cordial com talento para tocar piano, cantava ‘Oh, rapazes, fiquem longe das meninas’.
May Joyce tocava, e John Joyce cantava canções de Balfe ou Moore, ou ‘My pretty Jane’ (encarando May
Joyce), ou ‘M’Appari’, de Martha de Flotow, ou uma das muitas centenas de baladas do tipo ‘Oh, venham
todos’, e árias. A arte da casa era a música vocal de toda sorte, cantada indiscriminadamente quanto a sua
qualidade, mas com habilidade surpreendente”. ELLMAN, Richard. James Joyce. São Paulo: Ed. Globo, 1989,
p. 42.
8
"Quando subia para me deitar, meu único consolo era que mamãe viria beijar-me na cama. Mas tão pouco
durava aquilo, tão depressa descia ela, que o momento em que a ouvia subir a escada e quando passava pelo
corredor da porta dupla o leve frêmito de seu vestido de jardim, de musselina branca, com pequenos festões de
palha trançada, era para mim um momento doloroso". PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol I.
No Caminho de Swan. Rio de Janeiro. Ed. Globo, 1987, p.18.
9
O perfil de professor de Stephen Dedalus é bem observado por Declan Kiberd, professor, pesquisador e escritor
irlandês, nascido em Dublin, na Introdução que produziu para o Ulysses (o tradutor optou e justificou na
apresentação o nome/título com “y” ao invés de “i”) traduzido pelo professor da Universidade do Paraná e
tradutor Caetano W. Galindo: “Enquanto ensina história romana no segundo capítulo, Stephen contempla a
futilidade da guerra, com um pensamento que reflete os custos da vitória para Pirro na Antiguidade, mas também
a consciência de Joyce sobre o bombardeio de construções em 1917”. JOYCE, James. Ulysses. Tradução de
Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2012, p. 13.
Referencias bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. A distinção – Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre, RS: Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução – Elementos para uma teoria
do sistema de ensino. Petrópolis: Ed. Vozes, 2008.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Col. Memória e
Sociedade. Lisboa: Difel, 2002.
CURY, Carlos Roberto Jamil. Educação escolar e educação no lar: espaços de uma polêmica.
In: Revista Educação e Sociedade, vol. 27, n. 96, out. Campinas: 2006. p. 667
ELLMAN, Richard. James Joyce. São Paulo: Ed. Globo, 1989.
ESCOLANO, Augustin. Más allá del espasmo del presente – la escuela como memoria. In:
Revista História da Educação. Rio Grande do Sul v.15, nº33, jan/abr, 2011, p. 10.
GOETHE, Joham Wolfgang von. Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister. São
Paulo: Ed. Ensaio, 1994.
JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2012.
JOYCE, James. Ulysses. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2012.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. In: Revista Brasileira de
História da Educação. Campinas: Editora Autores Associados/SBHE, 2001, p. 9.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editoras 34 e Duas Cidades, Col.
Espírito Crítico, 2000.
LUKACS, Georg. Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister. Anexo. In: GOETHE,
Joham Wolfgang von. Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister. São Paulo: Ed.
Ensaio, 1994.
MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O cânone mínimo – O Bildungsroman na história
da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Nova Fronteira, 2005.
MAZZARI, Marcus Vinicius. Romance de formação em perspectiva histórica: O Tambor
de Lata de Günter Grass. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol I. No Caminho de Swan. Rio de
Janeiro. Ed. Globo, 1987.
Dicionário alemão-português. Col. Dicionários Acadêmicos Porto Editora. Lisboa. Porto
Editora, 1978.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários: A comédia, o drama, a tragédia. O romance, a
novela, os contos. A poesia. Rio de Janeiro: Ed. DIFEL, 2007.
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação no Brasil de
Oitocentos. Rio de Janeiro. Ed. Gryphus, 2005.
VIDAL, Diane Gonçalves. No interior da sala de aula: ensaio sobre cultura e prática
escolares. In: Currículo sem Fronteiras. www.curriculosemfronteiras.org/index.htm.v.9, n.1,
Jan/Jun 2009, p. 25.
VIÑAO, Antonio. A história das disciplinas escolares. In: Revista brasileira de história da
educação, n° 18, set./dez. 2008, p. 204.
Download