GESTÃO DE PESSOAS: ANÁLISE CRÍTICA DAS ESTRATÉGIAS DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO Resumo: O objetivo deste artigo é analisar de forma crítica como a gestão de pessoas, enquanto estratégia de organização do trabalho inserida nas novas configurações da reestruturação produtiva pode intensificar a exploração da força de trabalho, direcionar valores humanos em hábitos funcionais para a produtividade e repercutir na saúde dos trabalhadores. Nesse cenário, discutiu-se acerca do mecanismo de controle sobre a subjetividade do trabalhador para a manutenção da capacidade produtiva, com a finalidade de compreender tais mecanismos e quais as possibilidades de desenvolver essas estratégias éticoorganizacionais num capitalismo amoral. Para tanto, buscou-se o conceito de “estranhamento do ser social” que permite analisar os elos subjetivos e objetivos através dos quais os homens se adequam à finalidade produtiva ou resistem aos instrumentos engenhosos da organização do trabalho. A metodologia qualitativa foi desenvolvida a partir da observação participante e do estudo de caso de uma empresa pública de grande porte para compreender o significado das estratégias constituídas na esfera de gestão de pessoas que contribuem para a precarização social do trabalho. Palavras-Chave: Trabalho, Gestão de Pessoas, Saúde, Precarização. 1 XIV Encontro Nacional da ABET – 2015 – Campinas/UNICAMP GT (Grupo de Trabalho) escolhido: Condições de Trabalho e Saúde GESTÃO DE PESSOAS: ANÁLISE CRÍTICA DAS ESTRATÉGIAS DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO Ana Claudia C. Mendonça Semêdo e Tássia Cristina P. Sampaio Nascimento Doutoranda em Ciências Sociais e Mestranda em Ciências Sociais Universidade Federal da Bahia - UFBA 2 Introdução Este artigo pretende discutir como a técnica de gestão de pessoas pode causar efeito reverso ao propósito de adaptação do trabalhador ao contexto organizacional, através da discussão e reflexão sobre o processo de estranhamento do ser social e do desenvolvimento dos mecanismos ético-organizacionais da organização do trabalho num capitalismo amoral. Para compreender esse objetivo, construiu-se uma reflexão sobre tais categorias de análise a partir de uma metodologia qualitativa com o intuito de verificar como se manifesta o processo de estranhamento do ser social frente aos instrumentos engenhosos de humanização do cenário laboral e quais os impactos para a saúde do trabalhador. Para tanto, o artigo está dividido em três perspectivas de análise que reúnem as contribuições teóricas dos estudiosos sobre o tema, ao tempo em que problematiza a conexão e mediação entre os significados de gestão de pessoas e estranhamento do ser social. Dessa forma, a primeira parte aborda o próprio conceito de gestão de pessoas e o seu contexto; a segunda perspectiva de análise discute os mecanismos ético-organizacionais no âmbito do capitalismo amoral; e a terceira perspectiva de análise reflete sobre o “estranhamento do ser social” e sua manifestação no contexto organizacional do trabalho. 1. Metodologia Frente ao propósito de discutir como as estratégias desenvolvidas sob a ótica de gestão de pessoas pode causar comportamentos humanos não funcionais ao contexto organizacional, buscou-se analisar a repercussão e os respectivos impactos para a saúde dos trabalhadores. Para compreender esse objetivo, construiu-se uma reflexão a partir de uma metodologia qualitativa, consubstanciada na análise dos prontuários psicossociais construídos mediante o acompanhamento da equipe multiprofissional constituída pelos profissionais de Serviço Social, Psicologia e Medicina do Trabalho, na observação participante desenvolvida nas entrevistas realizadas com os empregados, e no levantamento realizado a partir do sistema de saúde da Empresa. Optou-se pela observação participante visando contemplar a 3 experiência das autoras em empresas de grande e médio porte nos setores de recursos humanos e de saúde do trabalhador. A pesquisa teve como público os trabalhadores atendidos pela área de segurança e saúde no trabalho no período de 2013-2014, e como objeto de estudo as políticas internas organizacionais e os respectivos reflexos sobre os trabalhadores. O acompanhamento realizado pela equipe interdisciplinar de saúde era desenvolvido por meio de dois programas corporativos: o Programa de Saúde Mental no Trabalho - PSMT, e o Programa de Acompanhamento Sócio-ocupacional – PAS. O PSMT tinha como objetivo principal realizar avaliação psicológica dos empregados juntamente com os exames médicos periódicos, construir a estatísticas dos adoecimentos, identificar os casos de transtornos mentais e comportamentais relacionados ao trabalho, e acompanhar a recuperação do processo de saúde dos empregados. Já o PAS tinha a finalidade de identificar os casos de afastamento por motivo de saúde que eram encaminhados para o Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, construir a epidemiologia dos adoecimentos, e orientar os empregados acerca dos direitos sociais, celetistas e previdenciários para casos relacionados e não relacionados ao trabalho. O estudo epidemiológico referente ao absenteísmo médico era construído a partir do gênero, setor de trabalho, tipos de adoecimento, pela existência ou não de nexo causal, por idade e tempo de empresa. Para o universo desta análise, priorizaram-se os adoecimentos relativos aos transtornos mentais e comportamentais, uma vez que a saúde mental é o campo que possibilita a análise e compreensão do comportamento humano frente às influências decorrentes do mundo do trabalho. Diante de tais instrumentos, observou-se que os transtornos mentais e comportamentais lideraram os afastamentos por motivo de saúde no período supramencionado. De 150 casos acompanhados, 97 eram de saúde mental. Desses, 90 apresentou pelo menos um fator problemático relacionado com o ambiente de trabalho, entre várias causas: conflitos interpessoais na equipe e entre chefia e empregado, violência psicológica, assédio moral, abuso de autoridade, perseguição da chefia, perseguição de colegas de trabalho, desrespeito ao trabalhador, mudança de atividade e setor sem 4 comunicação com o trabalhador, diminuição da remuneração sem comunicação prévia, entre outros fatores. Apesar da variedade de situações psicossociais que contribuíram para o surgimento ou agravo do transtorno mental e comportamental relacionados ao trabalho, observou-se que a cultura organizacional e as técnicas de gestão de pessoas que buscavam o controle sobre a subjetividade do trabalhador, na expectativa de adaptar o comportamento dos empregados à produtividade, tinha o efeito reverso, levando ao descontentamento, questionamento e agravo do processo de adoecimento. Do total de 97 empregados afastados por saúde mental, todos contestavam e apresentaram como um dos fatores de risco psicossocial para o adoecimento, a desvalorização do trabalhador em detrimento da priorização dos negócios da empresa, que se expressava de diversas formas, desde o controle sobre a vida do empregado às formas superficiais para conquistar a fidelidade do trabalhador. Por outro lado, foram observadas duas características que sempre estavam presentes no comportamento dos trabalhadores: aqueles que questionavam a cultura organizacional e retornavam ao trabalho, demonstrando adaptação ao ambiente de trabalho; e aqueles que questionavam e contestavam a cultura da empresa, trazendo tal descontentamento ao longo de todo o acompanhamento de sua saúde, sem êxito no processo de recuperação, e com a manutenção de longo período de afastamento, superior a dois anos. No que se refere ao primeiro grupo de trabalhadores considerados, no decorrer do acompanhamento da equipe multiprofissional, constatou-se que a maioria dos trabalhadores no processo de recuperação e tratamento do diagnóstico de transtorno mental e comportamental retornou ao trabalho, apesar da constante resistência à cultura organizacional. No entanto, apesar de retornarem ao trabalho, esses mesmos empregados apresentavam novos afastamentos pelo INSS, em períodos intermitentes, demostrando uma inconstante readaptação à realidade laboral. Quanto ao segundo grupo de trabalhadores observados, percebeu-se uma manifestação do estranhamento da cultura organizacional, pondo em análise as próprias condições de trabalho oferecidas pela Empresa. Porém, tal grupo de trabalhadores apresentava 5 longo período de afastamento, sem indicação de retorno ao trabalho até o final do período analisado. Diante de tais dados, a seguir analisaremos a categoria de estranhamento discutida por Lukács, bem como a compreensão da técnica de gestão de pessoas com o objetivo de construir um paralelo com a realidade observada neste campo de pesquisa. 2. A função da estratégia de gerir pessoas na organização do trabalho: as trajetórias da exploração do ser A administração de pessoas nas empresas/indústrias como forma de controle do trabalhador, pode-se dizer, surgiu com a administração cientifica proposta por Taylor, ele que tivera origem como trabalhador operário, conseguiu reunir uma diversidade de técnicas em uma “política” de gestão única que ficou conhecida como Taylorismo. Inicialmente implantada somente nas indústrias automobilísticas, logo essa técnica se espalhou por diversas outras. Algumas características que definiam essa forma de gestão eram a divisão entre administração/planejamento e execução das atividades, o controle do tempo e eliminação dos “tempos mortos”, a expropriação do conhecimento da atividade do operário, o controle da vida fora da empresa, e a escolha do operário padrão. Essas características foram se perpetuando em todas as empresas e se caracterizando como um padrão de administração do sistema capitalista. Esse processo se aprofundou ainda mais com a Ford. Henry Ford, que integrou e aperfeiçoou as técnicas trazidas pelo taylorismo, teve como diferencial a introdução da esteira rolante que permitiu ainda mais a eliminação dos tempos mortos e o aumento da intensidade do trabalho. Ford não só propôs um aumento na produtividade como também impulsionou o aumento no padrão de consumo que apontava para a aquisição em larga escala de produtos. Ele abarrotou o mercado com sua produção e junto com ele, todos que aderiram a esse modelo de gestão. 6 A partir daí, no final da década de 60 e início da década de 70, a “crise da superacumulação”, por conta da desaceleração do crescimento, motivou um processo de reorganização do capital, com vistas à retomada do seu patamar de acumulação e de seu projeto global de dominação. Ou seja, a crise do padrão de acumulação Taylorista - Fordista, que aflorou neste período, acarretou um processo de reestruturação produtiva visando a recuperação dos patamares de lucratividade do capital. A organização do trabalho que se seguiu denominada de "modelo japonês" de produção se expandiu, pois se mostrava como uma opção possível para a superação capitalista da crise. A grande questão, neste caso, era saber como adaptar este modelo às especificidades de cada região (ANTUNES, 2002). Esse novo modelo, conforme esclarece Antunes (2002, p. 58), é baseado numa nova forma de organização industrial. Ele pretendia constituir uma relação entre o capital e o trabalho mais favorável, tendo em vista a caracterização de um trabalho mais qualificado, polivalente, “participativo”, e multifuncional dotado de maior realização no espaço produtivo. Isso, entretanto, não se verificou, uma vez que, subjaz a essas novas formas de organizar o trabalho, houve um processo de controle e intensificação, que termina por gerar um aprofundamento dos mecanismos de alienação do trabalhador. Essas mutações repercutiram de forma profunda no âmbito do trabalho, e podem ser identificadas como a era de uma mundialização inédita do capital, apoiada num projeto político e econômico de cunho neoliberal e que se concretizou essencialmente através de uma reestruturação intensa e longa da produção e do trabalho (DRUCK, 2011). “A flexibilização do trabalho trouxe, sim, mudanças na aparência dos fenômenos, o refinamento dos discursos e a ampliação de instrumentos de controle sobre o trabalho dominado e do sequestro da subjetividade dos indivíduos.” (Franco, 2011) Harvey (1992) denominou o novo processo de reorganização do trabalho de “acumulação flexível”, em função da característica de flexibilização de processos, produtos e das relações de trabalho. Esse processo envolveu rápidas mudanças de desenvolvimento 7 desigual tanto de setores como de regiões, de tal forma a aumentar o controle e a exploração da força de trabalho. A reestruturação produtiva, portanto, deu inicio a um processo generalizado de exploração e precarização do trabalho e os seus efeitos podem ser constatados em todos os ambientes de trabalho. Mesmo com o aumento dos empregos no setor dos serviços, os paradigmas da flexibilização e precarização têm sido reproduzidos indiscriminadamente. Essas formas, pela exarcebação dos mecanismos de exploração, terminam aumentando os níveis de adoecimento e aprofundando a precarização social do trabalho e da própria vida. Compreendemos com isso que “o trabalho prescrito tem sido revertido por uma roupagem científica desde o final do século XIX. A imposição do modo de trabalhar foi consagrada e radicalizada pelo Taylorismo e sucessivamente enriquecida e refinada pelas diversas escolas de humanização do trabalho e se consolidaram na esteira das resistências e críticas ao Taylorismo no século XX.” (Franco, 2011) Diante deste contexto é importante compreender o significado da “gestão de pessoas” que se consolida no cenário da reestruturação produtiva. Surge, então, o que se pode chamar de “Escola de Relações Humanas” que teve como objeto de estudo a administração de recursos humanos, - ou atualmente, a conhecida gestão de pessoas - e as suas competências dentro da organização das empresas. De acordo com Lemos (2003, p. 67), a gestão de pessoas nasce com o propósito de administrar, como todos os setores de administração; ela tem uma multiplicidade de atuações e de campos de conhecimento e atua em diversas frentes, mas sempre com foco no indivíduo. A gestão de pessoas possui uma atuação focada na implantação de políticas direcionadas pelas diretorias das empresas e estas são fundamentalmente votadas para o aumento da produtividade e lucro. No Brasil, o desenvolvimento deste setor está diretamente atrelado às mudanças políticas e econômicas do país e das transformações no âmbito mundial também. Isso alterou 8 ao longo dos anos a organização e a sua atuação, gerando muitas vezes críticas devido ao seu distanciamento dos setores operacionais e da implantação de políticas inadequadas às empresas. Em nossa experiência com o setor, deparamo-nos muitas vezes com a incoerência entre a construção de políticas e planos de gestão e a realidade do trabalhador a qual será aplicada aquela política. Isso demonstra muitas vezes a incapacidade da gestão em conhecer os demais setores, mas reflete também a tentativa de “enquadrar” um universo de pessoas em um padrão de gestão que não leva em conta seus tempos biopsicossociais. Com isso acreditamos que não se pode pensar em gestão de pessoas sem uma análise crítica da sua atuação, umas vez que seus processos e procedimentos induzem a um aumento da produtividade e da superexploração sob o véu ilusório de “desenvolvimento de pessoas” e do “vista a camisa do time”, que pressupõe equivocadamente a participação do trabalhador nas decisões da empresa. Na análise dos subsistemas de uma organização, observa-se que todas as áreas (recrutamento e seleção, treinamento e desenvolvimento, qualidade de vida no trabalho e administração de benefícios), estão voltadas a captação de funcionários mais adequados aos cargos (chamados operários padrão), capacitação para a melhor produtividade possível e a manutenção da vida no trabalho. Essas características sugerem que, apesar de aparentemente o foco da gestão de pessoas ser os indivíduos, na realidade seu foco é na organização e na ampliação da obtenção de resultados com a maior eficácia possível. Ela tem, a depender da estrutura da empresa, a possibilidade de transição da sua posição hierárquica podendo estar tanto ligada diretamente à diretoria, como também abaixo de coordenações e diretoria administrativa. (Lemos, 2003) Quanto à Administração de Recursos Humanos – ARH, Limongi-França (2009) a compreende com foco na Psicologia social. Para ela, a pedra fundamental da gestão de pessoas está na contribuição conceitual e prática para uma vida humana mais saudável, com resultados legítimos de produtividade, qualidade, desenvolvimento e compatibilidade 9 sustentável. Trata-se de um enfoque nos processos comportamentais integrados aos aspectos administrativos da empresa. As técnicas de gerenciamento, atualmente, predominantes, dentro dos paradigmas voltados à acumulação flexível e maximização de lucros, ao estimular a exacerbação da competição entre os empregados, concorrem, simultaneamente para reforçar o individualismo e promover o aumento do cansaço. Existem múltiplos aspectos na gestão desgastante. O discurso sedutor marcado pela ideologia da excelência e por promessas de liberdade se disseminou a partir de grandes empresas e contrasta com a implementação de políticas de pessoal, extremamente, opressivas. “Esse aspecto que instituiu uma tecnologia de mascaramento para superexploração se constitui no interior das organizações o motor central da produção de danos à saúde mental dos assalariados”. (Seligmann, 2011, pág. 468). Com isso as formas de gestão levam a insegurança quanto ao futuro e a vivências de medo e incertezas. A doença da gestão contemporânea é o “gerencialismo”, e este “se tornou uma verdadeira epidemia”, segundo as palavras do sociólogo Vincent de Gaulejac (2011), para ele esta obsessão tem como objetivo maximizar as vantagens de lucro e domínio de mercado com o mínimo de custo e no prazo mais curto possível. Para isso, recorre-se a práticas de gestão engessadas que não levam em conta as variações e complexidades dos contextos locais, situação de trabalho, inadequação de recursos e de condições de trabalho por muitos dirigentes e gestores. A partir deste quadro, e do contexto no qual o trabalhador vivencia, a impotência diante da sua realidade produz instabilidade, insegurança, desconstruindo laços e desestruturando a participação social e política, gerando isolamento social, vivências de mal estar e sofrimento psíquico que podem desdobrar em patologias e adoecimento mental. Assim, a precarização do trabalho tem impactos na realidade subjetiva vivida pelos trabalhadores, ou seja, “a convivência em um mundo onde se perdeu uma série de garantias trabalhistas, direitos adquiridos”; direitos e garantias que protegem não só socialmente, mas psiquicamente as pessoas. (Lancman; Toldrá; Santos, et. al. in Glina; Rocha, 2010). Além 10 dessa perda, houve também o superestímulo ao individualismo o que demoliu o corpo social, destruindo grupos coesos, dissolvendo a união e solidariedade que unia equipes de trabalho. Essa destruição facilitou a precarização do trabalho e da saúde e fragilizou os coletivos de resistência, o que inclui também a relação com sindicatos. Seligmann (2011) afirma que a saúde “sofre os impactos da desregulamentação e da flexibilização do trabalho.” Ela aborda que a flexibilização não desestabilizou somente o trabalho, mas outros aspectos da vida humana, isso se refletiu também em uma ilusão de liberdade trazida por esta concepção de flexibilização. Com isso foi permitida a desestruturação dos contratos de trabalho, na exigência da rapidez e velocidade no ambiente de trabalho o que, segundo ela, desconsidera os tempos necessários ao trabalho mental cognitivo e afetivo. O trabalho humano tem se tornado cada vez mais mental, mas o seu desgaste passou a ser ignorado. A partir desse cenário foi possível também a criação do “banco de horas” (que prolonga as jornadas sem o devido pagamento), os salários variáveis, valorização da polivalência, o que desqualifica o trabalhador especializado. Dessa forma se abala também um dos suportes da saúde mental que é o reconhecimento, não só do trabalhador como pessoa, mas também do seu trabalho realizado. Considerando as questões colocadas, inicialmente, elabora-se uma crítica a estes modelos de gestão, uma vez que eles podem tornar o mundo do trabalho patológico e adoecedor. Para tanto, discute-se, a seguir, as possibilidades de implementação dos mecanismos ético-organizacionais no contexto de um capitalismo amoral. 3. A gestão de pessoas e os mecanismos ético-organizacionais no âmbito do capitalismo amoral, duas trilhas contraditórias. A gestão de pessoas alcança formas cada vez mais ampliadas com o desígnio de conquistar a subjetividade do trabalhador para fins funcionais à organização do trabalho. No 11 decorrer do desenvolvimento do capitalismo, tais estratégias são intensificadas por meio de mecanismos que põem a ética no centro de atenção das organizações. Nesse sentido, o discurso do desenvolvimento de equipes, do trabalho interdisciplinar, a gestão participativa são temas que precisam estar fundamentadas nos princípios morais cujos pilares estão consubstanciados na valoração do humano. De fato, gestão de pessoas, ética organizacional e valores humanos não têm como ser fragmentados quando o objetivo é tornar o ambiente de trabalho menos destrutivo ao trabalhador. Ocorre que, tais mecanismos se revelam incompatíveis na essência de um capitalismo amoral, na proporção em que essa contradição é a própria mola propulsora do sistema produtivo que sustenta a acumulação de riqueza. Sem tal contradição, as estratégias de gestão de pessoas se tornariam sem efeito para o fim ao qual se propõe: produzir formas de relações sociais pautadas na alienação social, fortalecidas pela imagem da humanização de interesses objetivamente econômicos. Para refletirmos acerca deste contrassenso, definiremos, antes, sobre a natureza do capitalismo. O capitalismo não é nem moral e nem imoral, mas um sistema que segue a lógica de sua própria finalidade de livre acumulação de capital. Sponville (2011, p.51) afirma que na sociedade há um domínio de “ordem econômico-tecnocientífica” que não se limita por valores morais. Dessa forma, a organização do trabalho contemporâneo está na esfera deste capitalismo amoral. As relações de trabalho presentes na organização do trabalho são parte dos processos de trabalho que produzem o capital. Tais relações de trabalho são os objetos de intervenção da gestão de pessoas desenvolvida no âmbito dos mecanismos ético-organizacionais. Isso porque somente se desenvolve uma política de gestão de pessoas a partir do código de ética institucional, ou no mínimo uma cultura, ainda que não formalizada, que estabelece regras morais de respeito mútuo nas relações que valorizam a dignidade, o bem comum, e a ética nas relações de trabalho. Todavia, em que proporção é possível sobrepor valores humanos aos valores econômicos? O que é priorizado no contexto organizacional, o bem estar do trabalhador ou a produção econômica, quando tais necessidades são incompatíveis? É nesse cenário que os mecanismos ético-organizacionais pertinentes à ideia de gestão de pessoas se põem em 12 desenvolvimento num mundo do trabalho de um capitalismo amoral. São postas, dessa forma, duas trilhas contraditórias que tornam complexa a eficácia ou concretude das estratégias de gestão de pessoas: o exercício da ética num contexto que não obedece qualquer regramento moral, quando o que se está em risco é o lucro e a riqueza mercadológica. O progresso técnico e científico não muda seu percurso evolutivo para priorizar questões da humanidade – aqui vale citar o exemplo dado por Sponville (2011) acerca do lançamento da bomba atômica. “Ele (o progresso tecnológico) pode se voltar contra nós, a ponto de ameaçar a própria existência da humanidade (...); A economia (que está na ordem tecnocientífica) ameaça, mais cotidianamente, as condições de vida” (Idem). Nesse sentido, só há uma lógica que o sistema do capital está submetido: a finalidade a qual ele próprio estabelece de acumulação sem limites de riqueza. O conflito e a dialética constituem uma esfera mais ampla da formação da nossa sociedade capitalista. No mundo do trabalho, a supressão dessa realidade contraditória é uma forma de conquistar a própria subjetividade do trabalhador. Para tanto, constrói-se uma trajetória reversa à realidade, constituindo cenários irreais do consenso e da harmonização, no intuito de tornar invisível a amoralidade do trabalho capitalista de fato. Dessa forma, o que é uma técnica voltada para a manutenção da saúde do trabalhador pode redirecionar trajetórias de resistência do ser social ao seu contexto do trabalho. Tal resistência pode ser desenvolvida sob três formas: o trabalhador alienado adaptado ao sistema fetichizado de supervalorização do trabalho produtivo capitalista; o trabalhador que, apesar de resistir aos mecanismos de alienação e do processo de estranhamento do ser social, sobrevive ao contexto do trabalho sem perder a razão para a sobrevivência; e aqueles que manifestam a perda de si e adoecem em função do contexto do trabalho. Vejamos, a seguir, como o fenômeno do estranhamento do ser social pode repercutir na subjetividade dos trabalhadores. 13 4. O “Estranhamento” e sua manifestação no contexto organizacional do trabalho Recorre-se a discussão construída por Lukács (2013) acerca do estranhamento para compreender como é possível realizar uma abstração, mediação e conexão do seu significado com as suas possíveis formas de manifestação no cenário organizacional e a repercussão para o processo de adoecimento do indivíduo no contexto do trabalho. O estranhamento se manifesta mesmo antes da sociedade capitalista, mas é no processo da sociabilidade humana no cenário do capitalismo que se torna ainda mais evidente a reflexão do problema. Isso porque é no desenvolvimento da divisão social do trabalho que se evoluem as forças produtivas e se desenvolve o ser social. Em decorrência disso, o autor parafraseia Marx, para esclarecer que o desenvolvimento das forças produtivas proporciona o desenvolvimento das capacidades humanas, mas não acarreta o desenvolvimento das personalidades humanas. Dessa forma, “as atividades produtivas são mais bem-sucedidas quando se reprime o sentimento ou a razão (...). Correspondentemente as manufaturas operam mais onde menos se consulta o espírito” (Idem, p. 582). Para Lukács, o estranhamento é um fenômeno sócio-histórico, de caráter ontológico, que está centrado no indivíduo social. Entretanto, não se perde de vista que todo indivíduo, para o autor, é um ser social cuja personalidade também é uma categoria social. Nesse sentido, é fundamental que compreendamos o estranhamento a partir da complexidade do ser que se expressa sob formas historicamente diversas. Ao mesmo tempo em que o indivíduo apreende novas formas de transformar o objeto do trabalho e aperfeiçoar a sua capacidade produtiva, de igual forma ele está submetido às regras e as leis desse processo de trabalho produtivo. O autor afirma que isso exige sacrifícios da própria classe trabalhadora, inclusive da sua própria formação de personalidade face à adaptação necessária ao funcionamento da totalidade. Nesse processo, Lukács explica que o mesmo ato de trabalho desse processo produtivo dá origem a objetivação do objeto material e alienação do sujeito. Não tão somente 14 o objeto material é produzido, mas o próprio trabalhador se forma e se transforma, fato que constitui a alienação do sujeito. É nesse sentido que o estranhamento possui um conceito mais amplo e de caráter ontológico, pois é a própria manifestação dessa contradição entre a existência do ser social e a sua existência funcional constituída a partir do processo de produção do objeto material; é a manifestação desse antagonismo entre o desenvolvimento da capacidade humana no processo produtivo e o seu desdobramento para a personalidade. Frente a essa reconstituição do conceito de estranhamento para Lukács, e considerando que é no contexto do capitalismo que tal significado é ainda mais aparente, analisa-se as repercussões deste fenômeno social nas novas configurações da organização do trabalho, a partir da técnica de gestão de pessoas que utiliza instrumentos de convencimento e fortalece estratégias fetiches para controlar comportamentos humanos no sistema laboral. Realizar uma mediação entre estranhamento e as técnicas de dominação da subjetividade do trabalhador da organização do trabalho, trata-se do próprio processo em que o indivíduo produtivo se submete à ideologia do consenso para adaptar-se ao contexto do trabalho. Ao reverso, o sujeito está subjugado às regras de determinada cultura organizacional e alienado as normas institucionais para a sua própria sobrevivência e reprodução social. Nesse processo, o indivíduo pode manifestar o estranhamento e manter “à realização ou o fracasso do desenvolvimento pleno da personalidade, quanto à superação ou à persistência do estranhamento na própria existência individual” (Lukács, 2010). Ocorre que, após a presente análise acerca das formas de enfrentamento pelo sujeito trabalhador a tais estratégias de dominação no contexto organizacional do trabalho, observaram-se duas possibilidades: àqueles que, diante do estranhamento, constroem estratégias de resiliência para a sua manutenção na esfera do trabalho, e outros que perdem a própria razão, desenvolvendo transtornos mentais e comportamentais relativos às dificuldades de se adaptar ao contexto do trabalho. Neste último caso, o indivíduo afasta-se da sua própria realidade e do seu devir, de forma que parece permanecer fixo no papel de produtor exclusivo da organização, suprassumindo a totalidade de sua vida social, e dos diversos papéis sociais que os indivíduos experimentam na sociedade. 15 De outra parte, observou-se que, na consolidação do processo adoecedor, o indivíduo questionava os mecanismos ideológicos e superficiais da organização do trabalho, reconhecendo os interesses contrapostos na esfera organizacional, o que evidenciou a manifestação do processo de estranhamento do indivíduo. Entretanto, alguns processos de estranhamentos resultaram em reações dos indivíduos de distanciamento do contexto produtivo, e até mesmo uma rejeição ao cenário organizacional, considerando os afastamentos do trabalho por longos períodos. Na tentativa do trabalhador de superação do estranhamento, muitos adoeceram e as técnicas de gestão de pessoas somente reforçavam os mecanismos de alienação não mais aceitos pelos trabalhadores e já problematizados pelos próprios. Constatou-se, assim, que nem sempre as estratégias de gestão de pessoas correspondem ao fim a que se propõe de consenso nas relações de trabalho e de adaptação do trabalhador ao ambiente organizacional. Ao contrário, em alguns casos, tais técnicas da organização do trabalho captura a subjetividade do trabalhador e provoca o efeito reverso: a não adaptação ao contexto de trabalho através, inclusive, de adoecimentos no âmbito de saúde mental relacionada ao trabalho. Assim, as experiências vivenciadas pelo trabalhador no contexto da organização do trabalho repercutem no adoecimento do trabalhador e contribuem para uma desorganização própria e a perda de si próprio. Apesar de não se referir com constância a distinção entre alienação e estranhamento, importante se faz esclarecer que Lukács (1981, p. 397) aclara tal distinção dos conceitos: “O estranhamento pode originar-se somente da alienação. (...) é verdade que determinadas formas de estranhamento podem nascer da alienação, mas esta última pode muito bem existir e operar sem produzir estranhamentos”. Enquanto a alienação é uma exigência do processo produtivo, o estranhamento se direciona a formação do ser social em sua complexidade e multiplicidade. Para esclarecer, Lukács dá o exemplo de situações cotidianas “de revolucionários combatentes que perceberam o estranhamento no trabalho, mas em casa, mantiveram a postura de opressão em relação à mulher” (Costa, 2012). Ou seja, apesar de trazer a consciência parte do processo de estranhamento, não o fez em sua totalidade. Por meio de tal exemplo, o autor pretende chegar à constatação de que a superação social do estranhamento 16 ocorre em atos do indivíduo na vida cotidiana, entretanto, tal sublimação só é possível no plano social. Se ampliarmos o contexto de análise, tal compreensão é possível porque o autor não realiza uma separação/fragmentação entre o individual e o social. Pelo contrário, toda “reação individual tem uma base social que a determina”. Ilustra que o “estranhamento nunca será reduzido a uma contraposição abstrata de subjetividade e objetividade, a uma contraposição de homem singular e sociedade, de individualidade e socialidade” (p. 588). 5. Considerações Finais Este artigo permite a conclusão de que as técnicas de gestão para a organização do trabalho podem construir trajetórias reversas ao seu propósito de manter o indivíduo adaptado ao contexto institucional, considerando as características estruturais de um capitalismo amoral e o processo de estranhamento do indivíduo às regras e normas postas na cultura organizacional. Assim, a partir deste estudo, observou-se que a técnica de controle ora em análise, de forma contraditória, pode ser fator que repercute no processo de adoecimento do trabalhador. Dessa forma, a técnica de gestão de pessoas captura a subjetividade do trabalhador e pode provocar o efeito contrário: o distanciamento do contexto de trabalho através, inclusive, de adoecimentos no âmbito de saúde mental relacionada ao trabalho, e, portanto, gerando o que ela mesma tenta combater, o absenteísmo. É então, que as estratégias de gestão de pessoas evidencia a incompatibilidade entre sua técnica e o contexto do capitalismo amoral, por meio do estranhamento do indivíduo e a perda de si próprio. De outra parte, observou-se que, na consolidação do processo adoecedor, o indivíduo questionava os mecanismos ideológicos e superficiais da organização do trabalho, reconhecendo os interesses contrapostos na esfera organizacional, o que evidenciou a 17 manifestação do processo de estranhamento do indivíduo. Entretanto, alguns processos de estranhamentos resultaram em reações dos indivíduos de desmotivação para a produção, e até mesmo uma rejeição ao cenário organizacional, considerando os afastamentos do trabalho por longos períodos. Pressupõe-se, assim, a necessidade de estudos como este para compreender quais as formas de dominação e exploração no âmbito organizacional que repercutem no adoecimento do trabalhador, e como poderão ser construídos os mecanismos de resistências, para além do âmbito individual. Referências Bibliográficas ANTUNES, R. As novas formas de acumulação do capital e as formas contemporâneas de estranhamento (alienação). Caderno CRH, Salvador, v. 15, n. 37, p. 23-46, 2002. ANTUNES, R. O caracol e sua concha. Ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo. ANTUNES, Ricardo. Crise Capitalista contemporânea e as transformações no mundo do trabalho. In: Programa de Capacitação Continuada para Assistentes Sociais/Capacitação em Serviço Social e Política Social: Módulo 02. Brasília: CEAD, 1999. ALBARNOZ, S. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1986. ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? 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