39º. Encontro Anual da Anpocs GT39 Teoria política e pensamento político brasileiro - normatividade e história “O conceito de neoliberalismo na teoria social contemporânea: a reabertura do debate” Daniel Pereira Andrade (FGV-SP) ; Nilton Ken Ota (USP) O texto ora apresentado é apenas o rascunho, o plano rudimentar, provisório e condensado da estrutura do artigo a ser desenvolvido para publicação. O neoliberalismo é um conceito polêmico. Embora o termo tenha aparecido na década de 1930, o seu uso sofreu uma redefinição crítica e se popularizou a partir das décadas de 1980 e 1990. O que nos interessa mais diretamente nesse artigo, no entanto, é a reabertura de um debate qualificado nas ciências sociais sobre a pertinência e a definição do neoliberalismo a partir da década de 2000. As questões da validade ou não do conceito, de seu embasamento teórico, do nível adequado de análise e dos objetos que ele designa estão no centro de uma disputa ao mesmo tempo acadêmica e política. O objetivo, portanto, é apresentar o debate internacional contemporâneo, especialmente anglo-saxão e francês, para defender a retomada do conceito pelas ciências sociais brasileiras devido à sua importância como um saber estratégico. Trata-se de um conceito que atravessa e coloca em diálogo diferentes disciplinas (sociologia, antropologia, ciência política, economia, política econômica, geografia, história e filosofia) e que tem o potencial de reconstruir os laços entre a teoria acadêmica e a prática das lutas sociais, na medida em que é um termo utilizado pelos próprios movimentos e por outros atores fora da academia para identificar seus alvos. O nosso viés de análise é o da sociologia. Por isso, mesmo que originalmente os autores estudados se identifiquem com outras áreas de conhecimento, retomaremos aqui o debate da perspectiva das principais teorias sociológicas clássicas e contemporâneas que se debruçam sobre o tema (marxista, weberiana, bourdieusiana e foucaultiana). Também não temos a pretensão de esgotar a bibliografia, mas de apresentar alguns dos textos e autores mais centrais no debate atual. O texto proposto deverá ser organizado do seguinte modo: Parte 1 – exposição do debate a respeito da validade ou não do conceito, procurando apresentar e responder aos principais argumentos contrários ao uso da noção de neoliberalismo. As respostas baseiam-se tanto em argumentos já oferecidos por outros autores como também no avanço de nossa própria argumentação. a) Crítica ao fato de que hoje nenhuma corrente teórica ou política, especialmente na economia, se identifica e se assume como neoliberal, tratando-se antes de um rótulo proposto pelos críticos para identificar seus alvos. Resposta: Como demonstram Boas e Gans-Morse (2009), o título de neoliberais era sustentado principalmente pela Escola Alemã de Freiburg, também conhecida como Ordoliberalismo, mas foi igualmente adotado em determinadas circunstâncias pelos austroliberais, como Hayek, e pela nascente Escola de Chicago, como por Milton Friedman, embora essas escolas tenham adotado preferencialmente o termo “liberais” para se definirem. A virada do termo ocorreu a partir das reformas econômicas de Pinochet de 1978, quando o nome começou a ser empregado de forma pejorativa pelos autores críticos latino-americanos para designar o fundamentalismo de mercado. A partir de então, os economistas abandonaram o termo, ao mesmo tempo em que a visão neoclássica se tornava a nova ortodoxia em substituição ao keynesianismo. É assim, pois, que, ao se tornar a vertente dominante, com as variações se dando no interior de seu próprio paradigma (com exceção do keynesianismo e do socialismo), o neoliberalismo deixou de se nomear como tal (Hilgers, 2011, p. 352). Foi assim que o termo passou a ser mobilizado quase que exclusivamente pelos críticos, convertendo-se em uma ideia força que mobiliza uma sensibilidade contestatória em relação aos objetos que designa. Não por acaso, os movimentos sociais, especialmente os altermundialistas, apropriaramse do termo para designar seus alvos. Reside aí um ponto positivo, e não negativo, do conceito, já que ele constitui uma linguagem comum fortemente mobilizadora que permite uma troca significativa entre acadêmicos e militantes. Poucos termos possuem hoje a mesma força crítica. O próprio termo já assume a potencialidade política de desnaturalizar os fenômenos que designa e de apontar para outros horizontes de possibilidade. b) O conceito é muitas vezes utilizado de maneira imprecisa, sem definição, ou com uma definição demasiado ampla e, por vezes, designando fenômenos contraditórios, não havendo consenso sequer sobre a realidade empírica de que trata. Resposta: De fato, até recentemente, o termo era empregado de modo demasiado impreciso, sem recorrer a definições, fazendo referência a um corpo de pensamento, ao espírito do nosso tempo, a um conjunto de políticas (principalmente econômicas) e instituições e mesmo de modo amplo a toda a nossa época. No entanto, os debates contemporâneos têm feito um esforço sistemático para oferecer definições mais precisas e atribuir um conteúdo mais identificável ao termo. Estes esforços ainda estão em construção e não há como esperar deles um consenso. Na medida em que cada abordagem teórica promove uma perspectiva sobre o tema, não apenas o conteúdo, mas as realidades que designam variam. O mesmo ocorre com muitos outros conceitos das ciências humanas, cujo conteúdo está em disputa, e não se espera alcançar consensos, mas sim definições precisas em cada caso. Além disso, como explica Jamie Peck (2010), o próprio processo de neoliberalização é um fenômeno dinâmico e diversificado, com diferentes níveis. Nem mesmo os próprios teóricos adeptos do neoliberalismo possuem uma visão consensual a seu respeito, o termo designando antes um campo de debate cujas coordenadas são dadas por uma visão utópica do livre mercado que os leva a fazer uma crítica empática do laissez- faire do século XIX e uma crítica antipática de toda forma de intervencionismo e planejamento estatal centralizado, mas sem posicionamento comum sobre o papel legítimo do Estado (Peck, 2010). Além disso, na medida em que se transformou atualmente em uma ideia força capaz de mobilizar a sensibilidade crítica, é compreensível que, em suas disputas, diferentes posições teóricas e políticas se acusem reciprocamente de serem neoliberais. Mas, na medida em que os movimentos sociais possuem sua própria perspectiva de luta, eles não necessariamente são confundidos por essas trocas de acusações, pois são capazes de perceber quais definições são mais interessantes estrategicamente, ao mesmo tempo em que podem refinar os seus alvos e refletir sobre os próprios pressupostos teóricos que fundamentam sua visão crítica. Dada essa dimensão estratégica do conceito, não é por caso que a maior parte dos estudos contemporâneos se interessa pelo que os anglo-saxões chamam de “actually existing neoliberalism”, o “neoliberalismo realmente existente”, e apenas secundariamente pelo neoliberalismo idealizado teórica ou ideologicamente. É na sua implantação efetiva a partir do final da década de 1970 que reside o interesse das ciências sociais contemporâneas, com um destaque especial (mas não exclusivo) para o papel ativo e forte do Estado. Parte 2 – Apresentação dos principais eixos de análise sociológica do neoliberalismo. Dois eixos serão analisados: a) a definição da “essência” do neoliberalismo, ou seja, dos elementos centrais que o caracterizariam do ponto de vista teórico e dos fenômenos designados. Ao contrário de outros artigos que apresentam o debate (Hilgers, Wacquant, Haber, Ganti, 2014), não procuraremos agrupar as formas de análises em categorias mais amplas (como, por exemplo, estruturais, governamentais e culturais) na tentativa reuni-las em uma base conceitual e teórica unificada, mas as agruparemos conforme a escolha (a nosso ver irredutível) teóricometodológica dos autores, dividindo-as segundo as teorias sociológicas que as embasam: *) marxista: o neoliberalismo como uma política de classe associada a uma ideologia da liberdade e da retomada do crescimento econômico, a qual promove na realidade a concentração de renda e de poder por meio de políticas econômicas, precarização do trabalho, repressão dos sindicatos e movimentos sociais, desregulamentação da economia, financeirização e formas de acumulação por espoliação (Harvey, 2009; Duménil e Lévy, 2012; Anderson, 1998). **) weberiana: neoliberalismo como desencantamento da política pela economia, em uma forma de racionalização que legitima a autoridade do Estado não mais com base em juízos políticos, mas em princípios de mercado (como a competitividade e a eficiência) e em suas técnicas correlatas de avaliação quantitativa (Davis, 2014). ***) bourdieusiana: neoliberalismo como uma utopia do livre mercado baseada na ciência econômica que acaba por se converter em um projeto político que cria as condições que a teoria econômica falsamente pressupõe, como as disposições econômicas individualistas e concorrenciais (em detrimento das coletividades), gerando enorme sofrimento social (Bourdieu, ..., ..., Poovey, 201). Ou ainda, reconstruindo, ao invés de desmantelar, um Estado centauro que promove a liberdade de investimentos na parte de cima da hierarquia social, e a repressão e a tutela na parte de baixo, através do reforço do braço penal pelas políticas de encarceramento e políticas sociais punitivas (Wacquant). ****) foucaultiana: neoliberalismo como uma forma de governamentalidade, que difunde através de técnicas de poder a norma da forma empresa e da lógica da concorrência para os diversos âmbitos da vida: o próprio mercado, o management, o Estado, as instituições sociais e a individualidade (capital humano), esvaziando o sentido político da cidadania e da democracia moderna (Foucault, Dardot e Laval, Wendy Brown). b) A discussão a respeito da existência não de um, mas de múltiplos neoliberalismos, que desloca o nível de análise ao enfatizar a diversidade dos fenômenos e a irredutibilidade geográfica e histórica de seus processos, defendendo até mesmo a impossibilidade de apresentar um “tipo ideal” da neoliberalização. As abordagens teóricas aqui também são múltiplas: a descolonização, o neorregulacionismo (que mantém uma argumentação de tipo estrutural, mas que destaca a inter-relação dinâmica dos processos globais com a multiplicidade dos processos locais) e a governamentalidade (adaptando a abordagem foucaultiana a outras realidades e enfatizando o próprio caráter localizado e diverso dos neoliberalismos estudados pelo autor - o ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo americano). Parte 3 – Conclusão. A partir da discussão apresentada, retoma-se o argumento em favor da utilização do conceito em função do saber estratégico que ele oferece. Nesse sentido, a diversidade de abordagens teóricas, se não constituem um alvo unificado de luta, permitem a definição de alvos complementares, tanto no nível macroestrutural quanto no ideológico e também no das relações de poder microfísicas, que atuam no âmbito do cotidiano e da própria subjetividade dos agentes. Por fim, indicaremos a sua importância estratégica para a realidade brasileira contemporânea, no momento em que, na contramão do mundo desenvolvido pós-crise de 2008, há um renascimento da ideologia neoliberal, que pode aprofundar ou disseminar ainda mais as já existentes lógicas macroestruturais e de relações de poder locais em um momento de crise política e econômica.