A ORGANIZACAo DE VERBETES NUM DICIONARIO DE USOS: DEFINICAO, TAXIONOMIA E DESCRICAo GRAMATICAL DE PALAVRAS LEXICAIS ABSTRACT: This paper discusses the techniques used in the organization of entries in a usage dictionary. The aim is to demonstrate that definition, taxonomy and grammatical description of lexical words are made of the semantic-functional point of view, according to argumental structure of the words in their predicative function. o presente estudo tern como objeto 0 Dicionario de Usos do Portugues, aqui referido por DUP, que resultou de urn projeto desenvolvido pelo Departamento de LingUistica da Faculdade de Ciencias e Letras de Araraquara, da UNESP. Pretende-se apresentar urn dos pontos em que 0 diciom\rio em analise difere dos demais dicionarios de lingua portuguesa, selecionando-se como exemplos tres classes gramaticais: Verbo, Nome e Adjetivo. Essa diferen~a reside particularmente na indica~1lo de classes e subclasses e na descri~1lo gramatical que se faz por meio de matrizes con tendo a descri~1lo da estrutura argumental dos itens lexicais a serem definidos. Dirfamos, ent1lo, que a defini~1lo lexicografica tradicional se completa com a descri~1lo gramatical. Acrescente-se que, em se tratando de urn diciomirio de usos, todas as acep~oes s1loabonadas com exemplos concretos de atividades de fala. Em princfpio, 0 processo metalingUfstico que envolve a defini~1lo se desenvolve num jogo de equivalencias semanticas que se efetuam atraves do esquema [A equivale a B]. Nesse esquema, A e B se realizam IingUisticamente das seguintes formas: (I) equivalem-se formal mente, numa rela~1lo que se poderia denominar propriamente de sinonfmica, sendo representados ora por dois itens lexicais simples da mesma classe gramatical (cachorro = CGO; belo = bonito; moer = triturar), ora por duas expressoes sintagmaticas de estruturas semelhantes (quebrar a cara = sair-se mal); (ii) A e urn item lexical e B uma constru~1lo sintatica que encerra uma conceitua~1lo/defini~1lo de A (tear = maquina destinada a produzir tecidos; reta = linha tra~ada com regua). Esse segundo esquema, em que B en cerra 0 que se pode chamar genericamente de defini~ao discursiva, e 0 que se emprega com maior freqUencia nos verbetes de urn dicionario. A partir dos varios processos 16gico-semanticos e/ou sintaticos, tem-se tentado estabelecer uma tipologia da defini~ao. Greimas (1973: 97-100) distingue tres tipos: 16gico, discursivo e Iexicografico. A defini~1lo 16gica, fundamentada nos princfpios aristotelicos do "genus proximum et differentia specificam", estabelece uma identidade entre os segmentos situados nos dois pianos lingiiisticos. Assim, no exemplo supracitado (tear = maquina destinada a produzir tecidos), 0 elemento A (tear) e definido pelo "genero pr6ximo" (maquina) e pela "diferen~a especifica" (destinada a produzir tecidos). Nesse caso, a defini~ao se centra num arquilexema (maquina) seguido dos semas especificos que individualizam 0 termo definido. Pelas semelhan~as IingUisticas, ou formais, parece legitimo dizer que a defini~io discursiva engloba a defini~io logica, sendo esta caracterizada por uma descri~lio semantica particular, ja que define urn elemento atraves de outro de "genero pr6ximo", especificado pelo processo sintatico da expanslio, segundo a sua "diferen~a especifica". Dessa forma, nlio s6 urn nome podera ser "definido logicamente" como tambem urn verbo. Ex.: mastigar = triturar com os dentes, onde triturar e 0 "genero pr6ximo" e com os dentes, a "diferen~a especifica". Acrescentariamos, ainda, que num dicionario que se preocupa em abonar as defini~oes, a defini~lio discursiva se completa com a exemplifica~lio do elemento definido, em funcionamento numa situa~lioreal de fala. Se entendermos por defini~io lexicografica a que se realiza nos dicionarios de lingua, ela nao constitui urn tipo especifico em oposi~lio as duas anteriores, ja que inclui, conforme reconhece Greimas (op. cit.) tanto a defini~o logica quanto a defini~io discursiva. Assim sendo, entenderemos aqui por lexicografica a defini~lio praticada pelos dicionarios em geral, mediante 0 processo metalingUfstico que tern por finalidade indicar 0 valor sernantico extemo de urn item lexical. No caso especlfico do dicionario em analise, inclufmos a descri~ao gramatical e a indica~lio taxion6mica, feitas atraves de matrizes, como componentes da defini~lio.1exicografica.I Retomando 0 que se disse inicialmente, podem-se estabelecer dois esquemas genericos para a estrutura das equivalencias na defini~lio lexicografica: a) uma defini~ao feita ''termo a termo", nlio-discursiva, em que A e B slio itens lexicais da mesma classe e que se equivalem sinonimicamente (cachorro = clio; belo = bonito; moer = triturar). Incluem-se aqui as lexias complexas (quebrar a cara = dar-se mal); b) uma defini~lio propriamentediscursiva em que A e urn item lexical e B e urna estrutura sintagmatica construfda a base de urn ou mais predicadores (mastigar = triturar com os dentes; saciar-se = satisjazer-se das necessidades flSicas ou psiquicas de modo exaustivo; automOvel = veiculo automotor para transporte de passageiros; estes, geralmente, em numero nlio superior a cinco; escola-modelo = instituiflio de ensino que serve de parametro de excelencia). o procedimento lexicografico do dicionario em analise vai alem do que afirma Nascimento (1997: 36), para quem 0 lexicograjo, calcado no modelo da logica aristotelica, visa a elaboraflio de matrizes que descrevam 0 significado da palavra. No DUP se fazem ainda a indica~lio das classes e subclasses de cada item lexical e a descri~lio da estrutura gramatical, esta fundamentada basicamente na teoria da predica~lio (teoriaargumental). Tem-se, assim, como fundamento te6rico basico a gramatica de valencias, desde os primeiros estudos com Tesniere (1959), ate os mais recentes com Vilela (1984) e Borba (1996), bem como os estudos sintatico-sem4nticos da estrutura oracional realizados a partir da decada de 70 com Chafe (1979). Assim, aIem da indica~ao das classes gramaticais - Verbo (V), Nome (N) Adjetivo (Adj), etc.indica-se a estrutura valencial, ou seja, a partir da fun~ao predicativa, descrevem-se, atraves de matrizes, a estrutura morfossintatica e os valores semlinticos dos Argumentos. A semelhan~a dos demais dicionarios, a reda~ao do verbete come~a pela indica~ao da classe ou categoria a que' pertence 0 termo a ser definido, segundo a tradi~ao gramatical. Nessa etapa, 0 dicionarista se vale de uma defini~ilo cujos criterios coube a gramatica determinar. Vale~se, por exemplo, do criterio funcional, segundo 0 quale 0 verbo a c1assegrarriatical que tern a fun~ao obrigat6ria de predicado oracional (Cunha, 1985), e do criterio semlintico da significa~Aoexterna. Assim, a elabora~ao do verbete obedece a seguinte ordem: (i) indica~ao dli classe/subclasse gramatical; (ii) c1asse semlintica; (iii) estrutura .argumental; (iv) defini~aosem/intica; (v) exemplifica~ilo. ' SeriIo exemplificadas aqui as estruturas que possam i1ustrar, pela' ordem, as etapas do processo definit6rio aqui referidas, conservando a disposi~ao grafica com que o verbete aparece no dicionario, como as formas matriciais, as abreviaturase a ordem de indica~iio. das" subclasses. Exemplificar-se-ilo apenas as, principais acep~Oes correspondentes'a cada defini~ao matricial indicada entre colchetes. 2 . Verbo -A novidade apresentada pelo DUP esta naindica~ao da classe sem/intica a que 0 verbo pertence:a~lo, processo, acAo-processo, estado (Chafe, op. cit.), e da sua estruturasintatica na composi~ao da frase - tipo(s) morfossintatico(s) do(s} complemento(s} ~, hem' como aindica~ao, quando peitinente,dos tra~os semlinticos desses cOnTplementos:aniniado, humano, concreto,' abstrato, ~ont8vel, etc. Ex.: " PASSARo ***v **IA~o-proCesso) ICompl/: nome concreto. :I: Compl2: locativoj 1 fazer atravessar: 0 tenente Antonio passou os dois refugiados pelafronteira (FSP); Mas nada deixava passar aqueles tijolos ('rE}**IA~Ao) {Conipl: locativo ou R!l!. + nomej2 ultrapassar; ir al6m: Jii passiiramos Rio Claroe Campinas (LM); A'opassar pelo carro estacionado tem um gesto;de entendimento coni os ocupantes dO'automovel (TGG)lCdnipl:de:" nome ~bstratoj 3 exceder: Nafesta tem muita gente que passa dos limites (FSP) {:I: Coinpl locatlvo] 4' deslocar-se 'em movimento contInuo;' transitai': Isabella passou-lhe afrente (ACM); Um ratd passo'Ucorl'endo enlrou deb'afro de um caixiio (CAS) **IProcesso) 5 transcorrer; decorrer: A manhii passou deforma singular ~ESS}{Compl locativoj 6 ir alem de; ultrapassar: Em qiifnze 11'Uriulos jogo, a bola niio passou a intermediaria (FSP) **IEstadol/Co.napl locativoj 7 estar situado em; localizar-se: A estrada passava, porern,distante da/azeiida (Cl-lA) **r?\uxiliar) I@ + infinitivo)8 indica aspecto inceptivo: Desdeentiio o:assu,nto passou a me interessar (SE); passe; a evitar as saladas nos jantares (FH) I@ + nome teinporal+ a + infinitivo, gerundio ou nome abstratol 9 indiea aspecto freqUentativo:'passava 0 tempo todo a mexer nas gavetas (SMF); a gente passou tres dias cavando, iliio deu nada (GE); Ele passou a vida a procura do sol (MAN) **lSuporte) I@ + repreenslol 10 repreender: Passei-lhe ttma repreensiio em regra (CA) I@+ susto) 11 assustar: 0 Armandinho me passou um susto dizendo que voce tomou parte numa revolu~iio (JT) e ae Os asteriscos indicam que hil oposi~lIo entre as subclasses. As siglas entre parenteses, ap6s cada exernplific~o, silo abreviaturas CQnvencionais das obras a que pertencem os exemplos. 2 I@ + vistorial 12 vistoriar: eu suspiraria por descer no coIegio e passar vistoria nas moras (CL) IN6c1eode expressAo] 13 passar carAo = sofrer vexame, constrangimento: Aprenda para niio passar cariio em Nova York (FSP): ***Nm IAbstrato de processo] {Especijicador: de + nome] 14 decurso de tempo; dura~ilo: 0 passar do tempo niio apaga 0 conhecimento dos movimentos do grupo (SOC) 15 percurso: apesar da gola do palet6 levantada ao pescoro, parecia niio sentir 0 passar do ar frio, e, em seu semblante se rej/etia indiferenra (PCO) Observe-se que uma mesma raiz lexical pode exercer uma fun~ilo diversa da classe a que pertence primitivamente. Nesse caso a classifica~ilo se fani ainda pela recorrencia a criterios distribucionais, morfossintaticos e discursivos, que se atestam por meio da exemplifica~ilo. V. g. a raiz passar supracitada: a manhii passou (V) VS 0 passar do tempo (N) Nome - Merece destaque a indica~ilo das subclasses concreto/abstrato, descrevendo-se, a seguir, Ii semelhan~a do verbo, a estrutura argumental, quando se trata de urn elemento valencia\. Os nomes abstratos silo subdivididos em abstratos de a~Ao (em princfpio, os nomes valenciais por excelencia), de processo e de estado. Uma mesma raiz nominal pode funcionar como nome concreto ou como abstrato. Ex.: ELEV A<;AO NJ **IAbstrato de a~Ao] {Com pi: de+nome] 1 ato de encaminhar para 0 alto; erguimento: a hora da elevariio da hOstia (...j 0 anarquista anonimo subiu ao seu banco (AL) **IAbstrato de processo] 2 aumento; crescimento: E Jato comum a eleva~iio da pressiio intra-ocular (GLA); A migra~iio rural-urbana contribui para a eleva~iio dos niveis de desemprego (VIS) **IConcreto] 3 proeminencia; colina: numa eleva~iio do terreno, erguia-se a casa (ALE) Adjetivo - A indica~ilo das subclasses qualificador/classificador, descrevendo-se, quando pertinente, a subclasse e os tra~os sem!nticos do nome a que determina, seguindo-se a eventual estrutura valencial, constituem as novidades apresentadas pelo DUP. Ex.: DlPLOMATICO Adj **IClassificador de nome nAo-animadoll. relativo a diplomacia: [Percival Lowell] trocou a ca"eira diplomatica pela astronomia (FSP); Dal tambem a importdncia de divulgar, de maneira mais ampla, a documenta~iio diplomatica (II-C) **IClassificador de nome humanol 2. que exerce a profisslo de diplomata: 0 representanle diplomalico enviado pela Coroa britdnica Ucrdnia era um certo Sir Halford Mackinder (GPO) **IQualificador de nome humano/abstrato) 3. polido; educado; cortes: Marcos s6 era diplomalico quando the convinha (ESP); Ele era de uma macies diplomatica, incapaz de uma vilania (S) a Em sintese, pode-se dizer que a descri~ilo da estrutura gramatical de urn item lexical se faz em fun~ilo da estrutura valencial e se realiza em tres niveis: lexicofuncional, sintatico e sem!ntico. E preciso ressaltar que, ao se pretender registrar as ocorrencias reais de uso da lingua, nilo quer dizer que se possa definir urn termo de modo a exaurir as varia~~es semanticas que ele adquire nos varios contextos de fala, por mais exaustivo que seja 0 "corpus" com que se trabalha. Isso pelo simples fato de que os itens lexicais silo, do ponto de vista funcional, altamente polissemicos. Trata-se da propriedade semantica a que Pottier (1978: 74) chamou de "virtuema": E virtual todo elemento que latente na memoria associativa do falante e cuja atualiza~ao esta ligada aos fatores variaveis das circunstancias de comunica~ao. Todavia, essa plurissemia nao impede que 0 dicionarista estabele9a determinadas matrizes. Seja, por exemplo, 0 verbo participar, c1assificado como verbo de estado, nas tres frases abaixo: e (1) Nossas escolas nCioparticipam da vida, nem preparam para ela (PE). (2) Quase todos os oceanos panicipam desse processo (FOC). (3) Os musculos panicipam dos movimentos do bra~o (ENF) Embora, nos tres exemplos, 0 DUP defina a unidade verbal como verbo de estado, significando ser parte integrante de, evidentemente em cada contexto ha urn tipo particular de estado. No entanto esse fato nao invalida a c1assifica9ao generica, uma vez que 0 dicionarista se valeu de determinadas invariaveis para essa c1assifica9ao. Em outras palavras, considerou as semelhan~as e nao as diferen~as, pois estas sao infinitas do ponto de vista pragmatico. Nos exemplos dados acima a invariabilidade da estrutura sintatica nao condiciona, evidentemente, a invariabilidade semantica. Todavia alguns fatores comuns as tres frases, tais como a ausencia de dinamicidade, portanto carater inativo do Sujeito, e 0 sentido defazer parte de um todo permitem classifica-Ias como frases estativas. Considere-se ainda que, na defini9ao lexicografica, nao ha como fugir ao "grau elevado de abstra9ao", discutido por Haiakawa (1977), uma vez que se 0 dicionarista tivesse que descer aos detalhamentos das defini90es extensionais - por exemplo, para definir bolo tivesse que descrever todo 0 processo culinario de sua prepara9ao -, nao estaria se valendo de uma das mais importantes propriedades da linguagem que e a simboliza9ao. Dai poder valer-se de esquemas IingUisticos prototipicos que recobrem outra importante propriedade da Iinguagem que e a produtividade. Conclui-se que 0 procedimento adotado pelo Dicionario de Usos do Portugues apresenta urn grande avan90, seja em rela9ao a tecnica lexicografica, seja em rela9ao a concep~ao da fun9ao gramatical de cada elemento, ampliando-se, assim, 0 conceito de defini9ao lexicografica. Desse modo, concebe-se 0 verbo, por exemplo, como 0 elemento a partir do qual a frase se organiza, definindo-o, pois, nao apenas pela significa~ao extema, do ponto de vista 16gico-semantico ou nocional, mas sobretudo pela fun9ao gramatical e pela sua estrutura argumentaI. Da mesma forma, 0 nome e 0 adjetivo sao concebidos como elementos predicadores que, como constituintes oracionais, podem apresentar tambem uma estrutura valenciaI. Outra novidade relevante e a descri9ao taxionomica, com a indica9ao das principais subclasses - a9ao, processo, a9ao-processo, estado, para os verbos; concreto/abstrato, para os nomes; qualificador/classificador, para os adjetivos. Em se tratando de urn dicionario de usos, todas as acep90es sao abonadas com exemplos extraidos do corpus, fato que permite ao leitor/consulente constatar, pela realiza9ao efetiva da lingua, 0 que se descreve nas defini90es. RESUMO: Este artigo discute as tecnicas utilizadas na organiza~ilo de verbetes num diciomirio de usos. Procura demonstrar que a. deftni~ilo,a taxionomia e a descri~ilo gramatical das palavras lexicais se fazem do ponto de vista semantico-funcional e de acordo com a estrutura argumental das palavras na sua fun~ilo predi~ativa. BORBA, Francisco da Silva. Uma gramatica de valencias para 0 portugues. Silo Paulo: Atica, 1996. CHAFE, Wal1ace L. Significado e estrutura'lingiiistiea. Trad. de M. H. M. Neves et alo Silo Paulo: Livros Tecnicos e Cientiftcos, 1979 [1970]. CUNHA, Celso. Ferreira da. & CINTRA, Luis Filipe Lindley. Nova gramatica do portugues contempordneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. GREIMAS, Algirdas Julien. Semantica estrutural. Trad. de Haquira Osakabe e Izidoro Blikstein. Silo Paulo: Cultrix, 1973. HAY AKA W A, Samuel Ichie. A linguagem no pensamento e na arriio. Trad. de Jane· Perticarati. Silo Paulo: Pioneita, 1977. NASCIMENTO, Edna Maria F. Santos. Dejinirriio discursiva - memoria e genese. 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