Roberlei Alves Bertucci

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Operadores de escala: uma comparação entre chegar e até
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Roberlei Alves Bertucci1, Maria José Foltran2
Universidade Federal do Paraná – Mestrado em Estudos Lingüísticos (PG-UFPR)
[email protected] – Curitiba – PR – Brasil
Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas - Universidade Federal do
Paraná (UFPR/CNPq)
[email protected] – Curitiba – PR – Brasil
Abstract. Bertucci (2007), in his work about chegar in Brazilian Portuguese,
arguments that this verb has characteristics of an auxiliary and a scale
operator. After that, the author compares chegar with até and he saw that both
these words can function as scale operators. In this article, (i) we present the
ideas the led the author to this analysis about chegar and (ii) we discuss the
behavior of chegar and até like scale operators.
Keywords: semantics, scale operators
Resumo. Em seu trabalho sobre chegar, Bertucci (2007) argumenta que esse
verbo tem características de auxiliar e de operador de escala. No trabalho
citado, ele compara resumidamente chegar e até, alegando que os dois
funcionam como operadores de escala. Neste artigo, (i) apresentamos as
bases que levaram o autor a uma análise assim sobre o verbo chegar e (ii)
discutimos mais detalhadamente o funcionamento de chegar e até como
operadores de escala.
Palavras-chave: semântica, operadores de escala
1. Introdução
A literatura a respeito da perífrase chegar a+infinitivo em PB é um tanto
confusa. Autores como Almeida (1980) e Neves (2000), aceitam chegar, em tal
contexto, como um auxiliar, enquanto outros – Travaglia (1985) ou Luft (2003) –, não.
Por outro lado, entre os autores que o consideram um auxiliar em casos como (1),
parece haver uma concordância quanto ao papel de chegar: indicar um resultado (uma
conseqüência).
(1) Pedro chegou a esmolar.
Dessa forma, o que Bertucci (2007) fez foi (i) buscar critérios que verificassem
se chegar pode ser considerado um auxiliar quando seguido de infinitivo e (ii) analisar o
papel de tal verbo na perífrase. Em Bertucci & Foltran (2007), já havíamos mostrado
que chegar é um verdadeiro verbo auxiliar no contexto em análise. Agora,
apresentamos dois testes, retirados de Bertucci (2007), para mostrar ao leitor alguns
critérios usados na caracterização de chegar como auxiliar.
O primeiro é relacionado à seleção dos argumentos. Pontes (1973) e Perini
(2001) afirmam que os verbos auxiliares não influenciam na escolha de argumentos de
uma sentença. Quem faz a seleção dos argumentos é o verbo principal. Isso fica claro
nos exemplos (2), (3) e (4).
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(2)
a. Paulo leu.
b. Paulo vai ler.
(3)
a. #A pedra leu.1
b. #A pedra vai ler.
(4)
a. A pedra caiu.
b. A pedra vai cair.
Este é um critério conhecido como o da detematização. O verbo ler seleciona o
argumento externo em (2) e é ele mesmo que impede a seleção de a pedra em (3). Se o
auxiliar (vai) fosse o responsável pelo bloqueio, não permitiria a seleção de (4b). No
entanto, como em (4a), a seleção de a pedra – em 4b – foi possível porque foi feita pelo
verbo cair, o NdP2. Assim, entendemos que a presença do vai não mudou o critério de
seleção, portanto o verbo ir, aí, funciona como auxiliar. Mioto et alii (2004) propõem o
mesmo teste para a seleção argumental e afirmam que isso faz parte da restrição
semântica (s-seleção) que um determinado núcleo faz com relação aos argumentos que
co-ocorrem com ele na sentença. Os testes com chegar demonstraram que ele não
participa da seleção dos elementos que co-ocorrem na sentença. Isso fica por conta do
verbo chamado principal.
(5)
a. A pedra chegou a rolar.
b. A pedra rolou.
c. #A pedra chegou a chorar.
d. #A pedra chorou.
As sentenças (5a-b) mostram que o sujeito, mesmo inanimado, é aceito em uma
sentença com chegar, pois a seleção desse sujeito é feita pelo verbo principal, no caso,
rolar. Pelo mesmo motivo, (5c-d) não é aceita: o sujeito, a pedra, não é compatível com
chorar, que exige um argumento, no mínimo, animado. Assim, verificamos que chegar,
como auxiliar, não interfere na seleção dos argumentos, que é feita pelo verbo principal.
O segundo critério vem do trabalho de Longo & Campos (2002, p. 447). Elas
mostram que os verbos auxiliares formam com a base um grupo indissociável. Se
pudermos desmembrar o grupo verbal em dois núcleos oracionais, não há auxiliaridade.
(6)
a. Júlia sonhava comprar uma Ferrari.
b. Júlia sonhava que compraria uma Ferrari.
(7)
a. Júlia acabava de comprar uma Ferrari.
b. *Júlia acabava de que compraria uma Ferrari.3
Claramente constatamos que chegar a+infinitivo comporta-se como acabar de.
(8)
a. Júlia chegou a comprar uma Ferrari.
b. *Júlia chegou a que comprava uma Ferrari.
Apontando evidências que comprovam que chegar não é uma auxiliar de voz,
tempo ou modo, o trabalho de Bertucci (2007) dedicou-se a analisar um pouco mais
detalhadamente a questão aspectual. Isso porque o trabalho mais completo sobre o
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auxiliar chegar – Almeida,1980 – argumenta que esse verbo estaria na lista dos
auxiliares que indicam o aspecto terminativo. No entanto, tal idéia é discutível.
Assim como Travaglia (1985), Almeida (1980) considera o aspecto terminativo
como aquele que mostra a ação do verbo no infinitivo em seu término ou em seus
momentos finais. Se chegar fosse como terminar, ele deveria mostrar que a ação
denotada pelo verbo principal está no fim ou já terminou.
(9)
a. Ivo terminou de pintar a parede.
b. Ivo está terminando de pintar a parede.
(10) a. Ivo chegou a pintar a parede.
b. *Ivo está chegando a pintar a parede.
Em (9), terminar indica o fim da ação de pintar. Daí o aspecto terminativo: o
fim, ou os momentos finais de determinada ação. Em (10), o fim da pintura não é
indicado por chegar. Além disso, um progressivo para indicar os momentos finais da
pintura com o verbo terminar (9b) é perfeitamente gramatical, mas não funciona com o
verbo chegar (10b). Em Bertucci (2007) já se disse que chegar não se insere em
qualquer classe aspectual – ou pelo menos nas mais tradicionais – nem na classe dos
terminativos, como afirma Almeida (1980). No próximo item, portanto, vamos
apresentar o que Bertucci (2007) propõe em sua análise para chegar. No item 3,
comparamos chegar e até e analisamos o papel de ambos na tarefa de projetar escalas.
2. Chegar como um operador de escala
Como já dissemos, chegar não se comporta como um verbo auxiliar clássico,
por não se acomodar nas funções de significar tempo, voz, modo ou aspecto. Por isso,
Bertucci (2007) faz uma proposta de análise para esse verbo em sentenças do PB. A
partir de leituras sobre escalas (Fauconnier, 1975, e Ducrot, 1981), o autor propõe que
tal verbo seja um operador de escala. Neste artigo, apresentamos apenas a análise do
autor sob o ponto de vista das escalas pragmáticas de Fauconnier (1975).
2.1. Escalas pragmáticas
Ao analisar os superlativos, Fauconnier (1975) constata que alguns teriam um
comportamento semelhante a um quantificador universal. Vejamos exemplos do autor.
(11) The faintest noise bothers my uncle.
‘O menor/ mais baixo ruído incomoda meu tio’.
(12) He did not hear the faintest noise.
‘Ele não ouviu o menor/ mais baixo ruído.
O autor entende que, enquanto em (11) o superlativo funciona como um
quantificador universal, em (12) ele pode ser um existencial negado. Nesses casos, o
superlativo estaria no lugar de any e teria as mesmas propriedades desse quantificador.
(13) Any noise bothers my uncle.
‘Qualquer ruído incomoda meu tio’.
(14) He did not hear any noise.
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‘Ele não ouviu qualquer ruído’.
Fauconnier (op. cit., p. 361) assume que os superlativos expressam pontos mais
altos ou mais baixos em uma escala pragmática. Por exemplo, para uma dimensão dada
(ruído), haveria dois extremos (mais alto – mais baixo) e um elemento Y (meu tio/ ele)
participando do predicado (incomodar). Entre os extremos, haveria pontos (x1, x2, x3).
Escala S
ponto mais alto
x1
x2
x3
ponto mais baixo
O autor entende que o ponto mais baixo de uma escala pragmática pressupõe os
demais (x3, x2, x1 e o ponto mais alto). Em uma sentença como (11), o superlativo seria o
ponto mais baixo, indicando que qualquer outro ruído – conseqüentemente mais alto –
também incomodaria o tio. Nesse caso, portanto, os superlativos seriam responsáveis
por serem elementos de maior informatividade: o elemento mais baixo na escala (que é
o mais forte) informa mais que o elemento imediatamente acima dele e assim
sucessivamente, sendo que o mais alto é o menos informativo.
Fauconnier (1975, p. 364) também diz que, em inglês, o even “marca a
existência de uma escala de probabilidade pragmática”.
(15) Even Alceste came to the party.
‘Até Alceste veio à festa’.
Posto: Alceste veio à festa.
Pressuposto: Todos os outros também vieram.
Em (15), o even indicaria que Alceste é o ponto mais baixo da escala de
probabilidade pragmática. Nessa escala, Alceste seria um daqueles com menos chances
de aparecer na festa, mas até ele foi, o que pressupõe que todas as pessoas esperadas
para a festa também apareceram. É novamente uma questão de maior informatividade.
A partir dessas análises, Bertucci (2007) propõe uma leitura semelhante para o
auxiliar chegar. Vejamos o exemplo (16).
(16) Cinco anos antes do previsto, foi anunciado o término do seqüenciamento
do genoma humano. A corrida atrás da identificação de todos os genes do Homo sapiens
envolve laboratórios de 18 países, liderados por instituições dos Estados Unidos e do
Reino Unido, e consumiu estimados US$ 3 bilhões, sem contar a injeção final de
recursos, necessária para apressar o fim dessa primeira etapa e fazer frente a grupos
privados que ameaçavam terminar antes a “façanha do século”. Trata-se, sem dúvida, de
uma primeira etapa, porque o Projeto Genoma Humano representa, na verdade, apenas
uma enorme base de dados, que os cientistas precisam entender em detalhe para um dia
chegar a manipulá-los. Para os geneticistas, há trabalho para mais de um século de
pesquisa. (Ciência Hoje, n. 28, p. 22-3.)
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Nesse caso, o próprio contexto apresenta a escala. A etapa mais importante, de
acordo com o contexto, é a manipulação dos dados apresentados nos genes. A segunda
etapa é entender essa base de dados e a primeira, que foi alcançada pelos cientistas, é o
seqüenciamento do genoma (que é a base de dados). Na escala, ficaria assim:
1.ª
seqüenciamento dos dados
2.ª
entendimento dos dados
3.ª
manipulação dos dados
Nesta seção, procuramos evidenciar que chegar tem uma leitura semelhante a de
outros operadores de escala, como os superlativos e o até. Deixamos para o próximo
item a comparação entre esses operadores em PB.
3. Operadores de escala
3.1. Análises de even, hasta e até
Para Francescotti (1995, p.172), o even (até) tem sempre a idéia de surpresa, de
inesperado – como acontece em (17) com a reprovação de Albert – e o “até é um termo
escalar, já que o inesperado vem em etapas”. Kay (apud Francescotti, 1995) afirma que
utilizar o even é um modo de oferecer algo mais argumentativo, mais relevante para
uma determinada conclusão, concordando com a teoria de Ducrot (1981).
(17) Even Albert failed the exam.
‘Até Albert reprovou no teste.’
Nessa sentença, só podemos entender que Albert tinha boas condições de passar
no teste e, talvez, que ele fosse o mais apto a passar ou o menos provável de reprovar.
Assim, (17) indica que, se até Albert reprovou, outros também reprovaram. Francescotti
(1995) considera que, se Albert não fosse o mais apto a passar no teste e sua reprovação
fosse praticamente certa, a sentença (17) seria ruim.
Numa comparação entre hasta (espanhol) e até (português), Grolla (2004)
mostra que ambas preposições podem denotar em seus DPs4 os graus de uma escala.
(18) a. A temperatura subia até 90ºC.
b. La temperatura subió hasta (los) 90ºC.
(19) a. O João cresceu até 2m.
b. Juan creció hasta 2m.
A autora explica: “em sentenças como essas, hasta e até tomam os sintagmas 2
metros e 90ºC como argumentos. Tais argumentos são graus de uma escala” (Grolla,
2004, p. 295). E conclui: “[hasta e até] indicam que um elemento atingiu o fim de um
determinado objetivo ou o ponto final de um deslocamento”.(idem, p. 297).
3.2. Chegar e até: comparação entre operadores de escala
Assim como dito para as preposições hasta e até, chegar se estabelece como um
operador de escalaridade na sentença. Se para Francescotti (1995) o até marca a
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surpresa na sentença e para Fauconnier (1975) escolhe o termo mais informativo de uma
escala de probabilidade, vimos que chegar escolhe o termo mais informativo da
sentença. Na mesma direção, Grolla (2004) conclui para hasta e até, que os elementos
posteriores a eles funcionam como ponto final para a escala, o sintagma que segue o
auxiliar chegar é o grau de uma determinada escala, funcionando como um ponto final.
Comparando as sentenças:
(20) a. Evans kissed Mary even before he knew her name.
b. Evans beijou Mary até antes de saber o nome dela.
c. Evans chegou a beijar Mary antes de saber o nome dela.
(21) a. A temperatura subia até 40ºC.
b. La temperatura subió hasta (los) 40ºC.
c. A temperatura chegava a atingir os 40ºC.
d. A temperatura chegava aos 40ºC.
A tradução de (20a) em (20b) é equivalente. Note o leitor que a chamada
“surpresa”, de que já se falou na discussão sobre até (even), é dada por todo o sintagma
posterior em (20c). Já em (21), os exemplos (similares no sentido) mostram o caráter de
escala dado por chegar. Mesmo quando não é auxiliar, mas principal (21d), o verbo
indica que o seu complemento é um grau em uma dada escala, característica encontrada
por Grolla (2004) para as preposições estudadas.
Uma diferença importante está no aspecto sintático, por conta da flutuação na
sentença: enquanto o até pode flutuar, antecedendo sujeito, verbo, objetos e adjuntos,
chegar prende-se à posição que antecede o verbo no infinito, na maioria das vezes,
ligado a este infinitivo por meio da preposição a. Dessa forma, notamos que o falante só
pode utilizar o auxiliar chegar antes de eventualidades, enquanto tem a liberdade de
escolher outros sintagmas para suceder o até. A flutuação de até ocasiona uma mudança
de escopo que faz com que tenhamos diferenças de sentido entre as sentenças.
(22) a. Até Pedro brigou com a Maria.
b. Pedro até brigou com a Maria.
c. Pedro brigou até com a Maria.
Na sentença (22a), o escopo de até recai sobre o sujeito Pedro (NP) e uma
interpretação possível seria a de que todo mundo brigou com Maria, inclusive Pedro,
aquele que provavelmente não o faria. Portanto, ao ter o NP sob seu escopo, o até
projeta uma escala com outros elementos do mesmo tipo. Assim, neste caso, Pedro se
contrapõe a João, ao pai de Maria, a Sílvia etc. Em (22b) o escopo recai sobre brigou
(V) e se entende que dentre várias atitudes que Pedro teve com Maria, a mais relevante
foi que ele brigou, uma atitude talvez pouco provável de acontecer (esperada).Agora, a
escala projetada contém outras eventualidades, como concordar, chamar atenção, etc.
Finalmente, em (22c) o escopo recai sobre o argumento do verbo com a Maria (PP) e a
interpretação é de que Pedro brigou com todo mundo, inclusive com quem era menos
provável: Maria. Novamente, a escala projetada teria elementos da mesma natureza.
Como auxiliar e como verbo, chegar só pode ficar em posição anterior ao
verbo no infinitivo, com a ligação da preposição a. Perceba o leitor que, em outras
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posições ocupadas pelo até, quando colocamos chegar, geramos uma sentença
agramatical. Portanto, chegar só pode escalonar eventualidades.
(23) a. *Chegou a Pedro brigar com a Maria.
b. Pedro chegou a brigar com a Maria.
c. *Pedro brigar chegou a com a Maria.
Um caso interessante, é que chegar e até podem estar juntos numa mesma
sentença. Nesses casos, dependendo da posição de até, o escopo dos operadores será
diferente, mas eles podem operar sobre um mesmo elemento.
(24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria.
b. Pedro até chegou a brigar com a Maria.
c. Pedro chegou até a brigar com a Maria.
d. Pedro chegou a brigar até com a Maria.
Na sentença (24a), chegar, cujo escopo é brigar com Maria, indica que entre as
atitudes tomadas contra Maria, a mais alta foi brigarem com ela; o até indica que esse
ato foi praticado por alguém que provavelmente não o faria: Pedro, que é o escopo de
até. Portanto, aí, chegar e até tem sob seu escopo elementos diferentes. O mesmo se
pode dizer para (24d), em que chegar e até funcionam como operadores disjuntos. O
que nos intriga são as sentenças (24b-c), em que chegar e até estão associados. Para
esses casos, levantamos duas hipóteses: a) eles têm o mesmo valor semântico e o papel
de até é de ênfase ou redundância; b) eles têm valores semânticos diferentes e
precisamos explicitar o papel de cada um. Num primeiro momento consideramos os
dois similares, e explicamos a utilização de dois operadores como sendo uma questão de
ênfase. Apesar disso, é preciso dizer que, mesmo juntos, os escopos são diferentes: o de
chegar é brigar com Maria e o de até, chegou a brigar com Maria. A sentença (24d)
tem chegar com escopo sobre brigar e até com escopo sobre com a Maria. A
interpretação é de que Pedro fez uma atitude pouco provável (brigar) contra uma pessoa
com alguém que tinha poucas probabilidades de sofrer tal atitude (Maria).
Na segunda hipótese – a de que eles têm papéis diferentes – levantamos a
possibilidade de até, diferentemente de chegar, levar ao ponto extremo da escala.
Assim, chegar a brigar com a Maria seria o ponto máximo a que Pedro poderia chegar.
Enquanto, só o chegar leva a pressupor que brigar com a Maria é um ponto alto na
escala, mas não se pronuncia em relação ao ponto extremo.
3.3. A negação
Uma abordagem interessante feita por Fauconnier (1975) é com relação à
negação das sentenças em que há os superlativos. Para o autor, se um determinado
superlativo está no ponto mais alto ou mais baixo da tabela a negação fará com que ele
tome a posição extremamente inversa na escala. Observemos um exemplo:
(25) The loudest noise doesn’t bother my uncle.
‘O mais alto ruído não incomoda meu tio’.
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Parece claro que, se o ruído mais alto não incomoda o elemento Y, um ruído um
pouco mais baixo também não o incomodaria e o mais baixo ruído, muito menos. A
escala fica assim:
Escala S – negação
ponto mais baixo
x3
x2
x1
ponto mais alto
Fauconnier (1975) afirma que essa possibilidade de derivar uma sentença da
outra vem do fato de a escala ter subpartes em que há acarretamento. Assim, se x3
acarreta x2, que acarreta x1, sendo x3 verdadeira, x2 e x1 também são verdadeiras.
A negação com o auxiliar chegar sugere que o sujeito não atingiu o ponto
mínimo de uma escala marcada pelo infinitivo (com seus complementos e adjuntos),
como vemos em (26).
(26) O principal da língua é a capacidade de expressão, de construir
pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis. Esta capacidade é que está se
perdendo progressivamente. A gente conversa com um jovem e vê que o falar é
interrompido a todo o momento. Muitas vezes ele não chega a completar a frase.
(Jornal do Brasil, 28 dez.1996)
Nessa sentença, a discussão é sobre a perda da capacidade de uso da língua de
acordo com a concepção de José Paulo Paes, autor da frase. Ele considera que o ponto
mais alto da língua – que acarreta outros – “é a capacidade de expressão, de construir
pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis”. O ponto mínimo é completar a
frase. Observemos, nas escalas a seguir, que a negação inverte esses valores.
Afirmação
(ponto mais baixo) completar a
frase
Negação
(ponto mais baixo) não construir e
transmitir pensamentos
x3
x1
x2 falar não é interrompido
x2 falar é interrompido
x1
x3
(ponto mais alto) construir e
transmitir pensamentos
(ponto mais alto) não completar a
frase
Se o falante for capaz de cumprir com aquilo que afirma José Paulo Paes (o
ponto mais alto da afirmação: construir e transmitir pensamentos) é possível ver na
escala que isso acarreta os outros elementos, ou seja, o falante não interrompe as falas e
completa as frases.
A negação com chegar ainda pode ocorrer por meio do nem, combinado com
outros elementos, como vemos a seguir.
(27) a. Pedro nem chegou a brigar com Maria.
b. Pedro nem sequer chegou a brigar com Maria.
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c. Pedro nem mesmo chegou a brigar com Maria.
Um fato curioso em PB é que o até não pode ser antecedido por não (28a), ao
contrário do chegar (28b). No entanto, com a negação do verbo, até pode escolher
outras posições (28c-d). Esse fato reitera uma diferença sintática entre os elementos: até
pode escolher diversos elementos como escopo, por causa das diferentes posições que
pode ocupar numa sentença, enquanto chegar, pela posição fixa de anterioridade a um
verbo no infinitivo, só escolhe como escopo eventualidades.
(28)
a. * Pedro não até brigou com Maria.
b. Pedro não chegou a brigar com Maria.
c. Até Pedro não chegou a brigar com Maria.
d. Pedro até não chegou a brigar com Maria, mas olhou feio pra ela.
O que percebemos ainda é que o nem pode fazer o papel de até como um
operador de escala aliado à negação. Ele toma, aparentemente os mesmos escopos de
até. Repetimos aqui as sentenças (24a-b) e formulamos suas negações em (29a-b).
(24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria.
b. Pedro até chegou a brigar com a Maria.
(29) a. Nem Pedro chegou a brigar com a Maria.
b. Pedro nem chegou a brigar com a Maria.
No caso de (30a-b), parece-nos muito ruim, ou pelo menos pouco produtivo,
fazer a negação e manter o até, mas é possível substituí-lo pelo nem, como em (30c-d).
(30) a. (??) Pedro não chegou até a brigar com a Maria.
b. (??) Pedro não chegou a brigar até com a Maria.
c. Pedro não chegou nem a brigar com a Maria.
d. Pedro não chegou a brigar nem com a Maria.
Como já afirmamos no final do item 2, não sabemos ainda porque é possível
associar dois operadores escalares numa mesma sentença, nem por que o falante faz
isso. Não estamos certos se é questão de ênfase ou de natureza semântica, embora pelos
exemplos analisados, parece-nos ser o segundo caso. O fato é que a presença da
negação faz com que o escopo mude de posição na escala: enquanto na afirmação ele é
o menos informativo, na negação passa a ser o mais informativo, aquele que pressupõe
os demais. E isso é uma semelhança entre os operadores chegar e até.
4. Conclusão
Percebemos que a utilização de chegar como verbo auxiliar tem semelhanças
com até, entre elas, a de ser um operador que indica o ponto mais informativo de uma
determinada escala pragmática. A principal diferença é com relação ao posicionamento
de ambos na sentença, o que ocasiona uma mudança de escopo e, conseqüentemente, de
interpretação da sentença: enquanto até pode anteceder NP, VP, PP e outros sintagmas,
o auxiliar chegar antecede apenas o verbo no infinitivo, sempre ligado pela preposição
a. Com relação à negação, justamente pela flutuação na sentença, até tem mais
restrições quanto à negação e, na maioria das vezes, parece ser substituído pelo nem
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como um operador de negação. Já o chegar, como não muda de posição, pode ser
antecedido por negação, seja pelo não ou outro termo, como nem ou sequer.
Notas
Usaremos o sinal #, para representar anomalia semântica.
Núcleo do predicado, conforme Perini (2001).
Os exemplos (6) e (7) são de Longo & Campos (2002).
Determiner Phrases.
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4
Referências
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