Operadores de escala: uma comparação entre chegar e até 1 2 Roberlei Alves Bertucci1, Maria José Foltran2 Universidade Federal do Paraná – Mestrado em Estudos Lingüísticos (PG-UFPR) [email protected] – Curitiba – PR – Brasil Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas - Universidade Federal do Paraná (UFPR/CNPq) [email protected] – Curitiba – PR – Brasil Abstract. Bertucci (2007), in his work about chegar in Brazilian Portuguese, arguments that this verb has characteristics of an auxiliary and a scale operator. After that, the author compares chegar with até and he saw that both these words can function as scale operators. In this article, (i) we present the ideas the led the author to this analysis about chegar and (ii) we discuss the behavior of chegar and até like scale operators. Keywords: semantics, scale operators Resumo. Em seu trabalho sobre chegar, Bertucci (2007) argumenta que esse verbo tem características de auxiliar e de operador de escala. No trabalho citado, ele compara resumidamente chegar e até, alegando que os dois funcionam como operadores de escala. Neste artigo, (i) apresentamos as bases que levaram o autor a uma análise assim sobre o verbo chegar e (ii) discutimos mais detalhadamente o funcionamento de chegar e até como operadores de escala. Palavras-chave: semântica, operadores de escala 1. Introdução A literatura a respeito da perífrase chegar a+infinitivo em PB é um tanto confusa. Autores como Almeida (1980) e Neves (2000), aceitam chegar, em tal contexto, como um auxiliar, enquanto outros – Travaglia (1985) ou Luft (2003) –, não. Por outro lado, entre os autores que o consideram um auxiliar em casos como (1), parece haver uma concordância quanto ao papel de chegar: indicar um resultado (uma conseqüência). (1) Pedro chegou a esmolar. Dessa forma, o que Bertucci (2007) fez foi (i) buscar critérios que verificassem se chegar pode ser considerado um auxiliar quando seguido de infinitivo e (ii) analisar o papel de tal verbo na perífrase. Em Bertucci & Foltran (2007), já havíamos mostrado que chegar é um verdadeiro verbo auxiliar no contexto em análise. Agora, apresentamos dois testes, retirados de Bertucci (2007), para mostrar ao leitor alguns critérios usados na caracterização de chegar como auxiliar. O primeiro é relacionado à seleção dos argumentos. Pontes (1973) e Perini (2001) afirmam que os verbos auxiliares não influenciam na escolha de argumentos de uma sentença. Quem faz a seleção dos argumentos é o verbo principal. Isso fica claro nos exemplos (2), (3) e (4). ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 167 (2) a. Paulo leu. b. Paulo vai ler. (3) a. #A pedra leu.1 b. #A pedra vai ler. (4) a. A pedra caiu. b. A pedra vai cair. Este é um critério conhecido como o da detematização. O verbo ler seleciona o argumento externo em (2) e é ele mesmo que impede a seleção de a pedra em (3). Se o auxiliar (vai) fosse o responsável pelo bloqueio, não permitiria a seleção de (4b). No entanto, como em (4a), a seleção de a pedra – em 4b – foi possível porque foi feita pelo verbo cair, o NdP2. Assim, entendemos que a presença do vai não mudou o critério de seleção, portanto o verbo ir, aí, funciona como auxiliar. Mioto et alii (2004) propõem o mesmo teste para a seleção argumental e afirmam que isso faz parte da restrição semântica (s-seleção) que um determinado núcleo faz com relação aos argumentos que co-ocorrem com ele na sentença. Os testes com chegar demonstraram que ele não participa da seleção dos elementos que co-ocorrem na sentença. Isso fica por conta do verbo chamado principal. (5) a. A pedra chegou a rolar. b. A pedra rolou. c. #A pedra chegou a chorar. d. #A pedra chorou. As sentenças (5a-b) mostram que o sujeito, mesmo inanimado, é aceito em uma sentença com chegar, pois a seleção desse sujeito é feita pelo verbo principal, no caso, rolar. Pelo mesmo motivo, (5c-d) não é aceita: o sujeito, a pedra, não é compatível com chorar, que exige um argumento, no mínimo, animado. Assim, verificamos que chegar, como auxiliar, não interfere na seleção dos argumentos, que é feita pelo verbo principal. O segundo critério vem do trabalho de Longo & Campos (2002, p. 447). Elas mostram que os verbos auxiliares formam com a base um grupo indissociável. Se pudermos desmembrar o grupo verbal em dois núcleos oracionais, não há auxiliaridade. (6) a. Júlia sonhava comprar uma Ferrari. b. Júlia sonhava que compraria uma Ferrari. (7) a. Júlia acabava de comprar uma Ferrari. b. *Júlia acabava de que compraria uma Ferrari.3 Claramente constatamos que chegar a+infinitivo comporta-se como acabar de. (8) a. Júlia chegou a comprar uma Ferrari. b. *Júlia chegou a que comprava uma Ferrari. Apontando evidências que comprovam que chegar não é uma auxiliar de voz, tempo ou modo, o trabalho de Bertucci (2007) dedicou-se a analisar um pouco mais detalhadamente a questão aspectual. Isso porque o trabalho mais completo sobre o 168 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 auxiliar chegar – Almeida,1980 – argumenta que esse verbo estaria na lista dos auxiliares que indicam o aspecto terminativo. No entanto, tal idéia é discutível. Assim como Travaglia (1985), Almeida (1980) considera o aspecto terminativo como aquele que mostra a ação do verbo no infinitivo em seu término ou em seus momentos finais. Se chegar fosse como terminar, ele deveria mostrar que a ação denotada pelo verbo principal está no fim ou já terminou. (9) a. Ivo terminou de pintar a parede. b. Ivo está terminando de pintar a parede. (10) a. Ivo chegou a pintar a parede. b. *Ivo está chegando a pintar a parede. Em (9), terminar indica o fim da ação de pintar. Daí o aspecto terminativo: o fim, ou os momentos finais de determinada ação. Em (10), o fim da pintura não é indicado por chegar. Além disso, um progressivo para indicar os momentos finais da pintura com o verbo terminar (9b) é perfeitamente gramatical, mas não funciona com o verbo chegar (10b). Em Bertucci (2007) já se disse que chegar não se insere em qualquer classe aspectual – ou pelo menos nas mais tradicionais – nem na classe dos terminativos, como afirma Almeida (1980). No próximo item, portanto, vamos apresentar o que Bertucci (2007) propõe em sua análise para chegar. No item 3, comparamos chegar e até e analisamos o papel de ambos na tarefa de projetar escalas. 2. Chegar como um operador de escala Como já dissemos, chegar não se comporta como um verbo auxiliar clássico, por não se acomodar nas funções de significar tempo, voz, modo ou aspecto. Por isso, Bertucci (2007) faz uma proposta de análise para esse verbo em sentenças do PB. A partir de leituras sobre escalas (Fauconnier, 1975, e Ducrot, 1981), o autor propõe que tal verbo seja um operador de escala. Neste artigo, apresentamos apenas a análise do autor sob o ponto de vista das escalas pragmáticas de Fauconnier (1975). 2.1. Escalas pragmáticas Ao analisar os superlativos, Fauconnier (1975) constata que alguns teriam um comportamento semelhante a um quantificador universal. Vejamos exemplos do autor. (11) The faintest noise bothers my uncle. ‘O menor/ mais baixo ruído incomoda meu tio’. (12) He did not hear the faintest noise. ‘Ele não ouviu o menor/ mais baixo ruído. O autor entende que, enquanto em (11) o superlativo funciona como um quantificador universal, em (12) ele pode ser um existencial negado. Nesses casos, o superlativo estaria no lugar de any e teria as mesmas propriedades desse quantificador. (13) Any noise bothers my uncle. ‘Qualquer ruído incomoda meu tio’. (14) He did not hear any noise. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 169 ‘Ele não ouviu qualquer ruído’. Fauconnier (op. cit., p. 361) assume que os superlativos expressam pontos mais altos ou mais baixos em uma escala pragmática. Por exemplo, para uma dimensão dada (ruído), haveria dois extremos (mais alto – mais baixo) e um elemento Y (meu tio/ ele) participando do predicado (incomodar). Entre os extremos, haveria pontos (x1, x2, x3). Escala S ponto mais alto x1 x2 x3 ponto mais baixo O autor entende que o ponto mais baixo de uma escala pragmática pressupõe os demais (x3, x2, x1 e o ponto mais alto). Em uma sentença como (11), o superlativo seria o ponto mais baixo, indicando que qualquer outro ruído – conseqüentemente mais alto – também incomodaria o tio. Nesse caso, portanto, os superlativos seriam responsáveis por serem elementos de maior informatividade: o elemento mais baixo na escala (que é o mais forte) informa mais que o elemento imediatamente acima dele e assim sucessivamente, sendo que o mais alto é o menos informativo. Fauconnier (1975, p. 364) também diz que, em inglês, o even “marca a existência de uma escala de probabilidade pragmática”. (15) Even Alceste came to the party. ‘Até Alceste veio à festa’. Posto: Alceste veio à festa. Pressuposto: Todos os outros também vieram. Em (15), o even indicaria que Alceste é o ponto mais baixo da escala de probabilidade pragmática. Nessa escala, Alceste seria um daqueles com menos chances de aparecer na festa, mas até ele foi, o que pressupõe que todas as pessoas esperadas para a festa também apareceram. É novamente uma questão de maior informatividade. A partir dessas análises, Bertucci (2007) propõe uma leitura semelhante para o auxiliar chegar. Vejamos o exemplo (16). (16) Cinco anos antes do previsto, foi anunciado o término do seqüenciamento do genoma humano. A corrida atrás da identificação de todos os genes do Homo sapiens envolve laboratórios de 18 países, liderados por instituições dos Estados Unidos e do Reino Unido, e consumiu estimados US$ 3 bilhões, sem contar a injeção final de recursos, necessária para apressar o fim dessa primeira etapa e fazer frente a grupos privados que ameaçavam terminar antes a “façanha do século”. Trata-se, sem dúvida, de uma primeira etapa, porque o Projeto Genoma Humano representa, na verdade, apenas uma enorme base de dados, que os cientistas precisam entender em detalhe para um dia chegar a manipulá-los. Para os geneticistas, há trabalho para mais de um século de pesquisa. (Ciência Hoje, n. 28, p. 22-3.) 170 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 Nesse caso, o próprio contexto apresenta a escala. A etapa mais importante, de acordo com o contexto, é a manipulação dos dados apresentados nos genes. A segunda etapa é entender essa base de dados e a primeira, que foi alcançada pelos cientistas, é o seqüenciamento do genoma (que é a base de dados). Na escala, ficaria assim: 1.ª seqüenciamento dos dados 2.ª entendimento dos dados 3.ª manipulação dos dados Nesta seção, procuramos evidenciar que chegar tem uma leitura semelhante a de outros operadores de escala, como os superlativos e o até. Deixamos para o próximo item a comparação entre esses operadores em PB. 3. Operadores de escala 3.1. Análises de even, hasta e até Para Francescotti (1995, p.172), o even (até) tem sempre a idéia de surpresa, de inesperado – como acontece em (17) com a reprovação de Albert – e o “até é um termo escalar, já que o inesperado vem em etapas”. Kay (apud Francescotti, 1995) afirma que utilizar o even é um modo de oferecer algo mais argumentativo, mais relevante para uma determinada conclusão, concordando com a teoria de Ducrot (1981). (17) Even Albert failed the exam. ‘Até Albert reprovou no teste.’ Nessa sentença, só podemos entender que Albert tinha boas condições de passar no teste e, talvez, que ele fosse o mais apto a passar ou o menos provável de reprovar. Assim, (17) indica que, se até Albert reprovou, outros também reprovaram. Francescotti (1995) considera que, se Albert não fosse o mais apto a passar no teste e sua reprovação fosse praticamente certa, a sentença (17) seria ruim. Numa comparação entre hasta (espanhol) e até (português), Grolla (2004) mostra que ambas preposições podem denotar em seus DPs4 os graus de uma escala. (18) a. A temperatura subia até 90ºC. b. La temperatura subió hasta (los) 90ºC. (19) a. O João cresceu até 2m. b. Juan creció hasta 2m. A autora explica: “em sentenças como essas, hasta e até tomam os sintagmas 2 metros e 90ºC como argumentos. Tais argumentos são graus de uma escala” (Grolla, 2004, p. 295). E conclui: “[hasta e até] indicam que um elemento atingiu o fim de um determinado objetivo ou o ponto final de um deslocamento”.(idem, p. 297). 3.2. Chegar e até: comparação entre operadores de escala Assim como dito para as preposições hasta e até, chegar se estabelece como um operador de escalaridade na sentença. Se para Francescotti (1995) o até marca a ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 171 surpresa na sentença e para Fauconnier (1975) escolhe o termo mais informativo de uma escala de probabilidade, vimos que chegar escolhe o termo mais informativo da sentença. Na mesma direção, Grolla (2004) conclui para hasta e até, que os elementos posteriores a eles funcionam como ponto final para a escala, o sintagma que segue o auxiliar chegar é o grau de uma determinada escala, funcionando como um ponto final. Comparando as sentenças: (20) a. Evans kissed Mary even before he knew her name. b. Evans beijou Mary até antes de saber o nome dela. c. Evans chegou a beijar Mary antes de saber o nome dela. (21) a. A temperatura subia até 40ºC. b. La temperatura subió hasta (los) 40ºC. c. A temperatura chegava a atingir os 40ºC. d. A temperatura chegava aos 40ºC. A tradução de (20a) em (20b) é equivalente. Note o leitor que a chamada “surpresa”, de que já se falou na discussão sobre até (even), é dada por todo o sintagma posterior em (20c). Já em (21), os exemplos (similares no sentido) mostram o caráter de escala dado por chegar. Mesmo quando não é auxiliar, mas principal (21d), o verbo indica que o seu complemento é um grau em uma dada escala, característica encontrada por Grolla (2004) para as preposições estudadas. Uma diferença importante está no aspecto sintático, por conta da flutuação na sentença: enquanto o até pode flutuar, antecedendo sujeito, verbo, objetos e adjuntos, chegar prende-se à posição que antecede o verbo no infinito, na maioria das vezes, ligado a este infinitivo por meio da preposição a. Dessa forma, notamos que o falante só pode utilizar o auxiliar chegar antes de eventualidades, enquanto tem a liberdade de escolher outros sintagmas para suceder o até. A flutuação de até ocasiona uma mudança de escopo que faz com que tenhamos diferenças de sentido entre as sentenças. (22) a. Até Pedro brigou com a Maria. b. Pedro até brigou com a Maria. c. Pedro brigou até com a Maria. Na sentença (22a), o escopo de até recai sobre o sujeito Pedro (NP) e uma interpretação possível seria a de que todo mundo brigou com Maria, inclusive Pedro, aquele que provavelmente não o faria. Portanto, ao ter o NP sob seu escopo, o até projeta uma escala com outros elementos do mesmo tipo. Assim, neste caso, Pedro se contrapõe a João, ao pai de Maria, a Sílvia etc. Em (22b) o escopo recai sobre brigou (V) e se entende que dentre várias atitudes que Pedro teve com Maria, a mais relevante foi que ele brigou, uma atitude talvez pouco provável de acontecer (esperada).Agora, a escala projetada contém outras eventualidades, como concordar, chamar atenção, etc. Finalmente, em (22c) o escopo recai sobre o argumento do verbo com a Maria (PP) e a interpretação é de que Pedro brigou com todo mundo, inclusive com quem era menos provável: Maria. Novamente, a escala projetada teria elementos da mesma natureza. Como auxiliar e como verbo, chegar só pode ficar em posição anterior ao verbo no infinitivo, com a ligação da preposição a. Perceba o leitor que, em outras 172 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 posições ocupadas pelo até, quando colocamos chegar, geramos uma sentença agramatical. Portanto, chegar só pode escalonar eventualidades. (23) a. *Chegou a Pedro brigar com a Maria. b. Pedro chegou a brigar com a Maria. c. *Pedro brigar chegou a com a Maria. Um caso interessante, é que chegar e até podem estar juntos numa mesma sentença. Nesses casos, dependendo da posição de até, o escopo dos operadores será diferente, mas eles podem operar sobre um mesmo elemento. (24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria. b. Pedro até chegou a brigar com a Maria. c. Pedro chegou até a brigar com a Maria. d. Pedro chegou a brigar até com a Maria. Na sentença (24a), chegar, cujo escopo é brigar com Maria, indica que entre as atitudes tomadas contra Maria, a mais alta foi brigarem com ela; o até indica que esse ato foi praticado por alguém que provavelmente não o faria: Pedro, que é o escopo de até. Portanto, aí, chegar e até tem sob seu escopo elementos diferentes. O mesmo se pode dizer para (24d), em que chegar e até funcionam como operadores disjuntos. O que nos intriga são as sentenças (24b-c), em que chegar e até estão associados. Para esses casos, levantamos duas hipóteses: a) eles têm o mesmo valor semântico e o papel de até é de ênfase ou redundância; b) eles têm valores semânticos diferentes e precisamos explicitar o papel de cada um. Num primeiro momento consideramos os dois similares, e explicamos a utilização de dois operadores como sendo uma questão de ênfase. Apesar disso, é preciso dizer que, mesmo juntos, os escopos são diferentes: o de chegar é brigar com Maria e o de até, chegou a brigar com Maria. A sentença (24d) tem chegar com escopo sobre brigar e até com escopo sobre com a Maria. A interpretação é de que Pedro fez uma atitude pouco provável (brigar) contra uma pessoa com alguém que tinha poucas probabilidades de sofrer tal atitude (Maria). Na segunda hipótese – a de que eles têm papéis diferentes – levantamos a possibilidade de até, diferentemente de chegar, levar ao ponto extremo da escala. Assim, chegar a brigar com a Maria seria o ponto máximo a que Pedro poderia chegar. Enquanto, só o chegar leva a pressupor que brigar com a Maria é um ponto alto na escala, mas não se pronuncia em relação ao ponto extremo. 3.3. A negação Uma abordagem interessante feita por Fauconnier (1975) é com relação à negação das sentenças em que há os superlativos. Para o autor, se um determinado superlativo está no ponto mais alto ou mais baixo da tabela a negação fará com que ele tome a posição extremamente inversa na escala. Observemos um exemplo: (25) The loudest noise doesn’t bother my uncle. ‘O mais alto ruído não incomoda meu tio’. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 173 Parece claro que, se o ruído mais alto não incomoda o elemento Y, um ruído um pouco mais baixo também não o incomodaria e o mais baixo ruído, muito menos. A escala fica assim: Escala S – negação ponto mais baixo x3 x2 x1 ponto mais alto Fauconnier (1975) afirma que essa possibilidade de derivar uma sentença da outra vem do fato de a escala ter subpartes em que há acarretamento. Assim, se x3 acarreta x2, que acarreta x1, sendo x3 verdadeira, x2 e x1 também são verdadeiras. A negação com o auxiliar chegar sugere que o sujeito não atingiu o ponto mínimo de uma escala marcada pelo infinitivo (com seus complementos e adjuntos), como vemos em (26). (26) O principal da língua é a capacidade de expressão, de construir pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis. Esta capacidade é que está se perdendo progressivamente. A gente conversa com um jovem e vê que o falar é interrompido a todo o momento. Muitas vezes ele não chega a completar a frase. (Jornal do Brasil, 28 dez.1996) Nessa sentença, a discussão é sobre a perda da capacidade de uso da língua de acordo com a concepção de José Paulo Paes, autor da frase. Ele considera que o ponto mais alto da língua – que acarreta outros – “é a capacidade de expressão, de construir pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis”. O ponto mínimo é completar a frase. Observemos, nas escalas a seguir, que a negação inverte esses valores. Afirmação (ponto mais baixo) completar a frase Negação (ponto mais baixo) não construir e transmitir pensamentos x3 x1 x2 falar não é interrompido x2 falar é interrompido x1 x3 (ponto mais alto) construir e transmitir pensamentos (ponto mais alto) não completar a frase Se o falante for capaz de cumprir com aquilo que afirma José Paulo Paes (o ponto mais alto da afirmação: construir e transmitir pensamentos) é possível ver na escala que isso acarreta os outros elementos, ou seja, o falante não interrompe as falas e completa as frases. A negação com chegar ainda pode ocorrer por meio do nem, combinado com outros elementos, como vemos a seguir. (27) a. Pedro nem chegou a brigar com Maria. b. Pedro nem sequer chegou a brigar com Maria. 174 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 c. Pedro nem mesmo chegou a brigar com Maria. Um fato curioso em PB é que o até não pode ser antecedido por não (28a), ao contrário do chegar (28b). No entanto, com a negação do verbo, até pode escolher outras posições (28c-d). Esse fato reitera uma diferença sintática entre os elementos: até pode escolher diversos elementos como escopo, por causa das diferentes posições que pode ocupar numa sentença, enquanto chegar, pela posição fixa de anterioridade a um verbo no infinitivo, só escolhe como escopo eventualidades. (28) a. * Pedro não até brigou com Maria. b. Pedro não chegou a brigar com Maria. c. Até Pedro não chegou a brigar com Maria. d. Pedro até não chegou a brigar com Maria, mas olhou feio pra ela. O que percebemos ainda é que o nem pode fazer o papel de até como um operador de escala aliado à negação. Ele toma, aparentemente os mesmos escopos de até. Repetimos aqui as sentenças (24a-b) e formulamos suas negações em (29a-b). (24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria. b. Pedro até chegou a brigar com a Maria. (29) a. Nem Pedro chegou a brigar com a Maria. b. Pedro nem chegou a brigar com a Maria. No caso de (30a-b), parece-nos muito ruim, ou pelo menos pouco produtivo, fazer a negação e manter o até, mas é possível substituí-lo pelo nem, como em (30c-d). (30) a. (??) Pedro não chegou até a brigar com a Maria. b. (??) Pedro não chegou a brigar até com a Maria. c. Pedro não chegou nem a brigar com a Maria. d. Pedro não chegou a brigar nem com a Maria. Como já afirmamos no final do item 2, não sabemos ainda porque é possível associar dois operadores escalares numa mesma sentença, nem por que o falante faz isso. Não estamos certos se é questão de ênfase ou de natureza semântica, embora pelos exemplos analisados, parece-nos ser o segundo caso. O fato é que a presença da negação faz com que o escopo mude de posição na escala: enquanto na afirmação ele é o menos informativo, na negação passa a ser o mais informativo, aquele que pressupõe os demais. E isso é uma semelhança entre os operadores chegar e até. 4. Conclusão Percebemos que a utilização de chegar como verbo auxiliar tem semelhanças com até, entre elas, a de ser um operador que indica o ponto mais informativo de uma determinada escala pragmática. A principal diferença é com relação ao posicionamento de ambos na sentença, o que ocasiona uma mudança de escopo e, conseqüentemente, de interpretação da sentença: enquanto até pode anteceder NP, VP, PP e outros sintagmas, o auxiliar chegar antecede apenas o verbo no infinitivo, sempre ligado pela preposição a. Com relação à negação, justamente pela flutuação na sentença, até tem mais restrições quanto à negação e, na maioria das vezes, parece ser substituído pelo nem ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 175 como um operador de negação. Já o chegar, como não muda de posição, pode ser antecedido por negação, seja pelo não ou outro termo, como nem ou sequer. Notas Usaremos o sinal #, para representar anomalia semântica. Núcleo do predicado, conforme Perini (2001). Os exemplos (6) e (7) são de Longo & Campos (2002). Determiner Phrases. 2 3 4 Referências ALMEIDA, J. de. (1980). Introdução ao estudo das perífrases verbais de infinitivo. Assis-SP: ILHPA - Hucitec. BERTUCCI, R. A. (2007). A auxiliaridade do verbo chegar em português brasileiro. Curitiba: UFPR. Dissertação de mestrado. _____ & FOLTRAN, M. J. (2007). O verbo chegar como auxiliar no português brasileiro. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v.36, n.1, p.162-170, jan.abr./2007. DUCROT, O. (1981). Provar e dizer: linguagem e lógica. São Paulo: Global editora. FAUCONNIER, G. (1975). Pragmatics scales and logical structure. Linguistic Inquiry, v. VI, n. 3. pp. 353-375. FRANCESCOTTI, R. M. (1995). Even: the conventional implicature approach reconsidered. Linguistics and philosophy, n. 18, pp. 153-173. GROLLA, E. (2004). Prepositions, scales and telicity: a case study. Somerville, MA: Cascadilha Press. pp. 293-303. 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