representações sociais de dois grupos de

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE
ANDREA VIANNA CERQUEIRA
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOIS GRUPOS DE PROFESSORES
DE BIOLOGIA SOBRE O ENSINO DE ORIGEM DA VIDA E
EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: ASPIRAÇÕES, AMBIGÜIDADES E
DEMANDAS PROFISSIONAIS
RIO DE JANEIRO
2009
2
ANDREA VIANNA CERQUEIRA
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOIS GRUPOS DE PROFESSORES
DE BIOLOGIA SOBRE O ENSINO DE ORIGEM DA VIDA E
EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: ASPIRAÇÕES, AMBIGÜIDADES E
DEMANDAS PROFISSIONAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa
de
Pós-Graduação
em
Educação em Ciências e Saúde, Núcleo
de Tecnologia Educacional para a Saúde,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisitos parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação em
Ciências e Saúde.
Orientadora: Eliane Brígida Morais Falcão
Laboratório de Estudos da Ciência – NUTES- UFRJ
RIO DE JANEIRO
2009
3
ANDREA VIANNA CERQUEIRA
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOIS GRUPOS DE PROFESSORES
DE BIOLOGIA SOBRE O ENSINO DE ORIGEM DA VIDA E
EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: ASPIRAÇÕES, AMBIGÜIDADES E
DEMANDAS PROFISSIONAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa
de
Pós-Graduação
em
Educação em Ciências e Saúde, Núcleo
de Tecnologia Educacional para a Saúde,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisitos parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação em
Ciências e Saúde.
Rio de Janeiro, ___ de _______ de 2009.
Professora Eliane Brígida Morais Falcão, Doutora, NUTES/UFRJ
Professor Ricardo Moreira Chaloub, Doutor, Instituto de Química/UFRJ
Professora Naara Lúcia de Albuquerque Luna, Doutora, NUTES/UFRJ
4
Para as minhas filhas.
5
“How many roads must a man walk down
Before you call him a man?
Yes, 'n' how many seas must a white dove sail
Before she sleeps in the sand?
Yes, 'n' how many times must the cannon balls fly
Before they're forever banned?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
How many years can a mountain exist
Before it's washed to the sea?
Yes, 'n' how many years can some people exist
Before they're allowed to be free?
Yes, 'n' how many times can a man turn his head,
Pretending he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
How many times must a man look up
Before he can see the sky?
Yes, 'n' how many ears must one man have
Before he can hear people cry?
Yes, 'n' how many deaths will it take till he knows
That too many people have died?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.”
(Bob Dylan, Blowin' In The Wind)
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que, de alguma forma, colaboraram para a realização deste
trabalho:
À Universidade Federal do Rio de Janeiro, que me ofereceu formação ao longo da
licenciatura e do mestrado.
Ao NUTES, por boa parte das descobertas que fiz nos dois últimos anos, pelos novos
amigos da turma de mestrado 2007 e pela possibilidade de revigorar minha prática
pedagógica.
À Profa. Dra. Eliane Brígida Morais Falcão, minha orientadora, pela paciência, pelos
inúmeros ensinamentos e pelas oportunidades de exercício intelectual que me propôs.
Ao Prof. Dr. Flávio Farias, pela revisão cuidadosa dos conteúdos específicos da
Biologia.
A todos aqueles que estiveram ao meu lado: minha mãe Consuelo; Marcinha e
Fernanda, minha super-irmã; Joana, Renata, Déia e Juju, amigas desde sempre e mesmo que
distantes; Guilherme; à família Werneck Vianna, especialmente Maria Lucia, e também aos
seus muitos agregados. Agradeço ainda à querida e saudosa amiga Michele.
Ao amado Dô, meu companheiro de tantas aventuras, que sempre me incentivou.
Obrigada, querido, por caminhar ao meu lado.
À Aurora e Estela, meus maiores tesouros, que me fazem despertar todo dia para um
mundo repleto de amor.
7
RESUMO
Cerqueira, Andrea Vianna. Representações sociais de dois grupos de professores de biologia
sobre o ensino de Origem da Vida e Evolução Biológica: aspirações, ambigüidades e
demandas profissionais. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo
de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
O encontro das crenças religiosas com as explicações científicas nas salas de aula do
ensino médio é tema controverso, que sempre constitui um desafio ao professor. Trabalhos
anteriores reportaram a influência religiosa nas dificuldades de aprendizagem de alguns temas
científicos, embora deficiências no ensino tenham sido algumas vezes sugeridas. Nesta
dissertação, optou-se por investigar as representações sociais sobre o ensino de Origem da
Vida e Evolução Biológica de vinte professores de Biologia atuantes na rede pública de
ensino do município do Rio de Janeiro. Os dados qualitativos foram trabalhados seguindo-se a
metodologia de análise do Discurso do Sujeito Coletivo. Foram identificadas dificuldades
relacionadas: (i) à falta de conhecimentos de Química por parte dos estudantes para a
aprendizagem de Origem da Vida; (ii) à desarticulação de conteúdos científicos apresentados
aos estudantes; (iii) a ambivalências na postura educacional dos professores; (iv) a problemas
na abordagem das crenças religiosas dos estudantes no espaço escolar; e (v) a formas e limites
da atuação das coordenações pedagógicas nas escolas pesquisadas. Os dados da pesquisa
sugerem que o ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica apresenta problemas
associados a limites na reflexão sobre a natureza da ciência na sala de aula e a uma possível
formação insuficiente dos professores nos conteúdos científicos e pedagógicos referentes a
esses importantes temas.
PALAVRAS-CHAVE: 1. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS; 2. PROFESSORES DE
BIOLOGIA; 3. ORIGEM DA VIDA; 4. EVOLUÇÃO BIOLÓGICA; 5. ENSINO MÉDIO.
8
ABSTRACT
Cerqueira, Andrea Vianna. Representações sociais de dois grupos de professores de biologia
sobre o ensino de Origem da Vida e Evolução Biológica: aspirações, ambigüidades e
demandas profissionais. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo
de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
The confrontation of religious believes and scientific explanations in classrooms is a
controversial issue, often challenging teachers. Former recent studies reported the association
between the influence of religion and the difficulties of learning certain scientific contents;
clues about failures in the teaching science activity were also eventually found. The present
dissertation investigates the social representations about the teaching Biological Evolution
and Origin of Life activity by twenty teachers of Biology working in public institutions of Rio
de Janeiro. Qualitative data were analyzed according to the Collective Subject Discourse
methodology. The identified problems were related: (i) to an almost inexistent background
knowledge on Chemistry by students to understand a topic like Origin of Life; (ii) to the
misconnection between the scientific contents presented to students; (iii) to ambivalences in
teacher’s educational attitudes; (iv) to the inability in addressing students religious beliefs
issues at school; and (v) to limited support given by the pedagogical coordination in the
researched schools. Our data show that the Origin of Life and the Biological Evolution
teaching issues have problems related to limits in reflection of science nature in the classroom
and to the insufficient formation, by teachers, on those scientific and educational contents to
present those important themes.
KEYWORDS: 1. SOCIAL REPRESENTATIONS; 2. TEACHERS OF BIOLOGY; 3.
ORIGIN OF LIFE; 4. BIOLOGICAL EVOLUTION; 5. HIGH SCHOOL.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................11
I. ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: CIÊNCIA E ENSINO.....................14
I.a) ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA NA ATUALIDADE................................ 14
A vida e sua origem: hipóteses .................................................................................................................... 14
Evolução biológica: um fato científico ........................................................................................................ 19
I.b) PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCN+) ..................................................... 23
O ensino de origem da vida e evolução biológica como eixos integradores da biologia, segundo os PCN+:
..................................................................................................................................................................... 24
I.c) A CONCEPÇÃO CONSTRUTIVISTA DE ENSINO E APRENDIZAGEM ........................... 26
I.d) HISTÓRICO DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL ........................................................ 28
I.e) DIFICULDADES NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE ORIGEM DA VIDA E
EVOLUÇÃO BIOLÓGICA APONTADAS PELA LITERATURA ............................................... 31
II. CULTURA: MUNDO SOCIAL, RELIGIÃO E CIÊNCIA...............................................36
II.a) A CULTURA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE........................................... 36
Representação social: o conceito ................................................................................................................. 39
II.b) A RELIGIÃO COMO INSTITUIÇÃO..................................................................................... 40
II.c) A CIÊNCIA COMO INSTITUIÇÃO ....................................................................................... 42
II.d) RELIGIÃO E CIÊNCIA: CONFLITOS? ................................................................................. 48
III. METODOLOGIA..............................................................................................................53
III.a) DESCRIÇÃO DO UNIVERSO DA PESQUISA .................................................................... 54
III.b) DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO ................................................................................. 55
IV. RESULTADOS ..................................................................................................................58
IV.a) DADOS QUANTITATIVOS: CARACTERIZAÇÃO DOS GRUPOS DE PROFESSORES
ENTREVISTADOS.......................................................................................................................... 58
IV.b) DADOS QUALITATIVOS: REPRESENTAÇÕES DOS PROFESSORES SOBRE OS
TEMAS ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA ......................................................... 61
Representações sobre Origem da Vida ........................................................................................................ 62
Representações sobre Evolução Biológica................................................................................................... 68
V. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ...................................................................................81
VI. CONCLUSÃO....................................................................................................................85
VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................87
10
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1: Perfil profissional dos entrevistados (GF + GE)...............................................58
QUADRO 2: Dados relativos ao ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica ...59
QUADRO 3: DSC da questão ‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem no tema
Origem da Vida?’ dirigida a ambos os grupos de entrevistados (GF e GE)...........................62
QUADRO 4: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a
importância do ensino de Origem da Vida na escola ..............................................................65
QUADRO 5: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis
dificuldades encontradas no ensino de Origem da Vida..........................................................67
QUADRO 6: DSCs construídos com as respostas do GF e do GE à questão proposta
‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem do tema Evolução Biológica?’..........69
QUADRO 7: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a
importância do ensino de Evolução Biológica na escola.........................................................71
QUADRO 8: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis
dificuldades encontradas no ensino de Evolução Biológica ....................................................73
QUADRO 9: DSCs construídos com as respostas dos entrevistados do GF e do GE à questão
proposta ‘Você já se deparou com alguma situação extrema de negação aos temas Origem da
Vida e/ou Evolução Biológica ..................................................................................................76
QUADRO 10: DSCs construídos com as representações sociais dos entrevistados do GF e do
GE à questão proposta ‘Você possui alguma explicação pessoal para a Origem da Vida e
Evolução Biológica? Quais suas idéias de acaso, aleatório e Deus?’ ....................................79
11
INTRODUÇÃO
Após me formar em licenciatura plena em Ciências Biológicas na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, realizei concurso para a Secretaria Estadual de Educação e passei a
dar aulas em uma escola no município de Petrópolis. Nessa escola, lecionei para uma turma
de primeiro ano e para uma turma de terceiro ano do ensino médio. Ao abordar o tema
Origem dos Seres Vivos com a turma de primeiro ano deparei-me com concepções
preexistentes dos estudantes bastante diferentes da teoria científica, tendo ficado intrigada
com a diversidade de crenças e opiniões trazidas pelos estudantes para a sala de aula. Tal
observação foi realizada novamente ao abordar o tema Evolução Biológica com a turma de
terceiro ano: os estudantes traziam para as aulas suas idéias e opiniões acerca do tema com
extrema desenvoltura, chegando a promover intensos debates sobre as razões para a
diversidade de seres vivos encontrada atualmente no planeta, geralmente permeados pelas
idéias religiosas por eles conhecidas. Alguns anos mais tarde, lecionei na rede particular do
município do Rio de Janeiro e me deparei mais uma vez com a riqueza de opiniões e
acaloradas discussões sobre como teria surgido a vida no planeta Terra e de que forma teriam
os seres primitivos dado lugar aos seres atuais.
A curiosidade sobre como tais idéias pessoais eram criadas e transformadas dentro de
cada estudante permaneceu latente até que, após oito anos da minha formatura, resolvi buscar
o Mestrado em Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de Tecnologia Educacional para a
Saúde (NUTES) na UFRJ. Essa busca deveu-se à necessidade que senti de aprimorar minha
habilidade como professora de Ciências no que tange aos embates e questionamentos que
fazem parte do ensino. Então eu soube da existência do Laboratório de Estudos da Ciência
(LEC/NUTES), voltado à pesquisa de questões relacionadas ao ensino de Ciências,
particularmente no que se refere ao ensino de origem da vida e evolução dos seres vivos. Tive
contato com duas dissertações1 produzidas no contexto daquele laboratório que me instigaram
a pesquisar mais sobre minha antiga questão. A leitura desses trabalhos reforçou minha
percepção de falta do tema Origem da Vida em minha formação universitária em instituição
federal. Embora eu tenha cursado uma disciplina chamada Evolução, obrigatória no ciclo
1
Trigo (2005) e Nicolini (2006).
12
básico2, e outra denominada Evolução Humana como disciplina eletiva, em momento algum
de minha formação superior estudei de maneira sistematizada o tema Origem da Vida.
Desta forma, não foi difícil relacionar as dificuldades que percebi no ensino deste tema
no ensino médio com falhas em minha própria formação como professora de Biologia.
Percebi então a possibilidade e mesmo a importância de investigar o ensino de Origem da
Vida sob a ótica de professores de biologia: será que, assim como eu, manifestam certa
inquietação frente aos desafios gerados por ministrar aulas acerca daquele tema? Será que
teriam carências cognitivas relacionadas ao tema e causadas, ou não, pela ausência da
abordagem do tema em suas formações? Como estariam os seus domínios sobre as hipóteses
científicas da origem da vida? Perceberiam dificuldades na aprendizagem do tema em si
mesmos e/ou nos estudantes?
O ensino do tema Origem da Vida é baseado em hipóteses não completamente
comprovadas no âmbito da ciência. Optou-se por abordar também o tema Evolução Biológica
por este ser considerado fato científico, estando muito bem documentado atualmente, e por ser
abordado obrigatoriamente nos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas. Tais temas são
fundamentos da Biologia Moderna porque uniram os conhecimentos sobre os objetos de
estudo desta ciência (os seres vivos). Por outro lado, têm sido centro do debate sobre as
relações entre educação científica e educação religiosa, uma vez que é um dos tópicos do
Ensino de Ciências que se sobrepõe de maneira mais clara ao conhecimento religioso, e este
compõe parte da cultura brasileira. Quais seriam as percepções dos professores em relação a
tais questões? Que espaço ocuparia em suas percepções a importância do ensino de Origem da
Vida e Evolução Biológica? Quais seus domínios dos conteúdos científicos referentes aos
temas, os quais se encontram previstos nos Parâmetros Curriculares Nacionais? E os aspectos
religiosos envolvidos nos temas investigados entre os professores e seus estudantes? Como
convivem com as explicações científicas ensinadas na escola de nível médio?
Desta forma, e considerando os objetivos destacados pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCN+), proponho investigar as percepções de professores
atuantes no ensino público das esferas estadual e federal no município do Rio de Janeiro em
2
O curso de Ciências Biológicas da universidade em questão é dividido em ciclo básico, composto por
disciplinas comuns a todos os estudantes durante quatro semestres (dentre as quais Evolução), e bacharelados ou
licenciatura.
13
relação a seus objetivos e práticas pedagógicas no que tange ao ensino dos temas Origem da
Vida e Evolução Biológica.
O capítulo I pretende oferecer ao leitor a base teórica que sustenta a pesquisa. O item
I.a aborda as explicações científicas atuais dos temas em questão: Origem da Vida e Evolução
Biológica. Como complemento, são explicitadas vertentes divergentes das hipóteses
levantadas pela ciência. O item I.b apresenta as orientações e diretrizes previstas nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) para o ensino dos temas Origem da Vida e
Evolução Biológica no ensino médio. Em seguida, no item I.c, apresenta-se a concepção
construtivista de ensino-aprendizagem. A apresentação do histórico do Ensino de Ciências no
Brasil (I.d) e as dificuldades de ensino e de aprendizagem de tais temas detectadas em
pesquisas anteriores (I.e) são realizadas ainda neste capítulo.
O capítulo II analisa alguns componentes da cultura humana, tais como o senso
comum, a religião e a ciência. Nesse capítulo encontram-se descritas as principais posições
encontradas na literatura no debate entre conhecimento científico e religioso.
O capítulo III apresenta a pesquisa e sua metodologia, com a descrição dos sujeitos e
instituições envolvidas, bem como a técnica metodológica desenvolvida: o Discurso do
Sujeito Coletivo (DSC).
O capítulo IV apresenta os resultados em quadros quantitativos (os quais caracterizam
a formação acadêmica e profissional dos professores entrevistados, assim como suas práticas
pedagógicas declaradas no que se refere ao ensino dos temas investigados) e qualitativos
(discursos do sujeito coletivo de ambos os grupos de professores entrevistados sobre as
questões dirigidas que abordaram o ensino e a aprendizagem dos temas em questão).
O quinto capítulo expõe as considerações feitas a partir da observação e análise dos
resultados. E, por fim, o último capítulo apresenta as conclusões da pesquisa e aponta alguns
desdobramentos possíveis.
14
I. ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: CIÊNCIA E ENSINO
Este capítulo trata das bases teóricas do conhecimento humano sobre a Origem da
Vida e a Evolução Biológica3 na atualidade. Inicialmente, são descritas as hipóteses aceitas
pela ciência, as quais devem ser ensinadas nas escolas brasileiras, segundo os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN+). Complementarmente, são apresentadas, de forma sintética,
duas explicações de base religiosa sobre o tema. O capítulo pretende ainda apresentar as
diretrizes propostas pelos PCN+ sobre o ensino dos temas da pesquisa no ensino médio e
apresenta as dificuldades na aprendizagem dos temas investigados, identificadas em pesquisas
anteriores.
I.a) ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA NA ATUALIDADE
Na presente seção, pretende-se configurar o conhecimento humano acerca da Origem
da Vida e da Evolução Biológica na atualidade. Para cumprir tal objetivo, apresentam-se a
seguir as principais vertentes de pensamento sobre os temas em questão.
A vida e sua origem: hipóteses
O problema da definição do fenômeno vida ainda hoje encontra diversas correntes de
pensamento. No século XIX, o naturalista e paleontólogo francês Georges Cuvier propôs uma
definição para a vida baseada na analogia com um ‘vortex’, ou turbilhão, de matéria onde
moléculas continuamente entrariam e sairiam das coisas vivas sem que houvesse alteração de
suas formas. Outros autores (Lamarck, Cournot, etc.) propuseram ainda outras definições para
a vida. Emmeche & El-Hani (2000) discutem duas possibilidades para a caracterização do
fenômeno vida: a essencialista4 e a paradigmática. Segundo tais autores, até o início do século
passado havia uma definição essencialista para a vida, de maneira que, para definir o que é
vida, era necessária a caracterização de um conjunto de propriedades que deveriam ser
listadas e verificadas. Entretanto, ao adotar esse tipo de caracterização para a vida, uma série
de questões relacionadas à quantidade e tipo de propriedades que deveriam ser incluídas na
lista de condições necessárias para aquele fim foi alvo de discussão. De todas as listas
possíveis de propriedades, qual seria a mais correta? Como se poderia garantir que uma
3
Optou-se por grafar os temas de ensino pesquisados com letra maiúscula para destacá-los no corpo do texto.
O termo essencialismo foi utilizado para designar as doutrinas filosóficas, metafísicas e ontológicas segundo as
quais há propriedades essenciais, e há, por conseguinte, definições essenciais (reais). Alguns importantes autores
(p. ex. Karl Popper), no entanto, opõem-se ao essencialismo por defender que tal idéia equivale ao
antinominalismo. (Mora, 2001, p. 903)
4
15
propriedade essencial não foi deixada de fora? Ou que uma propriedade dispensável foi
incluída? Não há como responder a essas perguntas, pelo simples fato de que não se tem
acesso ao que seriam propriedades básicas, imutáveis e indiscutíveis, ou seja, àquilo que
definiria essencialmente um sistema como vivo. E há ainda o problema das chamadas formas
limítrofes, como vírus e outras estruturas moleculares, que apresentam, ao mesmo tempo,
propriedades características da matéria bruta e de seres vivos. Este tipo de abordagem do
problema “o que é vida?”, que exigiria as citadas propriedades, deve ser, portanto, superado,
concluem aqueles autores. Para tal definição, pode-se assumir uma visão alternativa que
reconhece a natureza paradigmática de qualquer definição de conceito (Emmeche & El-Hani
2000).
Segundo a visão paradigmática, os conceitos são definidos em termos de outros
conceitos. Para definir um conceito como parte de um paradigma é necessária a inserção do
conceito em uma rede de conceitos que se auto-suportam e conferem significado uns aos
outros. Emmeche (1997) procurou realizar tal tarefa e propôs que pelo menos três definições
de vida são encontradas na biologia teórica, pois possuem os requisitos da ciência tidos como
fundamentais pelo autor: universalidade; coerência com o conhecimento científico; elegância
conceitual e capacidade de organização cognitiva; e especificidade. Nessa linha de
pensamento, o autor reconhece três programas de pesquisa no campo científico que objetivam
definir vida. São eles: Neodarwinismo, autopoiese e biossemiótica. El-Hani e Kawasaki
(2002) defendem que a definição de vida à luz do paradigma neodarwinista encontra maior
aceitação entre alunos e professores, dada a predominância e divulgação deste paradigma
entre os sujeitos citados. Desta forma, pelo fato de o paradigma neodarwinista ser mais
divulgado e reconhecido entre os sujeitos envolvidos no ensino-aprendizagem dos temas
investigados, optou-se por adotar tal definição na presente pesquisa. No paradigma
neodarwinista, segundo Emmeche (1997), a vida é compreendida como a transmissão de
replicadores (DNA ou RNA) sob a influência da seleção natural. A vida existe quando há
moléculas capazes de guardar informações características dos diversos grupos de seres vivos
(DNA e RNA), tendo capacidade de transmitir as informações aos descendentes através de
um processo reprodutivo. As moléculas que caracterizam a vida (DNA ou RNA) são sujeitas a
mutações aleatórias e à ação da seleção natural.
Independentemente do tipo de definição adotado, o fenômeno vida ocorre. E, se
ocorre, deve ter havido um momento inicial, o surgimento da vida na Terra. Tendo em vista
16
que as condições de formação do planeta não seriam adequadas à vida, tal fenômeno deve ter
iniciado na Terra após seu resfriamento e acomodação. Esse surgimento, ou origem, da vida é,
ainda hoje, uma questão no campo da ciência em processo de investigação. As duas principais
correntes do pensamento científico sobre essa questão são analisadas a seguir.
A Panspermia é uma das duas hipóteses levantadas pela ciência. Segundo essa
hipótese, as primeiras moléculas orgânicas, ou mesmo a vida, teriam se originado em outro
ponto do Universo e chegado a Terra através de meteoritos. Dados relacionados à existência
de uma química orgânica universal dão suporte a esta hipótese. Fred Hoyle, astrônomo
britânico do Instituto de Astronomia da Universidade de Cambridge, foi um dos maiores
defensores da Panspermia. Juntamente com Chandra Wickramasinghe, professor de
Matemática Aplicada e Astronomia na Universidade de Cardiff, formulou a “Nova
Panspermia”, teoria segundo a qual vida se encontra espalhada por todo o universo. Esporos
de vida fariam parte das nuvens interestelares e chegariam a planetas próximos às estrelas,
abrigados no núcleo de cometas.
Hoyle & Wickramasinghe (1978) buscaram identificar os componentes presentes na
poeira interestelar, através de traços que esses componentes possam ter deixado na radiação
infravermelha emitida por essa poeira ou na absorção da luz visível que atravessa essas
nuvens. Essas análises comprovaram a presença de polímeros complexos, especialmente
moléculas de poliformaldeídos5, no espaço. Os autores, a partir de tal comprovação, se
convenceram de que polímeros orgânicos representam uma fração significativa da poeira
interestelar, sugerindo a hipótese de serem os cometas os semeadores dessas moléculas
complexas através do universo.
A análise de meteoritos procurando a identificação de vida fossilizada, tal como
divulgada na década de 1990, através dos estudos realizados sobre o meteorito de nome
EETA79001 (provavelmente originário de Marte), está ainda longe de dar resultados
conclusivos. Wickramasinghe (2005) apresentou resultados da análise de amostras de ar da
estratosfera, colhidas por balões da ‘Organização de Pesquisas Espaciais Indiana’ (ISRO)
onde foram encontradas evidências muito fortes da presença de vida microscópica à altura de
41 km do solo, bem acima do limite máximo (16 km) onde é admitido o alcance natural de ar
e outros materiais das camadas mais baixas da atmosfera. Esses resultados pertencem à tese
5
Moléculas fortemente relacionadas à celulose.
17
da Nova Panspermia, segundo a qual a vida na Terra não apenas teria chegado a bordo de
cometas e material cometário, há bilhões de anos atrás, mas continuaria ainda hoje nos
alcançando em grande quantidade (HOYLE, 1994; WICKRAMASINGHE, 2005). Entretanto,
essa hipótese não explica como as moléculas, ou seres vivos, resistiriam às condições
inóspitas de elevada temperatura existentes nos meteoritos quando cruzam a atmosfera
terrestre. Além disso, a hipótese apenas desloca a questão do surgimento da vida para outro
lugar do Universo.
A Evolução química é a hipótese mais aceita no meio científico. O registro fóssil nos
revela pouco sobre a origem da vida porque, nesta origem, os eventos seriam em escala
molecular. O planeta Terra possui cerca de 4,5 bilhões de anos de existência e, durante as
primeiras centenas de milhões de anos, foi bombardeada por enormes asteróides, que
vaporizaram os oceanos. As temperaturas eram altas demais para permitir o surgimento da
vida. As mais antigas rochas conhecidas datam de cerca de 3,8 bilhões de anos e localizam-se
na Groenlândia. Tais rochas contêm traços estruturais do que podem ser fósseis químicos de
formas de vida. De acordo com a hipótese da evolução química, a vida teria surgido a partir
de interações entre as diferentes moléculas que compunham a Terra primitiva. Inicialmente
teria ocorrido a formação de moléculas orgânicas primordiais que, associando-se, teriam
originado aglomerados orgânicos, dotados de membrana, denominados coacervados. Estes
seriam dotados de capacidade de transmissão de informações e capazes de realizar trocas com
o meio externo e reações químicas no meio interno.
A maior parte das pesquisas sobre a origem da vida não é realizada com base em
fósseis, e sim a partir de pesquisas de laboratório sobre o tipo de reações químicas que
poderiam ter acontecido no planeta há cerca de quatro bilhões de anos. Muitos dos “tijolos”
das construções moleculares da vida (como aminoácidos, açúcares e nucleotídeos) podem ser
sintetizados a partir de uma solução simples de moléculas inorgânicas simples, do tipo que
provavelmente teria existido nos mares primitivos da Terra, se uma descarga elétrica ou
mesmo radiação ultravioleta a atravessasse (RIDLEY, 2006).
Com o surgimento de tais tijolos moleculares orgânicos, o ponto crucial seguinte é a
origem de uma molécula simples replicável, ou seja, que fosse capaz de originar outra
semelhante. Embora não saibamos qual o tipo de molécula replicável mais ancestral, várias
linhas de evidência sugerem que o RNA precedeu o DNA, pelo fato daquele ser composto por
fita simples enquanto o último é composto por dupla fita, sendo portanto mais complexo.
18
Além disso, o DNA necessita de enzimas para ‘abrir’ suas fitas para que as informações de
ambas as fitas sejam lidas ou replicadas. O RNA, de modo inverso, pode interagir com o meio
de forma direta, sem depender de enzimas.
A fase (hipotética) primordial da vida é chamada, portanto, de ‘mundo do RNA’. A
vida passou a usar o DNA mais tarde na história evolutiva, provavelmente pela alta taxa de
mutação que o RNA possui, o que causaria mutações deletérias superiores à da possibilidade
de existência da vida. Isso quer dizer que formas de vida mais complexas não poderiam
evoluir antes que a taxa de mutação se reduzisse. A evolução do DNA teria reduzido a taxa de
mutação, ou a teria levado à redução. As evidências fósseis mais antigas datam de período
entre 3,5 e 3 bilhões de anos atrás, sob a forma de células fósseis (ou estromatólitos6).
Além das explicações científicas abordadas, há inúmeras explicações que permeiam as
sociedades humanas sobre a origem da vida na Terra, desde milhares de anos trás.
Apresentam-se resumidamente a seguir duas abordagens não-científicas da atualidade para o
surgimento da vida no planeta:
•
Criacionista: Também chamada de hipótese criacionista. Diversas religiões crêem na
existência de um Deus, força suprema que teria criado o Universo e todos os processos e
elementos que o compõem.
•
Design Inteligente (DI): A atual concepção denominada Design Inteligente, ou Intelligent
Design, baseia-se no conceito da ‘Complexidade Irredutível’ e propõe a idéia de uma
intencionalidade objetiva por trás da concepção da vida. Os adeptos do conceito de
‘Complexidade Irredutível’ argumentam que existem estruturas bioquímicas complexas
que não podem ser explicadas pelos mecanismos evolutivos do neodarwinismo. Essas
estruturas complexas teriam que surgir já prontas, caso contrário a existência de cada uma
de suas partes autônomas não poderia ser justificada evolutivamente. Os críticos dessa
idéia afirmam que a existência de estruturas irredutivelmente complexas em sistemas
biológicos não parece ser justificada. Tradicionalmente a comunidade científica
internacional ignora esta teoria, considerando-a um caso de pseudociência e criacionismo.
Em geral, os porta-vozes da comunidade científica alegam que a concepção do design
6
Estromatólitos são registros fósseis obtidos a partir da mineralização causada pelos sedimentos marinhos sobre
ou entre células que, ao serem cobertas por minerais, crescem em direção à luz, o que gera uma camada
mineralizada abaixo delas. Com a repetição do processo ao longo do tempo, forma-se um estromatólito, que
consiste de várias camadas mineralizadas.
19
inteligente busca encobrir o criacionismo com uma roupagem científica e, nesse caminho,
sugere limites ao avanço do conhecimento científico, porque propõe que haveria
componentes dos fenômenos que não podem ser explicados. Tal afirmação é inaceitável
no campo da ciência.
Tais explicações para a origem da vida no planeta Terra compõem o repertório cultural
de grande parte dos estudantes, pois estão presentes na cultura e são bastante divulgadas pela
maioria das religiões.
Evolução biológica: um fato científico
Theodosius Dobzhansky (1973), notável geneticista e biólogo evolutivo ucraniano, no
célebre artigo “Nada em Biologia faz sentido se não for à luz da Evolução”, deixa clara a
importância da Evolução Biológica7 para as Ciências Biológicas. Embora tal afirmação
decorra do próprio paradigma neodarwinista adotado para a definição de vida, para esse autor
e para grande parte da comunidade científica internacional, a Evolução Biológica confere
coesão e vincula, de maneira direta ou indireta, cada um a todos os outros estudos biológicos.
Atualmente, temos consciência da enorme diversidade de seres vivos, algo entre dez e
trinta milhões de espécies, todas elas descendentes de antepassados em comum que viveram
num passado distante. Segundo o biólogo Ayala (1983), até o século XIX o conjunto de idéias
que teorizavam sobre toda esta diversidade era chamado de Teoria da Evolução Biológica, no
sentido de que as explicações elaboradas até então pudessem estar incorretas. O fenômeno da
Evolução Biológica encontra-se hoje descrito com relevante base empírica de comprovação.
Cada novo indício encontrado de organismos viventes em tempos remotos corrobora os
enunciados de tal teoria. O que é observado ainda hoje são divergências quanto a sua
reconstituição histórica ou sobre sua causalidade. Entretanto, tais divergências não colocam
em dúvida a sua existência como um fato científico. O biólogo evolucionista Futuyma (1992)
afirma que a Evolução Biológica é um conjunto de afirmações interligadas sobre seleção
natural e outros processos causais, de acordo com uma grande quantidade de evidências
amplamente aceitas, assim como a teoria atômica e a teoria da mecânica newtoniana.
Embora nem todas as evidências evolutivas possam ser testadas, a Evolução Biológica
é um fato científico, da mesma forma como vemos os movimentos da Terra ao redor do Sol.
7
Evolução biológica é o processo de modificação e diversificação das populações de seres vivos ao longo do
tempo.
20
Assim como o heliocentrismo, a Evolução Biológica teve origem como uma hipótese e
modificou seu status para ‘fato científico’ à medida que evidências foram sendo somadas e
contribuíram para corroborar a idéia. Sabe-se que, quando alguém se opõe à idéia da
Evolução Biológica, usualmente são envolvidas crenças subjetivas ou religiosas, sem que haja
para tal oposição fundamentos aceitos pela ciência.
É no amplo panorama da teoria evolutiva que os fenômenos da biologia encontram
compreensão à luz da ciência desde as bases propostas por Charles Darwin, e hoje contam
com conceitos de grande importância desenvolvidos ao longo do século XX, configurando a
visão histórica que deu base ao atual neodarwinismo. Darwin, quando publicou sua principal e
mais conhecida obra sob o título Da origem das espécies por meio da seleção natural, ou a
preservação das raças favorecidas na luta pela vida, que passou a ser conhecida
historicamente apenas como A origem das espécies, defendeu que os organismos são produtos
de uma história de descendência com modificação a partir de ancestrais comuns, e que o
principal processo da Evolução Biológica é o da seleção natural das variações hereditárias.
Em outras palavras, a Evolução Biológica buscaria explicar como teriam ocorrido as
transformações nos seres vivos e os caminhos percorridos até chegar à diversidade atual.
Em “A Origem das Espécies”, Darwin (1859) estabeleceu a teoria da seleção natural
para explicar sua proposição acerca dos processos que deram origem a tamanha diversidade
de formas de vida. Além dos postulados de Darwin sobre seleção natural, outra revolução
dentro da área, incorporada mais tarde à teoria da Evolução Biológica, foi a importante
contribuição da Genética inicialmente elaborada por Johann Mendel a partir de 1910. Através
dos experimentos realizados por Mendel, houve a substituição do antigo conceito de herança
através da mistura de sangue pelo conceito de herança através de entidades particuladas (os
genes). O desenvolvimento da citogenética (por Thomas Hunt Morgan, entre outros), a partir
dos estudos de Mendel, permitiu reinterpretar a teoria da Evolução Biológica de Darwin à luz
das novas descobertas sobre a hereditariedade.
Com a descoberta da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick, em 1953, a
compreensão sobre a natureza e os mecanismos de controle genético aumentou, a ponto de ter
surgido mais uma corroboração científica para a Teoria Sintética da Evolução Biológica8: a
8
A Teoria Sintética da Evolução Biológica apóia-se na análise dos seguintes fatores evolutivos: mutação,
recombinação, seleção natural, migração e oscilação genética. É uma complementação da teoria de Darwin em
relação às fontes de variabilidade das populações, possibilitada a partir de 1910 com o desenvolvimento da
21
Genética Molecular. Esse novo conhecimento proporcionou maneiras muito sensíveis de
estudar a Evolução Biológica, principalmente em relação às moléculas que participam
diretamente do processo evolutivo biológico. O desenvolvimento das técnicas moleculares de
pesquisa permitiu novas abordagens sobre a Teoria Sintética.
A Teoria proposta por Darwin foi acrescida das descobertas na área da Genética
iniciadas por Mendel e pelas novas descobertas da Genética Molecular e adquiriu maior poder
explicativo a partir das informações somadas aos seus postulados. Portanto, a Teoria Sintética
da Evolução Biológica é um novo paradigma que resultou da síntese das descobertas de várias
disciplinas científicas (Futuyma, 1992).
As ciências geológicas também contribuíram para elucidar pontos da Teoria Sintética
da Evolução Biológica. Através do estudo sobre as características estruturais da superfície da
Terra, e de seu dinamismo, com modificação dos padrões geográficos ainda que muito lentos,
em milhões de anos de história geológica a superfície terrestre modificou profundamente a
configuração das terras e dos mares, de montanhas e de desertos, determinando modificações
importantes nos ambientes. Como a seleção natural adapta os organismos às condições
ambientais modificadas, a história dessas modificações ambientais reflete-se na história
evolutiva da vida.
Para Ridley (2006) a evolução não prossegue ao longo de um curso grandioso e
previsível. Para esse autor, a evolução ocorre de maneira dependente ao ambiente no qual
determinada população vive e das mutações genéticas que surgem dentro daquela população
por um processo aleatório. A diversidade de espécies teria sido criada pela bipartição repetida
de linhagens desde um único ancestral comum de todos os seres vivos (Ridley, 2006). Tal
afirmação é, ainda hoje, controversa. Parte da comunidade científica defende que teria havido
mais de uma forma de vida ascendente, e que a diversidade de espécies encontrada atualmente
não possuiria, portanto, um único ancestral.
Genética e o conhecimento do material hereditário (ácidos nucléicos). A Teoria Sintética da Evolução Biológica
considera, conforme Darwin já havia feito, os mecanismos da seleção natural, construindo a escala de evolução
de cada geração. Esta teoria aceita a seleção natural como um dos fatores evolutivos, mas não o mais importante,
uma vez que se apóia também no estudo da diferenciação genética e da regulação da atividade gênica. Seu
principal objeto de estudo é a população, definida por ela como uma comunidade reprodutora e caracterizada por
seu polimorfismo genético. O êxito individual de cada membro da população na produção de uma descendência
determinará a transmissão de alelos. Assim sendo, cada genótipo irá possuir um valor seletivo que modificará em
última instância a freqüência dos diferentes alelos (Goedert, 2004).
22
Os mecanismos da Evolução Biológica, como mutações e isolamento geográfico,
incluem também a seleção natural, que é responsável pelas adaptações dos organismos a
diferentes ambientes. Nem a seleção natural, nem qualquer outro processo evolutivo, como
por exemplo, as mutações, possuem direção ordenada; a seleção natural é meramente a
sobrevivência e maior reprodução de uma população de organismos em comparação a outra,
sob as condições ambientais que prevaleçam naquele momento. Portanto, a seleção natural
não dota uma espécie de características favoráveis em quaisquer ambientes, e sim em um
momento de sua história evolutiva. A seleção natural não possui objetivo, é apenas uma
resposta das populações às variações ambientais. Essas respostas podem ser positivas para a
população, no caso desta sobreviver a uma mudança ambiental por causa de uma
característica que possui, ou negativa, caso seja extinta por causa daquela mudança. Assim
como os ambientes variam, também o fazem os agentes da seleção natural tais como
recombinação e mutação. Ridley (2006) chama a atenção para os dois principais temas da
teoria evolutiva: mudança e bipartição.
Segundo Freire-Maia (1986), na evolução dos seres vivos, influem concomitantemente
fatores estocásticos (acontecimentos causais, que ocorrem ao acaso, como a deriva genética) e
determinísticos (acontecimentos que ocorrem como conseqüência da causalidade, por
exemplo a origem de novas espécies pela atuação da seleção natural).
Para Goedert (2004), a Evolução Biológica, algumas vezes, é
confundida com “progresso” das formas de vida inferiores às superiores, mas é
impossível definir quaisquer critérios não arbitrários pelos quais tal “progresso”
possa ser medido. A própria palavra “progresso” implica direção, se não mesmo o
avanço em relação a um objetivo, mas nem direção nem objetivo são fornecidos
pelos mecanismos da Evolução Biológica. (Goedert, 2004:53)
Isso era tão evidente para Darwin que, segundo Futuyma (1992), ele escreveu, em seu
caderno de notas, nunca dizer superior ou inferior, em referência às diferentes formas de vida.
Ainda segundo este autor,
como todos os conceitos importantes, a Evolução Biológica gera controvérsia;
como muitos conceitos importantes, ela tem sido usada como uma base ou
fundamento intelectual para pontos de vista filosóficos, éticos ou sociais. Em seu
sentido mais amplo, a Evolução Biológica é meramente mudança e, deste modo, é
uma idéia de ampla penetração - galáxias, linguagens e sistemas políticos evoluem.
(Futuyma, 1992:7)
23
Já Morgan (1925) defendeu que fixar todos os tipos de mudanças ao longo do tempo, e
chamá-las de evolução, é afirmar que se acredita em uma série consecutiva de eventos
causalmente conectados. O objetivo da ciência, segundo este autor, é descobrir que causas
especificamente estavam envolvidas quando as estrelas evoluíram no céu, quando o cavalo
evoluiu na Terra, e quando o motor a vapor foi liberto da mente do homem. No caso da
evolução biológica, mais do que traçar uma sequência de organismos de acordo com sua
suposta complexidade, o objetivo da ciência é explicar como as modificações ambientais
atuaram (e atuam) sobre as formas de vida, fazendo-as alterar suas formas ao longo do tempo.
Por concentrar a concordância de grande parte da comunidade científica especializada
no tema e conferir coesão ao conhecimento biológico, o ensino da Teoria da Evolução
Química da Vida e da Teoria Sintética da Evolução Biológica encontra-se previsto nas
diretrizes curriculares para o ensino médio, formalmente organizadas nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN+), documento oficial proposto pelo Ministério da Educação do
Brasil, a seguir apresentado.
I.b) PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCN+)
O documento, de cunho federal, tem por objetivo orientar as práticas pedagógicas com
a definição de temas estruturadores da disciplina e divulgação de opções metodológicas
desejáveis, de forma a atualizar a educação frente às transformações sócio-culturais da
sociedade contemporânea, levando em conta as leis e diretrizes que redirecionaram a
educação básica.
A nova Lei que hoje rege a educação brasileira tornou possível o abandono do modelo
anterior, onde o ensino médio se dividia em pré-universitário e profissionalizante, e
estabeleceu o ensino médio como etapa conclusiva da educação básica de toda a população
estudantil.
Para que os objetivos do novo ensino médio brasileiro sejam alcançados, os PCN+
foram desenvolvidos e possuem a definição das diretrizes a serem abordadas ao longo da
etapa educacional, assim como sugestões metodológicas para a abordagem dos conteúdos. Os
PCN+ são divididos em três volumes: ciências humanas e suas tecnologias; linguagens,
códigos e suas tecnologias; e ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Com base
24
neste último volume, apresentam-se a seguir as orientações relativas ao ensino de biologia no
ensino médio.
O ensino de origem da vida e evolução biológica como eixos integradores da biologia,
segundo os PCN+:
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+), a prática pedagógica do
professor de biologia deve ter a evolução biológica como eixo integrador de todo o conteúdo
da disciplina durante o ensino médio.
O aprendizado de Biologia no ensino médio visa permitir a compreensão científica do
fenômeno vida, incluindo sua origem e evolução, e também dos limites e diferenças de
formulação existentes nos diferentes sistemas explicativos, tais como religião e ciência. A
natureza da ciência deve ser abordada, a fim de estimular a compreensão de que, nas ciências
biológicas assim como nas demais, não há explicações definitivas, sendo construídas a partir
de questionamentos e transformações de idéias. Deve haver, ainda, a compreensão de que a
ciência pode ser usada para explicar aquilo que podemos observar, como também realizar
inferências sobre os fenômenos; que a ciência é um produto da mente humana, que observa,
reflete, discute e conclui sobre a maneira que os fenômenos ocorrem provisoriamente, que
busca legitimação através de uma realidade observada e de discussões sistematizadas pelos
princípios da metodologia científica (a qual não deve ser confundida com verdade absoluta).
Segundo o documento, a abordagem da história e da filosofia da ciência deve tornar acessível
aos alunos uma visão crítica sobre como a ciência é construída e que existem relações entre a
produção científica e o contexto social, econômico e político, sendo fundamental estimular a
integração entre o conhecimento científico e o momento histórico de sua origem e
transformação.
O PCN+ orienta os professores a partirem do todo para cada uma das partes, ou seja,
iniciar o estudo da biologia pelo meio ambiente, produto das interações entre os fatores
abióticos e os bióticos. A partir destas interações, cada organismo deve ser estudado em
particular como parte do ambiente, pois, segundo o documento, desta forma a aprendizagem
será mais significativa. Cada organismo, por sua vez, deverá ser estudado como fruto de
interações entre sistemas, aparelhos e órgãos, estes últimos formados por conjuntos de células.
As células configuram-se pelas interações entre suas organelas, mediadas por reações
químicas entre moléculas diversas.
25
No PCN+, é sugerida a articulação de conteúdos da biologia como um todo integrado
ao conteúdo relacionado à evolução da vida. Essa integração deve ser abordada
historicamente, ressaltando que, em diferentes épocas e escolas de pensamento, foram aceitas
diversas idéias sobre o surgimento da vida na Terra. É importante relacioná-las ao momento
histórico de elaboração, ressaltando os limites de cada uma das idéias na explicação do
surgimento da vida.
Ao abordar a teoria sintética da evolução, o professor deve destacar a contribuição de
diferentes campos do conhecimento para a sua elaboração (Paleontologia, Embriologia,
Genética e Bioquímica). As relações entre alterações ambientais e modificações dos seres
vivos decorrentes do acúmulo de alterações genéticas devem ser consideradas como eventos
sincrônicos que são, sem que se pense em simples relação de causa e efeito; a variabilidade
genética deve ser abordada como conseqüência aleatória de mutações e de combinações
diversas de material genético, e deve ser compreendida como substrato sobre o qual a seleção
natural atua; a ação da natureza selecionando combinações genéticas que se expressam em
características adaptativas deve ser mencionada, e deve-se considerar a reprodução como fator
que define a permanência ou exclusão de determinados genes na população.
Ainda segundo o PCN+, não é possível e nem desejável tratar, no Ensino Médio, do
conhecimento biológico completo e de todo o conhecimento tecnológico a ele associado. A
maior importância é contextualizar esses conhecimentos, apresentar a história da Biologia
como um movimento não linear e freqüentemente contraditório. É importante que o ensino de
Biologia se proponha ao desenvolvimento de competências que permitam ao aluno interpretar
as informações de forma crítica e adquirir a capacidade de agir com autonomia, fazendo uso
dos conhecimentos adquiridos da Biologia e da tecnologia.
Conforme o PCN+,
A física dos átomos e moléculas desenvolveu representações que permitem
compreender a estrutura microscópica da vida. Na Biologia estabelecem-se
modelos para as microscópicas estruturas de construção dos seres, de sua
reprodução e de seu desenvolvimento. Debatem-se, nessa temática, questões
existenciais de grande repercussão filosófica, sobre ser a origem da vida um
acidente, uma casualidade ou, ao contrário, a realização de uma ordem já
inscrita na própria constituição da matéria infinitesimal.(PCN+, 2008:15)
Um ponto a sublinhar sobre os PCN+ é a importância exposta no documento da
articulação dos conteúdos específicos com a compreensão da natureza da atividade e
26
conhecimento científicos no cenário das culturas humanas. A teoria do construtivismo
sustenta as propostas de enfoque dos conteúdos apresentadas nos PCN+ e será abordada a
seguir.
I.c) A CONCEPÇÃO CONSTRUTIVISTA DE ENSINO E APRENDIZAGEM
Com base na obra de Jean Piaget e Lev Vygotsky, entre outros, a psicologia da
aprendizagem denominada construtivismo apresenta mudanças importantes nas metas que os
professores estabelecem para os alunos, assim como no modo de atingi-las e avaliá-las. Em
vez de comportamentos ou habilidades como meta da instrução – propostos nos paradigmas
behaviorista e maturacionista9- no construtivismo são enfocados o desenvolvimento de
conceitos e a compreensão em profundidade: em vez dos estágios serem compreendidos como
decorrentes da maturação, são entendidos como construções reorganizadoras de um aprendiz
ativo (Fosnot, 1998).
Segundo o construtivismo, a aprendizagem é desenvolvimento, na medida em que
requer do aprendiz invenção e auto-organização. Assim, os professores precisam permitir que
os alunos coloquem suas perguntas, gerem suas próprias hipóteses e modelos como
possibilidades e testem sua validade. Os ‘erros’ devem ser vistos como elementos que
provocam o desequilíbrio e não devem ser evitados ou minimizados em importância. Para
Fosnot (1998), é preciso oferecer investigações abertamente desafiadoras em contextos
significativos realistas, permitindo aos aprendizes explorar e gerar muitas possibilidades,
tanto corroboradoras como contraditórias. As contradições, em particular, precisam ser
esclarecidas, exploradas e discutidas. O diálogo aberto dentro de sala de aula, segundo a
teoria da aprendizagem considerada, engendra mais pensamento. A sala de aula deve ser vista
como uma comunidade discursiva engajada em atividade, reflexão e conversação (Fosnot,
1989). Os alunos, e não o professor, devem ser responsáveis pela defesa, justificativa e
comunicação de suas idéias pois, assim, poderá ocorrer o desequilíbrio necessário para que a
aprendizagem de novos conceitos seja efetivada. À medida que os estudantes se empenham
para produzir significados, mudanças progressivas dos pontos de vista são construídas, as
9
O behaviorismo explica a aprendizagem como um sistema de respostas comportamentais a estímulos físicos.
Os educadores que usam o arcabouço behaviorista pré-planejam um currículo dividindo um conjunto de
conteúdos em partes que, supostamente, constituem seus componentes –“habilidades”- e então encadeiam essas
partes em uma sequência hierárquica, variando da mais simples à mais complexa. (...) Em contrapartida, o
maturacionismo é uma teoria que descreve o conhecimento conceitual como dependente do estágio de
desenvolvimento do aprendiz, o qual, por sua vez, seria decorrente de programação biológica inata (Fosnot,
1998, p. 27- 28).
27
quais se configuram como princípios organizadores centrais construídos pelo estudante que
frequentemente requerem desfazer ou reorganizar concepções prévias e/ou alternativas.
A Ciência é uma disciplina escolar em grande parte baseada na abstração. Ainda que
alguns de seus conceitos eventualmente pareçam fazer parte de linguagem e do discurso
cultural cotidiano, os conhecimentos científicos e os cotidianos são produzidos por processos
epistemológicos diferentes (Moraes, 2000). Face a tal constatação, como pode o professor de
ciências possuir uma prática construtivista? Para este autor, existem três atitudes ante os
alunos e a situação de aprendizagem que devem ser consideradas: a atitude pesquisadora, no
sentido de que o professor construtivista deve pesquisar sua prática e a de seus alunos para
conhecer suas concepções e motivações prévias; a atitude questionadora, de forma que seja
valorizada prioritariamente a prática do perguntar, ao invés de informar; e a flexibilidade, de
modo que procedimentos e planejamentos rígidos sejam abandonados em troca de um
posicionamento de adaptação às circunstâncias do processo de aprendizagem e às
necessidades dos alunos, sem que tal flexibilidade seja interpretada como um processo nãodirecionado. As conseqüências de tal abordagem são especialmente importantes no ensino de
origem da vida e evolução biológica dado às características de seu estágio de conhecimento
científico e sua relação com outros campos da cultura, como a religião. Os estudantes chegam
às salas de aula com representações de tais temas fortemente influenciados por seus contextos
sociais específicos, nem sempre influenciados pela ótica da ciência. Segundo Fosnot (1998),
para que o professor desenvolva uma prática construtivista, é importante que ao longo de sua
formação tal perspectiva esteja presente.
Assim como os alunos constroem o conhecimento, do mesmo modo o fazem os
professores. Os programas de educação de professores fundamentados em uma
visão construtivista da aprendizagem precisam fazer mais do que oferecer uma
perspectiva construtivista em uma ou duas disciplinas isoladas. As crenças dos
professores precisam ser esclarecidas, discutidas e desafiadas. Os professores
precisam ser envolvidos em experiências de aprendizagem que confrontem as
crenças tradicionais, através de experiências em que eles possam estudar as
crianças e seu estabelecimento de sentido, e em trabalhos de campo onde eles
possam compartilhar experiências. Apenas através de extenso questionamento,
reflexão e construção, ocorrerá a mudança para o novo paradigma em educação –
o construtivismo. (Fosnot, 1990, p.238)
Pesquisas sobre as concepções alternativas (ou conhecimentos prévios) encontram-se
bastante difundidas dentro da área de ensino de ciências. Alguns autores têm considerado o
conhecimento prévio como impedimento para alcançar um conhecimento posterior, utilizando
28
a idéia de Bachelard de obstáculo epistemológico10. No entanto, pode-se, segundo pesquisas,
considerar conhecimento prévio como anterior a uma situação de ensino, e não propriamente
como obstáculo, uma vez que dificilmente encontram-se estudantes livres de qualquer
conhecimento prévio. Não existem dúvidas de que aspectos afetivos, motivacionais, sociais e
econômicos, dentre outros, têm papel importante e decisivo nos processos de compreensão de
novos conteúdos estudados em sala de aula. As concepções prévias dos estudantes e seu
desequilíbrio mediado pelo professor mostram-se como possibilidade de abertura ao diálogo
entre aquelas e os novos conceitos trazidos pela escola (COBERN, 1996; MORTIMER,
1996). Em outras palavras, a discussão das concepções prévias trazidas pelos estudantes em
confronto com os novos conceitos apresentados em sala de aula, e mediada pelo professor,
permite que seja estabelecido um diálogo produtivo que favorece a aprendizagem.
A seguir, serão apresentados alguns aspectos do histórico do ensino de ciências no
Brasil que serão úteis pra situar um pouco mais e melhor compreender questões do ensino de
ciências:a reformulação da educação brasileira e a mudança de objetivos que a escola básica e
o ensino de ciências sofreram nas últimas décadas.
I.d) HISTÓRICO DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL
Com base nos autores Krasilchik e Arroyo, pode-se dizer que o ensino de ciências no
Brasil sofreu influências políticas através de reformas na legislação ao longo das últimas
décadas, e isso teve reflexos profundos na maneira como as disciplinas científicas são
abordadas. Alguns desses reflexos podem ser encarados como um dos motivos do fracasso
escolar de grande parte dos estudantes no que se refere às disciplinas de caráter científico.
Dessa forma, torna-se pertinente a busca por uma melhor compreensão acerca da construção
dos objetivos do ensino de ciências na escola brasileira.
A primeira influência política abordada refere-se ao argumento da neutralidade da
ciência presente ao longo da década de 1950, de acordo com a qual suas práticas, seus
objetivos, e seus profissionais não seriam afetados por valores, escolhas ideológicas e
influências de contingências históricas. Sob esta perspectiva, em um contexto mundial
marcado pela Guerra Fria entre Estados Unidos e URSS, a ciência era concebida nos meios
acadêmicos como uma atividade neutra, onde os cientistas possuíam a isenção necessária para
10
Obstáculo epistemológico, para Gaston Bachelard, é a dificuldade do indivíduo de romper com o
conhecimento naturalizado e aderir a idéias novas, o que inibe o avanço do conhecimento.
29
que pudessem realizar suas atividades de pesquisa sem passarem por julgamento de valores
(Krasilchik, 2000). No Brasil, via-se a necessidade de preparar jovens mais aptos para formar
uma elite baseada nos modelos importados das grandes potências mundiais a fim de
impulsionar o progresso da ciência. Havia então a tentativa de superar a dependência externa
e a busca pela auto-suficiência baseada numa ciência autóctone.
Nesse contexto, a partir da década de 50 do século XX, as ciências exatas passaram a
ter destaque sobre as humanas no âmbito da educação. Segundo Miguel Arroyo,
o pensamento mais comum entre os professores é que o ensino de ciências se
relaciona com a preparação para o mundo produtivo. Se lhes perguntarmos para
que servirá a física, a química, a biologia e a matemática ensinadas no segundo
grau, a resposta será quase unânime: para capacitar os jovens a um trabalho
profissional competente. Se fizermos a mesma pergunta aos professores de
humanas (no linguajar escolar a condição de ciências não se aplica a humanas),
possivelmente a resposta seja: preparar os jovens para a cidadania (Arroyo,
1989:4).
Na década de 60, a partir dos movimentos integradores que estendiam à população
escolar como um todo o ensino de ciências, a dicotomia entre ciências exatas e humanas
tornou-se mais clara. As reformas educacionais de 1968 e 1971 procuravam dar à escola a
função da preparação para o mercado de trabalho, deixando em segundo plano a formação da
cidadania. Essa separação entre as disciplinas exatas e humanas, de certa forma, contribuiu
como para o reforço da crítica a uma formação por demais “livresca” e “humanista”, em
sentido pejorativo, e deu lugar ao que se costumou chamar saber técnico-científico, adequado
ao sistema produtivo. Nas palavras de Arroyo (1989):
No final da década de sessenta e início da década de setenta fez-se uma crítica
rígida ao saber transmitido no sistema escolar brasileiro. Tratava-se com desprezo
o chamado saber tradicional, visto como livresco, humanista, metafísico,
apropriado a uma república de bacharéis diletantes e improdutivos. Propunha-se
um saber moderno, técnico-científico, útil, prático, capaz de formar profissionais e
trabalhadores eficientes para uma sociedade produtiva (Arroyo, 1989:5).
Desta forma, procurava-se passar uma visão tecnicista e despolitizada para a
sociedade, uma visão que pregava que o importante seria tão somente preparar os jovens para
o mercado de trabalho, pois através dessa preparação o Brasil seria alçado a um posto de
maior competição no mundo produtivo. Invalidou-se a importância de diferentes dimensões
da cultura justamente quando as culturas dos diversos grupos étnicos e sociais do Brasil eram
invadidas e tomadas pelas culturas externas dos países com maior capacidade de exportação,
no momento em que o modo de pensar capitalista e a racionalidade burguesa invadiam o
30
cotidiano, o privado e o público, o legítimo e o ilegítimo, o permitido e o proibido, o
valorizado e o desprezado (Arroyo, 1989:6).
Entretanto, segundo Krasilchik (2000), houve, também durante a década de 60, um
movimento de busca da inclusão escolar que permeou o ensino de ciências. A formação de
uma elite científica no modelo técnico-científico começou a deixar de ser o objetivo do ensino
escolar de ciências e a escola passou a caminhar em direção a uma nova compreensão de seu
papel: os objetivos da educação escolar deveriam incluir todos os cidadãos, e não mais apenas
de um grupo privilegiado. Com isso, houve também a ampliação do ensino das ciências nos
currículos escolares, que passou a ser incluído desde o início da vida escolar, com aumento
substancial de carga horária. Física, química e biologia passaram a ter a função de também
desenvolver o espírito crítico através do exercício do método científico. Os objetivos, nesse
momento, começam a girar em torno da formação de cidadãos-trabalhadores, com propostas
curriculares estaduais, e com a concepção de ciências fundamentada no pensamento lógicocrítico, esvaziando o sentido de sua neutralidade. Entretanto, quando houve o início da
ditadura militar no Brasil, no ano de 1964, o papel da escola em relação ao desenvolvimento
da cidadania foi desestimulado. Por razões óbvias, naquele momento histórico, o objetivo
primordial da escola não deveria ser o incentivo ao pensamento crítico da cidadania, mas a
formação do trabalhador adaptável ao sistema produtivo, e que era visto como peça
importante para o desenvolvimento econômico do país (Krasilchik, 2000:86).
Formalizando essa opção, a década de 70 trouxe a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação no 5692, com caráter nacional, a qual norteou claramente as modificações
filosófico-educacionais e as propostas de reformas no ensino de ciências. Nesse momento, as
disciplinas científicas passaram a ter caráter profissionalizante altamente voltado para o
mercado de trabalho, segundo a legislação vigente. Entretanto, as escolas privadas
mantiveram sua proposta de preparação para o ensino superior e mesmo a escola pública não
aderiu fielmente à pretensa preparação para o trabalho proposta por aquela legislação. Tornase importante contextualizar esse momento histórico. Embora o Brasil estivesse mergulhado
em uma ditadura que se manteve por duas décadas, os acontecimentos mundiais continuaram
a ter importância na elaboração e objetivação do ensino de ciências.
Entre as décadas de 60 e 80 do século passado, a consciência ambiental é provocada
pelo aumento da poluição, crises energéticas etc. e determinou profundas mudanças no papel
das disciplinas científicas. A escola passou a se preocupar com o estudo de conteúdos
31
científicos relevantes para a vida do estudante, com intenção de identificar os problemas
vividos e buscar soluções para estes. Dessa forma, os temas interdisciplinares começam a
ganhar espaço com projetos acerca da poluição, lixo, energia, recursos naturais, crescimento
populacional etc. E ressurge, então, o incentivo à educação escolar ligada ao desenvolvimento
da cidadania.
Por todo o acima exposto, há de se pensar sobre os objetivos atuais do ensino de
ciências no Brasil relacionados tanto ao contexto mais amplo das políticas educacionais
quanto àqueles mais estritos aos processos de ensino-aprendizagem. Sob o contexto atual,
com todos os problemas sociais, econômicos, políticos e ideológicos envolvidos, torna-se
necessário compreender melhor o que se espera da escola e do ensino. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN+, 2008) buscaram definir os objetivos e diretrizes da educação
básica brasileira, integrando conteúdos, valores e atitudes. Novos desafios se fizeram
presentes: ver o estudante como alguém a ser ouvido e considerado, o que exigiu
desdobramentos da abordagem educacional. Nessa perspectiva, os estudantes são jovens
culturalmente caracterizados e capacitados a expressar concordâncias e divergências com o
que lhes é apresentado pela escola, aí incluídos os conteúdos e objetivos do ensino de
ciências. Tudo isto abriu espaço para a valorização pedagógica das concepções prévias, isto é,
dos conhecimentos trazidos pelos estudantes de diferentes espaços sociais que nem sempre se
harmonizam com o conhecimento científico oferecido na escola.
I.e) DIFICULDADES NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE ORIGEM DA
VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA APONTADAS PELA LITERATURA
Há diversas pesquisas, algumas relacionadas ao ensino de origem da vida e evolução
biológica, que apontam dificuldades à tentativa de se modificar conhecimentos e visões
trazidos pelos estudantes de seus contextos sociais. Especialmente na área de ensino de
ciências, muitos são os relatos de fracasso na aprendizagem de temas que possuem
explicações prévias. Diversos autores que abordam a área de ensino de ciências discutem a
seguinte questão: para a aprendizagem dos conhecimentos científicos é necessária a renúncia
a valores, visões e crenças, ou seja, conhecimentos prévios, que não se enquadram nos limites
da ciência?
Posner (1982) defende a renúncia a concepções prévias como condição de
aprendizagem da ciência, a chamada ‘mudança conceitual’, considerada necessária para que a
32
compreensão científica seja incorporada. Nesta perspectiva, dever-se-ia conseguir que os
estudantes renunciassem às suas explicações prévias. Tal abordagem tem se mostrado não só
de difícil realização, mas mesmo indesejável diante da liberdade de escolha de crenças
religiosas. A partir desta compreensão, outros autores admitem a possibilidade de convivência
entre conhecimentos prévios e aqueles ensinados na escola, tais como Cobern (1996),
Mortimer, (1996), Villani & Cabral (1997) e El-Hani & Bizzo (2002). Considerar os dados
das teorias sociológicas, antropológicas e psicológicas exigiu compreender o estudante como
um sujeito que teve sua identidade construída a partir de sua cultura social e familiar, em
torno de uma visão de mundo, valores e crenças. Nesse contexto, de acordo com aqueles
autores, o objetivo do ensino de ciências limita-se a tornar o conhecimento científico
compreensível aos estudantes. Este entendimento se mostra hoje como uma tendência de
receptividade dos conhecimentos prévios dos estudantes como parte de sua própria
identidade, e não passível obrigatoriamente de sofrer intervenção escolar.
Considerando o tema foco da pesquisa aqui relatada – o ensino de Origem da Vida e
Evolução Biológica - tem sobressaído a presença das crenças religiosas influenciando atitudes
de estudantes na compreensão e receptividade de explicações científicas. Diferentes pesquisas
têm identificado tal fenômeno. Em alguns estudantes protestantes de licenciatura em Ciências
Biológicas, Sepúlveda & El-Hani (2004) observaram que as teorias científicas foram
aprendidas quando se encontravam numa posição de convivência com a crença religiosa que,
por sua vez, continuava a ser o eixo organizador da visão de mundo dos estudantes. Desta
forma, os estudantes daquela pesquisa integraram o conhecimento científico sobre a origem e
evolução da vida com suas crenças religiosas, quando construíram um modelo explicativo
próprio, sem ferir os fundamentos da ciência. Entretanto, essa convivência nem sempre se
torna possível, conforme pesquisa realizada por Trigo (2005) com grupo de estudantes do
ensino médio. Tal pesquisa indicou que houve influência de crenças religiosas na rejeição das
explicações científicas para origem da vida e evolução biológica. Nesse trabalho, foi
observada uma tendência de maior rejeição às teorias da ciência por parte dos estudantes
evangélicos em contraste com os católicos, que apresentaram uma tendência de maior
aceitação dessas explicações, na medida em que avançava o período escolar. Ao final do
ensino médio, a influência das crenças religiosas na aceitação de explicações científicas tinha
diminuído no conjunto de estudantes pesquisados, mas não desaparecido, e a análise dos
processos, atividades e tempo dedicados ao ensino dos temas revelou diferentes falhas, o que
mostrou que a dificuldade de aceitação das explicações científicas para Origem da Vida e
33
Evolução Biológica poderia estar relacionada também com problemas presentes no processo
de ensino-aprendizagem.
Outra pesquisa revelou alguns outros aspectos relacionados ao ensino de ciências que
podem influenciar na aprendizagem do tema origem da vida. Nicolini (2006) demonstrou em
seu trabalho que há um abismo existente entre o que é apresentado no meio acadêmico sobre
origem da vida e o que deve ser debatido na sala de aula. O tema em questão está previsto nos
PCN+, mas nem sempre as licenciaturas o abordam de maneira sistematizada. As divulgações
veiculadas pelos diversos meios de comunicação de massa, e também as religiões, contribuem
para aumentar a complexidade do repertório trazido pelos estudantes. Fato é que as idéias
científicas acabam por ser confrontadas com crenças e atitudes religiosas trazidas pelos
estudantes. Falcão, Santos & Luiz (2008) mostraram a extensa influência da presença de
igrejas evangélicas em contexto socialmente carente: o discurso religioso, na escola
pesquisada, prevaleceu ao longo do ensino médio para origem da vida e evolução biológica.
Também nessa escola foram identificadas fortes e amplas carências pedagógicas.
Cerqueira, Costa & Falcão (2007) realizaram uma pesquisa que teve como objetivos
principais identificar e compreender as concepções científicas e religiosas de dois grupos de
estudantes do ensino médio (1º e 3º ano) de uma escola particular localizada no município de
São João de Meriti/RJ acerca da origem do ser humano. Observou-se uma rejeição de
conceitos científicos sobre a evolução humana em ambos os grupos pesquisados e a
preferência da maioria dos estudantes pela explicação religiosa de origem bíblica, em
detrimento da explicação científica. Mais uma vez, a presença religiosa nas explicações foi
inquestionável. Poder-se-ia, numa primeira interpretação, atribuir à presença da religião a
responsabilidade pelos erros científicos dos estudantes. Mas, diante das condições da escola
investigada, pode-se também pensar que faltaram recursos pedagógicos que favorecessem as
condições de aceitação dos estudantes quanto ao tema pesquisado: evolução humana. O
conjunto dos resultados dessas pesquisas mostrou tanto carências estruturais e pedagógicas
das escolas como o impacto das características sócio-culturais dos estudantes.
A literatura especializada (MOREIRA, 1999) aponta fatores limitantes à relação
ensino-aprendizagem eficaz quando se ignora a cultura dos estudantes que podem dificultar a
compreensão de determinados conteúdos. A exigência de preparo do professor é grande ao
abordar temas que possuem ampla gama de explicações trazidas dos contextos sociais dos
estudantes, o mesmo valendo para os aportes institucionais como bibliotecas e laboratórios. A
34
prática pedagógica no tocante aos temas em tela geralmente limitam-se à explanação por parte
do professor e consulta aos livros didáticos, os quais, em sua maioria, não oferecem recursos
além dos textos. Nesse quadro, pode não ser surpreendente a opção dos estudantes pelas
explicações religiosas. Essas já foram oferecidas ao longo de suas vidas e em contextos
sociais e afetivos de maior poder persuasivo do que aqueles oferecidos por sua escola. Esse
quadro poderia justificar uma maior necessidade de cuidados educacionais especiais que não
estão sendo oferecidos aos estudantes.
Para Falcão, Santos & Luiz (2008), os resultados de sua pesquisa revelaram que
muitos dos estudantes, mesmo com forte envolvimento religioso, estão abertos ao ensino de
ciências. Tal conclusão foi realizada através da observação de que, quando questionados sobre
uma possível interferência entre suas crenças religiosas e o estudo da Biologia, parte dos
estudantes mostrou compreender que religião e ciência referem-se a explicações diferentes, de
naturezas distintas. Segundo os autores,
tal perspectiva vai ao encontro da atitude defendida por autores (...) que expressam
seu entendimento de que o objetivo do ensino das ciências não é produzir a
extinção de conhecimentos, crenças ou valores prévios que os alunos trazem
quando chegam à escola. Ainda que a pesquisa (...) não tenha abordado o padrão
de relacionamento pessoal entre estudantes e seus professores de ciências, é
importante registrar que, considerando estudos da psicologia e da sociologia, tal
relacionamento pode influenciar o processo dinâmico e mutável das
representações sociais dos estudantes. Assim, em face da análise do conjunto dos
dados obtidos (...), é possível concluir que os efeitos do contexto social adverso aos
objetivos escolares de ensino dos conteúdos da ciência não se colocam como
absolutos nem parecem irreversíveis. (Falcão, Santos & Luiz, 2008:437)
Tendo em vista os inúmeros relatos e trabalhos anteriormente publicados sobre as
dificuldades enfrentadas pelos estudantes na aprendizagem dos temas, torna-se necessária
uma consciência profunda sobre o papel pedagógico do professor para a compreensão e
aceitação das explicações científicas de seus alunos, especialmente no que se refere aos temas
que possuem explicações religiosas e de senso comum. E para que o professor possua
instrumentos para tornar sua prática mais eficiente, é preciso que sua formação esteja em
constante avaliação e reformulação, se necessária. O professor precisa dominar o conteúdo
específico e compreender a natureza do conhecimento e das práticas da ciência.
35
Para Scheid, Ferrari & Delizoicov (2006),
constatações conduzem a uma reflexão sobre o processo de formação dos
professores de ciências biológicas. Possivelmente, um dos entraves no processo
ensino-aprendizagem está na visão positivista de ciência, ainda muito presente,
que impõe uma racionalidade técnica que torna o professor responsável pela
detenção de verdades descobertas, que transmite aos seus alunos como prontas,
acabadas, inquestionáveis. A História da Ciência, inserida na educação científica,
poderá oportunizar um caminho de orientação aos alunos na apropriação de uma
concepção de ciência como atividade humana, construída na interação entre o
sujeito cognoscente, o objeto a conhecer e o ‘estado do conhecimento’. (Scheid,
Ferrari & Delizoicov, 2006:224)
Conclui-se que a diversidade da cultura humana exige preparação, diálogo e abertura
por parte dos professores de biologia ao abordarem os temas Origem da Vida e Evolução
Biológica em sala de aula. Como as crenças religiosas têm mostrado grande influência nos
temas aqui tratados, é importante lembrar que o processo de secularização mostra nuances,
tendo em vista que ainda hoje se observam muitos elementos da religião permeando a
sociedade. Não obstante o esforço necessário para a separação da educação formal e da
religião no mundo ocidental secularizado, é imperioso observar que a cultura humana não tem
como ser compartimentalizada. Muito se tem discutido acerca da importância da separação
entre escola (educação formal) e religião. Segundo Giumbelli & Carneiro (2004),
hoje, na sociedade brasileira e, particularmente, no Rio de Janeiro, vemos
ressurgir uma questão que envolve o Estado e a religião através de uma temática
que sempre foi extremamente sensível, a educação, ou melhor, a formação básica
oferecida pela escola dirigida aos futuros cidadãos. Essa educação deve ser laica
ou religiosa? (Giumbelli & Carneiro, 2004:11)
O aporte teórico das ciências sociais vem sustentando a importância dos
conhecimentos prévios dos estudantes quando da abordagem do conhecimento científico, e
para melhor contextualização serão tratados no capítulo II alguns dos seus principais
elementos.
36
II. CULTURA: MUNDO SOCIAL, RELIGIÃO E CIÊNCIA
O presente capítulo pretende apresentar as bases teóricas das ciências sociais e
sociologia do conhecimento que serão consideradas na pesquisa. Para tal, foram escolhidos
autores representativos das áreas em questão: Clifford Geertz, Serge Moscovici, Denise
Jodelet, Peter Berger e Thomas Luckmann.
II.a) A CULTURA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE
A sociedade é formada por indivíduos que compartilham, ainda que com diversidades,
um mesmo pensamento coletivo, ou seja, que reconhecem uma realidade comum, a qual será
chamada no presente trabalho de cultura, seguindo as linhas propostas por Geertz (1989) e
Berger & Luckmann (2003).
O ser humano possui uma necessidade inerente de transformar o não-familiar em
familiar, de organizar o mundo e criar sentido para as suas experiências. O compartilhamento
das experiências, valores e idéias dos indivíduos dá origem à realidade cotidiana de uma
sociedade. As trocas simbólicas11 formam sistemas de valores e concepções que os indivíduos
reconhecem como realidade.
Segundo Berger & Luckmann,
O que é ‘real’ para um monge tibetano pode não ser ‘real’ para um homem de
negócios americano. O ‘conhecimento’ do criminoso é diferente do ‘conhecimento’
do criminalista. Segue-se que aglomerações específicas da ‘realidade’ e do
‘conhecimento’ referem-se a contextos sociais específicos e que estas relações
terão que ser incluídas numa correta análise sociológica desses contextos (Berger
& Luckmann, 2003:13).
É no contexto dessas realidades típicas que diferentes culturas são desenvolvidas e
reconhecidas. Em seu livro A Interpretação das Culturas, Geertz cita Max Weber para
construir o conceito de que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, ou seja, a cultura é o conjunto de tais teias juntamente com a sua análise. A
cultura, portanto, é pública e, embora uma ideação, não existe na cabeça de ninguém; embora
não-física, não é uma identidade oculta.
11
Troca simbólica é a permuta de símbolos pelos indivíduos humanos. Símbolo, segundo Berger & Luckmann
(2003), é o produto social que carrega consigo uma história, ou seja, é gerado num contexto histórico a partir das
interações entre os membros de uma sociedade.
37
Na medida em que assumimos que todo o conhecimento humano (ou cultura) é
desenvolvido, transmitido e mantido em situações sociais, através dos aportes da sociologia
do conhecimento, podemos buscar a compreensão do processo através do qual isso acontece,
ou seja, de que maneira uma realidade tida como correta torna-se sólida na mente do homem
comum. É nesta compreensão que será possível identificar diferentes conteúdos que, num
certo momento, prevalecem para explicar fenômenos como Origem da Vida e Evolução
Biológica.
Segundo Berger & Luckmann, o senso comum, ou ‘realidade da vida cotidiana’, está
presente numa sociedade anteriormente à existência dos indivíduos. Quando um ser humano
nasce, já encontra a sociedade formada em torno de fundamentos do conhecimento da vida
cotidiana (ou senso comum). Foi construído no passado e é interpretado por cada um dos
indivíduos componentes de tal sociedade.
Para esses autores, existem dois tipos distintos de realidade: a realidade objetiva e a
realidade subjetiva. A realidade objetiva constitui-se pelo conjunto de crenças, valores e
idéias preexistentes em relação ao indivíduo. A linguagem, seja ela corporal ou vocabular, é o
primeiro contato do homem com a sociedade, ou seja, é o que em primeira instância torna os
homens membros de uma sociedade. Através da linguagem o homem começa a dotar a vida
de sentidos e significados. Desta forma, pode-se dizer que através da linguagem o homem
experimenta a realidade objetiva.
A realidade subjetiva é formada a partir da interpretação individual da realidade
objetiva. Ou seja, a partir do senso comum, o homem é livre para interpretar os
conhecimentos adquiridos. É o que diferencia um homem do outro, diferenças formadas a
partir da interiorização e re-elaboração da realidade objetiva. O processo ontogenético através
do qual isso acontece é chamado de socialização. A socialização consiste na ampla introdução
de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade. Podem-se destacar dois tipos de
socialização: a primária e a secundária. A socialização primária é a socialização
experimentada pelo indivíduo durante a infância, onde se torna de fato membro social. Essa
primeira socialização tem forte apelo junto ao indivíduo, pois se origina a partir da relação
familiar e é dotada de grande valor afetivo. É quando a personalidade do indivíduo se forma, a
partir do reflexo daqueles entes tomados como significativos. A criança interioriza o mundo
das pessoas significativas para ela não como uma das possibilidades de mundo, mas como o
único mundo existente. Por esta razão, o mundo interiorizado durante a socialização primária
38
é muito mais fortemente enraizado em sua consciência do que aqueles outros mundos
descobertos durante a socialização secundária. Por mais que, durante o processo secundário
de socialização, o indivíduo seja colocado frente a informações novas, ainda assim as
informações do mundo social primário permanecem em sua lembrança como certeza aderida.
A socialização secundária ocorre a partir da interiorização pelo indivíduo de
conhecimentos institucionalizados. Os processos formais de socialização secundária devem
pressupor o processo anterior de socialização primária. Assim sendo, na escola, deve-se levar
em conta que os estudantes já possuem uma personalidade formada e determinada bagagem
moldada durante aquele primeiro processo de socialização. Qualquer que seja o conteúdo
abordado, provavelmente já há uma explicação primária obtida. Este conflito pode ser de fácil
solução, ou extremamente difícil. Segundo Berger & Luckmann (2003), para que haja a
possibilidade de questionamento dos conhecimentos adquiridos durante a socialização
primária, e também para que o novo conhecimento encontre terreno fértil, é fundamental que
exista ligação emocional entre os indivíduos que interagem (no caso, aluno e professor).
O ser humano torna-se homem ou mulher a partir da interação com seus pares. O
conjunto de homens e mulheres transforma o ambiente em humano, ou seja, é impossível que
um homem criado isolado desenvolva-se no que chamamos homem, assim como um
indivíduo isolado não cria um ambiente humano. Para Berger & Luckmann (2003), o ser
humano isolado é um ser no nível animal. (...) A humanidade específica do homem e sua
sociabilidade estão inextricavelmente entrelaçadas (pág. 75). O ser humano torna-se homem
ou mulher porque vive sob uma organização artificial12 criada pelo próprio ser humano: a
ordem social. A ordem social é produto da atividade humana e origina-se da exteriorização da
realidade como percebida pelo homem ou mulher. É uma necessidade humana que torna o
ambiente estável para que o indivíduo sinta-se em segurança. Segundo os autores,
A inerente instabilidade do organismo humano obriga o homem a fornecer a si
mesmo um ambiente estável para sua conduta. (...) Estes fatos biológicos servem de
premissas necessárias para a produção da ordem social. Em outras palavras,
embora nenhuma ordem social existente possa ser derivada de dados biológicos, a
necessidade da ordem social enquanto tal provém do equipamento biológico do
homem (Berger & Luckmann, 2003:77).
O ser humano necessita do hábito, do familiar. As atividades e ações realizadas dentro
de um padrão familiar conservam um caráter significativo que transmite segurança, traz alívio
12
Berger & Luckmann (2003:76) utilizam o conceito de organização artificial no sentido que a ordem social não
pode ser considerada inerente à espécie humana de maneira natural (ou parte da natureza humana).
39
psicológico e, por isso, configurações estáveis de convivência social são estabelecidas ou
institucionalizadas, como a família, a escola, a religião. Produzidas na dinâmica das
interações sociais, as instituições implicam a historicidade e o controle sobre as ações. Os
autores em questão apontam, no trecho a seguir, a definição de instituição adotada no
trabalho:
As instituições, também, pelo simples fato de existirem, controlam a conduta
humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a canalizam
em uma direção por oposição às muitas outras direções que seriam teoricamente
possíveis (Berger & Luckmann, 2003:80).
As diversas instituições que fazem parte do mundo social de determinada sociedade
contribuem para construir o conjunto de idéias e valores partilhados pelos indivíduos. É nesse
sentido que será apresentada a seguir a noção de representação social.
Representação social: o conceito
O espectro das idéias e valores sobre determinado tema presentes em um grupo social
é denominado ‘representação social’. A Teoria das Representações Sociais (TRS) tem como
formulador Serge Moscovici que, fundamentado no conceito de representações coletivas
desenvolvido por Emile Durkheim, estudou a maneira pela qual os indivíduos buscam
compreender o mundo que os cercam. Desde a primeira publicação de Moscovici sobre a
TRS, estudiosos assistem a uma grande expansão na utilização do seu conceito. Para este
autor, representando-se uma coisa ou uma noção, não produzimos unicamente nossas
próprias idéias e imagens: criamos e transmitimos um produto progressivamente elaborado
em inúmeros lugares, segundo regras variadas (op. cit., p. 63).
Durkheim (1947), no prefácio da segunda edição de seu livro As regras do método
sociológico, cunhou o termo “representações coletivas” a fim de compreender a ideação social
à qual se opõe a representação individual. Este autor aplicou tal conceito em relação a
sociedades estáticas, tradicionais e estabelecidas. Durkheim compreende também como
representações coletivas diversas produções mentais sociais, tais como a ciência, a religião, a
ideologia e os mitos. Observa-se ainda que Durkheim absteve-se de discutir os aspectos
cognitivos da representação da realidade e também sua produção pelos grupos sociais.
No livro A psicanálise, sua imagem e seu público, Moscovici (1961) retoma o ponto
de vista de Durkheim e soma novas especificações a tal perspectiva. A referida obra foi
40
pioneira no estudo das representações sociais como construção de um conhecimento válido
pelo senso comum, o qual é dinâmico e recebedor de idéias e valores de origens diversas, tais
como política, religiosa, científica, filosófica e moral. Em sua obra, o autor estuda como a
visão da psicanálise se modifica na medida em que é apropriada por diferentes grupos da
sociedade. Sua pesquisa mostra que o saber científico é transformado em uma dimensão de
senso comum, conforme é reinterpretado por cada um dos grupos sociais investigados. Em
resumo, o autor procura enfatizar que as representações sociais não são apenas opiniões ou
imagens sobre algo, mas teorias coletivas complexas sobre o real, sistemas que têm lógicas e
linguagens particulares, ou seja, uma rede de valores e conceitos que determinam o campo das
comunicações possíveis sobre os valores ou idéias compartilhadas pelos grupos e regem, desta
forma, as condutas desejáveis ou admitidas (Moscovici, 1978, p.51). Jodelet (2001), no
mesmo sentido, enfatiza que o conhecimento do senso comum é uma maneira de interpretar a
realidade cotidiana e não se constrói no vazio, se desenvolve nas formas e normas da cultura e
é construído ao longo das trocas cotidianas. Por isso, afirma-se que a representação social é
socialmente construída. A partir dos elementos propostos, pode-se definir representação social
como a construção social e dinâmica de um saber de senso comum elaborado por meio das
interações sociais, através dos valores, das crenças, dos estereótipos etc. partilhados por
determinado grupo social no que concerne a diferentes objetos (pessoas, acontecimentos,
categorias, fenômenos, etc.), dando lugar a uma visão comum das coisas.
Por todo o acima exposto, pode-se concluir que, em se tratando de coletividades (por
exemplo, os grupos de professores investigados), a sedimentação das idéias ocorre de forma
intersubjetiva, onde os sujeitos que formam a coletividade experimentam memórias
construídas em comum. É diante das diversas interpretações (representações) sociais
(docentes e discentes) que professores apresentam conteúdos em sala de aula. Laços
familiares, por exemplo, incluem toda uma rede de significados culturais que permeiam os
processos de desenvolvimento de crianças e jovens. Trata-se de um repertório com o qual os
professores irão lidar em suas salas de aula. Influências diversas originadas em conhecimentos
institucionalizados, como aqueles das religiões e das ciências, poderão estar mais ou menos
presentes neste repertório. É disso que tratará a próxima seção.
II.b) A RELIGIÃO COMO INSTITUIÇÃO
A religião se constitui por um sistema de pensamento que busca caracterizar o mundo
e torná-lo familiar segundo crenças específicas. Até os séculos XVII/XVIII, a religião era o
41
sistema de pensamento dominante no Ocidente. A relação estreita que havia entre religião e
Estado contribuía para esta dominância.
Segundo Geertz (2004), há uma articulação entre duas dimensões encontradas em
qualquer grupo social quando a religião é observada: a visão de mundo, que remete à
metafísica, à cosmologia e à ontologia; e o ethos, que define valores, moral e ética, e estilo de
vida de um grupo social. A religião opera a convergência entre essas duas dimensões,
articulando intelecto e emoção, e remetendo para concepções de realidade e valorações morais
construídas culturalmente. Para este autor, a crença religiosa difere do senso comum, na
medida em que a experiência religiosa é algo que ocorre ao religioso além do resto do senso
comum que ele comunga com todos os outros ocupantes de seu grupo social (o qual não é
formado exclusivamente por participantes da mesma religião). Desse modo, a religião tem
impacto sobre o cotidiano, mas não é o cotidiano como um todo.
Segundo Faustino Teixeira, Peter Berger entende a religião como projeção humana,
baseada em infra-estruturas específicas da história humana (Teixeira, 2003:229-230). A
abordagem de Berger na obra O dossel sagrado (1967) para o fenômeno religioso leva em
consideração que a religião exerce para os que aderem a ela, uma ordenação da realidade, de
maneira a protegê-los da anomia. Segundo esse autor, um dos aspectos da religião é exercer
um grande poder de legitimação, o que, em certas condições, pode até promover certa
alienação. Tal alienação seria, neste caso, causada pelo status ontológico da religião, tida
como validade suprema. O indivíduo que vê a religião desta maneira tem sua compreensão
dialética do mundo prejudicada, não enxergando mais sua participação e co-produção na
realidade. Quando confronta o fenômeno religioso com a modernidade, Berger aponta uma
crise de credibilidade da religião causada pelo processo de secularização que surgiu a partir
da Revolução Científica. Este processo ocorreu quando houve a separação entre Estado e
Religião. Na visão de Weber (apud Teixeira, 2003), a secularização atua no subjetivo da
consciência do indivíduo e na sociedade e sua cultura. Assim sendo, observou-se a redução da
religião ao campo subjetivo do indivíduo ou de pequenos grupos, e a elevação do caráter do
Estado como laico. O pluralismo religioso, causado pela quebra do monopólio religioso até
então presente, contribuiu para instaurar a competição ainda maior entre as distintas
definições da realidade.
42
O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um lado a
outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes contraditórias, cada
uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua coexistência involuntária com
outras estruturas de plausibilidade. Além dos ‘outros significantes’ que confirmam
a realidade, há sempre e em toda parte ‘aqueles outros’, incômodos refutadores,
descrentes – talvez o incômodo moderno por excelência (PETER BERGER, In:
Teixeira, 2003:235)
Para Karl Marx a religião é tida como produto do mundo dos homens, que por causa
de suas condições materiais de existência buscam na religião alívio para sua miséria. Na
primeira fase de seus trabalhos, como na obra Contribuição à crítica da filosofia do direito de
Hegel (1843), Marx vê a religião como alienação. Posteriormente, na Ideologia Alemã (1845),
considera a religião como ideologia ou ainda falsa consciência que esconde a realidade da
dominação das classes. Para este autor, a religião perderá força dentre os homens quando
estes forem livres, conscientes e donos de seu próprio movimento social.
O homem não é um ser abstrato, fora do mundo. O homem é o mundo dos homens,
o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, produzem a religião, uma
consciência invertida do mundo, porque são um mundo invertido. (...) A miséria
religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra a
miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo
sem coração, assim como é o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio
do povo (Marx, 1974: 93-94)
Èmile Durkheim parte da análise do fenômeno religioso para sua tese fundamental: as
representações coletivas. Para Durkheim, a religião não simplesmente mantém coesa uma
sociedade em torno de seus ritos e símbolos, mas proporciona a um grupo de homens o laço
social primordial. Com o processo de secularização, a multiplicidade de religiões e o
desenvolvimento da ciência, diversos sistemas de significados passaram a coexistir. Na
próxima seção é realizada uma abordagem sintética da história da ciência, assumindo-a como
forma de conhecimento que modificou profundamente as sociedades humanas.
II.c) A CIÊNCIA COMO INSTITUIÇÃO
No século XVII, na Europa ocidental, começou a ser desenvolvida uma maneira
completamente nova de observar os fenômenos da natureza. A base da nova visão está situada
muito antes, mas nos trabalhos de filósofos da natureza como Galileu, Descartes, Newton é
que se encontram os elementos da chamada revolução científica. De fato, hoje percebemos
que estes pensadores sintetizaram correntes de pensamento e iniciaram uma nova forma de
descrição da natureza. Esse momento da história do pensamento ocidental é o marco inicial de
uma nova forma de conhecer o mundo que nos cerca, baseado no saber racional que, hoje,
está claro no que chamamos ciência.
43
Segundo historiadores da ciência como Henry (1998), o momento inicial dessa
mudança é controverso, variando no período que se estende do século XVI ao século XVIII.
Entretanto, o fato do momento denominado revolução científica não possuir data precisa e ser
um conceito histórico e não um marco absoluto não diminui o grau das mudanças observadas
a partir daquela revolução. A própria palavra ‘revolução’ gera debate: a idéia de ruptura
radical com o passado é discutível, uma vez que sobre o conhecimento acumulado durante o
período pré-revolução é que foram construídos os conhecimentos advindos do que chamamos
ciência.
Segundo Marilena Chauí, historicamente são distintas três concepções de ciência: a
racionalista, a empirista e a construtivista. A concepção racionalista (que engloba o período
entre os gregos e o final do século XVII) confere à ciência um caráter racional dedutivo e
demonstrativo como a matemática. A verdade absoluta e universal seria atingida através dos
enunciados e resultados obtidos e se configuraria como a própria realidade, pois seria racional
e inteligível em si mesma. As experiências científicas teriam a função de somente verificar e
confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este
já teria sido conhecido através do pensamento matemático, exato e irrestrito.
A concepção empirista se firma na medicina grega e em Aristóteles até o final do
século XIX e postula que a ciência é baseada em observações e experimentos que permitem
estabelecer induções e realizar inferências sobre os fenômenos. Ao se completar as
observações e induções, pode-se definir o objeto, suas propriedades e leis de funcionamento.
A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência
não tem simplesmente a função de verificar e confirmar conceitos, mas a de produzi-los
(Chauí, 2006: 221). Essa seria a causa da constante preocupação com o método científico
rigoroso, pois dele dependeria a formulação da teoria e a definição dos objetos observados.
Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o
realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica
era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal
como esta é em si mesma. A ciência era espécie de raio X da realidade (Chauí,
2006:221).
A concepção construtivista, iniciada no século XX, confere à ciência o título de
modelo explicativo para a realidade e não uma representação da própria realidade. Não há
mais a visão de que a ciência explicita a realidade absoluta. O cientista confia na aproximação
dos métodos e na capacidade de correção e modificação. A ciência atual é baseada em três
44
exigências, segundo Marilena Chauí: coerência, isto é, falta de contradições entre os
princípios que regem a teoria; observação e experimentação para a construção dos modelos; e
a alteração e modificação de modelos construídos previamente.
Há uma distinção profunda no que se refere à ciência pré-revolução (anterior ao século
XVII, dita antiga) e a ciência pós-revolução científica (clássica ou moderna). A ciência antiga
era uma ciência teorética, contemplativa, que procurava conhecer os seres naturais e os
fenômenos sem a intenção de intervir neles ou sobre eles. Já a ciência moderna visa não só o
conhecimento teórico, mas principalmente possibilidades de intervenção com aplicações
práticas, técnicas ou tecnológicas13. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na
natureza, na idéia de apropriação, controle e domínio. A ciência torna-se o exercício do poder
humano sobre a natureza.
Durante certo tempo, acreditou-se que a ciência evoluiria e progrediria através de uma
sucessão de descobertas e criações científicas, no sentido de aperfeiçoamento e melhoria do
mundo, em sua compreensão e práticas de vida. Para Marilena Chauí, evolução e progresso
são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao
presente (Chauí, 2006:222). Tal forma de pensar influenciou também as ciências sociais
quando, durante bastante tempo, acreditou-se que os povos europeus civilizados fossem mais
evoluídos do que indígenas e/ou africanos, ou mesmo no conceito de países desenvolvidos e
sub-desenvolvidos. Ao realizar tal distinção, tomam-se como referência a continuidade
temporal, a acumulação causal dos acontecimentos, a superioridade do futuro e do presente
com relação ao passado e a existência prévia de uma finalidade a ser alcançada. Entretanto,
na área da filosofia da ciência, comparações foram realizadas em momentos distintos do
conhecimento sobre geometria (clássica e euclidiana), física (Aristóteles, Galileu-Newton e
Einstein) etc. e verificou-se uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias
científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva ou melhor
de fazer ciência, mas como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os
objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar tecnologias (Chauí, 2006:223).
Esses estudos contribuíram para que se compreendam as descobertas científicas e a
construção da ciência moderna como um todo, ou seja, é preciso que se tenha em mente o
contexto específico de surgimento das mudanças. Para John Henry, o empenho por uma
13
Técnica é um conhecimento empírico inicial que elabora uma prática para ação sobre as coisas. Tecnologia,
por sua vez, é compreendida como um saber teórico que é aplicado na prática posteriormente.
45
contextualização cada vez mais rica pode ser visto, portanto, como a força propulsora da
atual historiografia da ciência (Henry, 1998:18). Neste caminho, a dimensão social da
produção científica tornou-se foco de diferentes pesquisas trazendo à luz aspectos que deram
base à compreensão construtivista da ciência. Autores como Kuhn, Bloor, Latour, Bourdieu e
Cettina são, hoje, importantes referências para a compreensão do fazer ciência.
Thomas Kuhn considera que a ciência pode ser dividida em ‘ciência normal’ e
‘revolução científica’. Para este autor, um campo científico é criado quando conceitos,
experimentos, métodos e tecnologias formam uma teoria que permite interpretar vários
fenômenos. A teoria se torna um modelo ou paradigma científico, o qual também pode ser
descrito como o campo no qual uma ciência opera normalmente, sem crises, sendo chamada
de ‘ciência normal’. Durante a vigência do modelo aceito como normal, um cientista, ainda
que diante de um fato novo, utiliza-se de tal modelo para explicá-lo. Entretanto, se o
paradigma disponível (ou modelo normal) não é suficiente para explicar um novo fato ou
fenômeno, torna-se necessário o surgimento de um novo paradigma, o que se constitui como
uma ‘revolução científica’. De acordo com essa proposição, a ciência não caminha de maneira
linear e progressiva, mas sim através de saltos e revoluções.
Influenciado pela visão de dimensão social da ciência, Thomas Kuhn definiu:
paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma
comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma (Kuhn, 1978:220).
Pode-se concluir então que, para Kuhn, a ciência é mais do que a prática da verdade: é o que
um grupo humano estabelecido compreende e partilha como sendo a melhor maneira de
interpretar os fatos e fenômenos. Dentro de um período de ‘ciência normal’, o paradigma é
como uma herança cultural que os cientistas transmitem sucessivamente através das gerações.
Assim como qualquer faceta da cultura, o paradigma é transmitido pelo treinamento,
socialização e controle entre os membros da comunidade científica. Quando se acumulam
fatos e fenômenos que não podem ser satisfatoriamente explicados com o uso do paradigma
normal, ocorre uma instabilidade na comunidade científica. Com o acúmulo de problemas
não-equacionados pela ‘ciência normal’ e a instabilidade da comunidade científica, ocorre a
‘revolução científica’ onde um paradigma é substituído total ou parcialmente por outro novo e
incompatível com o anterior. No momento de instabilidade, ocorre o surgimento de
competições e conflitos pelo domínio do campo do conhecimento. Porém, após o
estabelecimento do novo paradigma há o decréscimo dos conflitos e o surgimento de uma
46
visão de ciência e de mundo completamente diferentes da anterior. Essa visão de Kuhn, ainda
que comporte diferenças em relação aos autores a seguir apresentados, deixou a marca da
visão sociológica da ciência. Essa visão de diferentes desdobramentos compõe o importante
repertório acadêmico para a compreensão da ciência como instituição.
Pierre Bourdieu introduziu a noção de campo científico em detrimento do conceito de
comunidade científica de Kuhn. A ciência seria um campo de lutas pelo monopólio da
autoridade e competência científicas, ou seja, há luta dentro da comunidade científica pelo
crédito/capital simbólico14. Além disso, a autonomia da comunidade científica e da ciência
deve ser avaliada tendo em vista a sociedade como um todo à qual pertence. Para Bourdieu,
cientistas não são neutros, mas interessados no jogo do mundo social e das possibilidades do
que ele chamou de acúmulo de crédito científico ou capital simbólico. O próprio interesse dos
cientistas por certas áreas de estudo explicariam seus objetos e práticas de pesquisa. Para este
autor, pouco do trabalho do cientista poderia ser incluído no que Kuhn chamava comunidade
científica. Bourdieu refere-se ao grupo como campo, pois defende que haja luta e interesses
incutidos no trabalho relacionado à ciência como em qualquer parcela da sociedade
capitalista. Portanto, diferentemente de Kuhn, que crê na manutenção e ruptura com o
paradigma científico vigente como processo normal de pesquisa, Bourdieu vê tal manutenção
e ruptura como estratégia dos agentes em busca do capital simbólico, e nesse sentido
‘valores’, ‘universalidade’, ‘ética’ podem ter influências muito relativas.
Outros autores que investigaram a sociologia da ciência, como Latour & Woolgar e
Knorr-Cetina, exploraram diferentes aspectos no esforço de contextualizar o trabalho do
cientista para que se possa conhecer sua produção. Para tal fim, Latour & Woolgar (1997)
realizaram pesquisa etnográfica com descrição minuciosa do funcionamento das práticas
científicas e da própria ciência, realizando desta forma uma micro-análise em contraste com
as macro-análises sociais de Kuhn e Bourdieu. Mostraram dados que retrataram formas de
imposição da autoridade científica no campo da luta e interesse por acúmulo de capital
simbólico.
No livro ‘A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos’, Latour & Woolgar
(1997) concluíram que não são as normas inculcadas pelo treinamento que orientam os
14
Crédito científico ou capital simbólico deve ser compreendido como o capital não monetário de
autoridade/competência científica que pode ser acumulada, transmitida e até re-convertida em outros tipos de
capital no mercado da produção do conhecimento científico.
47
cientistas. O apelo às normas é geralmente instrumental, e a linguagem dos cientistas está
repleta de termos econômico-financeiros como investimento, oportunidades e retorno, sendo
impossível avaliar se tal uso se deve de fato aos motivos reais dos cientistas ou se são
justificativas. A observação de Latour & Woolgar permite questionar a proposição de
Bourdieu, para quem a recompensa pela atividade científica seria o crédito. Tais autores
defendem que haja a ampliação do significado de crédito, associando-o com ‘crença, poder e
business activity’ (1997:194), para o conceito de credibilidade. Essa ampliação mantém os
elementos econômicos da proposição de Bourdieu, mas também considera (como objetivo
primeiro) o re-investimento de recursos acumulados, o que garante ao cientista credibilidade
para obter dinheiro, equipamentos, informações, prestígio, credenciais, áreas de estudo,
argumentos, papers, livros, prêmios, vinculando, assim, o cientista ao mundo exterior ao
laboratório, por exemplo, com agências de financiamento, leitores, fornecedores etc. (Latour
& Woolgar, 1997:200-201).
Em trabalhos posteriores, Bruno Latour desenvolveu a idéia de que não basta
reconstruir e explicitar o contexto social dentro do qual o conhecimento científico deve ser
compreendido, mas é preciso também mostrar como o contexto social é afetado pelos
conteúdos da ciência. Ou seja, a ciência não só é moldada pelo contexto social, mas também
atua neste contexto, modificando e reorganizando a sociedade a partir de suas descobertas e
produtos.
Karin Knorr-Cetina segue a linha construtivista, que percebe os produtos da prática
científica como construções contextualmente específicas que têm como característica a
situação contingente e a estrutura do processo pela qual foram geradas (Knorr-Cetina,
1981:5), ou seja, o produto da ciência não deve ser entendido separadamente das práticas que
o constituíram.
De forma semelhante aos demais autores que abordam a prática científica em
laboratórios, Knorr-Cetina sustenta que as descobertas e os produtos científicos são
selecionados de maneira contingente ao contexto social, sendo permanentemente
descontextualizados e transformados em inovações universais nos trabalhos de divulgação de
resultados. Entretanto, a autora defende que haja a contextualização para que, ao invés de
paradigmas universais, a ciência seja observada como conjunto de métodos e práticas
contingentes e locais, o que torna o exercício científico nada mais do que uma das práticas da
vida social. A diferença fundamental entre Knorr-Cetina e os demais autores (como Kuhn,
48
Bourdieu, Latour e Woolgar) mostra-se na perspectiva lançada por aquela da importância das
relações entre cientistas e não-cientistas na produção do conhecimento.
Os autores apresentados nesta seção são alguns dos muitos que hoje se dedicam aos
micro-estudos apoiados na história, antropologia e sociologia da ciência. Muitos dos
resultados desses estudos não só fazem avançar a compreensão da natureza das práticas que
elaboram o conhecimento científico, como também têm feito avançar a renovação das práticas
de ensino nas salas de aula. Tais práticas sofrem ainda a influência da visão construtivista da
ciência, que exige uma compreensão renovada do mundo social estudantil encontrado nas
salas de aula. Esse mundo social traz tanto jovens curiosos diante dos fenômenos naturais e
sociais, como sua diversificada bagagem cultural ancorada desigualmente nas crenças
religiosas e científicas. A seguir serão apresentadas algumas reflexões sobre o tema: conflitos
entre a ciência e a religião.
II.d) RELIGIÃO E CIÊNCIA: CONFLITOS?
Em todas as sociedades humanas de que se têm notícias, há milhares de anos, a
religião sempre exerceu uma forte influência sobre a vida dos seres humanos. A visão
religiosa e o pensamento racionalista moderno, contudo, vivem em um alarmante estado de
tensão (Giddens, 2005). Em alguns momentos históricos, a religião e a ciência não eram
vistas como divergentes. Entretanto, a partir da modernidade, houve ocasiões onde estiveram
em desacordo entre si. As visões evolucionista e criacionista, por exemplo, enfatizam duas
maneiras bem distintas de interpretar as origens da vida e do ser humano.
As primeiras críticas à religião datam do período da filosofia pré-socrática, segundo
Chauí (2006). Em algumas culturas, a religião ainda se apresenta como sistema explicativo
geral, pretendendo explicar causas e efeitos, relações entre os seres, valores morais etc. No
caso da cultura ocidental, a religião é mais um dos sistemas explicativos disponíveis
permeando a sociedade. Filosofia e ciência elaboraram explicações diferentes das religiosas e,
com isso, a sociedade passou a conviver com explicações diversas sobre os fenômenos da
natureza. Ao instaurar-se a diferenciação entre a religião, a filosofia e a ciência, a cultura
ocidental experimentou a ruptura entre fé e razão. Já na Grécia antiga, através de Pitágoras,
Heráclito e Xenófanes, com as críticas à religião, assinalou-se tal ruptura (Chauí, 2006,
p.266).
49
As relações entre religião e ciência são discutidas desde o surgimento da ciência
moderna. Não há consenso nem ao que se refere a este surgimento: alguns autores sustentam
ter havido uma ruptura com o passado; outros defendem uma forte continuidade; e outros
ainda sugerem um surgimento híbrido. De fato, a ciência moderna foi destacada da religião
em decorrência de seu método de ação. No entanto, isto foi sendo construído aos poucos e
teve início em um passado em que ambas as formas de conhecimento interpenetravam-se.
Segundo Vitória Perez de Oliveira, ao mesmo tempo em que a ‘nova ciência’ que surgiu
representava uma descontinuidade com a tradição, os cientistas que a desenvolveram
estavam imersos e eram parte desta tradição (Oliveira, 2006:147).
No final do século XVII, as fronteiras entre religião e ciência eram traçadas por
homens que estabeleciam os fundamentos da ciência moderna e eram religiosos, tais como
Newton, Hooke, Halley, entre outros. Esses cientistas acreditavam em Deus como criador da
natureza e suas leis, sem deixar de crer que somente a ciência, através de seus métodos e
desempenho, poderia auxiliá-los na compreensão da forma como o mundo funcionava. Assim,
as fronteiras começaram a ser marcadas, sem que houvesse oposição entre os campos. Como
visto anteriormente, tais pensadores buscavam compreender a natureza e suas leis. Com o
surgimento do que denominamos ciência moderna, o intuito passou a ser interferir e dominar
a natureza, e não mais apenas conhecê-la. Tal diferença nada sutil provocou uma mudança
brusca no conceito de ciência, o que pode ter contribuído para a separação dos sistemas de
pensamento.
O Iluminismo, no século XVIII, é tido por Oliveira (2006) como o início da oposição
entre ciência e religião. Vários pensadores iluministas tendiam a encarar a religião como
primitiva frente aos avanços da ciência. Os filósofos deram início a interpretações científicas
para a religião, gerando críticas aos postulados desta última. Já os teólogos e religiosos
passaram a defender a religião como fonte de moral e ética, e não como proposições
cognitivas. Era sobre a questão do cognitivismo na ciência e na religião que se travava a
maior parte dos debates (Oliveira, 2006:149).
O campo da filosofia na idade moderna delimitou ainda mais as diferenças entre
religião e ciência. O ponto primeiramente levantado teve fundamento no empiricismo,
segundo o qual somente pode-se usar como critério para determinar o sentido e a verdade
das proposições os fundamentos empíricos e cognoscíveis da ciência. O segundo ponto
colocado pela filosofia moderna foi a adoção da epistemologia em detrimento da ontologia,
50
ou seja, passou-se à preocupação com o ‘como se conhece’ ao invés do ‘ser’, a partir de Kant.
Com o abandono da ontologia, a metafísica (sobre a qual se apóia a crença religiosa) foi posta
em questão. Oliveira (2006) expõe que a partir de Kant passou-se a entender que nosso
conhecimento se estende apenas até a matemática e a ciência geral da natureza; a razão se
restringe aos limites do sentido e do conhecimento da ciência (p.151).
Diante do acima exposto, percebe-se que há duas maneiras de se observar a religião:
uma apoiada na cognição, segundo a qual a religião tem função de conhecimento, e outra
apoiada na emoção, para a qual a religião é regida pelos sentimentos e atitudes e tem função
moral.
Diante dessa herança moderna, fica a questão ainda hoje: são as proposições de
conhecimento possíveis na religião ou apenas na ciência? No século XIX, com o
desenvolvimento das ciências naturais, como a biologia, por exemplo, cada vez
mais as duas visões de mundo entraram em choque, principalmente com a teoria
evolucionista de Darwin. Se, por um lado, o crente comum resiste, com grande
veemência e paixão, à evidência científica que pode chegar a contradizer suas
crenças, por outro, teólogos e estudiosos buscam estratégias para dar conta e
resolver esses conflitos, como aliás sempre fizeram ao longo da história (Oliveira,
2006: 150-151).
Como visto anteriormente, os primeiros pensadores da sociologia acreditavam que a
religião tradicional se tornaria marginal no mundo moderno, através do processo denominado
secularização. Marx, Durkheim e Weber defenderam que, à medida que as sociedades
humanas se modernizassem e passassem a depender mais da ciência e da tecnologia, haveria o
declínio do fenômeno religioso. Ainda hoje, o debate em torno da tese da secularização
permanece como uma das áreas mais complexas da sociologia da religião (Giddens, 2005).
Alguns defensores da tese da secularização acreditam que a religião de fato vem perdendo
força e adesão nas sociedades modernas, enquanto outros defendem que a religião permanece
sendo uma força significativa e presente na cultura de grande parte das sociedades humanas.
Para Dorvillé (2008), o pensamento mágico e/ou religioso não desapareceu e nem se
encontra restrito a pessoas ingênuas ou apenas às camadas menos informadas da população.
Para este autor, o grande avanço da Ciência, sua divulgação ampla no mundo moderno e as
novas tecnologias não causaram o declínio do pensamento religioso. Em sala de aula, nas
visões de mundo dos estudantes, muitos dos conceitos científicos que são abordados já
possuem explicações prévias advindas das religiões e do pensamento mágico (Guerriero,
2003).
51
Falcão (2008) argumenta que, desde a revolução científica do século XVII até os
tempos de hoje, a forma de descrever e teorizar sobre o mundo natural parece rivalizar idéias
científicas e religiosas. Particularmente no século XIX, com a elaboração de hipóteses e
teorias significativas da ciência para a compreensão da natureza (por exemplo, a teoria de
Darwin), os sistemas de pensamento vivem em tensão. Entretanto, sua pesquisa mostrou a
presença de crenças religiosas entre cientistas, e que estes não vêem conflito com suas
atividades profissionais. Tais resultados expõem a complexidade da presença das crenças
religiosas no mundo moderno.
Segundo Wilber (apud Oliveira, 2006), são cinco as posições possíveis de serem
adotadas no tocante ao debate sobre a relação entre ciência e religião.
1.
A ciência nega qualquer validade à religião: é a posição associada ao positivismo,
fundamentando-se na crença de que apenas a ciência pode fornecer conhecimento fidedigno.
É uma posição bastante radical, muitas vezes fanática.
2.
A religião nega qualquer validade à ciência: posição ligada ao fanatismo religioso,
os que desta crença participam buscam a volta a um passado mítico por acreditarem que o
mundo era melhor antes da modernidade.
3.
O pluralismo epistemológico: essa posição entende que há várias formas de
conhecimento, sendo a ciência uma delas e a religião outra diversa, de maneira que o convívio
entre ambas é possível.
4.
A ciência pode oferecer argumentos plausíveis para a existência do espírito: essa
posição é encontrada em alguns autores atuais, que buscam explicar a existência do espírito e
justificar argumentos religiosos. No entanto, não é uma posição unânime, já que há autores
mais ligados às tradições religiosas que contestam afirmando que tal ótica promove uma
inversão de hierarquia.
5.
A ciência não é conhecimento do mundo, e sim mais uma interpretação sobre ele.
Portanto, sua validade não é maior do que a de qualquer outra área, como poesia, arte
ou religião: essa posição está ligada ao construtivismo e à pós-modernidade. Baseia-se na
premissa de que tudo é construído e temos apenas interpretações, desta forma nenhuma pode
se reivindicar como melhor do que as outras. Incluem-se nessa posição os autores da
Sociologia do Conhecimento Científico, os quais observam a forma como o conhecimento
científico é construído e não a ciência enquanto instituição.
52
Essas cinco posições oferecem o pano de fundo para os debates que hoje permeiam a
reflexão sobre o encontro da religião e da ciência nos espaços acadêmicos e em diferentes
instituições escolares.
Nas salas de aula, muitas questões surgem quando são abordados temas que possuem
explicações de fundo religioso trazidas pelos estudantes, conforme tratado no capítulo I. Mas,
afinal, como o professor de Biologia deve portar-se diante das explicações alternativas
trazidas por seus alunos? Dorvillé (2008) ressalta a importância da comunicação e da troca
dialógica entre professor e aluno para que haja ensino. Segundo este autor, o professor de
Biologia enfrenta em sala de aula muitos enfrentamentos dos conceitos científicos pelas
explicações religiosas, e deve haver espaço para que haja a crítica e o questionamento de
todas as idéias expressas ao longo do processo de ensino-aprendizagem, inclusive a científica.
Acredito que precisamos travar esse embate, no sentido de troca e diálogo e não de
disputa, pois antes de tudo não somos cientistas mas professores de Biologia e eles,
criacionistas ou não, são nossos alunos. Contudo, não defendo que o espaço acadêmico
seja ocupado por conteúdos não científicos mas que o tempo todo a crítica e o
questionamento das idéias científicas e não-científicas possam encontrar espaço na
sala de aula, senão nas disciplinas mais específicas do currículo, ao menos em campos
que discutam a relação da Ciência com a Ética (Dorvillé, 2008)
Conforme visto anteriormente, a contribuição do construtivismo para o estudo do
conhecimento e sua aquisição exigiu uma mudança radical nos papéis tradicionais de
professores e alunos, e na natureza de suas relações. Como a aquisição do conhecimento
passou a ser encarada como um processo pessoal de reestruturação feito pelo aprendiz, o
papel do professor passou a ser auxiliá-lo nesse processo, criando um ambiente investigativo e
as condições necessárias para que ocorram situações que disparem e facilitem o processo de
reestruturação das concepções alternativas dos alunos. Hoje há uma grande tendência a
considerarem-se os estudantes como seres culturalmente construídos, e muitos autores
apontam tal opção como pedagógica e eticamente mais eficaz (Oliveira, 2006; Guerriero,
2003; Falcão, 2008; Dorvillé, 2008;; dentre muitos outros).
Foi nos limites dessas questões e inspirada nos resultados dos estudos até aqui citados
que a presente pesquisa foi desenvolvida. A seguir será apresentado o roteiro metodológico.
53
III. METODOLOGIA
A presente pesquisa teve o objetivo de investigar alguns aspectos do ensino de
ciências relativos à origem da vida e evolução biológica a fim de ampliar a compreensão das
dificuldades relatadas em trabalhos anteriores na aprendizagem do conteúdo científico
referente àqueles temas. As pesquisas anteriores foram centradas prioritariamente nas
representações sociais15 que estudantes tinham da origem e evolução da vida e em seus
contextos sociais. Foi possível identificar algumas relações entre a presença de explicações
científicas, religiosas e os contextos sociais dos estudantes e de suas escolas. Livros didáticos
foram analisados e verificaram-se problemas na abordagem do tema origem da vida. Em tais
pesquisas, por um lado notaram-se influências das crenças religiosas nas dificuldades de
aprendizagem dos estudantes nos temas em questão, mas não foi possível afirmar que aquelas
têm responsabilidade única, visto que questões relativas a falhas na qualidade do ensino
específico foram sugeridas como um dos aspectos que podem influenciar na aprendizagem
(TRIGO, 2005; NICOLINI, 2006; FALCÃO, SANTOS & LUIZ, 2008). Assim, na presente
pesquisa, buscou-se investigar o ensino dos temas origem da vida e evolução biológica a
partir das percepções de dois grupos de professores em seus contextos de trabalho.
A metodologia utilizada foi o estudo comparativo de dois grupos de professores de
biologia das duas redes públicas de ensino - federal e estadual. Optou-se por abordar
professores de ambas as redes, uma vez que cada grupo encontra-se em condições
profissionais distintas, no sentido de investigar se condições de formação e trabalho têm
influência nas representações sobre o ensino, a aprendizagem dos estudantes e as explicações
pessoais para o surgimento e evolução da vida. A escolha de escolas públicas deveu-se, por
um lado, ao interesse de investigar a realidade com a qual interage a grande maioria dos
estudantes da cidade do Rio de Janeiro e, por outro, para responder à exigência metodológica
do controle do cenário social de ocorrência dos comportamentos investigados. Dessa forma
não foram incluídas escolas ou professores da rede privada, no entanto outros estudos
comparativos posteriores são bastante desejáveis. Estou ciente dos limites impostos pelo
número de professores investigados, entretanto ambos os grupos interagem em seus
respectivos contextos escolares de trabalho (3 escolas da rede federal e 3 escolas da rede
15
O conceito de representação social, assumido no trabalho, foi o de Moscovici (2001), onde representando-se
uma coisa ou uma noção, não produzimos unicamente nossas próprias idéias e imagens: criamos e transmitimos
um produto progressivamente elaborado em inúmeros lugares, segundo regras variadas (op. cit., p. 63).
54
estadual), e estão envolvidos nesses contextos há pelo menos cinco anos, o que permite que,
mediante cuidadosa análise, se obtenham úteis insights a respeito do tema investigado.
III.a) DESCRIÇÃO DO UNIVERSO DA PESQUISA
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com o universo de pesquisa composto
por 20 professores de Biologia, sendo dividido em um grupo de 10 professores atuantes em
instituições federais de ensino (GF) e outros 10 professores atuantes em instituições estaduais
(GE).
A instituição federal caracteriza-se por um ensino de qualidade, segundo resultado do
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2007. Possui treze unidades escolares distribuídas
em sua maioria no município do Rio de Janeiro. Participaram da pesquisa três unidades da
instituição localizadas nas zonas sul e norte da cidade, as quais apresentam recursos materiais
e humanos semelhantes. Cada unidade possui, em média, oito professores dedicados ao
ensino de biologia. As turmas são compostas por 30 estudantes, em média. As escolas
funcionam nos turnos matutino e vespertino com ensino regular, e no turno da noite com
educação voltada ao público jovem e adulto (PROEJA). O regime de trabalho dos dez
professores entrevistados é o mesmo do funcionalismo público federal, constando de 40 horas
semanais, sendo distribuídas nas terças e quintas-feiras e, em semanas alternadas, aos
sábados. As horas restantes, fora de sala de aula, são destinadas ao atendimento de alunos
para reforço, ao planejamento pedagógico e às coordenações. Os professores têm
possibilidade de submeter um projeto pedagógico de sua área do conhecimento a uma
comissão competente da própria instituição a fim de receber uma gratificação salarial de 55%
referente à dedicação exclusiva. Semanalmente ocorrem reuniões pedagógicas de cada
disciplina, e não há na agenda escolar reuniões interdisciplinares (as quais possibilitariam a
troca de informações e experiências entre os docentes e o desenvolvimento de um ensino
integrado, previsto nos PCN+). As escolas visitadas são grandes e dotadas de biblioteca, sala
de informática, sala de vídeo, enfermaria, sala de reuniões, sala de professores, salas de aula e
quadras poliesportivas. Há disponibilidade de recursos como retro-projetor de transparências e
datashow para projeção de imagens. O vencimento básico é de cerca de 6 salários mínimos.
As entrevistas foram realizadas nos meses de maio, junho, agosto e setembro de 2008.
Três escolas da rede estadual de ensino (composta por cerca de 1800 unidades
escolares) participaram da pesquisa, sendo que duas funcionam nos três turnos (sendo manhã
55
e tarde, ensino regular e à noite, ensino de jovens e adultos - PEJA) e uma escola funciona
apenas no turno da noite16. A classificação no ENEM 2007 foi mediana para as três escolas.
Todas possuem espaço físico semelhante, sendo dotadas de sala de informática, quadra
esportiva, sala de vídeo, sala de leitura, de professores e salas de aula. Os professores têm
carga horária de 16 horas semanais, sendo que de fato cumprem 12 tempos em sala de aula.
Não há reuniões pedagógicas interdisciplinares ou multidisciplinares periódicas, exceto a de
planejamento no início do ano letivo e os conselhos de classe ao fim de cada bimestre. Cada
unidade investigada conta com média de 3 professores de biologia. As turmas são formadas
por 40 estudantes, em média. O vencimento básico é de 1,5 salários mínimos. As entrevistas
foram realizadas no período entre junho e outubro de 2008.
As duas redes de ensino investigadas diferenciam-se quanto ao número de unidades
escolares agregadas, à média de professores dedicados ao ensino de biologia em cada unidade
e de estudantes por turma, ao regime de trabalho docente, à classificação dos estudantes no
ENEM 2007, à existência de reuniões pedagógicas periódicas, à possibilidade de gratificação
salarial referente a dedicação exclusiva à instituição e ao valor do vencimento básico salarial.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi entrevista semi-estruturada,
escolhida por favorecer a obtenção dos dados qualitativos desejados. A pesquisa desenvolvida
pretendeu alcançar o conjunto de representações sociais que os grupos de entrevistados
professam sobre aspectos do ensino dos temas em questão: Origem da Vida e Evolução
Biológica.
Os dados do perfil profissional e das práticas pedagógicas relativas ao ensino dos
temas pesquisados foram organizados em quadros quantitativos e utilizados como subsídio à
análise comparativa dos grupos pesquisados.
III.b) DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO
Segundo Lefèvre & Lefèvre (2003), quando se trata da pesquisa acerca daquilo que
as pessoas professam, a variável existe de modo apenas virtual necessitando ser reconstruída
durante ou através do próprio processo de investigação (p. 14). Além disso, quando as
pessoas professam um pensamento, uma idéia ou uma opinião, sempre o fazem através de um
16
No município do Rio de Janeiro há uma grande parcela de escolas estaduais que funcionam em espaços de uso
comum com a rede municipal. Nos turnos matutino e vespertino o espaço escolar abriga o ensino fundamental da
rede municipal e à noite, o ensino médio oferecido pela rede estadual.
56
discurso. Sendo assim, a descrição dos pensamentos e idéias de indivíduos ou de
coletividades será sempre mais rica quando forem coletados, processados e apresentados sob a
mesma forma de sua expressão. Desta forma, o discurso do sujeito coletivo (DSC) apresentase como ferramenta metodológica adequada para organizar os dados coletados através das
entrevistas com os grupos de professores e será apresentado, adiante, de forma detalhada.
As entrevistas foram orientadas de maneira a prover cinco categorias de informação:
1- questões acerca das condições de trabalho e formação profissional; 2- práticas de ensino do
tema Origem da Vida; 3- práticas de ensino de Evolução Biológica; 4- utilização pelos
professores dos objetivos e propostas metodológicas sugeridas pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCN+); 5- por fim, questionaram-se as explicações pessoais
sobre os temas Origem da Vida e Evolução Biológica (aí incluídas possíveis referências
religiosas). Em resumo, as entrevistas objetivaram colher dados relativos: (i) à formação
profissional dos sujeitos e suas condições de trabalho, a fim de investigar se houve
informação sistematizada sobre os temas em questão durante a formação acadêmica e se há
relação entre formação, regime de trabalho e as características do processo de ensinoaprendizagem dos temas origem da vida e evolução biológica; (ii) às percepções docentes
quanto ao processo de ensino-aprendizagem em relação aos temas Origem da Vida e
Evolução Biológica; (iii) às explicações pessoais dos professores sobre os temas da pesquisa,
para investigar possíveis relações com as percepções dos mesmos em relação ao ensinoaprendizagem de origem da vida e evolução biológica.
Para a caracterização da formação profissional e das condições de trabalho dos
professores, foram abordados os seguintes pontos: em quantas instituições trabalha; se possui
regime de dedicação exclusiva (DE) à instituição e o números de horas/aula semanais; quanto
tempo de experiência possui no ensino médio; instituição que cursou e presença ou ausência
de pós-graduação; participação em cursos de atualização e/ou congressos científicos;
experiência declarada no ensino de origem da vida e evolução biológica; possíveis lembranças
de haver obtido formação sistematizada sobre origem da vida e evolução biológica durante
graduação.
Com a finalidade de conhecer os objetivos, dificuldades encontradas no processo,
estratégias de ensino e materiais utilizados para a preparação das aulas sobre origem da vida e
evolução biológica, ou seja, suas práticas de ensino, os professores entrevistados foram
interpelados sobre: a percepção de dificuldades encontradas na aprendizagem por parte dos
57
estudantes nos temas em questão; o grau de importância do ensino dos temas; as dificuldades
declaradas no ensino dos temas; as estratégias utilizadas para o ensino dos temas; a
quantidade de aulas dedicadas ao ensino dos temas; os materiais utilizados para o
planejamento das aulas; o uso dos PCN+ e de materiais científicos como fonte de consulta
para a preparação de aulas; declarações sobre situações conflituosas encontradas durante a
prática profissional; e por fim, as explicações pessoais dos professores sobre origem da vida e
evolução biológica.
As respostas obtidas através dos questionamentos abertos foram analisadas segundo a
metodologia de análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), formulado por Lefévre &
Lefévre (2003). Tal metodologia permite uma análise qualitativa das respostas, pois consiste
na construção de discursos que expressam a fala de um grupo social distinto pelas
características que apresenta. Inicialmente, torna-se importante ressaltar que as questões
dirigidas aos entrevistados foram elaboradas de forma aberta a fim de estimular a construção
do discurso individual. Para cada grupo, após a coleta dos dados durante a entrevista, as
respostas foram transcritas e analisadas da seguinte forma: 1- trechos que revelam os
conteúdos básicos dos depoimentos foram assinalados. Tais trechos são denominados
Expressões-chave (ECH) e são a matéria-prima da confecção dos DSC; 2- Cada conjunto de
expressões-chave semelhantes foi agrupado em torno da idéia central que, de forma sintética,
expressa o sentido das ECH, de forma precisa e fidedigna ao sentido dado pelos entrevistados:
são as Idéias-Centrais (IC); 3- O DSC do grupo é construído unindo-se as ECH que possuem
a mesma IC, utilizando-se a primeira pessoa do singular.
O DSC é coletivo, porém formado pela fala de cada um dos indivíduos que participam
de uma mesma idéia, ou seja, partilham um sistema de crenças. Desta forma, segundo Lefévre
& Lefévre, o sujeito coletivo se expressa na primeira pessoa (coletiva) do singular (...) e
sinaliza a presença de um sujeito individual do discurso, de forma concomitante com que
expressa uma referência coletiva na medida em que esse eu fala pela ou em nome da
coletividade (2003:16). O DSC expressa a representação social que um dado grupo possui
sobre determinado tema, ou seja, no caso da presente pesquisa, explicita as idéias, valores e
opiniões sobre os temas Origem da Vida e Evolução Biológica e seu ensino presentes nos
grupos de professores investigados. Os discursos coletivos construídos dos dois grupos
somados ao perfil de formação, condições e práticas de trabalho docente foram base da
pesquisa comparativa realizada.
58
IV. RESULTADOS
Os resultados serão apresentados de duas formas: a) dados quantitativos (quadros 1 e
2); b) dados qualitativos (DSCs), que visam expor as representações dos professores em
relação aos temas investigados. Inicialmente, apresentam-se os dados quantitativos do perfil
profissional e das práticas pedagógicas relativas ao ensino dos temas em questão. A leitura
dos dados sobre as condições de trabalho dos entrevistados, juntamente com os dados
relativos às práticas pedagógicas de ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica
(quadro 2), possibilita distinguir os perfis de cada grupo - rede federal (GF) e rede estadual
(GE) - e, desta forma, subsidiar a investigação pautada nesses dois grupos.
IV.a)
DADOS
QUANTITATIVOS:
CARACTERIZAÇÃO
DOS
GRUPOS
DE
PROFESSORES ENTREVISTADOS
QUADRO 1: Perfil profissional dos entrevistados (GF + GE)
DADOS DO PERFIL
o
1-
2-
N de escolas em que trabalha
No médio de horas/aula semanais
3-
4-
5-
Universidade de formação
Participação em cursos e/ou congressos científicos
6-
7-
Titulação acadêmica18
Obteve estudo sistematizado durante formação
acadêmica sobre o tema origem da vida?
Obteve estudo sistematizado sobre evolução biológica?
GRUPO FEDERAL
(GF) N=10
GRUPO ESTADUAL
(GE) N=10
Uma escola – 617
Duas escolas – 2
3 ou mais – 2
12 a 24 – 5
25 a 35 – 2
Mais de 36 – 3
Graduação - 2
lato sensu – 1
Mestrado – 6
Doutorado – 1
UFRJ - 4
UERJ - 2
Gama Filho -1
Santa Úrsula -1
UNIG -1
Souza Marques - 1
Sim – 6
Não – 4
Sim –2
Não – 8
Uma escola – 1
Duas escolas – 5
3 ou mais – 4
12 a 24 – 2
25 a 35 – 4
Mais de 36 – 4
Graduação -3
lato sensu – 2
Mestrado – 6
Doutorado – 0
Sim – 10
Não obteve ou não
lembra– 0
Sim – 10
Não obteve ou não
lembra– 0
UFRJ - 3
Gama Filho - 4
Santa Úrsula - 2
FAHUP - 1
Sim – 4
Não – 6
Sim – 5
Não – 5
Analisando-se o Quadro 1, destaca-se o regime de trabalho com dedicação exclusiva
dos professores do GF na instituição federal de ensino. Possivelmente, por este motivo e pelo
17
O percentual de professores do GF que trabalha unicamente na instituição é de 60%, sendo que metade deste
possui gratificação salarial referente à dedicação exclusiva.
18
Nota-se que a soma das respostas sobre titulação acadêmica pode ser superior a n (10) devido ao fato de haver
a possibilidade do entrevistado possuir mais de um tipo de pós-graduação (lato e stricto sensu). Os professores
indicados no nível graduação possuem somente esta titulação. Não foi considerado o acúmulo de mestrado e
doutorado já que este último pressupõe a conclusão do primeiro.
59
menor número de horas/aula semanais, os professores do GF apresentam mais tempo
disponível para atividades de reforço escolar e de planejamento pedagógico, conforme os
dados do Quadro 2 a seguir parecem confirmar.
Percebe-se que a maioria dos professores de GF cursou universidades públicas, que
possuem os cursos de Biologia mais bem avaliados pelo MEC19, observação inversa no que se
refere ao GE, onde a maioria freqüentou universidades particulares. A titulação acadêmica
(nível de pós-graduação) é semelhante nos dois grupos, assim como a participação declarada
em cursos de atualização e/ou congressos científicos.
Analisando-se as respostas dos professores sobre a obtenção de estudo sistematizado
dos temas da pesquisa, verifica-se que, em ambos os grupos, todos declararam haver estudado
Evolução Biológica durante a formação, sendo o contrário no que se refere ao estudo de
Origem da Vida.
A seguir, são apresentados os dados obtidos em ambos os grupos (GF e GE) com
relação às técnicas de ensino, ao número de aulas previstas para o ensino e aos materiais
didáticos utilizados no planejamento das aulas sobre Origem da Vida e Evolução Biológica.
QUADRO 2: Dados relativos ao ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica
DADOS
Origem da Vida
GF
Origem da Vida
GE
Técnicas de ensino
Aula expositiva- 9
Estudo dirigido-1
Mídia20- 6
Aula expositiva- 10
Estudo dirigido- 2
Mídia- 2
0 a 4- 4
5 a 8- 3
9 a 12- 2
Mais de 13- 1
Livros de ensino
médio-7
Livros de ensino
superior-3
Livros
paradidáticos- 5
Periódicos- 3
Internet- 7
Nenhum- 2
Sim- 5
Não- 5
0 a 4- 6
5 a 8- 4
9 a 12- 0
Mais de 13- 0
Livros de ensino
médio-10
Livros de ensino
superior- 0
Livros
paradidáticos- 3
Periódicos- 2
Internet- 6
Nenhum- 4
Sim- 2
Não- 8
Número de aulas oferecidas
sobre o tema
Materiais didáticos utilizados
no planejamento
Leu o PCN+
Evolução Biológica
GF
Aula expositiva- 9
Estudo dirigido0
Mídia- 6
0 a 4- 0
5 a 8- 1
9 a 12- 3
Mais de 13- 6
Livros de ensino
médio-6
Livros de ensino
superior-4
Livros
paradidáticos-0
Periódicos- 3
Internet- 8
Nenhum- 2
Evolução Biológica
GE
-
-
Aula expositiva- 9
Estudo dirigido- 2
Mídia- 3
0 a 4- 2
5 a 8- 4
9 a 12- 1
Mais de 13- 3
Livros de ensino
médio-7
Livros de ensino
superior-0
Livros
paradidáticos- 4
Periódicos- 0
Internet- 4
Nenhum- 2
A leitura do Quadro 2 leva a concluir que o tema Evolução Biológica é objeto de
maior investimento docente em relação a Origem da Vida porque a ele são dedicados maior
19
Conforme verificado na página www.enade.inep.gov.br, ambas as universidades públicas citadas possuem
conceito máximo de avaliação (5) e as faculdades particulares citadas obtiveram conceito 3.
20
Foram classificados como mídia o uso de jornais e revistas, filmes, datashow, retro-projetor e informática.
60
número de aulas em ambos os grupos. Predomina a opção por aulas expositivas para a
abordagem dos dois temas, sendo que, dentre o GF, há tendência de diversificação de técnicas
de ensino. Pode-se relacionar tal tendência à maior disponibilidade de tempo dentre o GF para
o planejamento pedagógico, uma vez que em ambas as instituições de ensino observaram-se
equipamentos para utilização de mídias. Nota-se ainda a tendência dentre o GF de oferecer
um maior número de aulas e maior diversidade de fontes de informação para o planejamento e
desenvolvimento de ambos os temas investigados. Este grupo não utiliza livros paradidáticos
para o planejamento das aulas sobre Evolução Biológica, possivelmente por haver maior
disponibilidade de textos científicos sobre o tema do que sobre Origem da Vida.
Ainda no Quadro 2, observa-se que metade dos professores pertencentes ao GF leu os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) em ocasião profissional vinculada à instituição de
trabalho. Apenas dois professores do GE afirmaram haver lido o documento. Em ambos os
grupos, os comentários concentraram-se nas dificuldades das escolas, dos professores e dos
estudantes de acompanharem as diretrizes propostas pelo documento, como atestam alguns
exemplos: É um material interessante, mas que a escola não acompanha. Talvez porque o
aluno não tem estímulo familiar, não é curioso, cumpre a escola como uma etapa chata da
vida. O professor tem posturas individuais e geralmente não cumpre o que o PCN sugere.
Não existe uma política pedagógica ampla, que estimule e incentive o professor a adotar o
PCN. A escola está muito atrasada (GF). Os professores têm um baita complexo de culpa,
porque parece que tudo é culpa dele, que não é bem formado, que trabalha em 500 lugares,
que não dá atenção... Acho que não existe projeto sério que não leve em conta as condições
de trabalho dos professores. Como é que um professor que trabalha em várias escolas, sem
nenhuma infra-estrutura profissional e nem de formação pessoal, sem que a escola ofereça
materiais e meios, vai colocar em prática aquelas sugestões?(GE). Nota-se nesses discursos a
pluralidade de questões percebidas pelos professores como responsáveis por suas dificuldades
na adoção dos PCN+ e a diferença no teor das críticas entre os grupos investigados. Os
professores do GF apontam como problemas para a adoção das diretrizes propostas nos PCN+
a dificuldade de aprendizagem dos estudantes, as posturas individuais dos professores e a
ausência de uma política pedagógica mais ampla da própria escola. Já os professores do GE
indicaram as condições de trabalho e a falta de infra-estrutura profissional e de formação
acadêmica como agentes que inviabilizam a prática sugerida pelo documento.
61
IV.b) DADOS QUALITATIVOS: REPRESENTAÇÕES DOS PROFESSORES SOBRE OS
TEMAS ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA
Os discursos do sujeito coletivo (DSCs) foram organizados em ordem decrescente de
adesão dos sujeitos pesquisados em todos os quadros apresentados a seguir, e o número de
professores que aderiu a cada um dos discursos encontra-se entre parênteses ao final de cada
DSC. Ainda que tal dado não tenha a intenção de subsidiar análises quantitativas, optou-se
por apresentá-lo como dado adicional. Nota-se que a soma do número de professores que
aderiram a cada um dos discursos pode ser maior do que dez em cada grupo, visto que cada
professor pode ter expressado mais de uma idéia central e ter, portanto, contribuído para mais
de um discurso. No entanto, observou-se que, na maioria das questões levantadas, os
professores aderiram a somente uma idéia central, formando, portanto, discursos excludentes.
A seguir, serão apresentados os conjuntos de DSCs dos grupos de professores pesquisados
que revelam as representações sociais sobre Origem da Vida.
62
Representações sobre Origem da Vida
QUADRO 3: DSC da questão ‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem no tema Origem da Vida?’ dirigida a ambos os grupos de
entrevistados (GF e GE)
QUESTÃO
PROPOSTA
IDÉIA
CENTRAL
(IC)
1-Sim,falta
conteúdo prévio
de química
Percebe dificuldade na
aprendizagem do tema
Origem da Vida?
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE
1.1-O que é mais difícil é a parte química. Lidamos com termos e
detalhes que eles ainda não estão acostumados. Também acho que
falta instrumental de conteúdo. Para eles é muito complicado
compreender interações moleculares que geraram um ser vivo. O
que ocorre pontualmente é uma dificuldade que eu relaciono à
seqüência do conteúdo da 1ª série do ensino médio. Acho que, como
trabalhamos esse conteúdo no 1º ano, falta bagagem de química
para abordarmos de maneira profunda. Percebo que a bioquímica
pega um pouco. (6 professores)
1.2-Acho que exige conhecimentos da constituição química, de bioquímica.
Acho muito difícil para eles entender a evolução química. Acho que eles têm
dificuldades porque damos esse tema no início do 1º ano e falta base de
química, aí acaba ficando meio abstrato para eles. É difícil imaginar ligações
e formação de moléculas sem conhecimento de química profunda. Faltam
informações básicas. Percebo falta de bagagem (conhecimento prévio) de
química, física e natureza da ciência. Acho que o currículo proposto pelo
MEC não é condizente com a realidade dos alunos. (4 professores)
2-Sim,
dificuldade
relacionada à
crença religiosa
dos estudantes
2.1-Os alunos têm dificuldades de compreender a distinção entre as
explicações da religião e da ciência. Eles decoram a estorinha, que
para eles parece fantasiosa. É preciso contextualizar. Procuro
fundamentar as duas linhas de pensamento e enfatizo que a ciência é
do campo da razão e dos experimentos e a religião é do campo da
fé, não sendo preciso portanto que uma explicação seja sobreposta a
outra. Eles não têm hábito nem mesmo de criticar o que não
acreditam.(4 professores)
3-Sim,
dificuldade de
lidar com
conhecimento
hipotético
3.1-Sim, sinto dificuldades por causa de serem hipóteses, sem
resposta fechada, única. (2 professores)
4- Não
4.1-Não percebo dificuldades, trato o assunto de forma superficial.
(2 professores)
2.2-Percebo dificuldade de aceitação vinculada a motivos religiosos. Eles têm
dificuldade de ouvir a origem da vida fora da religião. Eu não vou discutir
religião, porque eu não discuto religião. Não discuto isso, a religião é lá fora,
não aqui. A aceitação é difícil. A primeira reação é de negação. (...) sempre
friso a diferença entre enigma e mistério. Digo sempre no começo do ano que
nos ocuparemos de compreender os enigmas da vida, e deixaremos o mistério
para cada um pensar como preferir. A religião dá respostas prontas para
algumas questões dos mistérios, mas a ciência decifra os enigmas com muita
competência. (4 professores)
3.2-Acho que eles têm dificuldades com a abstração do tema. O terreno é
muito pouco concreto, é abstrato pensar em uma Terra primitiva, uma Terra
que não é essa, ambientes que não são esses que a gente vive hoje, tão
diferentes. (...) é um terreno de muito mais perguntas que respostas e os
alunos ficam inseguros. Os alunos gostam de respostas prontas, fechadas,
ficam inseguros com hipóteses. As hipóteses incomodam muita gente. Já ouvi
aluno falando isso.(2 professores)
4.2-Não, é normal. Se você abrir espaço para debate, a coisa pode tomar
outro rumo e dificultar a aula. Hoje, os alunos têm acesso a muita informação
e podem te pegar desprevenida. Não, trabalho sempre com aulas que
demonstram os experimentos realizados pelos pesquisadores das áreas e não
percebo grandes dificuldades. Acho que eles não têm dificuldades porque eu
tento facilitar, nunca entro em detalhes químicos. (2 professores)
63
Os discursos de ambos os grupos assemelham-se em identificar dois principais pontos
como principais dificuldades percebidas na aprendizagem da Origem da Vida: a ausência de
conteúdos de química prévios e a presença de crenças religiosas. Quanto ao primeiro, os
professores apontaram a seqüência de conteúdos do primeiro ano do ensino médio, que não
incluiria química, como dificuldade específica de aprendizagem do tema. Entretanto, nos
conteúdos programáticos dos livros didáticos utilizados em ambas as instituições21 (federal e
estadual), o tema Origem da Vida inicia-se após a abordagem da composição química dos
seres vivos e de uma abordagem histórico-científica das teorias de surgimento da vida
(abiogênese e biogênese). Tal observação permite questionar se o momento da abordagem do
tema Origem da Vida sem o estudo da composição química dos seres vivos é uma opção dos
professores.
As coordenações pedagógicas das escolas afirmaram que o planejamento pedagógico
anual é feito em reunião realizada no início do ano letivo, com a participação dos professores
de biologia, onde são definidos os conteúdos a serem abordados. No entanto, não há de fato
uma cobrança do cumprimento de tal planejamento, uma vez que cada professor possui
autonomia para decidir por si próprio como desenvolverá o conteúdo. A sequência dos
conteúdos previstos nos livros didáticos parece permitir a formulação da hipótese da evolução
química da vida, uma vez que o estudo da composição molecular dos seres vivos é essencial
para a compreensão de tal hipótese. Sendo assim, questionam-se os motivos dos professores
perceberem dificuldades de aprendizagem da hipótese da evolução química da vida devido à
sequência de conteúdos: os professores não abordam os conteúdos da composição química
dos seres vivos previamente? Os estudantes não compreendem o conteúdo da química que é
de fato abordado pelos professores? Os professores de biologia têm dificuldades no ensino de
conteúdos de química, pois eles próprios têm pouco domínio do conteúdo? Se os professores
dizem que os conteúdos de química deveriam ser trabalhados antes do tema Origem da Vida,
por que não o fazem, se até os livros didáticos os apóiam?
Trata-se, aqui, de um problema que envolve também a coordenação pedagógica, que
trata o planejamento de forma global e no início do ano letivo, e não prevê acompanhamento
21
As escolas federais pesquisadas adotam o livro didático Bio – volume único, Sônia Lopes, editora Saraiva, e,
de acordo com relato dos professores entrevistados, os alunos possuem e fazem uso do material. As escolas
estaduais utilizam o livro didático Biologia – volume único, Fernando Gewandsznadjer e Sérgio Linhares,
editora Ática, e, segundo os professores do GE, a maioria dos estudantes não tem acesso ao livro já que a escola
não disponibiliza o livro gratuitamente.
64
ao longo do ano das dificuldades encontradas pelos professores e seus alunos. Pode-se pensar
ainda que os professores tenham identificado como problemático o fato da química orgânica
(formação de moléculas orgânicas) ser abordada somente ao longo do terceiro ano do ensino
médio, momento posterior à abordagem da teoria da evolução química dos seres vivos. Neste
caso, então, trata-se de uma questão curricular em que haveria a necessidade de se repensar a
organização do programa de ensino de biologia no ensino médio. Assim sendo, pareceria
interessante que o tema Origem da Vida fosse retirado do 1º ano e alocado no período final,
juntamente com o estudo de química orgânica. Assumindo-se quaisquer das opções
declaradas pelos professores investigados, conclui-se que os professores reconhecem os
pontos de dificuldade, os quais não parecem ser obscuros para eles e, tão logo são postos em
situação de reflexão sobre o problema, o abordam com objetividade. Pode-se, portanto, pensar
que em um processo de trabalho docente melhor coordenado, o encaminhamento seria
bastante proveitoso.
Os discursos pautados na idéia da dificuldade de aprendizagem de Origem da Vida
relacionada às crenças religiosas dos estudantes expressam não só a percepção de ambos os
grupos de professores de que tais crenças influenciam o comportamento dos estudantes em
relação ao tema investigado, como também revelam alguns comportamentos docentes que, se
por um lado indicam seus esforços e sensibilidade diante das dificuldades dos alunos, por
outro mostram elementos contraditórios: ‘Eles não têm hábito nem mesmo de criticar o que
não acreditam’ (Quadro 3, DSC 2.1). Na verdade, tratando-se de estudantes de nível médio,
caberia ao professor formar os estudantes em relação a tal hábito e não apenas constatar sua
ausência. Além disso, o professor precisa reconhecer que os estudantes possuem uma
identidade formada a partir de sua socialização primária22, onde visões e valores estão
firmados através da convivência familiar e de religiões, e o papel educacional do professor
perpassa ensinar a distinção das dimensões da ciência e da religião, assim como a importância
da reflexão sobre os conhecimentos adquiridos, uma vez que é uma das funções da escola
moderna fazer dos estudantes “pensadores críticos”. Ou seja, faz parte das atribuições do
professor ensinar os estudantes a criticar. Teriam eles consciência disso? Nos trechos ‘Eu não
vou discutir religião, porque eu não discuto religião. Não discuto isso, a religião é lá fora,
não aqui’(Quadro 3, DSC 2.2) e ‘Se você abrir espaço para debate, a coisa pode tomar outro
22
No sentido apresentado por Berger & Luckmann (2003), a socialização primária é a socialização
experimentada pelo indivíduo durante a infância, onde se torna de fato membro social. Essa primeira
socialização tem forte apelo junto ao indivíduo, pois se origina a partir da relação familiar e é dotada de grande
valor afetivo.
65
rumo e dificultar a aula. Hoje, os alunos têm acesso a muita informação e podem te pegar
desprevenida’ (Quadro 3, DSC 4.2) ficam evidentes as dificuldades pedagógicas de
estabelecer o espaço de diálogo e pensamento reflexivo com os estudantes e a falta de clareza
do papel educacional de parte dos professores. Em resumo, nota-se que ambos os grupos de
professores possuem discursos semelhantes, dentre os quais prevalecem aqueles que
expressam a relação entre as dificuldades de compreensão entre os estudantes da hipótese da
evolução química da vida por ausência do domínio de conteúdos prévios, e o discurso que
aborda a influência da religião.
A seguir, no Quadro 4, apresentam-se os discursos do sujeito coletivo (DSCs) dos
grupos de professores sobre a importância do ensino de Origem da Vida durante o ensino
médio.
QUADRO 4: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a importância do
ensino de Origem da Vida na escola
QUESTÃO
PROPOSTA
IDÉIA
CENTRAL (IC)
1-Sim, pois
promove o
confronto com o
conhecimento
religioso
Acredita ser
importante o
ensino de
Origem da Vida
na escola de
nível médio?
2-Sim, para
compreensão da
natureza do
conhecimento
científico
3-Sim, para a
compreensão da
visão evolutiva
dos seres vivos,
incluindo o ser
humano
DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO (DSC) - GF
1.1-Acho importante para compreender
uma visão. Muitos têm apenas uma visão
religiosa que diz que um ser superior
colocou a gente aqui, mas existem
outras explicações alternativas à
religiosa. É importante conhecer a
hipótese científica para a origem da vida
(5 professores)
2.1-Para discutir hipóteses e o
desenvolvimento da ciência. A natureza
da ciência também pode ser discutida
nessa hora, tipo o que é ciência, que a
ciência é temporal etc. Também é
importante para abordar as hipóteses,
como a ciência se constrói, o método
científico e a natureza temporal da
ciência. È importante que os alunos
saibam que a ciência se modifica, e não
pretende ser verdade fechada.’ (3
professores)
3.1-Ajuda a entender quem somos e de
onde viemos como seres vivos. Para
integrar o ser humano como algo vivo,
que faz parte do processo evolutivo.
Existe hoje e pode não existir amanhã.
Vai contra o egocentrismo e o
antropocentrismo que prega que a
espécie humana pode tudo e que tudo
está a nosso serviço.’ (2 professores)
DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO (DSC) - GE
1.2-Sim, para desmistificar Adão e Eva
independente da religião, que deveria
ser levada à parte da escola. Hoje a
igreja tenta bitolar. É importante
questionar,
aprender
outras
explicações, questionar. É preciso
aceitar a ciência acima de tudo! (4
professores)
2.2-Estimula a pensar, estimula a ver a
biologia como ciência, o que é ciência,
não só uma ciência descritiva, o que a
ciência difere das outras formas de
conhecimentos. Quando falo sobre
vírus, faço mais uma descrição, não dá
muita abertura, fica parecendo que
aquele conteúdo é assim, pronto e
acabado.
É
importante
para
compreender
a
experimentação
científica e entender a ciência como um
processo.’ (4 professores)
3.2-Sim, porque você já coloca o
raciocínio evolutivo. É a base do
pensamento sobre a biologia.’ (2
professores)
Nota-se que no Quadro 4 os discursos são excludentes, ou seja, cada professor
contribuiu para somente um DSC. Os discursos de maior adesão dentre os entrevistados de
ambos os grupos conferem a importância do ensino de Origem da Vida como um pretexto
para o confronto com as idéias religiosas dos estudantes e para discutir a natureza do
66
conhecimento científico (DSC 1.1, 1.2, 2.1 e 2.2). Tais discursos mostram a preocupação dos
professores com as explicações prévias de caráter religioso trazidas pelos estudantes em
primeiro lugar. Na hipótese insinuada pelos resultados de que os professores não estudaram
Origem da Vida de maneira sistematizada ao longo de suas formações (Quadro 1), pode-se
pensar que os entrevistados conferem a importância do ensino do tema ao confronto com o
conhecimento religioso dos estudantes como alternativa às suas próprias dificuldades na
abordagem de Origem da Vida. Embora a idéia de que o ensino do tema constitui-se como
momento favorável ao debate esteja presente nos discursos 2.1 e 2.2, os professores
expressaram dificuldades de estabelecerem tal debate, uma vez que revelaram em seus
discursos claras controvérsias (Quadro 3, DSC 2.2 e 4.2). Por outro lado e reforçando tais
dificuldades, os professores declararam trabalhar quase somente com aulas expositivas para
ensinar Origem da Vida, o que não parece favorecer o exercício de questionamentos e
reformulações justamente em relação às crenças religiosas e à compreensão da natureza da
ciência (Quadro 2). Ou seja, num certo momento reconhecem a importância do debate e em
outros reagem contrariamente a ele, insistindo no uso de aulas expositivas (possivelmente sem
debates).
Os discursos 2.1, 2.2, 3.1 e 3.2 expressam diretrizes propostas pelo PCN+, ainda que
os discursos 3.1 e 3.2, que ressaltam o papel da Origem da Vida na compreensão da Evolução
Biológica, tenham apresentado a menor adesão dentre os entrevistados de ambos os grupos.
Evolução Biológica, segundo o PCN+, deve perpassar todos os demais conteúdos previstos ao
longo do ensino médio, e a hipótese da evolução química da vida está relacionada ao ensino
de evolução na medida em que busca explicar o surgimento dos primeiros seres vivos. Tal
observação reforça o dado exposto no Quadro 2, onde verifica-se que poucos professores
entrevistados declararam haver lido os PCN+. Trata-se de um dado preocupante: faltaria
clareza aos dois grupos de professores da relevância científica de Origem da Vida para a
compreensão de Evolução Biológica? Ou teriam eles justificativas corretas para não
reconhecerem tal importância, como por exemplo não terem estudado o tema ao longo da
licenciatura? Evolução poderia ser ensinada sem o tema Origem da Vida?
Com a finalidade de explicitar as idéias expressas pelos professores sobre dificuldades
no ensino do tema Origem da Vida, apresentam-se a seguir (Quadro 5) os DSCs construídos
com suas percepções sobre suas próprias dificuldades. Nota-se que algumas idéias centrais
obtiveram adesão em somente um dos grupos de entrevistados.
67
QUADRO 5: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis
dificuldades encontradas no ensino de Origem da Vida
QUESTÃO
PROPOSTA
Existem dificuldades
no ensino do tema
Origem da Vida?
IDÉIA CENTRAL
(IC)
DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO (DSC) - GF
DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO (DSC) - GE
1-Não há dificuldade
1.1-Não, não tenho dificuldades
com este tema. (8 professores)
1.2-Não, acho tranquilo. (4
professores)
2.2-Sim,
relação
com
a
dificuldade de aprendizagem. Só
a dificuldade de não conseguir
atingir
os
alunos.’
(2
professores)
3.2-Se tivesse material como
animações dos experimentos e
filmes acho que incentivaria.
Acho que falta material didático.
Falta de material visual de
apoio. Não tenho como mostrar a
evolução química de maneira
mais concreta. Na escola, temos
sala
de
informática
e
laboratório, mas falta tempo
para o preparo das práticas,
pessoal de apoio etc.’ (2
professores)
4.2-Sinto muita. Muito difícil.
Falta base teórica, é bem
complexo, tenho certeza que devo
falar um bando de bobagem. É
difícil mesmo, acho um conteúdo
difícil. Ainda mais que eu uso
livro de ensino médio para me
preparar. O Big Bang ainda é
bem vago e acho um pouco difícil
abordar a passagem dos
coacervados para uma célula
viva.’ (2 professores)
2-Sim, dificuldades de
aprendizagem dos
estudantes
3-Sim, falta de
material didático
específico
4-Sim, falta de
conhecimento
5-Sim, falta de tempo
disponível para
abordagem do tema
6-Sim, questões
ligadas à religião
dificultam
5.1-Acho difícil conseguir o tempo
necessário para que os alunos se
abrissem e aproveitassem as aulas
de melhor maneira. Nessa faixa
etária, o pagar mico é um obstáculo
pedagógico fortíssimo, e os alunos
acabam não expondo nem para si
próprios
suas
convicções
e
dificuldades.
Conteúdos
que
exigiriam 1 mês de aulas,
precisamos abordar em 2 semanas e
isso não dá tempo para que os
alunos amadureçam as idéias e
construam novos conhecimentos.’ (1
professor)
6.1-Mas é interessante que sempre
eles perguntam se eu acredito no
criacionismo. Aí eu me esquivo para
não influenciar, procuro deixar que
eles escolham seus caminhos. Acho
que meu papel é mostrar como a
ciência explica as coisas, e não
catequiza-los.’ (1 professor)
Observa-se que no quadro acima os discursos são excludentes. A maior adesão dentre
os entrevistados expressou a ausência de dificuldades no ensino do tema Origem da Vida,
68
resultado inverso à alta percepção de dificuldades na aprendizagem dos estudantes
(Quadro 3). Constata-se que o conjunto desses professores tende a não perceber ensino (do
professor) e aprendizagem (dos estudantes) como um processo articulado no qual o professor
é o principal responsável. Nota-se que tal constatação é mais visível entre os professores do
GF, onde são encontradas melhores condições de trabalho. Pode-se pensar que o tema Origem
da Vida, sendo pouco estudado na licenciatura e também por apresentar características de
controvérsias na ciência (ainda não completamente unificada em suas hipóteses), seja de
difícil compreensão pelos professores, acarretando uma sequência de outras dificuldades
como, por exemplo, enfrentar as crenças religiosas dos estudantes e aspectos da natureza da
ciência. Como tudo isso não é discutido no seu cotidiano, os professores tendem a perceber
dificuldades nos alunos e não neles próprios. Possivelmente, os professores do GE tenham se
sentido mais à vontade para expressar suas dificuldades, uma vez que apresentam condições
mais precárias de exercício docente e nelas podem situar justificativas para suas dificuldades.
Quanto ao tema Origem da Vida, em resumo, os professores percebem que os
estudantes têm dificuldades para aprender as explicações científicas do fenômeno. Essas
dificuldades, segundo eles, estão relacionadas à exigência da compreensão de processos
químicos que os estudantes ainda não dominam ao estudar o tema. Segundo os professores,
haveria um descompasso curricular. Um segundo problema estaria relacionado às crenças
religiosas dos estudantes em relação ao tema e os professores revelaram ter comportamentos
contraditórios ao lidar com tal problema: percebem a necessidade de discutir o tema mas, ao
mesmo tempo, expressam receios e mesmo rejeição ao que seria um confronto de idéias. E
isto também revelou-se quanto aos objetivos percebidos pelos professores como os principais
para o estudo do fenômeno da origem da vida: discutir as crenças religiosas e a natureza da
ciência. Ainda que tenham tais objetivos, expuseram dificuldades para lidar com os mesmos.
Finalmente, não pareceu relevante para os dois grupos o tema Origem da Vida para melhor
compreender a teoria da Evolução Biológica conforme as Ciências Biológicas argumentam e
os PCN+ aderem. Isto merece reflexão cuidadosa, uma vez que contraria não só os princípios
estabelecidos nos parâmetros curriculares, como também os estabelecidos pelo campo das
Ciências Biológicas.
Representações sobre Evolução Biológica
Com relação ao ensino de Evolução Biológica, apresentam-se abaixo os DSCs dos
grupos GF e GE relacionados às possíveis dificuldades percebidas na aprendizagem do tema.
69
QUADRO 6: DSCs construídos com as respostas do GF e do GE à questão proposta ‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem do tema
Evolução Biológica?’
QUESTÃO
PROPOSTA
IDÉIA CENTRAL (IC)
1-Não percebo
dificuldade
Percebe
dificuldade
dos
estudantes na
aprendizagem
do tema
Evolução
Biológica?
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF
1.1-Quando fazemos biologia comparada ao longo do ensino médio, acho que não há
dificuldade. Procuro seguir linha evolutiva durante ensino de biologia. Começo com
abiogênese, vou lá pra antiguidade... discutimos muito e falamos sobre história da
ciência, Pasteur... Lamarck, Darwin, Neodarwinismo... sempre buscando
contextualizar, fazer críticas. Acho que quando trabalhado com esse enfoque
histórico, de forma gradual, fica muito claro para o aluno. Não, acho que eles
gostam muito do tema. (6 professores)
2-Sim, relacionada à
complexidade
conceitual e/ou ao
entendimento da
natureza da ciência
2.1-Tudo aquilo que mexe com escala de tempo e contingências, para eles é
complicado. Eles estão habituados ao processo escolar onde para cada pergunta
há uma resposta pronta. Quando eles se defrontam com elos perdidos, fica difícil.
Falta o hábito de problematizar para obter respostas. Muitas vezes também, o
excesso de informações pode complicar, quando não há tempo para a sedimentação
dos conceitos. Está faltando na base uma série de procedimentos pedagógicos que
os ensine a pensar cientificamente. Essa coisa do olhar, da curiosidade, está falha
nas gerações de hoje. A maior parte dos alunos de escolas públicas não teve
estímulos para observar o mundo, e sim para engoli-lo sem ao menos pensar antes.
E na escola também não estimulamos o olhar, porque não há tempo. A questão da
seleção natural é difícil, entender o papel da manutenção dos genes na linhagem.
Vemos que muitos alunos, principalmente fora da nossa escola, vêem Lamarck
como oposto de Darwin, e a ciência não deve ser vista assim. A questão do tempo
biológico e evolutivo é difícil. Acho que eles têm dificuldade em compreender o
fator genético em conjunto com o fator ambiental. A evolução e a seleção não
dependem só da mutação, mas também da seleção ambiental. É um conjunto. O que
é mais difícil é aceitar o acaso como causa da evolução. Geralmente os alunos
pretendem uma causalidade menos abstrata. (3 professores)
3-Sim, relacionada à
compreensão de
evolução como
sinônimo de progresso.
4-Sim, relacionada ao
conhecimento religioso
3.1-Também tem a questão da dificuldade em diferenciar evolução de melhoria.
Muitos alunos acham que evoluído é o mesmo que melhor, acham que o ser
humano é o mais evoluído ser vivo. Também têm dificuldade em compreender o
conceito de evoluído como sendo diferente de complexo. (2 professores)
4.1-Alguns apresentam certa resistência com fundo religioso, isso dificulta um
pouco, mas é mais a resistência. (1 professor)
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE
1.2-Evolução é um conceito mais filosófico e histórico, mais
bem fundamentado, então acho que fica mais fácil. Eles se
interessam. Evolução torna toda a biologia mais fácil.
Fazendo estudo comparativo fica mais tranqüilo e concreto.
Origem da vida é no 1º ano e evolução no 3º ano, então pode
ser que eles tenham mais maturidade e conhecimentos mais
complexos. A estratégia de abordagem é fundamental. Se o
professor não tiver planejado e não tiver profundidade certa,
com estratégias para lidar com isso, abordar as premissas do
pensamento evolutivo de maneira não lógica e bem pensada,
acho que as chances de fracassar são maiores. (6 professores)
2.2-A compreensão da evolução é melhor do que de origem da
vida porque o processo evolutivo é mais fechadinho e os
alunos também estão mais maduros. Existem evidências, como
os fósseis, que são concretas. Os alunos do estado (acho na
verdade que todos os alunos) têm muita dificuldade de lidar
com o abstrato. Sim, porque trata de uma teoria, muito
teórico, muita abstração. Sim, até mais do que em origem da
vida. Sinto dificuldades no que se refere a eras geológicas,
períodos evolutivos da espécie humana, etc. Com a carga
horária que temos não dá para abordar. Prefiro abordar mais
ecologia e deixar evolução biológica para lá. Ecologia tem
mais a ver com a realidade deles para o vestibular, o ENEM e
tal. Para falar a verdade, acabo não abordando nunca
evolução. Nunca dá tempo. É o último conteúdo do 3º ano e
nunca sobra tempo. É complicado porque os alunos trazem
uma visão lamarckista difícil de quebrar, acho que do senso
comum ou cotidiano deles Sim, bastante. Difícil entender
evolução porque é difícil entender que alguma característica
possa surgir ao acaso. (4 professores)
3.2-Evolução quase sempre ligada a uma melhora, é
confundida com progresso. (1 professor)
4.2-A aceitação é difícil por causa da religião. (2 professores)
70
Os dois grupos apresentaram discursos bastante semelhantes em relação à percepção
de dificuldades dos estudantes com o tema Evolução Biológica. Ambos os grupos percebem
que o estudo da evolução a partir do ponto de vista da biologia comparada não apresenta
dificuldades especiais para a aprendizagem dos estudantes. São citados vários exemplos de
conteúdos a serem apresentados e formas pedagógicas apropriadas, por exemplo ‘Procuro
seguir linha evolutiva durante ensino de biologia. Começo com abiogênese, vou lá pra
antiguidade... discutimos muito e falamos sobre história da ciência, Pasteur... Lamarck,
Darwin, Neodarwinismo... sempre buscando contextualizar, fazer críticas. Acho que quando
trabalhado com esse enfoque histórico, de forma gradual, fica muito claro para o aluno’
(Quadro 6, DSC 1.1), ‘Fazendo estudo comparativo fica mais tranqüilo e concreto’ (Quadro
6, DSC 1.2).
As dificuldades percebidas foram expressas, pelos dois grupos, em relação ao que
consideram complexos aspectos conceituais: seleção natural, mutação, acaso e seus eventos
na escala de tempo, tanto quanto aspectos relacionados à natureza da ciência como hipóteses,
teorias, e mudanças destas ao longo da história da ciência. Certas crenças, como a idéia de
evolução como sinônimo de progresso, foram citadas mas sem a ênfase dos discursos
anteriores. É possível afirmar que, na comparação com o tema Origem da Vida, os professores
mostraram mais desembaraço com o tema Evolução Biológica, já que desenvolveram mais as
relações de conteúdos diversos da teoria com aspectos de seu ensino. Perceberam ainda
menos influência das crenças religiosas durante a abordagem de Evolução Biológica do que
na de Origem da Vida.
A seguir, apresentam-se os discursos através dos quais todos os professores
expressaram ser de grande importância o ensino de Evolução Biológica durante o ensino
médio.
71
QUADRO 7: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a importância do
ensino de Evolução Biológica na escola
QUESTÃO
PROPOSTA
Acredita ser
importante o
ensino de
Evolução
Biológica na
escola de nível
médio?
IDÉIA
CENTRAL(IC)
1-Sim, pois
promove a
compreensão das
bases da Biologia
2-Sim, pois
promove o
confronto com o
conhecimento
religioso
DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO (DSC) - GF
1.1-Evolução serve para amarrar todo
o conteúdo do 2º ano. Não que seja
mais importante, mas torna o ensino
mais legal. O ensino dos seres vivos
não fica fragmentado. Ajuda, é uma
ferramenta bacana. Mas é difícil fazer
assim, eu mesma não aprendi assim. A
genética só é dada no 3º ano, e isso
dificulta um pouco a ligação entre
genética e evolução. Evolução
biológica serve para termos noção
histórica, de como chegamos aqui. Não
faz sentido estudar a vida sem
evolução
biológica,
ela
faz
compreender melhor a biodiversidade,
como a natureza ficou desse jeito. É
importante também para avaliarmos as
características de nossa própria
espécie. A prepotência do Homem acha
que está fora dos seres vivos. Também
pode ajudar as próximas gerações a
conviver de maneira mais harmônica
com o ambiente’ (9 professores)
2.1-É outro momento para discutirmos
o confronto ciência e religião.’ (1
professor)
DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO (DSC) - GE
1.2-Para mim é o mais importante. É a
base do pensamento biológico. Sem
dúvida, é importante compreender que
a Terra não é estática, que há sempre
surgimento de novas espécies e
extinção de outras. É o principal
fundamento da biologia moderna.
Origem da vida eu tenho um pouco de
dúvidas... Mas a evolução mostra as
transformações e as mudanças ao
longo do tempo, o que é importante
para a vida. Importante porque auxilia
a entender ecologia. Também por uma
preocupação ambiental. Acho bonito
entender que somos todos parentes.
Filosoficamente é importante, muda a
visão. É uma mudança de paradigma
de vida. Talvez mude a postura dos
alunos perante os outros seres vivos’.
(9 professores)
2.2-É importante para que não fiquem
bitolados na mão do pastor, para
quebrar os dogmas religiosos’. (1
professor)
Os discursos dos professores para a importância do ensino de Evolução Biológica são
bastante semelhantes para os dois grupos e ambos ressaltam a importância do tema para a
compreensão da base das Ciências Biológicas, como visto nos trechos ‘Evolução serve para
amarrar todo o conteúdo do 2º ano. O ensino dos seres vivos não fica fragmentado. Não faz
sentido estudar a vida sem evolução biológica, ela faz compreender melhor a biodiversidade,
como a natureza ficou desse jeito’ (Quadro 7, DSC 1.1) e ‘É a base do pensamento biológico.
É o principal fundamento da biologia moderna’ (Quadro 7, DSC 1.2). Nota-se também que os
professores fazem uso de diferentes termos que conferem grande importância ao ensino deste
tema, inclusive apontando para algumas dificuldades na forma atual de sua colocação no
programa do ensino médio, por exemplo ‘A genética só é dada no 3º ano, e isso dificulta um
pouco a ligação entre genética e evolução’ (Quadro 7, DSC 1.1). Como em relação aos
discursos que expressaram as percepções dos professores sobre as dificuldades de
aprendizagem dos estudantes em relação a este tema, os entrevistados mostram-se à vontade
com o conteúdo e citam diferentes tópicos e conceitos, como: biodiversidade; conviver de
maneira mais harmônica; a Terra não é estática; surgimento de novas espécies e extinção de
72
outras; ecologia; preocupação ambiental; paradigma (Quadro 7). Os professores
expressaram também sentimentos e valores de apreço ao tema, como observado em ‘É
importante também para avaliarmos as características de nossa própria espécie. A
prepotência do Homem acha que está fora dos seres vivos. Também pode ajudar as próximas
gerações a conviver de maneira mais harmônica com o ambiente. Não que seja mais
importante, mas torna o ensino mais legal’ (Quadro 7, DSC 1.1), ou ainda em ‘Para mim é o
mais importante. Acho bonito entender que somos todos parentes. Filosoficamente é
importante, muda a visão’ (Quadro 7, DSC 1.2).
Secundariamente, os professores expressaram o discurso da importância de confrontar
os estudantes com suas crenças religiosas: ‘É outro momento para discutirmos o confronto
ciência e religião’(Quadro 7, DSC 2.1) e ‘É importante para que não fiquem bitolados na
mão do pastor, para quebrar os dogmas religiosos’ (Quadro 7, DSC 2.2). É possível afirmar
que, mediante os discursos deste Quadro 7 e do Quadro 4, os professores dos dois grupos
reconhecem uma importância ao ensino de Evolução Biológica que não reconhecem para o
tema Origem da Vida. Nota-se que no DSC 1.2 do Quadro 7 está expressa a dúvida em
relação à importância de Origem da Vida no contexto do ensino médio (‘Evolução é o
principal fundamento da biologia moderna. Origem da vida eu tenho um pouco de dúvidas...
Mas a evolução mostra as transformações e as mudanças ao longo do tempo, o que é
importante para a vida’). Em resumo, pode-se notar que, no âmbito dos dois grupos
pesquisados, é conferida maior importância e dedicação ao tema Evolução Biológica do que
ao tema Origem da Vida.
A seguir, estão apresentados (Quadro 8) os discursos relativos à percepção de
dificuldades no ensino do tema Evolução Biológica.
73
QUADRO 8: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis
dificuldades encontradas no ensino de Evolução Biológica
QUESTÃO
PROPOSTA
IDÉIA
CENTRAL(IC)
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO
(DSC) - GF
DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO (DSC) - GE
1-Não há
dificuldade
1.1-Não, eu gosto desse tema. Como é uma
teoria fundamentada, fechadinha, acho
tranquilo’ (8 professores)
1.2-Adoro o tema e vejo que
eles também gostam’ (6
professores)
2-Sim, falta de
tempo disponível
para abordagem do
tema
Existem
dificuldades no
ensino do tema
Evolução
Biológica?
3-Sim, questões
ligadas à religião
dificultam
4-Sim, falta de
conhecimento e/ou
defasagem de
conteúdos
2.1-A questão do tempo limita. Quanto tempo
seria necessário até que o aluno pudesse
reconstruir face às novas informações
trazidas pelo professor suas idéias sobre
origem da vida, principalmente aqueles que
trazem explicações com alto grau de
afetividade relacionada, como os religiosos?
Há uma questão aí de currículo e programa.
O que acontece é que o conteúdo do ensino
médio é tão extenso que, para que se trabalhe
evolução como eixo transversal, não há
possibilidade. E ainda há a pressão do
vestibular, muito cruel. Além do mais, nossos
alunos chegam imaturos ao ensino médio,
com mentalidade científica do ensino
fundamental. Se a gente tivesse a
possibilidade de construir com calma todos
os aspectos da teoria sintética da evolução,
talvez conseguíssemos mais sucesso pois os
alunos estariam mais maduros quando
introduzíssemos os conceitos. Tirando
aqueles alunos que já possuem uma base
familiar, filhos de professores etc., e aqueles
excepcionais, o grande grupo precisaria
desse apoio a mais e não tem’ (1 professor)
3.1-A dificuldade maior é que ás vezes os
alunos podem responder burocraticamente o
que eles sabem que o professor quer ouvir,
mas nem sempre ele de fato acredita no que
diz’ (1 professor)
4.1-Dificuldade pela formação. Alguns
pontos são difíceis porque na formação a
genética ainda não é conclusiva, alguns
conhecimentos ficam defasados’ (1 professor)
2.2-Ter que resumir o conteúdo
todo, muito grande, para
abordar o mínimo, o que não é
o ideal. A matéria é muito
extensa e a carga horária é
pequena’ (1 professor)
4.2-‘Sinto um pouco por causa
da falta de recursos e de
atualização. Planejamento,
saber por onde começar, se tem
uma aula que você ouça os
alunos dá mais nervoso ainda,
porque mesmo que você aborde
os temas eles ainda falam no
Lamarckismo’ (3 professores)
Os discursos deste quadro foram praticamente excludentes, apenas um professor
expressou-se com mais de uma idéia central (IC). A tendência é a percepção no conjunto dos
discursos de ambos os grupos de que não há dificuldades especiais no ensino do tema
Evolução Biológica, inclusive os discursos expressam o prazer dos professores de lidarem
com tal tema, conforme os trechos ‘Como é uma teoria fundamentada, fechadinha, acho
tranquilo’ (Quadro 8, DSC 1.1) e ‘Adoro o tema e vejo que eles também gostam’ (Quadro 8,
DSC 1.2). Secundariamente, os professores apontam a necessidade de aperfeiçoamento
curricular quanto à diminuição ou eliminação do tempo para alguns temas e ampliação de
outros importantes como evolução, conforme verificado no DSC 2, onde a falta de tempo foi
74
citada como fator limitante ao desenvolvimento do tema Evolução Biológica. Tal discurso
encontra-se de acordo com o observado no Quadro 5 e revela preocupação com dois aspectos
relacionados ao ensino dos conceitos e conteúdos de Evolução Biológica: a grande extensão
do currículo a ser cumprido ao longo do ensino médio (O que acontece é que o conteúdo do
ensino médio é tão extenso que, para que se trabalhe evolução como eixo transversal, não há
possibilidade.Conteúdos que exigiriam 1 mês de aulas, precisamos abordar em 2 semanas e
isso não dá tempo para que os alunos amadureçam as idéias e construam novos
conhecimentos; Quadro 5, DSC 5.1) e o tempo de amadurecimento dos estudantes (Quanto
tempo seria necessário até que o aluno pudesse reconstruir face às novas informações
trazidas pelo professor suas idéias sobre origem da vida, principalmente aqueles que trazem
explicações com alto grau de afetividade relacionada, como os religiosos? Se a gente tivesse
a possibilidade de construir com calma todos os aspectos da teoria sintética da evolução,
talvez conseguíssemos mais sucesso pois os alunos estariam mais maduros quando
introduzíssemos os conceitos; Quadro 8, DSC 2.1). A percepção recorrente, em diferentes
discursos dos diversos Quadros, quanto aos conhecimentos prévios trazidos pelos estudantes
também se manifesta na questão tratada neste Quadro 8 nas citações do lamarckismo (‘se tem
uma aula que você ouça os alunos dá mais nervoso ainda, porque mesmo que você aborde os
temas eles ainda falam no Lamarckismo’; Quadro 8, DSC 4.2) e das crenças religiosas (‘A
dificuldade maior é que ás vezes os alunos podem responder burocraticamente o que eles
sabem que o professor quer ouvir, mas nem sempre ele de fato acredita no que diz’; Quadro
8, DSC 3.1).
Em resumo, pode-se dizer que, ao contrário de Origem da Vida, o tema Evolução
Biológica é percebido pelos professores como sem dificuldades especiais de aprendizagem e
ensino. É possível notar que os conteúdos deste tema parecem compor o repertório dos
professores de forma mais clara, objetiva e ampla do que Origem da Vida. Assim, eles
expressam um melhor domínio do tema diante dos estudantes: reconhecem a importância do
tema no contexto das ciências biológicas e parecem dominar o conteúdo específico de forma
mais satisfatória do que Origem da Vida. Também não expressaram o confronto com a
religião como forte dificuldade a ser superada. Poder-se-ia pensar que o maior envolvimento
com os conteúdos do tema Evolução Biológica tenham superado a preocupação com as
crenças religiosas, ou seja, com maior conhecimento sistematizado do conteúdo por parte dos
professores, a dificuldade de abordagem do tema parece ser menor. Entretanto, a leitura dos
75
discursos do próximo Quadro sugere que, ainda que de forma menos intensa do que para
Origem da Vida, há enfrentamentos com as crenças religiosas.
Com relação a situações extremas de embate em sala de aula envolvendo os temas
pesquisados, são apresentados a seguir os discursos dos professores do GF e do GE sob a
forma de Quadro contendo os DSCs construídos com suas falas.
76
QUADRO 9: DSCs construídos com as respostas dos entrevistados do GF e do GE à questão proposta ‘Você já se deparou com alguma situação extrema
de negação aos temas Origem da Vida e/ou Evolução Biológica
QUESTÃO
PROPOSTA
IDÉIA
CENTRAL(IC)
1-Não
Você já se deparou
com alguma
situação extrema de
negação aos temas
Origem da Vida
e/ou Evolução
Biológica?
2-Sim,
relacionada ao
conhecimento
religioso
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF
1.1-Não, porque sempre enfatizo que a religião e a ciência são
conhecimentos diferentes, logo não devem se chocar. Mas nas minhas aulas
não há espaço para discussões religiosas. Não coloco o conteúdo científico
como melhor, mas como uma das faces do conhecimento humano sobre sua
origem e evolução. A concordância e discordância variam com a turma, mas
como abordo a questão religiosa com respeito, nunca vivi nada assim.
Costumo abordar acaso e Deus sem serem excludentes. Evito embates.
Respeito as idéias prévias dos alunos. Sei que no estado há mais problemas
relacionados ao ensino desses temas. Sei que em algumas cidades do interior
do estado, com grande quantidade de evangélicos, não costumam abordar os
conteúdos curriculares formais que enfrentam grande resistência por parte
das igrejas. Isso é um absurdo, é retirar dos alunos a chance de ouvir falar
sobre novas explicações e optar por uma delas. (6 professores)
2.1-Uma vez um aluno falou que não acreditava em evolução, aí eu cortei
logo a onda dele. Aqui é uma escola laica, que não deve dar abertura para a
religião. Ano passado, numa turma de 3º ano, eu estava apresentando idéias
sobre origem da vida, aí falei sobre criacionismo e, na fala, uma aluna se
apresentou como testemunha de Jeová e explicou sobre a forma de entender
da sua religião. Aí eu usei isso para ilustrar a tolerância e o pensamento
sobre as hipóteses. Todas as vezes que abordei esses temas, sempre ouvi que
foi assim porque Deus quis. Inclusive durante a graduação, ouvi de
professores essa frase. Percebo que grupos religiosos possuem mais
dificuldade de compreender as teorias da ciência. Busco perceber a lacuna
de conhecimento do aluno. Muitos demonstram negação ao acaso e à
aleatoriedade. Geralmente esses alunos até vão escrever direitinho na prova,
mas se você pegar ele distraído, ele vai continuar afirmando acreditar na
bíblia. No momento em que você acredita numa mente inteligente que é
responsável por uma obra e organiza tudo, fica muito difícil entender e
encaixar aí o acaso e outros fenômenos aleatórios. Enfrentar o desconhecido
é para poucos, é mais fácil colocar o destino nas mãos do criador. (4
professores)
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE
1.2-Eu, particularmente não, mas lembro sempre de fazer uma
separação entre religião e ciência para que os alunos façam distinção
entre as duas formas de pensamento. Alguns alunos já colocaram que
não acreditam, mas nunca tive problemas durante as aulas. Algumas
vezes percebi que os alunos evangélicos são menos suscetíveis às
explicações da ciência, porque trazem explicações muito fechadas
para quase tudo. Mas ainda assim sempre falo que o que estudamos na
escola são os enigmas, explicados com base em evidências que são
observadas. O mistério, ou seja, porque as coisas acontecem como
acontecem, cada um deve procurar suas explicações para o que chamo
de mistério. A ciência nos mostra evidência sobre como as coisas
acontecem. Por que acontecem, é outra estória. Podemos chamar de
acaso, de Deus ou do que quer que seja. Eu me ocupo de mostrar
evidências sobre a maneira como a evolução biológica se dá, e não
porque se dá. Evito falar sobre evolução humana porque causa muito
conflito. Os alunos percebem que eu não imponho. (6 professores)
2.2-Toda vez que trabalho com esses temas ocorrem situações
esquisitas. Acho que o primeiro contato com essas explicações
científicas é meio perturbador (às vezes são até agressivos). Uma vez,
um aluno falou assim: - Se você acha que é prima do macaco, o
problema é seu!! Eu é que não sou!! Já aconteceu de uma aluna que
pediu licença porque não queria escutar já que não acreditava e
confrontava. Mas na hora da prova ela respondeu de acordo com a
aula, deve ter estudado no livro, sei lá. Não quero mudar opinião, só
aumentar as possibilidades de explicações sobre as coisas. Em origem
da vida, na minha primeira lotação, um aluno levantou agressivo e
começou a ler em voz alta o gêneses da bíblia. Disse que aquilo que eu
estava fazendo era coisa errada, que não devia falar sobre o que eu
não sabia. Aí eu disse para ele que quem não devia fazer aquilo era
ele, que estávamos em uma escola, que eu ia falar sobre explicações
científicas e não me interessava a religião de ninguém porque escola é
que não era lugar daquilo,que eu não estava atacando ele nem sua
religião, mas ele se retirou da sala. Sim, aqui no estado alguns alunos
fazem parte de religiões ortodoxas como batistas e etc. e possuem
explicações religiosas. (4 professores)
77
O conjunto dos discursos indica que há percepção pelos professores de problemas
extremos em sala de aula, isto é, de negação ou rejeição das explicações científicas para
Origem da Vida e Evolução Biológica. Os discursos dos professores contêm o relato de
episódios com dificuldades associadas a conflitos com crenças religiosas. A leitura dos
discursos sugere que, de forma mais ou menos intensa, há enfrentamentos e mesmo atitudes
defensivas dos professores diante da presença de crenças religiosas dos estudantes. Os
discursos do Quadro 9 citam diferentes situações vividas: ‘Mas nas minhas aulas não há
espaço para discussões religiosas.’(DSC 1.1); ‘Evito falar sobre evolução humana porque
causa muito conflito.’ e ‘... os alunos evangélicos são menos suscetíveis às explicações da
ciência, porque trazem explicações muito fechadas para quase tudo’ (DSC 1.2); ‘Aqui é uma
escola laica, que não deve dar abertura para a religião’ (DSC 2.1); ‘...um aluno levantou
agressivo e começou a ler em voz alta o gêneses da bíblia’ (DSC 2.2). Esses exemplos, ao
lado de outros expostos no Quadro 9, mostram que os professores oscilam diante do
comportamento dos estudantes: ao mesmo tempo em que argumentam a favor da abertura do
diálogo com os alunos, falam de atitudes de não permissão de tal diálogo. Importante também
é o registro nesses discursos dos pontos onde conflitos são desencadeados: acaso, evolução
humana, aleatoriedade. Tais pontos são conceitos onde as hipóteses da ciência parecem ser
mais confrontadas pelas crenças religiosas.
Merece ênfase e pode ser esclarecedor, no sentido de melhor compreender o
comportamento docente dos dois grupos investigados, articular os diferentes discursos
expressos nos Quadros 4, 7 e 9, os quais abordaram a importância percebida pelos professores
pesquisados em relação à origem e evolução da vida. Nesses quadros estão presentes
expressões como ‘É importante questionar...’ (Quadro 4, DSC 1.2), ‘Para discutir
hipóteses...’ (Quadro 4, DSC 2.1), ‘É outro momento para discutirmos...’ (Quadro 7, DSC2.1)
entretanto, como vimos no Quadro 9, os discursos não apontam para a realização destas
intenções, o que leva à conclusão que os professores não têm clareza quanto à conduta diante
dos alunos quando a demanda é a do diálogo: ‘Mas nas minhas aulas não há espaço para
discussões religiosas.’ (DSC 1.1),
‘Algumas vezes percebi que os alunos evangélicos são
menos suscetíveis às explicações da ciência, porque trazem explicações muito fechadas para
quase tudo. Evito falar sobre evolução humana porque causa muito conflito’ (DSC 1.2).
Considerando tais discursos que se referem à necessidade e disponibilidade para debater e
discutir o conhecimento em sala de aula, pode-se questionar se os professores têm clareza de
78
seu papel de educador e se sentem preparados educacionalmente para realizar tal discussão
entre o conhecimento científico e o religioso.
A última questão da pesquisa deteve-se sobre as explicações pessoais dos professores
sobre os temas Origem da Vida e Evolução Biológica. Encontram-se organizados nos quadros
a seguir os discursos dos dois grupos pesquisados.
79
QUADRO 10: DSCs construídos com as representações sociais dos entrevistados do GF e do GE à questão proposta ‘Você possui alguma explicação
pessoal para a Origem da Vida e Evolução Biológica? Quais suas idéias de acaso, aleatório e Deus?’
QUESTÃO
PROPOSTA
Você possui alguma
explicação pessoal
para a Origem da
Vida e Evolução
Biológica? Quais
suas idéias de acaso,
aleatório e Deus?
IDÉIA
CENTRAL (IC)
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO
(DSC) – GF
1.1-Não me considero religioso. Acredito no
acaso. Acho que ainda há muito a ser
descoberto, mas acredito que acaso e aleatório
são possibilidades bem plausíveis. Não creio
1-Acredito que a em sobrenatural. Evolução química e biológica
natureza é dada
são conjuntos de conhecimento que podem ser
por uma seqüência revistos e reorganizados. A ciência caminha,
mas evolução química e biológica estão
de eventos
estabelecidas. Novas interpretações sobre as
aleatórios (acaso)
descrita pela
causas são possíveis, mas o processo é esse,
ciência
não há dúvida. Não acredito em finalidades, em
predeterminações. Acredito na ordem do caos.
Sou cética e acredito no direito da dúvida. Eu
sou uma pessoa completamente agnóstica,
atéia, pragmática científica. (6 professores)
2-Acredito no
acaso e na
possibilidade de
Deus existir, sem
serem excludentes
2.1-Acredito no acaso e no aleatório. Mas não
nego a possibilidade de que haja um Deus
regente. Acho que acaso e aleatório podem
ser mais que acaso e aleatório. Acredito na
ciência e também nos seus limites. Eu acredito
em Deus e isso nunca me impediu de discutir e
conhecer as explicações outras. Tenho
formação católica que não contradiz o
conhecimento científico. Acredito e acho que
faz sentido origem da vida e evolução dentro
da ciência, mas também entendo que a ciência
se modifica e não é formada por dogmas.
Acredito em Deus, pode ser que Deus dê o
dom de questionar e de se fazer ciência... (4
professores)
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) – GE
1.2-Acredito piamente na evolução biológica como teoria correta, os vestígios são muito concretos.
Em origem da vida, acho que a hipótese da evolução química é a mais aceitável. (1 professor)
2.2-Acredito nos experimentos feitos, não dá pra questionar as evidências, a prática. Hoje você
pode somar ciência e religião, mas a religião é hipótese. O homem cria a religião, a ciência e tudo o
mais. Sou espírita, embora não pratique e nem freqüente. A religião não compete em nada com a
minha aceitação das explicações científicas do mundo. Acho a teoria evolutiva do Darwin muito
lógica, me satisfaz mas eu sei que não é verdade, porque tenho convicção da ausência de verdade.
As verdades, na ciência, são provisórias. Nada disso da origem da vida e da evolução negam Deus,
deusas, eu não falo isso pros alunos, mas digo que a ciência não nega. Evolução química faz menos
sentido, tem muitas lacunas, como surgem moléculas tão complexas? Um grande ponto de
interrogação. Duvido um pouco do acaso. Evolução química é plausível, na medida em que foi
reproduzida em laboratório... Mas talvez tenha algo mais. Leio muito sobre esoterismo e acredito na
panspermia. Existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. Eu tenho
religião: católico pela família, kardecista pela ciência e também, com freqüência, vou ao
candomblé. Acho que a religião, a filosofia e a ciência são formas de explicar o mundo e podem ser
encaradas como harmônicas. Creio em Deus, na cabala e na ciência. Não tenho religião, mas
acredito numa força suprema, inteligência superior que rege toda essa energia, toda a química e a
física. Acaso e aleatório existem, mas pode existir um elo com uma força superior, não excluo essa
possibilidade. Se as coisas aconteceram como a ciência diz que aconteceram, nunca saberemos,
porque não estávamos lá. Mas eu creio que a religião e a ciência se ocupam de coisas diferentes. Eu
sou evangélica (batista) por influência familiar. Utilizo o que me convém de cada uma das formas
de conhecimento. Eu contradigo alguns pontos da religião, mas ela me auxilia em outros. (9
professores)
80
Os professores dos dois grupos incluíram crenças religiosas em suas explicações
pessoais para os temas Origem da Vida e Evolução Biológica. Ainda que prevaleça no GF a
explicação científica sem compatibilizá-la com alguma crença religiosa e, ao contrário,
prevaleça no GE tal compatibilização, é notória a influência da religião nos discursos dos dois
grupos. Tal resultado aponta para diferentes questões relacionadas tanto ao domínio e
aceitação da explicação científica (‘Mas não nego a possibilidade de que haja um Deus
regente’, Quadro 10, DSC 2.1; ‘Acho a teoria evolutiva do Darwin muito lógica, me satisfaz,
mas eu sei que não é verdade’, Quadro 10, DSC 2.2) como a aceitação de diálogos com os
estudantes sobre suas crenças religiosas. Os professores falaram com muito desembaraço
sobre suas visões pessoais para a Origem da Vida e Evolução Biológica, entretanto
expressaram em diversos discursos atitudes que não permitem o mesmo desembaraço em
relação aos seus alunos.
A leitura do Quadro 10 permite dizer que os discursos incluem tanto a base científica
dos temas em questão quanto a justaposição de crenças religiosas em ambos os grupos de
professores entrevistados. Pode-se perguntar se tal configuração compromete o conhecimento
científico dos professores. Se nos detivermos nos discursos sobre Origem da Vida,
encontramos elementos que sugerem aprendizagem limitada em relação ao tema entre os
professores. Se, ao contrário, nos detivermos nos discursos sobre Evolução Biológica,
observamos um quadro diverso: melhor domínio e elaboração dos conteúdos. Em comum a
ambos os temas, verificamos a dificuldade em estabelecer o diálogo com os estudantes sobre
suas questões de ordem subjetiva, ou seja, em torno de aspectos que envolvem crenças e
atitudes não baseadas nos estritos conteúdos escolares, como crenças religiosas e atitudes de
defesa das mesmas. Parece, portanto, faltar ao longo da formação profissional dos
professores: a abordagem de todos os conteúdos a serem ensinados (especialmente Origem da
Vida) de maneira sistematizada e reflexões e aprendizagem de comportamentos
educacionalmente adequados diante da ciência e da religião.
81
V. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Origem da Vida e Evolução Biológica são fundamentos da Biologia, uma vez que
sugerem hipóteses para o surgimento da vida e unificam os conhecimentos sobre todos os
seres vivos em termos das modificações que sofrem ao longo do tempo. Constituem-se, por
este motivo, como temas estruturadores que devem integrar todo o conteúdo apresentado ao
longo do Ensino Médio, segundo os PCN+. Entretanto, os discursos dos grupos de professores
investigados revelaram que os temas não são vistos como articulados. A dificuldade entre os
professores de relacionarem as hipóteses de Origem da Vida à teoria da Evolução Biológica
foi sugerida, embora esta última pressuponha que houve um momento inicial de surgimento
da vida no planeta Terra. A teoria da Evolução Biológica é incompleta sem a discussão sobre
as hipóteses da Origem da Vida, ainda que sejam didaticamente apresentadas em períodos
escolares distintos. Os dados expostos no Quadro 2 e os discursos presentes nos demais
Quadros indicam que a formação acadêmica e profissional dos professores teve foco
diferenciado para Origem da Vida e Evolução Biológica. O primeiro tema parece ter sido bem
menos estudado ao longo de suas formações e os professores claramente demonstraram
melhor domínio do segundo tema.
Os discursos sobre as dificuldades dos estudantes na aprendizagem de Origem da Vida
de ambos os grupos apresentaram maior tendência relacionando-as à falta de conteúdos
prévios de química. Os livros didáticos utilizados em ambas as instituições apresentam
conteúdos programáticos onde o estudo da composição química dos seres vivos é apresentado
anteriormente à hipótese da evolução química da vida. Tal observação permite questionar se
os conteúdos são abordados seguindo-se uma organização programática (do livro didático ou
proposta pela unidade escolar) ou se a autonomia de cada professor permite que, por exemplo,
os conteúdos sejam abordados ou não dependendo do interesse do professor. Esta crítica dos
professores à organização programática dos conteúdos é importante, entretanto pode-se frisar
o seguinte ponto: se os professores conseguem diagnosticar o problema e exemplificar ou dar
base à sua crítica, não parecem ter a decisão de implementar a mudança apontada por eles
como necessária à diminuição das dificuldades de aprendizagem do tema Origem da Vida.
Faltaria a necessária articulação com o ensino de Química? Estariam eles limitados na
tradição de ensino? Pode ser que simplesmente não mudam porque o contexto do
planejamento escolar não sustenta tal mudança, ou não discute esses problemas, estando os
professores imersos nas práticas do cotidiano sem a necessária reflexão. Por um lado, isto
82
explicaria inclusive porque recursos disponíveis para um melhor ensino não serem
comumente utilizados, como equipamentos de mídia etc. Por outro lado, pode-se sugerir que o
grande número de aulas semanais ministradas pelos professores pesquisados, especialmente
os do GE, impeça o planejamento adequado das atividades escolares, a utilização de recursos
diferenciados e a reflexão sobre as práticas pedagógicas. A partir da crítica dos professores à
organização programática do conteúdo curricular do ensino médio presentes nos livros
didáticos, o qual prevê a abordagem do tema Origem da Vida no primeiro ano, momento em
que o estudo da química inicia-se e anterior ao estudo da química orgânica, surgiu um novo
questionamento: é de fato necessário o estudo da química para a compreensão da hipótese da
evolução química da vida, ou tal hipótese baseia-se mais em questões epistemológicas do
conhecimento científico, questões estas que não são usualmente abordadas nos cursos de
licenciatura? Tais pontos merecem investigação e novas pesquisas.
Quanto à importância do ensino da hipótese da evolução química para a Origem da
Vida na escola de nível médio, o discurso de maior adesão em ambos os grupos pesquisados
foi o que relaciona tal importância ao confronto com o conhecimento religioso prévio dos
estudantes. Como o tema Origem da Vida não é abordado em parte dos cursos de licenciatura
(Nicolini, 2006), muitos professores chegam à sala de aula com as concepções sobre a
importância do ensino do tema trazidas de outras fontes que não a científica. Poder-se-ia
pensar que a desvinculação dos temas existiria pelo hábito de segmentação didática dos
conteúdos dentre os professores, mas os discursos revelaram também pouco conhecimento
teórico do tema Origem da Vida. De forma sintética, pode-se dizer que ambos os grupos
percebem a Evolução Biológica como um tema importante da disciplina biologia, e Origem
da Vida como um meio de levar os estudantes a confrontarem seus conhecimentos religiosos
prévios.
Quanto a possíveis dificuldades dos professores encontradas no ensino de Origem da
Vida, notou-se certa diferença entre os discursos do GF e do GE. O GF expressou forte
tendência a não perceber dificuldade alguma no ensino e o GE apresentou discursos que
expressaram dificuldades relacionadas à aprendizagem dos estudantes, à falta de material
didático de apoio (a qual foi interpretada como falta de tempo para planejamento) e à falta de
conhecimento do professor sobre o tema. Analisando-se os discursos do GE, percebe-se que
este grupo tende a se defender em suas respostas apoiados em críticas às condições de
trabalho e salariais. Notou-se ainda a percepção desarticulada do processo de ensino-
83
aprendizagem. Os professores percebem dificuldades no ‘aprender dos alunos’, mas não
‘dificuldades de ensino’.
A importância do ensino de Evolução Biológica mostrou-se relacionada à
compreensão das bases da biologia nos discursos de maior adesão. O confronto com o
conhecimento religioso foi citado com pequena adesão, contrastando com os discursos sobre
Origem da Vida. Tal observação permite sugerir que, segundo os professores pesquisados, a
hipótese da evolução química para a Origem da Vida contrasta mais com as explicações
prévias dos estudantes do que a teoria da Evolução Biológica, assim como parece ser de
menor importância para o ensino de biologia do que esta última. Com relação à aprendizagem
de Evolução Biológica, houve grande adesão ao discurso que expressou não haver
dificuldades, resultado oposto às várias dificuldades percebidas na aprendizagem de Origem
da Vida. Os discursos que expressaram dificuldades as relacionaram à complexidade
conceitual do tema, à confusão entre evolução e progresso e, com menor adesão, ao
conhecimento religioso dos estudantes. O tema Evolução Biológica parece oferecer menos
desgaste durante o ensino do que Origem da Vida.
Notou-se certa incongruência nos discursos quanto à importância do debate para o
ensino de ciências e a disponibilidade dos professores para realizar discussões em sala de
aula. Através da observação de tal oscilação na postura dos professores quanto à necessidade
e disponibilidade para debater e discutir o conhecimento em sala de aula, se pode questionar
se os professores sentem-se confortáveis e preparados para realizar tal discussão entre o
conhecimento científico e o religioso. Embora a importância do pensar criticamente tenha
sido difundida nos DSCs, a habilitação docente de promover tal habilidade intelectual
mostrou-se inconsistente nos discursos, em trechos como “Uma vez um aluno falou que não
acreditava em evolução, aí eu cortei logo a onda dele. Aqui é uma escola laica, que não deve
dar abertura para a religião.” (Quadro 9, DSC 2.1), “Se você abrir espaço para debate, a
coisa pode tomar outro rumo e dificultar a aula.” (Quadro 3, DSC 4.2) e “Eu não vou
discutir religião, porque eu não discuto religião. Não discuto isso, a religião é lá fora, não
aqui.” (Quadro 3, DSC 2.2).
Os discursos de ambos os grupos apresentaram dicotomia entre o ensino e a
aprendizagem dos temas, o que revela problemas específicos de concepção pedagógica nos
professores
entrevistados.
O processo
ensino-aprendizagem
é dialético,
ou
seja,
interdependente. Só há ensino quando houve aprendizagem, e só há aprendizagem com ensino
84
envolvido. A leitura dos discursos revela que os professores não estabeleceram relações entre
o ensino e a aprendizagem, visto que seus discursos expressaram praticamente ausência de
dificuldades no ensino (do professor) dos temas e várias dificuldades na aprendizagem (dos
estudantes). Ou seja, a concepção construtivista não parece familiar a esses professores. As
dificuldades de articular Origem da Vida, Evolução Biológica, ensino e aprendizagem podem
também estar relacionadas a tal desconhecimento. Os professores investigados, sem o
saberem, podem ter convicções que os colocam em divergência com os estudantes e reforçam
o papel transmissor de conhecimento, já tão criticado na área de educação (Moreira, 1999;
Scheid, Ferrari & Delizoicov, 2006). Embora os discursos dos professores argumentem a
favor do pensamento crítico, notou-se que também argumentam contra, o que indica
ambivalência ou contradição. Parece haver dificuldades de realização do objetivo de educar
para o pensamento crítico, e isto pode também estar relacionado com o domínio falho dos
conteúdos específicos. Neste ponto, pode-se ver ainda que, ao mesmo tempo em que há
críticas às crenças religiosas dos estudantes como agentes que dificultam a aprendizagem dos
temas em tela, os próprios professores declararam suas crenças. Portanto, parece haver, além
da questão do domínio dos conteúdos ensinados, também a carência de reflexões dos
professores sobre suas próprias crenças e a relação entre estas e sua prática pedagógica.
85
VI. CONCLUSÃO
Embora o perfil profissional e as condições de atuação profissional do grupo da rede
federal mostrem vantagens em relação àqueles da rede estadual, ambos os grupos investigados
expressaram percepções semelhantes em relação aos temas investigados. Expressaram tanto
dificuldades semelhantes em relação a determinados conteúdos como ambigüidades em
posturas educacionais em relação à formação dos estudantes. Os depoimentos dos professores
que declararam não haver estudado Origem da Vida na licenciatura, somado ao domínio do
tema por parte dos professores, que pareceu aquém do necessário para Origem da Vida,
confirma que licenciaturas em Ciências Biológicas nem sempre abordam este tema, e quando
o fazem parecem não discutir com os futuros professores as diversas questões relacionadas ao
ensino desse assunto.
As escolas investigadas prevêem reuniões de coordenação pedagógica e foi verificada
a presença, em todas as escolas visitadas, de sala de vídeo, de leitura e projetores de imagem.
Tais recursos quase não foram mencionados pelos professores como auxílio para enfrentarem
suas dificuldades. Faltaria tempo para planejamento e execução de atividades diferenciadas?
Haveria desconhecimento ou desinteresse para tal uso? Os dirigentes e coordenadores
ofereceriam precário apoio aos professores para tal desempenho? Sentir-se-iam os professores
sozinhos diante da complexidade dos temas e das situações sociais por eles desencadeadas nas
salas de aula? Os resultados da pesquisa mostraram que não é possível negar a dimensão
religiosa da cultura brasileira que, certamente, envolve professores e estudantes.
Os resultados da pesquisa aqui relatada mostraram ainda que as dificuldades
percebidas pelos professores no ensino de Origem da Vida e Evolução Biológica estão
relacionadas a condições de formação dos professores e de encaminhamento pedagógico no
âmbito das escolas investigadas. Não parece arriscado concluir que, com planejamento
adequado e ensino de Química e Biologia integrado, boa parte das questões apontadas pelos
professores poderia ser solucionada. Some-se a necessidade do ensino sistematizado ao longo
das licenciaturas de todos os conteúdos que serão ministrados nas escolas, claramente
previstos nos documentos oficiais. Verificou-se que a falta desse ensino sistematizado nas
licenciaturas está relacionada com o núcleo das dificuldades dos professores para realizarem
abordagens satisfatórias dos temas em questão.
86
À primeira vista, pode-se ter a impressão de que a religião confronta a ciência nas
salas de aula, mas refletindo-se sobre os dados da pesquisa vê-se que, na realidade, os temas
apresentam dificuldades mais pela ausência da ciência na sala de aula e pelas dificuldades,
muitas vezes justificada, de formação insuficiente dos professores nos conteúdos científicos e
pedagógicos necessários à abordagem de temas como Origem da Vida e Evolução Biológica.
Desta forma, não é surpreendente que os alunos, e mesmo os professores, prefiram por vezes
as explicações religiosas, que possuem maior apelo afetivo do que a ciência em suas vidas. O
conjunto de dados e as análises realizadas sugerem, portanto, que podem não estar nas crenças
religiosas dos estudantes (e também dos professores) os principais problemas com o ensino da
Origem da Vida e da Evolução Biológica.
87
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