3ª Conferência Internacional de Terminologia Marítima / 3rd. International Conference on Maritime Terminology Por que razão a combinatória lexical não pode ser um princípio para se considerar verbos e adjetivos como sendo especializados? RENATA VALENTE Instituto de Linguística Teórica e Computacional 0 Abstract Most recent studies concerning specialized verbs and specialized adjectives consider the lexical combination of a verb with a noun or the lexical combination of an adjective with a noun a principle to determine a verb or an adjective as specialized lexical units. In this paper, I argue why lexical combination can not be a principle to consider a lexical unity as a specialized one and that lexical combination can be used only as a criterion among many others which solely helps to select verbs and adjectives from specialized discourse for a further formal semantic analysis. 1 Introdução Os mais recentes estudos concernentes à combinatória lexical ou co-ocorrência lexical no discurso especializado a têm apresentado mais propriamente como um princípio, pelo qual se identifica um verbo “especializado” ou um adjetivo “especializado”. Grosso modo, esses estudos fazem a descrição actancial de certos predicados verbais e predicados adjetivais e dão a entender que, se entre os actantes desses predicados constar um nome que é um termo da área de especialidade, o verbo ou o adjetivo é então especializado. Ao nosso ver, ainda que a estrutura actancial de uma lexia predicativa dê pistas a respeito do seu significado, ela não é suficiente para determinar o seu conteúdo semântico. Nesta comunicação, nós começamos por apresentar a noção de combinatória lexical livre e combinatória lexical restrita [= colocação], apresentamos sucintamente o sistema de classificação das colocações da língua natural baseado na noção de Função Lexical (FL) [f(x) = y] da Lexicologia Explicativa e Combinatória (LEC) (Mel’čuk et alli., 1995) da Teoria Sentido-Texto (TST) (I. Mel’čuk e A. Žolkovskij, 1970), mostramos por que razão a estrutura actancial não pode servir de princípio para se estabelecer o semantismo de © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 176 Renata Valente um predicado, mas que se trata antes de um critério, entre tantos outros, de análise semântica, e finalmente, abordamos o uso da combinatória lexical como meio para se determinar o ambiente lexical de uma unidade lexical (UL) do discurso especializado. 2 A Colocação A combinatória seja ela lexical ou gramatical é um fato linguístico que, infelizmente, ainda é um tanto quanto ignorado pelas gramáticas, sobretudo, as gramáticas das línguas de origem latina. Resumidamente, a combinatória como o próprio nome diz é a combinação de duas ou mais UL. A combinatória gramatical é aquela em que uma UL aparece necessariamente acompanhada por uma palavra-gramatical, ou seja, se combina com uma determinada palavrachave. Em francês, por exemplo, quando o verbo permettre ‘permitir’ é seguido de um verbo no infinitivo, ele exige a preposição de: permettre de (ma vieille voiture m’a permise d’arriver à l’heure1). Em português, o verbo assistir quando significa, grosso modo, ‘X está presente observando Y’, exige a preposição a; ex. assistir à conferência, assistir ao filme. A combinatória lexical é a combinação de UL. Nesta comunicação tratamos desse tipo de combinatória. A combinatória lexical pode ser livre ou restrita. Ela é livre quando uma determinada UL se combina livremente com todo o elemento que pode fazer parte da sua estrutura sintática sem criar uma contradição semântica. Assim, como Hausmann (1979) afirma, o verbo ver se combina com tudo o que pode ser visto: árvore, pássaro, etc. Da mesma forma, expressões como «pra chuchu» ou «pra caramba» que significam ‘muito’ ou ‘intensamente’ se combinam livremente com diferentes UL cujos significados aceitam a intensificação: caro pra chuchu/pra caramba, pesado pra chuchu/pra caramba, rico pra chuchu/pra caramba, bonito pra chuchu/pra caramba, etc. A combinatória é restrita quando uma determinada UL seleciona uma UL para a expressão de um determinado significado. Esse tipo de combinatória é designado adequadamente pelo termo colocação2. Notemos que as colocações são um fenómeno das línguas naturais e, sem exagero, poderíamos dizer que falamos por colocações, já que produzimos uma colocação a todo instante. Assim, em português devemos dizer ‘dar um passo’ e não *’fazer um passo’. Em francês, pelo contrário, devemos dizer ‘faire un pas’ e não *’donner un pas’. Como podemos notar, a colocação representa um conhecimento refinado da língua que o falante de língua materna domina plenamente. Inversamente, as colocações representam um desafio para quem aprende uma segunda língua, uma vez que elas precisam ser aprendidas de cor! Aliás, podemos detectar o nível de conhecimento de uma língua estrangeira de alguém pelo emprego das colocações. Na atividade do tradutor, as colocações representam armadilhas para as quais ele precisa estar sempre atento. As colocações também diferem de acordo com a variedade de uma determinada língua. Assim, para se dizer em português brasileiro (PB) do preço baixo de algum produto, se dirá preço de banana, já no português europeu (PE) se dirá preço da chuva. Da mesma forma, para se dizer de alguém que come muito pouco, no PE se dirá comer como um pisco, no PB se dirá comer feito um passarinho. Segundo Hausmann (1979) as colocações foram identificadas em 1571 no livro Les épithètes de M. de La Porte, Parisien, que resultou no primeiro dicionário de colocações da língua francesa. A compilação de Paul Rouaix que resultou no dicionário Trouver le mot juste Dictionnaire des idées suggérées par les mots é atualmente um trabalho representativo para a 1 Tradução literal: meu velho carro me permitiu de chegar na hora. Tradução desejável: meu velho carro permitiu que eu chegasse na hora. 2 Abriremos aqui um pequeno parênteses para falar a respeito da terminologia empregada: os termos combinatória lexical e co-ocorrência lexical são sinônimos. O termo colocação é um quasi-sinônimo dos dois últimos: uma colocação é necessariamente uma co-ocorrência lexical restrita entre duas ou mais UL, uma expressão, por exemplo, dormir feito um anjo (PB) ou tirar um curso (PE). O termo fraseologia é o genérico (hiperônimo) de combinatória lexical, co-ocorrência lexical e colocação. © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 177 3ª Conferência Internacional de Terminologia Marítima / 3rd. International Conference on Maritime Terminology língua francesa e o The BBI Combinatory Dictionary of English é um dos trabalhos mais representativos do assunto, uma espécie de guia de colocações. Já com relação à análise e classificação das colocações, o trabalho de referência é o apresentado pela TST. Desta teoria deriva a LEC que se concretiza no Dictionnaire explicatif et combinatoire du français contemporain conhecido como DEC. A LEC distribui a combinatória lexical em três grupos de acordo com a sua natureza: frasema completo, semi-frasema [= colocação] ou quasi-frasema: • frasema completo é um tipo de frasema em que o resultado da combinação dos seus elementos não considera o significado de cada elemento que o constitui: ‘AB’ = ‘C’ onde ‘C’ ⊄ ‘A’ & ‘C’ ⊄ ‘B’: pisar na bola, bater as botas, cair do cavalo. • semi-frasema ou colocação é um frasema que mantém o significado de um dos seus constituintes, enquanto o outro constituinte adquire um outro significado ou, se permanece com o mesmo significado, ele não é escolhido livremente: ‘AB’ = ‘AC’ ou ‘AB’ = ‘BC’: piada cabeluda, teimosa como a mulher do piolho, tomar o elevador, fisgar um marido, dormir feito um anjo, tirar um curso, pregar um botão, navio atraca, navio larga. • quasi-frasema é outro tipo de frasema no qual o significado dos seus constituintes é mantido e um outro significado «imprevisível» agrega-se ao sentido dos constituintes: ‘AB’ = ‘ABC’: centro comercial ex. os meninos foram ao cinema do centro comercial [= ‘centro de compras’ + ‘lazer’]; dar o peito ex. o pediatra aconselhou que ela desse o peito apenas quando o bebê chorasse [= ‘dar o peito’ + ‘alimentar’]. Como podemos notar, na LEC colocação e semi-frasema são sinónimos. Há vários tipos de semi-frasemas. Para analisá-los, organizá-los e sistematizá-los, a LEC criou um sistema de classificação baseado na noção de função lexical (FL) a saber: f(x) = y na qual f corresponde a um sentido geral, x é a palavra-chave e y é o valor da função. Há dois tipos de FL: standard ou não-standard. A noção de FL standard fundamenta-se na hipótese que «os casos de coocorrência lexical restrita compreendem um pequeno número de sentidos específicos – abstratos e gerais». Segundo Mel’čuk (1997), as FL standards são universais, quer dizer, elas existem em qualquer língua e são (quase) suficientes para descrever de maneira sistemática e formal o conjunto de colocações de uma determinada língua. Assim, por exemplo, se se quiser dizer de alguém que come muito, se dirá em Portugal comer até fartar ou comer que nem um alarve; já no Brasil se dirá comer como um padre. Essas colocações são formalizadas da seguinte forma: • Magn (comer) = até fartar; que nem um alarve (PE); como um padre (PB). A FL Magn (do latim magnus ‘grande’) corresponde ao sentido ‘muito’ ou ‘intensamente’ que o falante quer expressar. No entanto, se o falante quiser expressar a idéia contrária, isto é, se ele quiser dizer a respeito de alguém que come muito pouco, dirá: • AntiMagn (comer) = como um pisco (PE); como um passarinho (PB). A FL AntiMagn é uma função complexa na qual juntam-se duas funções Anti + Magn: a FL Anti expressa um antónimo e, no caso apresentado, essa função atua em conjunto com a FL Magn, produzindo um sentido oposto à intensificação. Vejamos mais alguns exemplos de funções complexas. Em Portugal, se usará a seguinte colocação para se dizer de alguém que conseguiu um marido para se casar: • Caus2Oper2 (marido) = pescar [ART ~] No Brasil: Caus2Oper2 (marido) = fisgar [ART ~] • Nessas funções complexas, a FL Caus expressa o causativo: Caus(P) = ‘causar que P [fazer de maneira que P aconteça]’. • © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 178 Renata Valente Já a FL Oper formaliza a noção de verbo suporte, noção bem conhecida na linguística francesa. Os valores dessa FL são verbos semanticamente vazios (ou esvaziados de sentido no contexto da palavra-chave). A FL Oper serve para verbalizar nomes que são predicados semânticos [= nomes predicativos]. Dessa forma, a FL Oper fornece a um nome (palavrachave) um verbo semanticamente vazio e o nome toma a posição de complemento do objeto direto (COdir) do verbo. Vejamos mais alguns exemplos de verbos semanticamente vazios: Para algo que não está mais na moda, se dirá no PB: • FinFunc0 (moda) = cair [de ~] e se dirá tanto no PB quanto no PE: FinFunc0 (moda) = passar [de ~] • ou ainda: • FinOper1 (moda) = sair [de ~]. A FL Fin que é uma FL fásica, expressa o término de uma ação ou de um acontecimento. • Fin(P) = Incep (não P) = ‘parar de P-ar’ = ‘começar a não P-ar’. Notemos que as FL fásicas têm um caráter aspectual. Além disso, elas não têm estrutura actancial própria, razão pela qual se apoiam nas FL actanciais, como a função Oper3. Até os dias de hoje, a LEC identificou 56 FL standards. O outro tipo de FL, a FL nãostandard dá conta, grosso modo, de sentidos que não podem ser generalizados, isto é, sentidos próprios a uma determinada língua ou a um pequeno número de línguas. Notemos ainda que o valor dessa FL é muito reduzido ou apresenta apenas um valor, por exemplo: • sob certas restrições (absolvição) = condicional. • sem ser visto (sair2): de fininho (PB) A organização dos diferentes tipos de frasema pela LEC, bem como a classificação das colocações facilitam o trabalho de análise do léxico e levam a uma descrição exaustiva da combinatória de uma determinada UL. A análise da combinatória de uma UL fornece outros dados a respeito de L. Mel’čuk et alli (1995:67) apresentam dois contextos onde aparece o verbo francês s’occuper: • occupe-toi du thé • occupe-toi de thé Segundo eles, poderíamos pensar que as duas ocorrências do verbo S’OCCUPER representam uma mesma UL. No entanto, o artigo definido fusionado à preposição de (de + le = du) revela um sentido bem particular: ‘il prend soin du thé’ lit.4 ele cuida do chá·; enquanto a ausência do artigo revela um outro sentido: ‘il travaille dans l’industrie et le commerce du thé’ / Il étudie le thé lit. ele trabalha na indústria e no comércio do chá / Ele estuda o chá. Podemos notar o quanto a combinatória, neste caso gramatical, ajuda na diferenciação semântica das duas UL. 3 Com relação aos verbos suportes, além da FL actancial Oper, a LEC distingue as FL Func e Labor que representam a trindade sintática: sujeito gramatical, complemento do objeto direto e complemento do objeto indireto. A LEC distingue as FL Real, Fact e Labreal que identificam os verbos de realização, que são, grosso modo, verbos que exprimem «(...) o sentido (‘realizar os “objetivos” inerentes da coisa [designada pela palavra-chave]’)» [nossa tradução] (Mel’čuk et alli. 1995:141). 4 lit. = tradução literal. © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 179 3ª Conferência Internacional de Terminologia Marítima / 3rd. International Conference on Maritime Terminology Do mesmo modo, a combinatória do verbo francês ACCEPTER revela duas UL. Observemos dois contextos (Mel’čuk et alli. 1995:66): a. Jean a accepté son exil <ce mode de vie> sans rechigner [= ne s’y oppose plus] lit. Jean aceitou seu exílio <esse modo de vida> sem exasperar-se [= não se opõe]. Temos aqui o sentido de uma aceitação mental de X [= Jean]. b. Jean a accepté ce cadeau <ce poste> sans rechigner [= a effectivement pris] lit. Jean aceitou esse presente <esse posto> sem exasperar-se [= tomou posse efetivamente]. Temos aqui o sentido de uma aceitação mental de X [= Jean] conjugada à ação de posse. Em a o verbo admite uma proposição infinitiva sem alteração alguma do sentido: Jean a accepté d’être exilé, <de vivre comme ça> sans rechigner. Em b a proposição infinitiva altera o sentido do verbo: Jean a accepté de recevoir ce cadeau lit. Jean aceitou receber o presente. Temos aqui apenas o sentido de aceitação mental, mas não a implicação de X [= Jean] ter tomado necessariamente posse do presente. Notemos que a alteração identificada neste contexto revela o sentido da lexia accepter da frase a, isto é, a aceitação mental. Mel’čuk et alli (1995) distinguem assim duas UL5 do vocábulo ACCEPTER: ACCEPTERI.1a réagissant à la situation Y, X fait ce que Y exige de lui ou ne s’y oppose pas’6 ACCEPTERI.3 Z offrant Y à X, X accepteI.1a de prendre Y de Z et prend Y’7 Este tipo de co-ocorrência constitui o 4º critério de distinção semântica que a LEC denomina Critère de cooccurrence différentielle. A observação da combinatória de uma UL fornece igualmente dados a respeito da sua definição, ou melhor, dos componentes que sua definição deve conter. Mel’čuk et alli. (1995:98) mostram que, em francês, applaudissement ‘aplausos’ recebe modificadores adjetivais como nourris ≈8 ‘efusivos’, frénétiques lit. ‘frenéticos’, clairsemés ≈ ‘escassos’, os quais funcionam como operadores de intensificação/atenuação. Por isso, a definição de applaudissement deve conter um componente (apresentado abaixo em maiúsculas pequenas) que possa aceitar essa qualificação. A definição terá então o seguinte aspecto: Applaudissement(s) de X à Y pour Z = ‘Battements de mains par X en signe d’approbation par X de Z de Y dont LA FORCE ET/OU LA FREQUENCE est/sont proportionnelle(s) au degré de cette approbation’.9 Como podemos notar, a observação da co-ocorrência lexical na elaboração de uma definição é fundamental para que se chegue à redação de uma boa definição. Segundo Mel’čuk et alli. (1995:99), «(…) les cooccurrents lexicaux restreints de la lexie L, ayant des liens intimes avec des composantes de la définition de L, sont d’une part immédiatement disponibles et d’autre part permettent de dégager plus facilement le sémantisme de L.»10 A observação da coocorrência lexical restrita de uma UL é uma condição sine quoi non na elaboração dos verbetes do DEC, e, por isso, constitui o 7º critério de elaboração de uma definição: Critère de cooccurrence avec modificateurs qualificatifs. 5 Lexia [= UL]. lit. ACEITARI.1a Reagindo à situação Y, X faz o que Y exige dele ou não se opõe a isso. 7 lit. ACEITARI.3 Z oferece Y a X, X aceitaI.1a pegar Y de Z e pega Y. 8 Símbolo indicando que se trata de uma tradução aproximativa. 9 Aplauso(s) de X a Y por Z = lit. ‘batimentos de mãos de X em sinal de aprovação de X de Z de Y cuja FORÇA E/OU FREQUÊNCIA é/são proporcional(is) ao grau dessa aprovação’. 10 lit. Os co-ocorrentes lexicais restritos da lexia L tendo ligações íntimas com os componentes da definição de L, estão por um lado imediatamente disponíveis e por outro permitem que se depreenda mais facilmente o semantismo de L. 6 © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 180 Renata Valente Em recente trabalho com relação às unidades lexicais especializadas do discurso de Micro-infomática (Valente 2002), utilizamos a combinatória lexical para a diferenciação de acepções das lexias de um vocábulo. Assim, a partir do fenómeno da combinatória lexical, formalizamos dois critérios de pré-análise semântica, a saber: Critério 2: A quantidade de Actantes Semânticos (ASem) de um predicado semântico Se uma unidade lexical UL tem uma certa quantidade de ASem num certo contexto e que num outro contexto observa-se uma outra quantidade de ASem, e que essa diferença não resulta de uma não-realização sintática de um ASem, então trata-se de uma outra ULn do mesmo vocábulo. Por meio desse critério, verificamos que o vocábulo ARMAZENAR no discurso da Microinformática tem pelo menos duas accepções: ‘x’ [=’drive C’] ‘armazena1’ ‘y’ [= lista de produtos] em ‘w’ [=’formato’] → grosso modo, ‘x’ ‘contém’ ‘y’ em ‘w’. ‘x’ [=’programador’] ‘armazena2’ ‘y’ [=’dados’] em ‘w’ [=’formatos digitais’] em ‘z’ [=’lugar’] → grosso modo, ‘x’ causa que ‘y’ fique em ‘z’ de uma certa maneira ‘w’. Critério 3: A natureza dos Actantes Semânticos (ASem) de um predicado semântico Se uma unidade lexical UL1 aceita apenas certos tipos de ASem e se observa um certo tipo de ASem que não é usual, então trata-se de uma outra ULn do mesmo vocábulo. Este critério permitiu observar que o 2º ASem do verbo remover sofre mudança: em certos contextos, o 2º ASem corresponde a um atalho [função lógica], em outros, o 2º ASem corresponde a um programa [instrução lógica], o que dá lugar necessariamente a duas lexias do mesmo vocábulo. Pelo que foi apresentado, a combinatória lexical ou co-ocorrência lexical faz certamente parte da análise lexical de uma UL. No entanto, ela não é suficiente para se afirmar que uma determinada lexia do discurso especializado tem ou não um sentido especializado. No entanto, temos observado nos recentes estudos a respeito das UL predicativas do discurso especializado o uso da co-ocorrência como um princípio para se determinar um sentido especializado. Esses estudos afirmam que se uma UL predicativa tiver na sua estrutura actancial um actante semântico que denote um significado específico a uma área de especialidade, isto é, o actante é um termo, a UL é, então, especializada. Para nós, uma afirmação de tal envergadura constitui antes um princípio. Além do mais, esses estudos pretendem apresentar a descrição actancial dos verbos como uma descrição semântica, e acabam mostrando, na maioria das vezes, uma lista com centenas de verbos soi-disant «especializados» acompanhados de seus actantes. Ora, um critério de análise semântica não pode se substituir a uma análise semântica stricto sensu. Um critério é um teste que faz parte de uma metodologia de análise semântica. A LEC (1995:33) distingue princípios (um princípio é «(...) uma afirmação de tipo axiomática posta como base, sem justificativa especial»), regras (uma regra é «(...) uma prescrição que um lexicólogo deve seguir se ele quiser obter certos resultados desejados no tratamento do material lexical»), e critérios (um critério é «(...) um teste que permite ao lexicólogo obter certas propriedades implícitas das lexias ou de sistematizá-las. (...) eles organizam a análise do léxico pelo lexicólogo»). As diferentes combinatórias utilizadas pela LEC (cooccurrence différentielle, cooccurrence avec modificateurs qualificatifs, cooccurrence avec la négation, cooccurrence avec quantificateurs, etc.) que ajudam o lexicólogo tanto a detectar particularidades semânticas © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 181 3ª Conferência Internacional de Terminologia Marítima / 3rd. International Conference on Maritime Terminology das UL quanto diferenciar UL de um mesmo vocábulo11 são apresentadas sob a rubrica critérios. Nós consideramos que os estudos que utilizam a combinatória lexical como um princípio para se postular o significado especializado de uma UL, acabam por tornar a fronteira existente entre a combinatória lexical e a análise semântica stricto sensu na qual se atinge os semas do significado de uma lexia, fluida ou até mesmo inexistente. Ora, essa fronteira é extremamente clara. Lorente e Bevilacqua (2000) realizaram um estudo dos verbos dos discursos especializados do Meio-Ambiente e Direito Ambiental em espanhol baseado num quadro pragmático-comunicativo. Para classificar os verbos do corpus, elas utilizaram sete critérios, entre os quais um critério que nos interessa particularmente, o critério12 de valor especializado. Segundo esse critério, os verbos especializados podem se apresentar de duas maneiras: 1) o verbo tem um valor especializado independentemente do discurso (esse verbo apresenta uma ligação morfológica com um termo, do qual vem seu sentido especializado) – [são verbos terminológicos]; 2) o verbo adquire um valor especializado no discurso quando se combina com um termo; por exemplo, generar energia. O verbo generar seria então um verbo especializado. Este último tipo verbal nos interessa particularmente – [são verbos fraseológicos]. As autoras afirmam que os verbos fraseológicos não têm sentido especializado, a não ser quando se combinam com uma «unidad léxica con valor especializado per se». Cremos ser importante demonstrar como os verbos adquirem valor especializado. No caso dos verbos terminológicos, elas afirmam que o conteúdo especializado se distribui pelo sintagma, isto é, entre o verbo e o termo: «(...) el contenido semântico especializado se reparte entre los dos integrantes del SV (...)». Seria importante, também neste caso, demonstrar como o conteúdo especializado se distribui pelo sintagma. Enfim, acreditamos que essas afirmações precisam ser corroboradas pela demonstração, o que não é impossível, uma vez que o nosso material de trabalho é a língua que pode ser observada e analisada concretamente. É o que faremos a seguir com algumas UL do vocábulo INSTALAR do discurso da micro-informática. Vejamos dois contextos nos quais aparece o vocábulo INSTALAR e, logo abaixo, a configuração dos predicados com seus actantes semânticos: • Alguns programas são suficientemente espertos para não INSTALARI.1 o DirectX, caso já exista uma versão mais nova. ‘instalar’ 1 ‘programa’ 2 ‘DirectX’ 3 __________ 11 Na LEC (Mel’čuk et alli. 1995:159) um vocábulo é o conjunto de todas as lexias L1, L2, ..., Ln que satisfaçam simultaneamente as duas condições seguintes: 1. os significantes de L1, L2, ..., Ln são idênticos; 2. os significados de quaisquer duas lexias entre L1, L2, ..., Ln estão ligados (diretamente ou indiretamente) [nossa tradução]. 12 O que as autoras chamam de critério nos parece antes um princípio que concede imediatamente ao verbo o seu valor especializado. © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 182 Renata Valente • (...) você então poderá escolher qual a placa de rede que você deseja INSTALARII.1 ‘instalar’ 1 ‘usuário’ 2 ‘placa de rede’ 3 __________ Como podemos observar nas configurações, há actantes semânticos que denotam uma realidade própria à micro-informática, isto é, são termos: programa, placa de rede, DirectX [= tipo de programa]. Vejamos agora a decomposição semântica ou definição13 da primeira UL apresentada, instalarI.1: I.1. X instala Y em Z = programa X inclui14 programa Y num sistema informático Z [por meio de] conexões lógicas [de modo que] Y funcione em Z. Esta definição revela um componente semântico especializado15: ‘[por meio de] conexões lógicas’. Trata-se portanto de uma UL especializada16. Em instalarII.1 temos a seguinte definição: II.1. W instala Y em Z = usuário W conecta17 um componente físico informático Y dentro de um sistema informático Z [de modo que] Y funcione em Z. Esta definição não revela nenhum componente semântico especializado, ainda que o predicado verbal esteja acompanhado por um actante específico à área: placa de rede18. Pelo que acabamos de apresentar, podemos afirmar que no discurso da micro-informática há, pelo menos, duas acepções do verbo INSTALAR: uma acepção especializada e uma acepção geral, ou seja, da língua comum. Por essa razão, há de se ter cautela ao se apresentar predicados verbais acompanhados por actantes que são termos, como verbos especializados, pois podem significar acepções da língua comum utilizadas correntemente no discurso especializado. 3 A Combinatória Lexical como meio para se determinar o Ambiente Lexical de uma UL no Discurso Especializado Além de ser um critério de análise lexical, a noção de combinatória lexical permite a descrição da abrangência combinatória de uma UL do discurso especializado. Como dissemos no início, a combinatória lexical é um fenómeno das línguas naturais, e podemos afirmar sem exagero que falamos por combinatórias. Sendo parte de uma língua L, as combinatórias lexicais se encontram necessariamente nos discursos especializados de L. Nesses discursos elas são 13 As definições apresentadas neste artigo estão fundamentadas na metodologia de elaboração de definições da LEC. 14 Em decorrência da Regra 3, ‘Regra do Bloco Máximo’ (règle du bloc maximal), não podemos definir utilizando lexias mais simples pois devemos parar a decomposição no seu primeiro nível. Por isso, utilizamos a lexia incluir que pode ser decomposta da seguinte forma: X inclui Y em Z = X causa que Y faça parte de Z. 15 “Componente semântico especializado é um sentido que faz parte de um conjunto de sentidos constituindo o significado de uma lexia e que liga inequivocamente a lexia a um contexto especializado” (Valente 2002). 16 “Lexia especializada é uma lexia que difere das lexias de um vocábulo por meio de um componente semântico especializado ou que difere das lexias de um vocábulo por meio de uma reformulação semântica completa [= lexia metafórica]” (Valente 2002). 17 X conecta Y em Z = X causa que Y faça parte de Z [por meio de] conexão física. 18 Fizemos abstração do usuário [= técnico de informática ou programador] como termo. © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 183 3ª Conferência Internacional de Terminologia Marítima / 3rd. International Conference on Maritime Terminology notórias, isto é, facilmente detectáveis. O interesse na determinação da abrangência combinatória de uma determinada UL se insere nos estudos relacionados à tradução automática, na qual o «mapeamento» das combinatórias de um determinado discurso especializado leva necessariamente a uma descrição pormenorizada do léxico desse discurso e, por conseguinte, a resultados mais adequados da sua tradução via máquina. Vejamos uma pequena amostra da combinatória lexical de «vento», «atracar» e «embicar», observada no sub-domínio Navegação do Termináutica19: VENTO ATRACAR EMBICAR LARGAR20 pressão velocidade navio jet ski navio força intensidade embarcação lancha embarcação ação direção jet ski ferry boat passagem impulso ferry boat lancha caráter rajada lancha jet ski efeito duração alteração Como podemos notar nesta pequena amostra, a combinação lexical da palavra-chave «vento» é restrita a um conjunto de UL. Fala-se no discurso da Náutica da «pressão do vento», da «força do vento», «direção do vento», do «impulso do vento», etc. Fala-se igualmente que um «navio atraca», ou que uma «embarcação atraca» ou um «jet ski atraca». Vimos ainda que um «jet ski embica», mas que não é possível que um *«navio embique». Essa pequena análise revela que: I. Há um número finito de UL que gravitam em torno de uma palavra-chave; II. A restrição da combinatória das UL do vocabulário de um discurso especializado reduz as possibilidades de escolhas nos processos de análise e síntese de um sistema de tradução automática; 4 Conclusão Neste artigo tratamos do que consideramos um problema bastante sério na compreensão do verbo especializado que é a ideia divulgada de que um verbo é especializado, isto é, tem um significado próprio a um discurso especializado quando se combina ou quando co-ocorre com um termo. Em outras palavras, um predicado verbal é especializado quando tem na sua estrutura actancial actantes semânticos que denotam uma realidade da área de especialidade. Para apresentar nosso ponto de vista contrário a essa idéia, começamos por salientar que a combinatória é um fenômeno linguístico, fizemos a distinção entre combinatória livre e combinatória restrita, apresentamos a distribuição que a LEC faz das combinatórias em frasema completo, semi-frasema e quasi-frasema [=colocação] e apresentamos ainda o sistema de funções lexicais (FL) desenvolvido pela LEC para a análise e classificação dos diversos tipos de colocação. Em seguida apresentamos o emprego pela LEC da co-ocorrência diferencial e da co19 O Termináutica do ILTEC é um corpus de textos da área náutica. Os estudos voltados para o desenvolvimento de sistemas de tratamento automático da língua trabalham com a concepção de classes de objetos. Desse modo, todos os elementos que se combinam com o verbo largar são representados pela classe /transportes marítimos/. 20 © (2005) Maria Doria & ILTEC (ed.) 184 Renata Valente ocorrência com modificadores qualificativos como critérios [= testes] que antecedem uma decomposição semântica. Esses critérios como vimos ajudam a diferenciar as UL [= lexias] de um mesmo vocábulo e a determinar os componentes semânticos de uma decomposição. Salientamos assim o fato de que a combinatória lexical não é um princípio por meio do qual se estabelece o significado especializado de um verbo, mas um critério que ajuda na análise semântica de uma UL, e, como critério, não pode substituir-se a uma decomposição semântica que, ela apenas, determina o componente semântico especializado de uma UL. Em seguida apresentamos a decomposição semântica de duas lexias do verbo INSTALAR, recolhidas no discurso da micro-informática, e mostramos que apenas uma delas, a lexia instalarI.1 apresenta um componente semântico especializado, o que a torna necessariamente especializada. Esperamos com a nossa argumentação ter fornecido dados que contribuam para uma utilização adequada da combinatória lexical na análise concernente ao verbo do discurso especializado, bem como na análise das outras UL predicativas do discurso especializado, isto é, o adjetivo e o advérbio. 5 Bibliografia ALONSO RAMOS, M. e S. Mantha (1996). “Description lexicographique des collocatifs dans un Dictionnaire explicatif et combinatoire: articles de dictionnaire autonomes?”, Coll. Actualité scientifique, A. Clas, P. Thoiron e H. Béjoint (dir.), Montreal, Aupelf-Uref, pp. 233-253. BÉJOINT, H. (1989). “À propos de la monosémie en terminologie”, Meta, vol. 34, n. 3, Les Presses de l’Université de Montréal, pp. 405-411. 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