LENDO ANCHIETA ATRAVÉS DO SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS Daiane da Fonseca Pereira 1 1 INTRODUÇÃO O Suplemento Literário de Minas Gerais foi idealizado pelo escritor Murilo Rubião, seu primeiro editor. Criado no ano de 1966 sob a responsabilidade da Imprensa Oficial, o Suplemento era editado semanalmente acompanhando o jornal oficial do Estado, o Minas Gerais, e assim manteve-se até 1992. Em 1993 sua publicação foi interrompida, mas retornou no ano seguinte como uma publicação independente do Minas Gerais, com periodicidade mensal e sob a responsabilidade da Secretaria de Estado da Cultura, agora intitulado apenas de Suplemento. A biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais em 1997 começou a desenvolver o projeto “Suplemento Literário 35 anos”. Este projeto foi implantado com o objetivo de maximizar a utilização do Suplemento Literário e assim facilitar a pesquisa e, sobretudo, garantir a preservação do acervo. Graças a esta iniciativa, todos os números do Suplemento encontram-se digitalizados e disponíveis a todos na internet·. O Suplemento Literário de Minas Gerais vem, ao longo de sua história, nos presenteando com imenso arcabouço crítico acerca não apenas da Literatura Brasileira, como também contempla outras manifestações culturais como teatro, cinema e artes plásticas. Segundo Renard Perez, em texto publicado em 1987, o Suplemento vem prestando um serviço dos mais valiosos de divulgação das Letras do Estado e do País – quer em suas edições semanais, quer nas especiais – essas 1 Aluna do Programa de Mestrado Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia. ISBN: 978-85-7395-211-7 dedicadas a personalidades e acontecimentos de nossa História Cultural e sobretudo mineirai. O acervo do Suplemento é, sem dúvida, fonte inesgotável de pesquisa para os estudiosos de Literatura. Nele podemos encontrar textos como os publicados por Leodegário A. de Azevedo Filho, importante crítico da obra de José de Anchieta. São os textos de Azevedo dedicados à análise da obra de Anchieta publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais que integram o corpus deste estudo. Deste modo, buscaremos analisar como José de Anchieta foi lido por Azevedo e, por conseguinte, pelos leitores do Suplemento. José de Anchieta nasceu em 1534, em Tenerife, nas Ilhas Canárias. Aos catorze anos chega a Coimbra onde continuará seus estudos e assimilará aspectos da vida portuguesa. O seu ingresso na Companhia de Jesus se dará aos 17 e, apenas dois anos depois, embarca para seu apostolado no Brasil onde permanecerá por frutíferos 44 anos, até falecer no dia 9 de junho de 1597, aos 63 anos, na cidade de Reritiba, atual Anchieta, no Espírito Santo. De acordo com Pedro Américo Maia, “no Brasil, Anchieta tornou-se catequista, dramaturgo, poeta, gramático e linguista. Foi nosso primeiro professor e escritor, além de indianista pioneiro e fundador da cidade de São Paulo” ii. Leodegário de Azevedo Filho, por sua vez, volta-se para a obra do dramaturgo buscando suas relações com Idade Média e com o Barroco. Em Anchieta, a Idade Média e o Barroco, ele dedica um capítulo para a análise dos autos. Trata-se de um verdadeiro especialista na análise da métrica anchietanaiii. Diferentemente da maioria dos estudiosos de Anchieta, ele considera o Auto da Pregação Universal sendo posterior ao Auto de São Lourenço, e não como o Auto inaugural do dramaturgo: A rigor, trata-se de uma adaptação do Auto de São Lourenço, certamente destinada à representação em outro local, talvez a alguma aldeia simples de pescadores, ainda não totalmente catequizada, por ocasião do Nataliv. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 134 Tal inferência de Azevedo Filho pode ser justificada pelo fato d o referido auto ser trilíngue (português, espanhol e tupi), mas com a predominância do tupi. Deste modo, Azevedo supõe ser destinado a um público não catequizado. Salientamos que este posicionamento parece ser exclusivo desse crítico e que, em nossos estudos, não encontramos nenhuma outra menção a este dado. De modo geral, os estudos de Azevedo Filho acerca da obra de José de Anchieta versam sobre sua relação com o Barroco, o Classicismo e a Idade Média. Trata-se de um verdadeiro especialista na análise da métrica anchietanav, tornando-se indispensável a sua leitura a todos que queiram debruçar-se sobre a obra de Anchieta. Leodegário de Azevedo Filho publicou quatro textos no Suplemento Literário em que analisou a obra de Anchieta. O primeiro deles foi publicado em 17 de fevereiro de 1973, intitulado Anchieta e as Origens da Literatura Brasileira em que afirma estar em Anchieta e Nóbrega a origem de nossa literatura; vale salientar que esta não é uma posição unanime. José Guilherme Merquior, por exemplo, defende que o primórdio da Literatura Brasileira está no Barroco vi. Mas autores como Sábato Magaldi, tal como Azevedo Filho, também situa Anchieta na tradição poética medieval: A lírica de Anchieta se mantém fiel à medida velha dos cancioneiros medievais, indiferente à revolução poética trazida pelo renascimento. Esta poesia mística tem símbolos simples e diretos da divindade (...) lirismo, portanto, essencialmente ingênuo, desprovido de qualquer maior fantasia, complexidade ou substância vii. Voltando ao texto de Azevedo Filho, observamos que logo de início chama a atenção para o fato de José de Anchieta utilizar várias línguas para compor sua obra – português, espanhol, latim e tupi – além de compor textos polilingues. Polilinguismo que, para ele é “uma das características das origens da Literatura Brasileira, a chamada concorrência linguística ou polilinguismo literário” viii. A concorrência linguística ocorre justamente porque no século XVI a língua portuguesa ainda não havia sido implantada como língua oficial e/ou nacional do Brasil, fato que só veio ocorrer no século XVIII. No entanto, temos que considerar o fato de Anchieta visar sempre ser entendido por todos, afinal, quanto mais propagasse a palavra de Deus, mais fiéis conseguiria para o rebanho do senhor. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 135 O crítico deixa claro que o primeiro estilo de época em nossa literatura não foi o Classicismo, mas o Pré-barroco, “na linha da estética jesuítica, como fruto artístico da Contra-Reforma” (idem). Nessa perspectiva, Pré-barroco seria o período em que o espírito medieval encontra-se em transição para o espírito barroco “sem qualquer contato ou sem receber qualquer influência das normas clássicas difundidas pelo Renascimento” (idem). Diz Azevedo Filho: Anchieta não veio para o Brasil, portanto, com a mentalidade do homem do Renascimento, mas com o sentimento do homem medieval, para quem a fé, através de rígida disciplina e vigilância, se consubstanciava ao lema: Ad majorem Dei gloriamix. Sobre o Humanismo Barroco no Brasil é o título do segundo texto que Azevedo Filho publica no Suplemento Literário. Trata-se de uma resposta à crítica que Américo da Costa Ramalho fez acerca do volume As poesias de Anchieta em português, organizada por Silvio Elia e o próprio Azevedo. A resenha em que Ramalho faz esta crítica está na revista portuguesa Humanitasx, a qual, infelizmente, não tivemos acesso. O argumento de Azevedo Filho assenta-se na ideia de que os jesuítas eram humanistas barrocos a serviço da Contra-Reforma, defendendo as recomendações de Trento, lutando para levar a religião ao seio do povo. Ao que parece, Ramalho vê Anchieta como um humanista da renascença. Ante a isso, afirma Azevedo Filho: Humanista foi Anchieta, mas humanista da Contra-Reforma e não humanista do Renascimento. Com efeito, o humanismo do Renascimento, centrado na força da razão e na condição terrena, sempre fez do homem o centro irradiador de todos os valores, movido pelo sentimento de autoconfiança e pelo poder de transformar o mundo. A fruição horaciana dos bens materiais (carpe diem), a busca da felicidade aqui mesmo e não na vida eterna, a fuga do pecado original, a tudo se opôs fortemente o humanismo da Contra-Reforma, que tinha as suas raízes deitadas na Idade Média e numa concepção teocêntrica do mundoxi. Assim Leodegário de Azevedo Filho retoma, de modo taxativo, a discussão do texto anterior, pois para ele Anchieta se aproxima bem mais da Idade Média que do Renascimento. Deste modo, lança um desafio: 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 136 Mas o que não há, em Anchieta, é qualquer influência de Horácio, como supõe o nosso crítico. Nesse sentido, desafio quem me mostre, em qualquer obra de Anchieta, a presença temática do carpe diem horacianoxii (idem). Antes de partimos para o texto seguinte, vale observar que aqui Azevedo defende a ligação de Anchieta ao Barroco e não ao que havia chamado anteriormente de Pré-barroco. Em 1987, o texto publicado foi A expressão barroca nos poemas eucarísticos de Anchieta, em que Azevedo Filho continua a defender a ausência de relação entre Anchieta e a estética renascentista. Partindo da análise dos chamados poemas eucarísticos – que são poemas escritos em latim – para reafirmar que a obra de José de Anchieta integra o Pré-barroco. Segundo o crítico, os Poemas Eucarísticos “já revelam aquela visão e aquele sentimento do mundo que o Barroco pleno do século seguinte iria desenvolver” xiii. O último dos textos é Uma literatura em quatro línguas e fora do Renascimento, publicado em novembro de 1989. Nele, Azevedo Filho discute a relação do Renascimento com José de Anchieta, por conseguinte, com o Brasil. “Uma das grandes propostas renascentistas era a de reabilitar o pensamento antigo no mundo moderno, estabelecendo relações de imediata continuidade entre um e outro” xiv . Afinal a Idade Média, era tida como época das trevas que escureceu os valores culturais da Antiguidade. No Renascimento, na ânsia de retorno à Antiguidade clássica, chegou-se ao extremo de ter na imitação do latim clássico uma regra. Essa apologia à língua foi, talvez, um dos motivos pelos quais Anchieta tenha sido considerado um humanista do Renascimento; afinal ele em muito utilizou a língua latina. Mas salienta Azevedo Filho, o que ocorre é que “confunde-se a língua com a literatura que nela se fazia” xv. Apesar de fazer uso do vocabulário pagão da poesia latina, com todos os seus mitônimos, Anchieta estava longe das preocupações renascentistas. Através da língua latina este jesuíta “exprimiu a sua total convicção na divindade do Cristo e no poder supremo de Deus, repelindo qualquer influência paganizante” (idem). 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 137 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS Não podemos considerar nenhum texto como uma peça isolada que reflete a individualidade de seu autor. Um texto é produzido para marcar uma posição e participar, de algum modo, dos debates que se instauram na sociedade. Isso não é diferente com o texto literário. Por isto a literatura é fonte para obtenção de dados acerca da cultura, dos costumes e da história de um povo. Foi partindo desse pressuposto que nos propusemos investigar as representações teatrais de José de Anchieta partindo dos textos de Leodegário A. de Azevedo Filho. Mas para melhor compreender os autos produzidos por Anchieta é importante termos em mente o terreno no qual eles germinaram. Anchieta é filho do século XVI, um período turbulento e de grandes transformações. Ele, como todo homem quinhentista vê-se confrontado com duas visões de mundo contrárias: a teocêntrica medieval e a humanística do Renascimento. José de Anchieta era padre da Companhia de Jesus. Este detalhe da formação religiosa do missionário é de extrema relevância, pois seus autos retratam os valores contra reformistas em voga na segunda metade do Quinhentos, os quais ele defendia. Não podemos desconsiderar tais informações, pois esses dados acerca de sua ideologia religiosa serão determinantes não apenas na escolha das temáticas abordadas em sua obra, como também para a escolha do gênero a ser utilizado e, até mesmo, de alguns aspectos formais. O que fica evidente para nós, leitores do Suplemento Literário de Minas Gerais é que José de Anchieta, segundo Leodegário de Azevedo Filho é o primeiro autor da Literatura Brasileira. A obra anchietana, apesar de escrita na segunda metade do século XVI, em tudo se distancia dos valores da renascença, pois sua obra reflete os preceitos da Contra-Reforma, que em tudo se aproxima da Idade Média. NOTAS ________________________ i PEREZ, 1987, p. 3. MAIA, 2004, p. 5. iii A esse respeito ver o livro Anchieta, a Idade Média e o Barroco, de Azevedo Filho. iv AZEVEDO FILHO, 1966, p. 234. v A esse respeito ver o livro Anchieta, a Idade Média e o Barroco, de Azevedo Filho. ii 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 138 vi Esse posicionamento é defendido em De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. vii MAGALDI, 1965, p. 9. viii AZEVEDO FILHO, 1978, p. 8. ix AZEVEDO FILHO, 1978, p. 8. x A revista Humanitas encontra-se digitalizada, disponível no site: http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/humanitas. Mas apenas os artigos podem ser acessados, com isso não tivemos a possibilidade de ler a resenha em questão. xi AZEVEDO FILHO, 1986, p. 8. xii A crítica de Ramalho parte de um soneto encontrado nos manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, supostamente atribuído a Anchieta. Neste soneto, o primeiro terceto é escrito em italiano, mas até hoje não se comprovou a proficiência de Anchieta nesta língua. xiii AZEVEDO FILHO, 1987, p. 4. xiv AZEVEDO FILHO, 1989, p. 12. xv AZEVEDO FILHO, 1989, p. 13. RESUMO Desde sua criação em 1966 por Murilo Rubião, o Suplemento Literário de Minas Gerais vem nos presenteando com imenso arcabouço crítico acerca não apenas da Literatura Brasileira, com o também contempla outras manifestações culturais como teatro, cinema e artes plásticas. O acervo do Suplemento é, sem dúvida, fonte inesgotável de pesquisa para os estudiosos de Literatura. Nele podemos encontrar textos como os publicados por Leodegário A. de Azevedo Filho, importante crítico da obra de José de Anchieta. São os textos de Azevedo dedicados à análise da obra de Anchieta publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais que integram o corpus deste estudo. Deste modo, buscaremos analisar como José de Anchieta foi lido por Azevedo e, por conseguinte, pelos leitores do Suplemento. PALAVRAS-CHAVE: Suplemento Literário. José de Anchieta. Literatura Brasileira ABSTRACT Since its creation in 1966 by Murilo Rubião, the Suplemento Literário of Minas Gerais has been presenting us with immense framework not only critical of Brazilian Literature, also deals with other cultural events like theater, film and visual arts. The quantity of the Suplemento is undoubtedly an inexhaustible source of research for scholars of literature. In it we find texts such as those published by Leodegário A. de Azevedo Filho, critic of the work of José de Anchieta. The texts are devoted to analysis of Azevedo's work published in Anchieta Suplemento Literário of Minas Gerais that comprise the corpus of this study. Thus, we try to analyze how José de Anchieta was read by Azevedo and therefore, by the readers of the Suplemento. KEYWORDS: Suplemento Literário. José de Anchieta. Brazilian Literature 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 139 REFERÊNCIAS AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Anchieta, a Idade Média e o Barroco. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 1966. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Anchieta e as Origens da Literatura Brasileira, Suplemento Literário, Belo Horizonte, v. 8, n. 338, p. 2-3, fev. 1973. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Sobre o Humanismo Barroco no Brasil. Suplemento Literário, Belo Horizonte, v. 21, n. 1028, p. 8-9, jun. 1986. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. A expressão barroca nos poemas eucarísticos de Anchieta. Suplemento Literário, Belo Horizonte, v. 22, n. 1074, p. 4-5, maio 1987. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Uma literatura em quatro línguas e fora do Renascimento. Suplemento Literário, Belo Horizonte, v. 23, n. 1133, p. 12-13, nov. 1989. MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1965. MAIA, Pedro Américo. José de Anchieta: o apóstolo do Brasil. Rio de Janeiro: Edições Loyola/CANAN, 2004. MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. PEREZ, Renard. A trajetória de um escritor. Suplemento Literário, Belo Horizonte, v. 22, n. 1060, p. 2-3, fev. 1987. 4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013. 140