HANSENÍASE AGENTE ETIOLÓGICO

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O último domingo de Janeiro foi declarado pela OMS, o Dia Mundial da Hanseníase.
Para melhor divulgar este assunto transcrevemos a entrevista feita pelo Dr. Dráuzio
Varella com o prof. Vitor Manoel Silva dos Reis.
ENTREVISTA
HANSENÍASE
Vitor Manoel Silva dos Reis é médico dermatologista do Departamento de
Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e membro
permanente do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
Existem referências à hanseníase em livros muito antigos, escritos na Índia e na China,
séculos antes de Cristo. Provavelmente foi o exército de Alexandre, o Grande, que
disseminou a doença pelo continente europeu, quando regressou das campanhas da
Ásia.
Na Bíblia, são descritos casos dessa doença infectocontagiosa que atacava
principalmente a pele, os olhos e os nervos. As deformidades que provocava eram
motivo para seus portadores serem excluídos do convívio social. Considerada castigo
dos deuses, os doentes eram recolhidos em leprosários, onde ficavam até morrer. Ou,
sem socorro nem tratamento, perambulavam pelas ruas com o rosto e o corpo
cobertos por andrajos, pedindo esmolas com uma latinha amarrada na ponta de uma
vara para esconder as mãos deformadas pela doença.
Ao longo dos tempos, a hanseníase foi uma moléstia estigmatizante. Na história da
humanidade, poucas doenças foram cobertas por manto de ignorância tão espesso. O
preconceito era tanto que o nome lepra (lepros em grego não quer dizer nada além do
que manchas na pele), utilizado no passado, assustava as pessoas e as mantinha a
distância dos pacientes.
Mais tarde, quando Hansen descobriu o bacilo que causava a doença, ela passou a ser
conhecida como hanseníase, uma doença como tantas outras provocadas por
bactérias e que, graças ao avanço da ciência, hoje tem cura.
AGENTE ETIOLÓGICO
Dráuzio – Em que época foram descritos os primeiros casos de hanseníase?
Vitor Manoel Silva dos Reis – Remontam aos primórdios da humanidade os relatos de
casos de lepra, nome pelo qual se conhecia a hanseníase e que, ainda hoje, é
empregado na língua inglesa. Essa doença sempre foi estigmatizante e seus portadores
eram sumariamente alijados da sociedade.
No início, qualquer doença dermatológica era chamada de lepra. Segundo experts no
assunto, a psoríase também era conhecida como lepra, e era tão estigmatizante
quanto a hanseníase por causa das lesões que produzia na pele. Só muito mais tarde,
foi possível estabelecer a diferença entre o que era realmente lepra e as outras
doenças de pele.
Dráuzio – Quando foi identificada a bactéria responsável pela hanseníase?
Vitor Manoel Silva dos Reis – A Mycobacterium leprae responsável pela hanseníase foi
descrita por Hansen (nome do cientista que deu origem à palavra hanseníase), em
1873. Essa bactéria tem importância histórica porque foi a primeira a ser reconhecida
como causadora de uma doença.
TRANSMISSÃO
Dráuzio – Como se dá a transmissão da hanseníase?
Vitor Manoel Silva dos Reis – A hanseníase é basicamente uma doença cutânea, mas
que pode afetar também os olhos, os nervos periféricos e, eventualmente, outros
órgãos. Embora se pudesse imaginar que a bactéria penetrasse através da pele, o
provável é que a transmissão se dê pela secreção e pelo ar que saem das vias aéreas
superiores e por gotículas de saliva.
Ao penetrar no organismo, a bactéria desencadeia uma luta com o sistema de defesa.
Dependendo do resultado dessa batalha, após um período de incubação prolongado,
que pode variar de seis meses a seis anos, o indivíduo poderá desenvolver uma
doença, a hanseníase, que apresenta várias formas clínicas e diversos tipos de
manifestações na pele.
Dráuzio – A transmissão da bactéria depende de um contato íntimo e prolongado.
Existe fundamento para a crença de que, num único contato, a pessoa possa adquirir o
bacilo e desenvolver a doença?
Vitor Manoel Silva dos Reis – O contato entre os portadores do bacilo e o candidato a
contrair a doença tem de ser realmente muito íntimo, porque o Mycobacterium leprae
é de baixa infectividade. Há casos descritos – que não é a regra, mas a exceção – de
cônjuges em que um é infectado pela bactéria e o outro nunca desenvolveram a
doença, assim como há casos de crianças menores de seis anos que entraram em
contato com a bactéria há pouco tempo e desenvolveram a enfermidade.
Na verdade, hanseníase não é uma doença muito contagiosa. Sua instalação e
desenvolvimento dependem da resposta do organismo invadido pela bactéria.
DOENÇA ESTIGMATIZANTE
Dráuzio – Você tem medo de ser infectado uma vez que cuida de doentes com
hanseníase há muitos anos, às vezes, em ambientes fechados, em ambulatórios mal
ventilados?
Vitor Manoel Silva dos Reis – Nestes últimos 30 anos em que tenho entrado em
contato com a hanseníase, conheci médicos que só trabalharam com esses pacientes e
nunca desenvolveram a doença. No entanto, existem casos descritos na literatura de
enfermeiras que se infectaram no contato com os doentes.
É preciso ressaltar que, mesmo pouco vulneráveis à infecção, os médicos não
escaparam do estigma que sempre cercou a hanseníase. Vi muitos serem ameaçados
de morte pelo paciente, quando faziam o diagnóstico da doença numa unidade básica
de saúde. Esse estigma indireto da hanseníase afastou muitos dermatologistas do
tratamento dessa doença. Felizmente, hoje, não é mais assim.
Como já disse, a manifestação da hanseníase depende muito do sistema imunológico
do indivíduo que entra em contato com a bactéria. Más condições nutricionais, sociais
e de higiene interferem na resposta e eficiência desse sistema. Por isso, a doença é
mais prevalente na população de baixa renda.
Dráuzio – Esse estigma fazia com que os doentes fossem internados nos tristemente
celebres leprosários do passado. Hoje, o tratamento é ambulatorial e o doente convive
com a família. Que cuidado as pessoas próximas devem ter em relação ao contágio?
Vitor Manoel Silva dos Reis – O primeiro cuidado é fazer com que os portadores de
hanseníase se tratem. O tratamento acaba com os bacilos e, consequentemente, com
a possibilidade de contágio.
FORMAS CLÍNICAS
Dráuzio – A bactéria penetra pelas vias respiratórias altas e cai na circulação. Quais
são os órgãos de sua preferência para instalar-se?
Vitor Manoel Silva dos Reis – A bactéria gosta de áreas frias do corpo, como lóbulo da
orelha, joelho e cotovelos, mas também se instala nos nervos periféricos e na pele. Na
fase indeterminada da doença, em que o organismo ainda não decidiu se vai permitir
que a bactéria provoque um quadro clínico mais
grave e mais contagioso ou menos grave e menos
contagioso (imagem 1), as lesões cutâneas têm
características muito especiais. São manchas de cor
pardas, às vezes pouco visíveis, semelhantes às
lesões provocadas por micoses de praia, como a
pitiríase versicolor, ou pelo vitiligo. No entanto, no
local
dessas
manchas,
ocorrem
algumas
características próprias da hanseníase nessa fase,
provocadas pelo comprometimento da enervação. A
primeira é a perda da sensibilidade térmica. A
segunda, a perda dos pelos na região e a terceira, a
ausência de transpiração, porque as glândulas
sudoríparas deixam de funcionar normalmente por
causa da alteração nervosa.
Na forma tuberculoide da doença, os nervos são
afetados mais intensamente ou em troncos maiores
e há alteração da musculatura esquelética,
principalmente a das mãos que apresentam
cavidades na região da eminência tênar, isto é, entre o dedo polegar e o indicador
(imagem 2). Mesmo assim, essas alterações ainda são sinal de que o organismo está
reagindo para impedir que a bactéria provoque estragos maiores. O dano é
basicamente neural, porque essa forma de hanseníase afeta pouco a pele e muito os
nervos.
Na (imagem 3), podemos ver uma lesão
tuberculoide, aparentemente inocente, com
um eritema vago no centro e para a qual
devemos chamar a atenção dos médicos das
unidades básicas de saúde e dos
dermatologistas que trabalham com esses
doentes.
A forma mais agressiva da hanseníase é a
virchowiana. Nela, cargas altas do bacilo têm
passagem livre por todos os tecidos, porque o
sistema imunológico está deprimido. As lesões
são muitas e de aspecto variado. A orelha é
afetada por vários nódulos, surgem edemas
de sobrancelha e crescimento exagerado do
cabelo. Esses sinais somados compõem a face
leonina do virchowiano.
Entre a forma tuberculoide e a virchowiana estão as intermediárias, chamadas de
borderlines ou dimorfas, que se caracterizam por lesões com limite muito nítido na
área central e pouco nítido na periferia. São lesões em fóvea com a aparência de um
queijo cheio de furos (imagem 4).
TRATAMENTO
Dráuzio – Quando não havia tratamento, como evoluía a doença?
Vitor Manoel Silva dos Reis – A hanseníase provocava muitas mutilações, o que explica
o estigma que acompanhou a doença. Na falta de tratamento, se o organismo permitir
que o bacilo se espalhe pelo corpo, ele provoca uma doença que afeta a pele, os olhos,
os nervos e os órgãos internos. Se reagir com muita agressividade, o bacilo pode
provocar feridas na pele e lesões neurais que resultam nas mãos em garra ou na perda
dos dedos, das mãos e de outras partes do corpo. Além disso, o comprometimento da
sensibilidade impede que o paciente sinta dor quando exposto a ferimentos que
servem de porta de entrada para infecções.
Felizmente, de vinte anos para cá, existe um antibiótico chamado rifampicina que
mata 90% dos bacilos presentes no organismo com uma dose única. Essa droga
também é usada no tratamento da tuberculose, porque as bactérias das duas doenças
são parentes; ambas são mico bactérias.
Dráuzio – Isso quer dizer que o tratamento com antibióticos mudou o prognóstico
estigmatizante da hanseníase.
Vitor Manoel Silva dos Reis – Hoje, podemos dizer que a hanseníase tem cura. Às
vezes, porém, os doentes ficam sem diagnóstico, notadamente nas áreas em que o
acesso ao serviço de saúde é difícil, ou porque não procuram os médicos. Por isso, é
importante localizá-los no interior dos estados brasileiros, uma vez que o Brasil ainda é
o campeão mundial de prevalência de hanseníase no mundo.
Dráuzio – Como é conduzido o tratamento com a rifampicina?
Vitor Manoel Silva dos Reis – Vamos lembrar que existem quatro formas clínicas de
hanseníase: indeterminada, borderline ou dimorfa, tuberculoide e virchowiana.
Entretanto, para efeito terapêutico, a Organização Mundial de Saúde considera o fato
de haver ou não bacilos nas lesões e divide a doença em dois tipos, o paucibacilar e o
multibacilar, com esquemas de tratamento diferentes, embora sempre baseados
numa dose mensal de 600mg de rifampicina, dose vigiada na unidade básica de saúde.
Para os indivíduos com poucos bacilos (paucibacilares), o tratamento dura seis meses.
Para aqueles que têm muitos bacilos (multibacilares), dura um ano e, nos dois casos, a
dose de rimpaficina é aplicada na frente do médico ou do enfermeiro. Em seguida, os
paucibacilares são dispensados com a prescrição de 100mg de sulfona de DDS para
tomar todos os dias em casa.
Dráuzio – Qual é o esquema de tratamento para os pacientes multibacilares?
Vitor Manoel Silva dos Reis – Para os multibacilares, o tratamento é o mesmo do
indicado para os paucibacilares, acrescido de uma dose diária de 50mg de clofazimina
e uma dose vigiada de 300mg desse medicamento junto com a rimpaficina.
Dráuzio – Apesar de uma dose única de rimpaficina matar 90% dos bacilos, há
necessidade de incluir outros medicamentos?
Vitor Manoel Silva dos Reis – Como os quadros de resistência bacilar estavam
aumentando quando o tratamento era feito apenas com DDS ou sulfona, a
Organização Mundial de Saúde defende que usar uma droga só é muito perigoso. Por
isso, recomenda que sejam usadas pelo menos duas drogas para evitar que o bacilo
adquira a resistência.
Dráuzio – O esquema de tratamento é prolongado. Isso não dificulta a adesão dos
pacientes?
Vitor Manoel Silva dos Reis – A Organização Mundial de Saúde orienta todas as equipes
encarregadas do tratamento de um doente com hanseníase a irem procurá-lo se por
acaso falhar no dia da aplicação da dose vigiada. Essa é a maneira de garantir que não
é mais portador da infecção e ele deixa de ser computado nos índices de prevalência
da doença porque está curado.
Dráuzio – Quanto tempo depois de iniciado o tratamento o portador de hanseníase
deixa de transmitir a doença para os contactantes?
Vitor Manoel Silva dos Reis – Teoricamente, a partir do momento em que se torna
portador de poucos bacilos, o indivíduo não oferece tanto risco de transmissão, mas
isso é difícil de aquilatar porque não sabemos exatamente como se dá a transmissão,
apenas imaginamos que seja através das secreções das vias aéreas superiores.
Dráuzio – Enquanto isso não acontece, que cuidados a família deve tomar em casa?
Vitor Manoel Silva dos Reis – Como o tratamento é quase uma garantia de que o
indivíduo não transmitirá mais a doença, porque 90% dos bacilos desaparecem com a
primeira dose do antibiótico, não há necessidade de campanhas para evitar o contato
com os doentes. Evidentemente, quando é feito o diagnóstico, as pessoas da família
são chamadas à unidade básica de saúde (UBS) para serem examinadas por um
dermatologista e são submetidas não só a uma avaliação clínica, mas a uma
baciloscopia. O material pode ser colhido na orelha, nos joelhos ou nas lesões, se elas
existirem. Também podem ser indicados exames anatomopatológicos (biópsia), se
necessário.
PREVALÊNCIA NO BRASIL
Dráuzio – Você disse que o Brasil é campeão na prevalência de hanseníase. Há chance
de o país sair dessa condição triste e humilhante?
Vitor Manoel Silva dos Reis – A multidrogaterapia, ou seja, o tratamento baseado em,
no mínimo, duas drogas, foi implantada em 1985. De lá para cá, a prevalência da
doença baixou de 16 pacientes por 10.000 habitantes para 4,6 doentes por 10.000.
Na verdade, depois disso, só sobraram dez países com prevalência da doença maior do
que um para dez mil habitantes: Brasil, Índia e oito países da África, entre eles
Moçambique. A Organização Mundial de Saúde está tentando concentrar os esforços
para baixar essa prevalência para um habitante por 10.000. Talvez o Brasil consiga,
mas não tenho dados suficientes para dizer como caminha a situação nesse sentido.
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