PDF Português - Revista Adolescência e Saúde

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RELATO DE CASO
Leila Maas¹
Márcia Takey²
Tais Estrela³
Maria Teresa Silveira4
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Neurorretinite estrelada idiopática de
Leber: relato de caso em adolescente
Leber’s idiopathic stellate neuroretinitis: case report in adolescent
> RESUMO
Objetivo: descrever um caso de neurorretinite estrelada idiopática de Leber, uma doença rara, de acometimento ocular,
em adolescente atendido em nosso ambulatório. Descrição do caso: Adolescente de 16 anos, portador de deficiência
de glicose 6-fosfato desidrogenase, com diminuição da acuidade visual unilateral, indolor e progressiva há dois meses,
edema de disco óptico e peripapilar e estrela macular ao exame fundoscópico. diante dos achados negativos de exames
laboratoriais, radiológicos e sorologias, o diagnóstico de exclusão foi de neurorretinite estrelada idiopática de Leber.
Comentários: A neurorretinite estrelada idiopática de Leber (LiSN) é uma entidade clínica de difícil diagnóstico. Várias
doenças tratáveis podem ter aspecto semelhante ao da LiSN clássico e o diagnóstico preciso pode resultar em tratamento
adequado e reabilitação visual.
> PALAVRAS-CHAVE
Adolescente, cegueira, nervo óptico.
> ABSTRACT
Objective: Evaluate a case of Leber’s idiopathic stellate neuroretinitis, a rare disease of ocular involvement in adolescent
admitted to our clinic unit. Case description: A 16-year old adolescent, the bearer of deficiency of glucose 6-phosphate
dehydrogenase, with decrease of unilateral visual acuity, painless and progressive two months ago, optical disc edema and
peripapillary and macular star by funduscopic examination. given the negative findings of laboratory tests, radiological
and serology the diagnosis of exclusion was Leber’s idiopathic stellate neuroretinitis. Comments: Leber’s idiopathic stellate
neuroretinitis (LiSN) is a clinical entity of difficult diagnosis. Several treatable diseases may have similar appearance to the
classic LiSN, and the accurate diagnosis may result in appropriate treatment and visual rehabilitation.
> KEY WORDS
Adolescent, blindness, optic nerve.
Pediatra e Médica de Adolescentes do Ambulatório do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente – NESA/ UERJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1
²Pediatra e Médica de Adolescentes do Ambulatório do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente – NESA/ UERJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
³Médica Residente de Oftalmologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
4
Médica responsável pelo Setor de Uveítes e AIDS da Disciplina de Oftalmologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ).
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Leila Maas ([email protected]) - Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/UERJ) – Pavilhão Floriano Stoffel Boulevard 28 de setembro, 109, Fundos, Vila isabel – Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 20551-030.
Recebido em 04/11/2012 – Aprovado em 14/10/2013
Adolescência & Saúde
Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 71-75, out/dez 2013
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NEURoRRETiNiTE ESTRELAdA idioPÁTiCA dE LEBER:
RELATo dE CASo EM AdoLESCENTE
> INTRODUÇÃO
A neurorretinite estrelada idiopática de Leber
(LiSN) é uma entidade clínica relativamente rara.
descrito por Theodore Leber, em 1916, esta
síndrome é caracterizada por perda visual unilateral, edema do disco óptico e peripapilar, padrão
estrelado de depósitos exsudativos na mácula, resolução espontânea e etiologia desconhecida1,2.
geralmente acomete pacientes jovens, de 9-55
anos, sem predileção por sexo. Posteriormente,
gass, em 1977, denominou este quadro de neurorretinite enfatizando a natureza inflamatória do
processo, caracterizada por inflamação da retina
e do nervo óptico. dreyer et al. sugeriram que um
grupo de agentes infecciosos, incluindo a bactéria que causa a doença da arranhadura do gato,
são responsáveis por alguns casos de pacientes
que exibem as características clínicas descritas
por Leber. Muitas condições podem produzir um
quadro clínico semelhante e reservam o termo de
LiSN a um grupo distinto de pacientes com edema de disco óptico, estrela macular e sem outras
manifestações oculares ou de doença sistêmica3,4.
dois terços dos pacientes têm um pródromo semelhante a uma infecção viral. Várias
doenças tratáveis podem ter aspecto semelhante ao da LiSN clássica, sendo assim, o diagnóstico preciso pode resultar em tratamento adequado e reabilitação visual5.
os distúrbios mais comuns que podem ser
confundidos com LiSN são a doença da arranhadura do gato (Bartonella henselae) e doença vascular. A tabela 1 mostra o diagnóstico diferencial
de causas de edema de disco óptico e estrela
macular associada 1.
Maas et al.
Tabela 1. diagnóstico diferencial das causas de
edema de disco óptico e estrela macular associada.
idiopática
 Sífilis
 doença da
arranhadura do gato
Bacteriana
 doença de Lyme
 Tuberculose
 Actinomicose
 Leptospirose
 influenza
 Sarampo
 Caxumba
Viral
 Varicela
 Mononucleose
 Herpes simples
 Hepatite B
Fungos
 Coccidioidomicose
 Histoplasma
 Toxocaríase
Nematódeo
 Neurorretinite
subaguda unilateral
difusa
infecciosa
 Leptospirose
Protozoário
 giardíase
 Toxoplasma gondii
Clamídia
Psitacose
Papiledema
Trauma
 Neuropatia óptica
isquêmica anterior
 oclusão venosa
Vascular
 Hipertensão arterial
sistêmica
 Retinopatia diabética
> DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente do sexo masculino, 16 anos, procurou atendimento em nosso ambulatório de
adolescentes com história de baixa acuidade visual progressiva em olho direito há dois meses,
trazendo uma angiografia fluoresceínica compatível com coroidite de Jaensen (figura 1). Nega
outros sintomas associados.
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 Papiloflebite
 doença de Beçet
 Sarcoidose
Miscelânea
 Atrofia hemi-facial
 Angioma justapapilar
 Uveíte não específica
Adaptado de Casson RJ, o'day J, Crompton JL. Leber's idiopathic
stellate neuroretinitis: differential diagnosis and approach to
management. Aust N Z J Ophthalmol 1999;27:65-9
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Maas et al.
NEURoRRETiNiTE ESTRELAdA idioPÁTiCA dE LEBER:
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Figura 1. Angiografia fluoresceínica de olho direito
Na história patológica pregressa refere
ser portador de anemia hemolítica (deficiência
de g6Pd), episódio de acidente vascular encefálico há 15 anos e diversas transfusões sanguíneas. Nega contato recente com gatos. À ectoscopia apresentava anisocoria e o restante do
exame físico sem anormalidades.
Encaminhado ao ambulatório de oftalmologia, onde identificou-se, inicialmente, ao exame oftalmológico:
 Acuidade visual sem correção: od (olho direito): PL (percepção luminosa) oE (olho
esquerdo): 20/40; acuidade visual com correção: od: PL oE: 20/25; Refração: oE: - 1,75
– 0,75 a 136°.
 Biomicroscopia de olho direito (od): Pálpebras, sistema lacrimal, conjuntiva e esclera
sem alterações, córnea transparente, câmara
anterior ampla, humor aquoso translúcido,
ausência de reação celular, iris trófica, reflexo
fotomotor direto ausente e consensual preservado. olho esquerdo (oE): ausência de reflexo pupilar consensual.
 Pressão intraocular: od e oE: 14 mmHg
 Realizado retinografia de od que revelou disco óptico pálido, com bordos mal definidos,
vasos com embainhamento vascular, exsudatos duros peridisco e formação de estrela
macular (Figura 2). oE dentro dos padrões de
normalidade.
Adolescência & Saúde
Figura 2. Retinografia de olho direito: disco óptico
pálido, com bordos mal definidos, vasos com
embainhamento vascular, exsudatos duros peridisco
e formação de estrela macular.
diante do exame oftalmológico e de imagens, duas hipóteses foram formuladas: toxoplasmose e doença da arranhadura do gato
(Bartonela henselae). Por ser portador de anemia
hemolítica por deficiência de g6Pd foi iniciado
tratamento com clindamicina 300 mg 4x/dia
por 45 dias associada a doxiciclina 100 mg 2x/
dia por 14 dias, prednisona 40 mg/dia com retirada semanal, Mydriacil® 1 gota em od 1x/dia;
Maxidex® 1 gota em od 8/8 horas.
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Com o propósito de elucidar o diagnóstico da lesão oftalmológica, os resultados dos
exames solicitados foram: hematócrito: 38,3%;
hemoglobina: 12.6 g/dl; leucócitos:10.800, bastões: 8%, eosinófilos: 0%, VHS: 1 mm/h, enzima conversora de angiotensina: 19 U/L (VR:
35-90 U/L), FAN: título < 80 (VR < 80), PPd: não
reator, proteína C reativa: não reagente, sorologias para anti-HiV, citomegalovírus, vírus da hepatite B e C, toxoplasmose, rubéola, sífilis, esporotricose, paracoccidioidomicose, criptococose,
histoplasmose, aspergilose, toxocara, Bartonella
henselae e Bartonella quintana, vírus Epstein Barr,
Anti- HTLV 1 e 2, herpes vírus 1 e 2: não reagentes. Radiografia de tórax e ressonância magnética de crânio, normais. Com os resultados de
exames laboratoriais, sorologias e de imagem
sem alterações, foi determinado o diagnóstico
de neurorretinite estrelada idiopática de Leber.
desde então é acompanhado na clínica de
adolescentes, setores de hematologia e oftalmologia, com o objetivo de tratar a lesão ocular e
reduzir seu impacto psicossocial sobre possibilidade de perda total da visão.
> DISCUSSÃO
o diagnóstico diferencial da neurorretinite
estrelada idiopática de Leber inclui a retinopatia
hipertensiva, a neuropatia óptica diabética, e outras condições que causam a neurite óptica1,5,6.
Embora a gravidade clínica possa variar, todos os
pacientes apresentam estrela macular e edema
do disco óptico, geralmente associada a exsudatos peripapilares da retina a fundoscopia. Perda
da acuidade visual, discromatopsia, defeito pupilar aferente e anormalidades no campo visual são
relatados. o papiledema ocorre normalmente
uma semana antes de aparecer a estrela macular,
e esta aparece coincidindo com a resolução dos
exsudatos peripapilares. Há células no vítreo em
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Maas et al.
90% dos casos, enquanto que o envolvimento
da câmara anterior é raro. A análise histológica
dessa maculopatia exsudativa revelou acúmulo
de lipídios por parte da microglia na camada plexiforme externa da retina5. outra característica
importante é a tendência para resolução espontânea. o edema do disco óptico começa a diminuir em 2 semanas e, geralmente, desaparece
completamente no período de 8-12 semanas. A
estrela macular regride em menos de 4 semanas,
mas pode ser evidente durante um ano5,7.
Na suspeita clínica de neurorretinite torna-se necessário solicitar: hemograma, VHS, PCR,
radiografia de tórax e tomografia computadorizada de crânio, FAN, teste cutâneo de Mantoux, enzima conversora de angiotensina sérica
e sorologias para toxoplasma, Bartonella, HiV,
hepatites B e C, citomegalovírus, herpes simples, vírus Epstein Barr, sífilis, Borrelia, clamídia,
histoplasmose, coccidioidomicose e toxocara5,8,9.
A doença da arranhadura do gato é a causa
mais comum de neurorretinite infecciosa. A ciprofloxacina oral é uma opção de tratamento e
apresenta bons resultados 8,10.
Na maioria dos casos, o acometimento
ocular é unilateral, mas casos bilaterais têm sido
descritos6.
o caráter da doença, o tratamento necessário e o longo período de acompanhamento
causam certa ansiedade por parte do paciente e
familiares. o caso em foco reforça a importância
da integração de uma equipe multidisciplinar,
buscando uma rápida resolução, com realização
de exames de alta complexidade e tecnologia,
priorizando as situações que necessitam de agilidade diagnóstica e terapêutica.
No momento, o adolescente está sem uso
de medicamentos, apresentando discreta melhora da acuidade visual, demonstrando maior
compreensão sobre a doença e adotando uma
postura mais otimista.
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> REFERÊNCIAS
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