Resumo Aula-tema 09:A miscigenação étnico-racial e sua influência na construção social do Brasil Introdução No Brasil, a questão étnico-racial tem estado em pauta, nos últimos anos, em debates sobre políticas afirmativas, tais como as cotas para universitários e as ações de combate ao preconceito racial. A primeira legislação específica de combate ao racismo tem, contudo, mais de cinquenta anos: trata-se da lei Afonso Arinos, de 1951, promulgada durante o governo Vargas, que tornava o racismo uma contravenção. Atualmente, a questão é mais amplamente regulamentada pelo Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, que trata ainda de políticas de educação, saúde, cultura, esporte, lazer e trabalho. O crime de racismo é, hoje em dia, especificado também para as relações trabalhistas, sendo proibido o tratamento diferenciado no ambiente de trabalho e, em específico, o uso da raça ou da cor como critérios para justificar diferenças salariais ou para o processo de recrutamento. Apesar de o racismo ser crime, a desigualdade permanece na sociedade brasileira, combinando os aspectos étnicos (como cor ou raça) aos aspectos sociais relativos à divisão de classes. As estatísticas também demonstram como a desigualdade persiste na prática. De acordo com o Censo de 2010, por exemplo, os salários dos brancos na região Sudeste correspondiam a quase o dobro dos salários de pretos e pardos (conforme a terminologia usada pelo IBGE). Essa desigualdade aparece também nos índices de analfabetismo mais altos entre pretos e pardos e no número de inscritos em cursos universitários, maior entre os brancos. Ao longo do século XX, contudo, o Brasil foi frequentemente descrito como o país da democracia racial, no qual a miscigenação entre índios, brancos e negros teria produzido uma convivência pacífica entre todos, independentemente de raça ou cor. Então, como o país da democracia racial apresenta estatísticas tão desiguais em pleno século XXI? Para entendermos melhor as raízes dessa questão, é preciso retomar o debate sociológico, da primeira metade do século XX, que tem como seu maior © DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem o prévio consentimento, por escrito, da Anhanguera Educacional. expoente, no Brasil, Gilberto Freyre. Discutiremos, então, as raízes do mito da democracia racial e as questões mais atuais deste debate, como a complexa definição de raça ou cor no Brasil. A ideia de democracia racial a partir de Gilberto Freyre Em 1933, é publicado o livro Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. A obra, que se tornaria um dos grandes clássicos da sociologia brasileira, rebatia as teorias, até então dominantes, que apregoavam a inferioridade do mestiço e justificavam cientificamente o racismo. Freyre, que estudou nos Estados Unidos com um dos precursores da antropologia americana moderna, Franz Boas, teceu sua interpretação a partir da perspectiva culturalista, que refutava o determinismo biológico. Desse modo, na obra de Gilberto Freyre, a cultura brasileira é tratada como uma totalidade na qual se integram os aspectos econômicos, o meio ambiente, a cozinha, as religiões, os rituais e os comportamentos humanos. No Brasil, teria se dado, segundo ele, uma colonização marcada pela miscigenação de portugueses, índios e africanos, havendo uma interpenetração dessas três culturas, que teve como resultado uma formação nacional muito singular. Gilberto Freyre se contrapõe aos argumentos de muitos de seus contemporâneos que consideravam a mestiçagem como causa para a miséria e para a indolência do povo brasileiro. Freyre destacará, ao contrário, que muitos dos problemas seriam provenientes do próprio sistema escravocrata, marcado pela violência e pelo sadismo contra os negros. A abordagem do autor sobre a formação nacional teria implicações não apenas no plano teórico, uma vez que rebatia as justificativas científicas daquela época para o racismo, mas teria também consequências no plano político. Neste sentido, a teoria fornecia uma nova autoimagem para os brasileiros, fundada numa valorização da mestiçagem. Mais que isso, essa afirmação de um Brasil mestiço fundamentava a ideia de uma identidade nacional coesa, que seria a base de uma comunidade política bem integrada. Desse modo, o sentimento de pertencimento nacional assumia o primeiro plano, invisibilizando as diferenças, fossem elas étnicas, religiosas ou de idioma. Essa imagem da democracia racial, que passa a vigorar com grande força, mostrava o Brasil como uma sociedade inclusiva, capaz de integrar de modo © DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem o prévio consentimento, por escrito, da Anhanguera Educacional. harmonioso as diferenças. Esse mito foi, ainda, reforçado pelo fato de não ter havido no país o racismo institucionalizado, tal como houve nos Estados Unidos ou na África do Sul, por exemplo. Como consequência, durante muitas décadas, o conceito de raça foi banido dos debates públicos. Em termos teóricos, o efeito positivo da adesão à ideologia da mestiçagem era que ela punha fim às justificativas científicas para o racismo; por outro lado, contudo, isso não alterava o fato de que o preconceito racial permanecia na vida social brasileira. No início dos anos de 1950, após o fim da Segunda Guerra Mundial e ainda sob o enorme impacto do genocídio nazista, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) apoiou a realização de uma série de pesquisas sobre questões raciais. Depois das atrocidades cometidas na Alemanha em nome da superioridade racial, o objetivo da UNESCO era tomar o Brasil como exemplo privilegiado, porque sua experiência em termos de miscigenação e assimilação era vista como um caso bem sucedido. Você sabia que embora o termo democracia racial seja, em geral, associado à obra de Gilberto Freyre, ele foi, na verdade, cunhado pelo médico e antropólogo Arthur Ramos, um dos idealizadores do Projeto Unesco? As pesquisas foram realizadas no Nordeste e no Sudeste do país por um conjunto de cientistas sociais, principalmente antropólogos e sociólogos, que chegariam aos mais variados resultados. As conclusões desses estudos convergiam, contudo, para a ideia de que a democracia racial brasileira era apenas um mito. Os dados sistematizados mostravam a correlação entre raça ou cor e diferenças socioeconômicas apontando para a existência do preconceito e da discriminação racial no Brasil. Se, no âmbito acadêmico, a ideia de democracia racial começa a ser posta em xeque nas décadas de 1950 e 1960, na sociedade, de um modo mais amplo, essa mudança se intensifica especialmente a partir da década de 1970, sendo tributária dos movimentos sociais, entre os quais o próprio movimento negro, mas também o movimento feminista e indígena. A partir de então, tanto os intelectuais como os movimentos sociais passam a se referir à questão como o “mito da democracia racial brasileira”. O movimento negro passa a reivindicar uma identidade baseada na autoconsciência das diferenças raciais. Desse modo, a categoria negro é assumida em substituição a termos como preto, pardo ou mulato. Atualmente, nas discussões acadêmicas, a ideia de democracia racial tornou© DIREITOS RESERVADOS se um objeto de estudo mais do que um fator explicativo da realidade, no sentido de que a análise da construção desse mito é importante para se compreender a formação nacional e a particularidade do modo como a questão racial foi inserida nesse debate. Jáo preconceito velado dos brasileiros passa a ser analisado em termos de um desacordo entre discurso e prática, sendo estudado em sua especificidade como um “racismo à brasileira”, conforme a expressão criada pelo antropólogo Roberto DaMatta. Agora que você já conhece um pouco das raízes históricas do mito da democracia racial no Brasil, iremos, posteriormente, discutir as questões mais atuais desse debate, como as políticas de ação afirmativa. O objetivo dessas políticas é diminuir as desigualdades, pois, conforme vimos no início do texto, o direito à cidadania é igualitário, independentemente de questões étnicas. Na prática, contudo, a desigualdade tem persistido, sendo facilmente demonstrável pelas diferenças de renda, educação e por práticas cotidianas discriminatórias. Discutiremos, então, as políticas de ação afirmativa e as controvérsias que elas têm gerado em virtude da dificuldade em se definir quem têm direito a elas no Brasil. Conceitos Fundamentais Cor. No contexto do debate étnico-racial, o termo cor refere-se à cor da pele, sendo usado como uma imagem figurada da raça. Por exemplo, a cor preta é usada na classificação do IBGE como a imagem que representa a raça negra. Étnico. Relativo a um grupo associado a uma cultura, idioma ou costumes comuns. Antropologicamente, um grupo étnico é também definido como uma organização social em que os próprios membros reconhecem-se mutuamente como parte daquele grupo, dando-se prioridade à autodefinição mais do que às atribuições externas. Fenótipo. Manifestação visível de características genéticas, como, por exemplo, cor da pele ou formato do nariz. © DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem o prévio consentimento, por escrito, da Anhanguera Educacional. Genocídio. Extermínio de um grupo étnico ou racial. Raça. Do ponto de vista antropológico, raça não se refere a uma diferença biológica, mas a uma naturalização das diferenças sociais. Historicamente, o termo já foi usado para agregar indivíduos com base em idioma, costumes, fenótipo ou mesmo religião. Ao longo deste texto, usamos este e outros termos a ele associados (como cor, étnico, branco, preto, pardo, índio) em itálico para destacar a controvérsia em torno de seu significado. Racismo. Preconceito baseado na hierarquização das pessoas em termos de raça ou etnia. É também uma forma de explicar diferenças sociais e culturais a partir de diferenças tomadas como naturais. Referências GOMES, Mércio Pereira. Antropologia. Ciência do homem. Filosofia da cultura. São Paulo: Contexto, 2010. GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Democracia racial:o ideal, o pacto e o mito. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 61, p. 147-162, 2001 SANTIAGO, Gabriel Lomba. Três leituras básicas para entender a cultura brasileira. Campinas: Editora Alínea, 2001. MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 41, p. 141-158, 1999. © DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem o prévio consentimento, por escrito, da Anhanguera Educacional.