1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza1 O SENTIDO DA VIDA HUMANA SEGUNDO A FILOSOFIA DA AÇÃO 1. BLONDEL E A FILOSOFIA DA AÇÃO ―A existência possui um sentido?‖ A esta pergunta irremediavelmente somos levados ao submeter à crítica o nihilismo. Abundantemente, como já tivemos oportunidade de observar no capítulo anterior, Schopenhauer e o próprio Nietzsche pôrla-se-ão. No entanto, todos os dois filósofos alemães, sem justificativas críticas suficientemente fundadas, são vítimas claramente de um pressuposto ―cultural‖ — em relação a um tema encontrado necessariamente no centro de uma tal questão —, que se expressa no seu ateísmo ou na assunção a-priorística pela negativa à pergunta: ―a existência possui um sentido?‖ O nosso presente texto, como anteriormente já precisamos, assumirá a produção filosófica blondeliana, seja por suas características críticas, seja por sua atualidade em relação ao diálogo com o âmbito cultural contemporâneo, especialmente com o nihilismo. Ainda uma vez, nunca é desnecessário afirmar a complexidade de tais assuntos. Complexa se mostra uma análise satisfatória do nihilismo e complexa mostrase um estudo profundo da filosofia de Maurice Blondel. Reconhecidas estas observações se nos justifica as limitações teóricas que fizemos em relação ao nihilismo e se nos apresentam como necessárias algumas outras limitações. Fundamentalmente, no estudo ao qual nos devemos empenhar, limitar-nosemos especialmente à obra central do blondelianismo, a L’Action, especialmente em seu famoso último capítulo: Le lien de la connaissance et de L’action dans l’Être. 1 O Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza é mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, mestre em bioética pela Universidade Pontifícia Regina Apostolorum de Roma e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Naturalmente, tal não excluirá o recurso a outros capítulos de tal obra, em especial à sua introdução e aos capítulo que formam a sua segunda parte, dentre os quais Schopenhauer será um autor central. Ademais, nos ateremos ao estudo do ensaio blondeliniano de 1900: Princípio elementar de uma lógica da vida moral, o qual se mostra em perfeita continuidade com a L’Action e com os debates contemporâneos sobre o nihilismo. De fato, a crítica reconhece o desconhecimento — ou ao menos a desatenção — de Blondel quando da produção da L’Action da obra filosófica de Nietzsche,2 no entanto, é essencialmente por via de Schopenhauer que a atualidade da L’Action se estenderá à toda a teorização nihilista. O elo de ligação entre estes três autores se deve sobretudo à pergunta fundamental, com a qual introduzimos este presente capítulo, que estes identificaram como sendo o centro de toda a filosofia. Blondel e Nietzsche não concordarão com a resposta pessimista de Schopenhauer. Ademais, o método empregado ao fim do qual se chegaria a uma resposta, mostra-se, como veremos, radicalmente diverso nos três casos. Procurando a partir de agora o enquadramento do estudo do último capítulo da L’Action, para por em ressalto a sua atualidade contemporânea, devemos inicialmente justificar a força da crítica filosófica blondeliniana e para tanto nos empenhamos em uma essencial exposição de seus pontos centrais. 1.1 POR UMA CRÍTICA DA VIDA E UMA CIÊNCIA DA PRÁTICA 2 Blondel somente tratará explicitamente de Nietzsche alguns anos depois da publicação da L’Action: 1. em um curso proposto para o ano letivo de 1915-1916, cujo título parafraseia a terceira inatual nietzscheana: «Nietzsche educador de toda uma geração: a vontade de potência»; 2. em uma carta datada de 1936 e direcionada à Sociedade dos estudos filosóficos de Aix-Masseille; 3. por fim, nas obras da maturidade, por meio de numerosos acenos, entretanto, de forma episódicas. (Cf. D. D’ALESSIO, Ecce Homo. Il dramma dell’umanesimo cristiano, 339). 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Blondel viveu e pensou sua filosofia ininterruptamente submetendo-se à dinâmica do rigor crítico, sabendo que tal tensão seria a garantia da receptividade de sua obra, paradoxalmente atacada pelo pensamento laico e pelo pensamento religioso de então, em uma época em que a religião enfrentava um profundo processo de convulsão, em especial ao interno do catolicismo. Blondel assumira desde os primeiros anos de seus estudos o desafio de alcançar claridade em relação aos problemas fundamentais da existência. Deveria existir um meio de fundar um discurso que pudesse ser irremediavelmente necessário, incontestável para todo e qualquer homem, seguindo de perto, neste ponto particular, as pretensões da modernidade. O subtítulo da L’Action — Ensaio de uma crítica da vida e de uma ciência da prática — testemunha o caráter e a amplitude do projeto que tal obra se propôs a realizar: desvelar o que é ao mesmo tempo necessariamente e voluntariamente implícito na sucessão de atos que compõe a vida de todo homem, para a constituição de uma ciência da prática, por meio de uma crítica implacável. Todo o conteúdo de tal obra será o desenvolvimento de tal projeto, presente aqui como uma semente que anseia por iniciar o seu crescimento. Não desprezando a herança do lógos ocidental, em especial por meio da valorização do patrimônio filosófico moderno, o filósofo de Aix-en-Provence procura atingir o núcleo central do esforço que marca toda existência humana, concentrando sua busca em torno à pergunta inicial da ação: a vida humana possui um sentido? Uma tal questão, ao menos aparentemente, mostra-se como iniludível. Em verdade, como nos diz Blondel na introdução a L’Action, todo homem é obrigado a afrontá-la e resolvê-la implicitamente por meio de seus atos. A vida, a locomotiva da sucessão de nossos atos não para nunca. Somos necessariamente condenados a agir e na ação condenados a escolher o caminho concreto que esta deve seguir, porquanto se deixar levar pela corrente, ao invés de agir livremente, é na maior parte dos casos agir contra si mesmo. Optar por uma via é renunciar às outras; mesmo escolher não agir, mesmo o suicídio é já uma ação. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Entretanto, as nossas escolhas, segundo Blondel, não serão nunca realizadas e atuadas sob plena luz, dada a limitação de nosso pensar finito. Nem mesmo poderemos ser totalmente senhores de nossos atos, como nos mostra a nossa experiência quotidiana, seja porquanto somos sujeitos a determinismos vários que às vezes contra toda intenção diversa usurpam o nosso ―domínio‖, seja porquanto dos nossos atos resultam conseqüências exteriores que nos se mostram como indomáveis (Cf. M. BLONDEL, L’Action, VI-X). ―Na prática, nada se esquiva ao problema da prática; e não somente cada um o põe, mas cada um, a seu modo, o resolve inevitavelmente” (M. Blondel, L’Action, X). Na prática o problema da ação é universal a todo homem. Esta constitui a via direta na qual o método de solução é o da ação de acordo com a consciência moral. Todavia, no homem surgem outras exigências: a busca do tentar entender o sentido daquilo que faz e daquilo que deve fazer. Esta segunda via, indireta, não somente ajudaria na iluminação da consciência interior, como também permitiria comunicar a solução encontrada pessoalmente, não obstante as limitações aqui presentes, indicando a universalidade da solução (Cf. M. Leclerc, Il destino, 134-135) Daqui deriva a importância do estudo da ação (M. BLONDEL, L’Action, XVII): É então uma ciência da ação que é necessário constituir; uma ciência, que não será tal senão na medida em que será total, porque toda maneira de pensar e de viver deliberadamente implica uma solução completa do problema da existência; uma ciência que não será tal senão na medida em que determinará para todos uma solução única e excludente de todas as outras. Porque não deve suceder que minhas razões, se estas são científicas, possuam mais valor para mim que para os demais, nem que deixem lugar a outras conclusões distintas das minhas. Desta forma, Blondel se propõe a assunção, ao estilo de Agostinho e de Descartes, de um método de dúvida que não aceite senão aquilo que não pode ser negado. Inspirando-se a J.S. Mill, o filósofo francês procura a aplicação de uma crítica radical que não se submeta a nenhuma das suas hipóteses, senão diante do que é 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I impossível de se duvidar (método dos resíduos). Nada pode ser previamente dado por óbvio, nem em nível de fatos, nem em nível de princípios ou de deveres (M. BLONDEL, L’Action, XXI). Na via indireta — diferentemente da via direta na qual somos necessariamente obrigados a agir e a agir escolhendo — tudo deve metodologicamente ser posto sob dúvida, não pelo simples duvidar, mas em vista de assumir somente certezas absolutamente fundadas. Mesmo o problema da ―real existência de um problema‖, ou o ponto de partida inicial ―não existe nada‖ são postos sob crítica: A força de toda a investigação deve ser fornecida pela investigação mesma; e o movimento do pensamento se sustentará por si mesmo sem nenhum artifício exterior. (M. BLONDEL, L’Action, XXII) Que se abandone qualquer prejuízo ou desconfiança, justamente porque não tomamos nenhum partido de antemão, nem pedimos nenhum voto de confiança. Mesmo este ponto de partida ―não há nada” não se poderia admitir, porque seria ainda um dado exterior e como que uma concessão arbitrária e escravizante. A operação de desobstrução é completa. (M. BLONDEL, L’Action, XXV) Como se vê, a atualidade de um tal método em confronto com as exigências da crítica filosófica, e em especial da crítica nietzscheana, mostra desde já a sua relevância. Devemos agora acompanhar o processo vital da árvore crítica blondeliniana, uma vez que ―le déblaiement est complet‖. Não obstante as delimitações a que nos devemos submeter neste presente escrito, mostra-se essencial a compreensão do suco central do caminho de seu crescimento. 1.1.1 Existência da pergunta3 3 Tema correspondente à primeira parte da L’Action. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I É verdadeiramente imprescindível para o homem a pergunta sobre o sentido da vida? Tal constitui uma questão à qual Nietzsche e Schopenhauer, como vimos, responderam afirmativamente, não obstante as suas interpretações sobre o real valor de um tal problema sejam diversas uma da outra. Em verdade, nem mesmo o critério adotado por Nietzsche, ou seja, do ultrapassamento e do primado da diferença, deixam espaço para a negação da pergunta, embora a sinceridade intelectual pretendida por Nietzsche deve organizar hierarquicamente a qualidade das respostas dadas. Uma tal negação é, no entanto, uma assunção teórica, baseada sobre a inexistência de uma qualquer razão para se justificar uma escolha. Tal seria o ponto de vista do estado estético kierkegaardiano. Ou ainda, do diletantismo de E. Renan e o sagismo de M. Barrès, aos quais Blondel se dirige implicitamente na primeira parte da ação. De fato o estetismo, considerando a vida como um jogo, afirma teoricamente a sabedoria do não fixar-se a nenhuma certeza ou modo de vida, felicitando-se a experimentação de todas as mais diversas experiências. A verdadeira liberdade consistiria em um não se aliar a nada definitivamente, fugindo às cadeias de todo tipo de escravidão, qual seria a fidelidade a deveres morais etc (M. BLONDEL, L’Action, p. 11). À pergunta sobre a existência humana, o esteta responde com o decreto de seu esvaziamento, proclamando-se como amante do ―não querer nada‖, ao mesmo tempo que tudo experimenta. Fazendo emprego de sua crítica, Blondel descobre a insensatez e a debilidade de uma tal doutrina, que excluindo todos os sistemas estáveis, torna-se pelo mesmo movimento um sistema. Todavia, um sistema ilusório, ao passo que incapaz de experimentar a vaidade de tudo, porquanto incapaz de experimentar totalmente tudo (M. BLONDEL, L’Action, 13). Ademais, o esteta consciente de não querer nada deliberadamente, ―não quer querer‖ (nolo velle). Mas, esta é já uma vontade de algo (Cf. M. LECLERC, Il destino, 142). E um algo que não é indiferente, porque exclui uma enorme gama de possibilidades, ou seja, aquelas que se apresentam como exclusivas. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Mas em fim, qual o conteúdo implícito do querer do esteta? O esteta quer a si mesmo, e é dominado pelo medo de perder-se. Entretanto, por meio de um amor tanto disforme que procurando sacrificar todas as suas experiências a si, em uma autolatria, ao fim sacrifica a si mesmo aos objetos que se lhe apresentam, perdendo-se nas coisas exteriores (Cf. M. LECLERC, Il destino, 144). A conclusão a que o filósofo de Aix-en-Provence chega ao fim de tal percurso especulativo é de que o problema da ação existe, a escolha, o compromisso é obrigatório. O homem não é um indeterminado, mas uma existência que quer algo, mesmo se este algo é ainda ignorado (M. BLONDEL, L’Action, 21): Não querer nada é, então, ao mesmo tempo: admitir o ser, buscando nele esta infinita virtuosidade que sempre escapa; — afirmar o nada, colocando nele a esperança vaga de um refúgio; — limitar-se aos fenômenos e se encantar pela comédia universal, para gozar do ser dentro da seguridade do nada. É abusar de tudo. Uma vez eliminada esta primeira problemática a ação humana se apresenta em seu curso como uma busca: o homem quer e quer algo. A indeterminação deste algo abre possibilidades diversas. Blondel as analisa em três hipóteses: 1. a hipótese do nada; 2. a hipótese dos fenômenos; 3. a hipótese da transcendência. 1.1.2 A estrada do nada4 O algo ao qual se dirige o problema da ação, dado a impossibilidade de saciá-lo completamente e a náusea que deriva de uma saciedade fenomênica, não poderia ser solucionado pela identificação do nada, tal qual vimos ser a hipótese do pessimismo de 4 Quanto a este tema, acompanhamos sobretudo o estudo da crítica de Schopenhauer na L’Action proposto por C. TROISFONTAINES, «La critique de Schopenhauer dans ―L’Action‖», RPL, 91(1993), 603-619. Tal tema dentro a L’Action corresponderá a sua segunda parte. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Schopenhauer? O nada não seria a conclusão da experiência comum, da ciência e da metafísica, diante da irremediável morte que acompanha todo o cosmo? Do fato de que a nossa liberdade é independente diante do mecanismo determinístico do mundo fenomênico que nos leva irreparavelmente à morte, a única via de solução ao problema da ação não seria o romper a ilusão da imortalidade, alcançando a única liberdade possível, ou seja, o apagamento de todo desejo de ser, por meio da sua substituição pela vontade do nada? Porque a idéia do pessimismo schopenhaueriano se embaterá frontalmente com o projeto blondeliniano, o seu confronto dentro à L’Action fora inevitável. De fato, para Schopenhauer todo mal humano proveria da vontade de viver. A ação seria o lugar de perdição do homem, e a única estrada de salvação seria o aniquilamento da vontade, pela vontade do nada. Blondel enfrentará o confronto com três formas do pessimismo propagado por Schopenhauer. A primeira destas aparece mediante a constatação empírica da universal vaidade das coisas, de seu inevitável encaminhamento para a degradação, inclusive da própria vida: a estrada da experiência direta. Entretanto, tal não sucederia somente porque pediríamos da vida mais do que esta nos poderia dar? Não seria suficiente renunciar a encontrar a satisfação dentro aos nossos atos para esperar uma bem-aventurada indiferença? A segunda, de forma mais elaborada que aquela da experiência direta, parte do fim das ilusões de imortalidade que nos é comunicado pelas ciências. A ciência, por mais que procure solucionar os problemas de contingência da vida humana e do universo, ao fim constata somente o encaminhar-se de todas as coisas à extinção: degradação de todos os sistemas.5 Tal, por sua vez, não seria, ainda, somente a constatação de que pedimos do mundo muito mais do que este nos poderia dar? Ao 5 Em especial com as constatações da termo-dinâmica tais observações são levadas à luz. De fato, um de suas leis é aquela que afirma o encaminhamento de todo sistema isolado em si à morte termo-dinâmica, ou seja, ao estado de máxima entropia e mínima energia. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I invés de proclamar o falimento da ciência, não seria mais justificável se apoiar sobre ela e reconhecer que o nada é o fim da vida humana? Por último, a terceira forma de pessimismo mostra-se como sendo a mais radical, configurando-se como uma crítica metafísica. Segundo ela seriam inúteis o suicídio do pensamento e da sensibilidade, caso a vontade não conseguisse livrar-se do erro da vontade de viver, do erro do ser (M. BLONDEL, L’Action, 30). De fato, tal pessimismo embora, em um primeiro momento, constate a existência de uma vontade de viver, em um segundo momento declara a impossibilidade de sua realização, pela sua dissolução dentro ao determinismo universal (M. BLONDEL, L’Action, 29): E assim já que a vontade de ser não logra a ser, aí se encontra a dor suprema; já que a vontade de não ser, ao entrar na verdade, provoca um infinito consolo nas almas, aquilo que é preciso demolir em si não é o ser que não é, mas a vontade quimérica de ser, consentir ao não-ser da pessoa humana, arrancar até as últimas raízes o desejo e todo amor a vida: desmascarar a astúcia de todo instinto de conservação e de sobrevivência é procurar à humanidade e ao mundo a saúde dentro do nada, este nada que se deve definir como ausência de querer. As respostas a tais objeções do pessimismo não serão difíceis de serem formuladas. Quanto ao primeiro tipo, Blondel faz notar que algumas experiências humanas poderiam ser aproximadas àquela do nada, sendo que a única absoluta experiência de um tal nada hipotético seria aquela da morte. No entanto, as dificuldades na comunicação de tal experiência são óbvias: quem dos pessimistas já a viveu para documentá-la? Ademais, poder-se-ia falar de uma experiência aproximada: aquela de uma vida mortificada, mediante a ascese, como previa já Schopenhauer. Entretanto, os ascetas que a viveram geralmente possuem toda outra opinião em relação àquela do pessimismo. Os dois tipos de pessimismos seguintes se mostram estreitamente coligados. Quanto a aquele de cunho científico, este não seria senão uma derivação ou uma espécie de cientificismo, que afirmaria como única realidade existente a dos fenômenos 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I objetivos das ciências positivas, os quais, entretanto, são reconhecidamente incapazes de satisfazer as aspirações humanas. A crítica metafísica schopenhaueriana os identificaria com o horizonte do nada, encontrando como via de solução somente aquela do nosso já estudado aniquilamento da vontade de viver. No entanto, é em obra, em tal modo de pensar, uma retorção: negando explicitamente o ser, devido à inconsistência dos fenômenos, o pessimista imposta implicitamente a sua infinidade. De tal modo, observa-se um erro lógico interno em seu comportamento, não encontrando a satisfação infinita que buscava nos seres finitos, ele hipotetiza à fundamental inconsistência do ser, ao invés de procurar a solução em um lugar diverso daquele dos fenômenos. Querendo o aniquilamento de toda vontade de ser, o pessimista afirma implicitamente um dúplice querer contraditório: o querer profundamente o ser, que os fenômenos não chegam a satisfazer, e o querer superficial dos fenômenos o qual o pessimista não consegue superar (M. BLONDEL, L’Action, 35): Querer assim o nada, com palavras com as quais um se engana, é com efeito render testemunho tanto da vaidade do que se dá como alimento à ação, como da grandeza daquilo que quer com toda a força, com toda a sinceridade do primeiro e íntimo desejo: mentira, porque se abusa de um equívoco; não se quer, não se pode negar de uma só fez o fenômeno e o ser; e, entretanto, segundo as necessidades se os nega, uma vez ou outra, como se se aniquilasse os dois de um só golpe, sem se dar conta que por esta mesma alternativa eles são igualmente afirmados. Para Blondel, a oposição que o pessimismo institui entre ser e fenômeno possui a sua origem no criticismo kantiano e na sua separação entre as esferas da razão pura e da razão prática. De fato, o formalismo da pura intenção desvinculando o imperativo moral do mundo fenomênico, no intuito de garantir a sua universalidade, acabou por erigir uma separação entre atos postos pelo interesse sensível e atos postos pelo 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I entendimento.6 De tal modo, abriu-se a estrada das conclusões Schopenhauerianas sobre a inexorável alienação da vontade — para o filósofo alemão radicalmente estranha ao fenômeno, porquanto coisa em si — que se objetiva nos corpos. Mas seria justa a afirmação segundo a qual toda exteriorização da vontade no mundo fenomênico seria uma perda para esta? A resposta de tal questão nos será sugerida por Blondel, em seguida, na terceira parte da L’Action. 1.1.3 Estrada dos fenômenos7 A pergunta a ser colocada a esta altura não é aquela sobre a capacidade dos fenômenos em satisfazer completamente a nossa mais profunda vontade, o que já fora descartado pela crítica ao pessimismo. O que se pretende estudar agora é se caso o engano não é nosso, ou seja, em tentar buscar o infinito, quando deveríamos nos contentar com a positividade, limitada, é claro, mas real dos fenômenos (Cf. M. Leclerc, Il destino, 156). Este algo que nossa vontade anseia não seria somente reduzível aos fatos objetivos, estudados pelas ciências positivas? A filosofia não seria vã, caso procurasse andar além dos limites estabelecidos pelas ciências positivas? O complexo desenvolvimento da crítica blondeliniana ao positivismo, profundamente devedora de E. Boutroux, foge aos limites aos quais nos prefixamos na redação do presente trabalho. Procuraremos nos concentrar em seus aspectos mais relevantes e em suas conclusões. Fundamentalmente, as incoerências do positivismo derivam da sua ereção como único critério de verdade. De fato, as ciências não podem bastar a si mesmas, dependendo da ação humana para se concretizarem, dependendo de escolhas e de hipóteses de interpretação. A ciência moderna, filha do matrimônio entre as ciências exatas e as ciências experimentais, mostra-se como dependente da ação humana para a 6 7 Como veremos em seguida, entre motivos e moventes da ação. Correspondente à terceira parte da L’Action. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I constituição de suas conclusões. O pretender se declarar como único lugar da verdade não pode ser positivisticamente fundado. Resta sempre insatisfeito um resíduo, que deriva da impossibilidade de redução da vida e da qualidade, à teoria e à quantidade.8 De tal resíduo as ciências dependem radicalmente (M. LECLERC, Il destino, 161). Existe então em nossa ação e em nosso querer um resíduo ―positivo‖, irredutível às ―ciências positivas‖. Como se aproximar deste? A razão que interroga a ação humana, a este ponto, deve se fazer inteiramente filosófica. Blondel falará aqui de uma ―ciência da ação‖ ou ―do sujeito que somos nós mesmos‖. O olhar filosófico, uma vez resolvidos os problemas do diletantismo, do pessimismo e do positivismo, é orientado para a clarificação do dinamismo interno à ação. Deveremos então proceder ao estudo do nascimento e acompanhar o desenvolvimento da ação. Neste âmbito, logo se assiste a um confronto que deve ser solucionado: entre determinismo e liberdade.9 De fato, a proclamação de um determinismo absoluto condena a liberdade à categoria de simples ilusão,10 como vimos ser o parecer de Schopenhauer. Mas tal pretensão é justificável? Uma certeza é incontestável: o fato da não existência de uma liberdade absoluta, porquanto somos condicionados de diversos modos: enquanto possuímos um corpo, encontramos-nos submetidos às leis que regem o mundo dentro do qual agimos; psicologicamente recebemos a influência de nossa educação, de nossa língua, de nossa cultura etc. Entretanto, do fato mesmo da nossa consciência de tais determinismos, somos capazes de tomar as distâncias necessárias para relativizá-los. O monoideísmo há como pressuposto a inconsciência, ou seja, a supressão da liberdade. A consciência, por 8 As reflexões blondelinianas mostram-se mais uma vez como de grande atualidade. Basta-nos fazer referência às últimas conclusões da crítica científica (Cf. o primeiro capítulo de nossa redação atual). 9 Sobre tal respeito não poderíamos deixar de citar M. RENAULT, Déterminisme et liberte dans «L’Action» de Maurice Blondel. 10 Como veremos em seguida, na apresentação do Princípio elementar de uma lógica da vida moral, tais interpretações filosóficas serão prenhas de conseqüências. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I sua vez, como veremos em seguida,11 supõe sempre a diferenciação entre estados contrastantes. Uma ação humana voluntária, ou seja, livre, não é nunca indiferente. O nosso querer, ademais, condiciona-se sempre em função de diversos moventes que nos levam a operar de uma ou outra maneira, de acordo com finalidades ou motivos por nós mesmos, ao menos implicitamente, fixados. Por movente Blondel entende as conseqüências em nós dos determinismos que precedem à ação, os quais nunca se darão isoladamente — o que conduziria mais uma vez ao monoideísmo. Agir livremente significa sempre comparar os diversos moventes que nos estimulam a orientar a nossa ação em diversos sentidos. A nossa reflexão, então, procedendo por meio de uma inibição do poder dos diversos moventes, os transformam em motivos possíveis (Cf. M. Leclerc, Il destino, 166-167). Tal processo não é um simples resultado matemático do jogo de forças, mas sob o impulso da idéia do infinito, produzida dentro do sistema dos moventes, em acordo com nossa aspiração pelo infinito, é responsável por uma nova organização que da idéia do infinito recebe a força de uma potência infinita que suspende temporariamente a força de todos os moventes, transformando-os, assim, em motivos, que por sua vez se refletem em novos moventes e assim continuadamente. A nova ordem que se estabelece dentro de nosso interior exige porém uma sua atuação, sendo impossível permanecer na eterna reflexão, porquanto tal seria um suicídio metafísico, senão de fato. E ainda, uma vez atuada, a ação fará parte desta imensa engrenagem, provocando novos condicionamentos. Uma vez conscientes, não podemos não agir livremente. Somos como que obrigados à ação livre, não obstante nós mesmos. Entretanto, o sentido o qual imprimimos à nossa liberdade é a nós ―imposto” como uma escolha. A liberdade é para nós, ao mesmo tempo, necessária e voluntária. Encontra-se, assim, posta sob o crivo de dois determinismos: um determinismo antecedente, do qual deve ratificar as condições e 11 Cf. nesta nossa presente redação as considerações sobre o Princípio elementar. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I sobre o qual exerce o seu poder; e um determinismo conseqüente, porquanto a liberdade ao ratificar as suas condições por meio da ação concreta, aciona uma imensa cadeia de conseqüências, as quais, não de raro, fogem ao seu próprio controle. Em conclusão, não podemos querer um ato, sem querer o que o torna possível e suas conseqüências. Em fim, este aliquid que necessariamente desejamos positivamente, a partir de tais constatações, descobrimos querê-lo livremente. O problema moral é, assim, necessariamente e voluntariamente posto (Cf. M. LECLERC, Il destino,169). A infinidade de nosso querer, manifestada pelo nosso infinito poder de resistência em relação a todas as pressões dos determinismos exercitados sobre nós, caracteriza aquilo que Blondel chamará vontade que quer. Entretanto, ainda que fundando o imenso poder de nossa liberdade e mostrando a amplitude infinita do nosso querer, nunca apagado pela possessão de nenhum objeto finito, o movimento de nossa vontade necessariamente se exercita por meio de escolhas precisas, fins parciais e atos concretos. À esta vontade concreta, ao objeto do nosso querer Blondel chamará vontade querida. A tensão existente entre a vontade que quer e a vontade querida, a inquietude fundamental, constituirá o motor de todo o desenvolvimento da ação. Identificada a qualidade da semente e o dinamismo que possibilitará o seu crescimento, o filósofo francês passa ao estudo da ação em seu ciclo vital, que como veremos, apresentar-se-á em ondas concêntricas. Sinteticamente, procurando seguir o movimento da ação desvelado por Blondel, nos deparamos em um primeiro momento com o nosso próprio corpo. Instrumento privilegiado de expressão da vontade querida, por meio da asseguração de sua colaboração o corpo é um meio indispensável para a resolução da equação da vontade. De tal modo, a ação em seu dinamismo constitui o elo de ligação entre o corpo e a alma (nossa vontade profunda), formando o indivíduo humano, ou seja, a unidade dinâmica entre os diversos elementos e tendências esparsas que pouco a pouco se vão integrando em uma ação comum, denominada por Blondel de sinergia interna. A ação para o filósofo de Aix-en-Provence será o verdadeiro vinculo substancial, que a filosofia 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I moderna em Leibniz e Descartes já procurara identificar (Cf. M. LECLERC, Il destino,172). Esta, embora se realiza por meio do corpo, não encontra neste o seu término ultimo, deve prosseguir. E tal prosseguimento se embate com diversos outros âmbitos. O primeiro destes é constituído pelo mundo físico. Pelo corpo, encontramos-nos irremediavelmente sujeitados a suas leis, mas também somos capazes de agir sobre ele. Assim, pouco a pouco, a ação procurará associar o cosmo a seus fins, mas irremediavelmente não conseguirá resolver a equação de sua vontade. A minha ação pessoal em sua dinâmica encontrará ainda outras liberdades, que poderão com esta colaborar ou, ao contrário, prejudicá-la. Naturalmente, a ação somente será beneficiada e poderá prosseguir por meio da colaboração, que se caracterizará por ser uma colaboração de liberdades e, assim, se transformará em coação: ação de diversos sujeitos, unidos em vista de um mesmo fim. O segundo ciclo, o circulo social, possui o seu início aqui, no princípio primeiro da amizade. A ação se mostra, desta forma, como sendo mais uma vez o seu vínculo, desta vez vínculo social. O movimento da ação se expandirá ao interno do social, em diversos âmbitos, a partir de uma ação particular que lançará seus fundamentos: a união conjugal, alargada naturalmente em união familiar. A família não bastará para realizar os fins da ação, pressupondo toda uma organização social que se alargará da cidade à constituição de uma nação e de um estado, e das diversas nações a uma ordem mundial, nas quais a colaboração das liberdades se potenciará cada vez mais fortemente (Cf. M. LECLERC, Il destino,172174). Mesmo que a ordem social pudesse alcançar um estado satisfatório, resta a pergunta se a aspiração profunda da vontade se completaria. Como vimos quando do estudo da filosofia de Schopenhauer, no plano empírico, ao homem não resta que o movimento do desejo ao tédio. Impulsionada por seu querer infinito a ação procurará uma transcendência. Assim, far-se-á primeiramente ação cultural ou artística, tendo em vista uma qualquer superação da morte e permanência na história. Não completa, far-se-á em seguida ação 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I moral, procurando viver e esclarecer o significado do imperativo da consciência. Entretanto, a vida moral será sempre um meio, nobre é claro; no entanto, somente um instrumento que aponta para um fim último que não é este mesmo. Nem mesmo aqui a equação da vontade encontra sua solução. Esgotados todos os recursos do gênio humano; esgotados todos os recursos da via dos fenômenos, a tensão entre a vontade que quer e a vontade querida não se resolve, restando duas soluções: 1. ou a capitulação do dinamismo infinito, pela assunção da hipótese de seu absurdo, fazendo da ação supersticiosa, ou seja, procurando atribuir arbitrariamente a um dos elementos encontrados durante o desenvolvimento da ação o valor infinito que sabemos estes não possuir, constituindo assim a idolatria ou a auto-idolatria; 2. ou continuar o movimento da ação e buscar o aliquid de nossa vontade na única hipótese que resta por examinar, a do único necessário. 1.1.4 O ser necessário da ação12 Como vemos, a resolução da equação da vontade é ao mesmo tempo necessária e irrealizável, a não ser que a última hipótese possa reger. Em síntese, salvo a existência do único necessário, do sentido implícito, em resgate do Deus morto por Zaratustra. Esta existência é necessariamente implicada no movimento de nossa vontade, que do primeiro momento a exige e por isto se reconhece como incompleta. É na busca da adequação perfeita ou de uma vontade infinita realizada, a qual não conseguimos nunca atingir, que se funda toda nossa ação verdadeiramente livre. Tal, todavia, não significará um absoluto otimismo, o qual poderia ser teorizado como uma possível resposta ao pessimismo de Schopenhauer, anteriormente analisado. Longe de poder ser considerado um otimista ingênuo, Blondel no decurso desta quarta parte se esforça em mostrar os limites inerentes da vida, do desenvolvimento da 12 Correspondente à quarta parte da L’Action. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I ação humana. De fato, segundo ele, somos sujeitos à morte, ao sofrimento, a decepções e a tantos outros infortúnios (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 328-329). De fato, somos constantemente sufocados pelos dinamismos do determinismo e nossos atos constantemente se voltam contra nós mesmos, mudando-nos a ponto de não nos podermos mudar a nós mesmos (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 331). A impotência de nossa ação nos parece total: ―antes, durante, após os nossos atos, existe dependência, coação, fraqueza‖ (M. BLONDEL, L’Action, 331). No entanto, o reconhecimento das deficiências da vida atual não seria possível senão como um contraste: ―Admitir a insuficiência de todo objeto oferto à vontade, sentir a enfermidade da condição humana, conhecer a morte, é portanto descobrir uma referência superior‖ (M. BLONDEL, L’Action, 334). Conscientemente ou não, o único necessário encontra-se por nós implicado em nossos atos. Diante dele, somos colocados de frente à escolha, a que já nos referimos, que agora nos se revela em toda a sua necessidade. Acolher a hipótese da ajuda que nos pode dar o único necessário para o alcance de nossa plenitude — o que não é uma mera questão de teoria, mas envolve todo o dinamismo da vida — constitui a vida da ação, que se abre à possibilidade última da realização de seu movimento, tendo como suprema hipótese a do dom sobrenatural. Ao contrário, o rejeitar tal abertura — fechando-nos em nós mesmos, em nossa auto-suficiência — constituirá a morte da ação, pela renúncia da continuação de seu movimento natural. Percorrido todo o desenvolvimento da ação apresentado na obra central blondeliniana, resta-nos ainda analisar o fundamental aprofundamento crítico que Blondel proporá no último capítulo de sua L’Action: Le lien de la connaissance et de l’action dans l’être.13 13 Este último capítulo será o terceiro da quinta parte da L’Action. Nos dois primeiros, Blondel analisará a hipótese da estrada religiosa, especularmente em contraste com a primeira parte da obra, na qual se tratava a questão do diletantismo. De tal forma se porá em discussão o problema da possibilidade de uma revelação, que como um dom de graça poderia realizar a ação, pretendendo mostrar a razoabilidade filosófica da prática religiosa católica. Este último capítulo, ao qual dedicaremos a nossa presente atenção, 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I 1.1.5. O vínculo da ação e do conhecimento no ser A implicação do único necessário em todos os atos humanos, com a fundação neste da consciência e da liberdade, e, assim, de todo o movimento da ação em vista da resolução da equação da vontade, provoca a inversão do caminho comumente empreendido pela crítica filosófica para a constituição de suas certezas — o qual fora criticamente analisado por Blondel neste último capítulo.14 Todos os ciclos concêntricos, passo a passo, percorridos pela dinâmica da vontade mostraram-se de grande homogeneidade: unidos dentro a esta pela referência implícita, desde o princípio, ao único necessário. De igual modo, porém, tal encadeamento revela toda a sua heterogeneidade: de fato, cada momento pode se revelar como um absoluto, no qual a vontade pode pretender igualar a si mesma. Cada momento se apresenta como uma novidade, novas sínteses irredutíveis às suas condições antecedentes — das quais, não obstante dependem —, e, todavia, reunidas em um sistema. não fora apresentado como parte da tese doutoral à Sorbona. Em verdade, embora já delineado, o texto inicial de tal capítulo fora suprimido pelo próprio Blondel, que o considerou ainda imaturo. Somente após a apresentação da tese e depois de substanciais modificações, tal seria unido ao texto da L’Action, correspondente a aquele de sua edição pública. Entretanto, tal texto constitui como que um capítulo à parte, na qual se expõem uma especial metafísica, a qual antecipa as futuras pesquisas de sua Trilogia. Blondel a definirá uma metafísica de segunda potência (Cf. L’Action, 464), para distingui-la das idéias metafísicas descritas como fenômenos na terceira parte (Cf. P. HENRICI. «Maurice Blondel e la filosofia dell’Azione», 609). 14 Trataremos em seguida de esclarecer tal questão, que na L’Action nasce em resposta às observações dirigidas a Blondel por seu diretor de tese E. Boutroux e por seu amigo V. Delbos. Após a leitura dos manuscritos que antecipam a confecção final da L’Action, Boutroux e Delbos haviam sentido a necessidade de: uma maior significação filosófica em especial pela clarificação de algumas questões religiosas que surgissem à propósito da tese, sem, porém, fazer realmente parte desta (Cf. M. BLONDEL – E. BOUTROUX, Lettres philosophiques de M. Blondel, 28 de julho de 1892); algumas correções que precisassem o estatuto da metafísica, permitindo-lhe não só de preparar e erigir a ação, mas também de justificá-la em seu pleno valor (Cf. M. BLONDEL – V. DELBOS, Lettres philosophiques de M. Blondel, 27 de julho de 1892). 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Assim, as sínteses da ação, seus moventes e motivos, aparecerão ao mesmo tempo como uma série de causas eficientes e um sistema de causas finais. Blondel a definirá como unidade do vínculo causal (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 434). Dentro desta, observe-se que o posto central ocupado pelo único necessário concede a possibilidade de toda existência, ou seja, dependente dele, a ação se constituirá como movimento que de escalão em escalão fundará a todos: o sistema é a condição sine qua non da série. Como causas eficientes e causas finais os objetos da ação são na verdade seus fenômenos, ou melhor, representações que o espírito se faz dos diversos setores de sua existência. Curiosamente, em referência ao percurso realizado na terceira etapa da L’Action, Blondel criticamente concluirá, assim, pelo caráter meramente ideal ou mental de todo o complexo fenomenológico estabelecido: ―Com efeito, até agora, e ainda que hábitos mentais contrários tenham podido convencer o leitor, somente se trataram de meios subordinados à ação. Em nenhum caso se tratou de transformar ditas condições práticas em verdades reais.‖ (M. BLONDEL, L’Action, 425) No entanto, a partir daqui se faz necessária à análise crítica a identificação do valor ontológico de tais condições. O determinismo contínuo que desenvolve a ciência da ação requerá um supremo passo do pensamento, para exprimir todas as exigências do determinismo prático: a sua prova ontológica.15 Tal não significará a saída do determinismo fenomênico — que se impõe obrigatoriamente a nós com seu cetro de ferro —, mas a necessidade científica que é para nós, pelo fato de pensarmos e 15 «La nécessité pratique de poser le problème ontologique nous amène nécessairement à la solution ontologique du problème pratique. […] Ce qui exprimait simplement les besoins de notre volonté doit acquérir, devant l’entendement même, une vérité absolue. Ce qui n’était encore que nécessité de fait sera fondé en raison. Ce qui n’avait été posé, en face de la pensé, que comme moyens immanents au vouloir va être posé, hors de la volonté, comme fins immanentes à la pensée. Et, tandis que l’action avait paru première, et l’être, dérivé, c’est la vérité, c’est l’être qui vont paraître premiers, mais sans que leur subsistance et leur nature même cessent d’être déterminées par l’action qui y trouve sa règle en même temps que sa sanction» (M. BLONDEL, L’Action, 425) 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I atuarmos, comportarmos-nos como se a ordem universal fosse real e as obrigações práticas, fundadas. (M. BLONDEL, L’Action, 427) Segundo Blondel, de uma parte, para se resolver cientificamente o problema do conhecimento e do ser é exigido um rigor crítico tal para o qual é impossível não determinar com exatidão e de antemão todo o sistema das relações intercaladas entre estes dois extremos. De outra parte, uma vez abarcadas pelo pensamento todo o complexo das operações transitivas, este necessita que toda a série de seus objetos participe da realidade de seu término, implicado desde o princípio, sob a pena de banalização de todo o sistema (M. BLONDEL, L’Action, 427). De acordo com as exigências científicas, que nos obrigam ao rigor, pelo fato do determinismo da ação nos levar obrigatoriamente à identificação de um tal término, resulta que possuímos um conhecimento certo do ser, do qual não nos podemos eximir. No entanto, para alcançarmos um tal término não poderemos nos subtrair à alternativa no resolver o problema prático, que se nos apresenta como vida ou morte da ação. O conhecimento científico do ser se apresenta assim como necessário e ao mesmo tempo voluntário. Subsiste uma presença necessária da realidade no pensamento, sem que a realidade esteja necessariamente presente no pensamento (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 420). O modo como tal presença se encontrará em nós, dependerá, segundo Blondel, da opção suprema. O ser e o conhecimento são, assim, radicalmente heterogêneos e, não obstante, idênticos. (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 429) Para compreender tais observações Blondel se empenhará em responder: 1. como o pensamento concebe inevitavelmente a realidade de todos os seus objetos? 2. O que pode ser rechaçado da inevitável concepção do ser e o que resta desta necessária realidade no pensamento que a exclui e na vontade que dela se subtrai? 3. A adesão prática e o livre reconhecimento, o que acrescem ao ser necessariamente concebido e a verdade forçosamente reconhecida? Em fim, estas perguntas se reagrupam em uma final: como a ação perfeita pode consumar tudo o que serviu para constituí-la? Seguiremos agora o percurso por ele empreendido. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I 1.1.5.1 A idéia de objetividade16 Por que a continuação do determinismo prático em toda a sua série reveste o caráter de uma verdade real? Como já observamos, o determinismo da ação nos põe diante da série, apresentando-a como um complexo de meios pelos quais a vontade procura resolver a sua equação de modo voluntário. Precisamente porque cada objeto da vontade se apresenta necessariamente como devendo ser querido voluntariamente, mas podendo não sê-lo, é onde se funda a idéia de uma existência objetiva, ou seja, independente de nossa vontade. Todos os objetos que se apresentam à vontade, agrupados no sistema, como dissemos, fazem referência à opção suprema, que se constitui em um momento da série, e da qual cada opção particular será revestida, de tal forma que o seu Objeto, Deus, as transcenderá todas. E tal é somente possível porque a série eficiente encontra-se inseparavelmente unida ao sistema final, de tal forma que cada singular síntese porta em si a presença do único necessário. Cada movimento da vontade querida testemunha a sua incapacidade de igualarse no seu engajamento fenomenal à vontade que quer, fundando a necessidade do sistema. No entanto, a realidade do todo sistemático, da qual participa cada anel da cadeia, não passa ainda de uma abstração, de uma necessidade interna. A vontade que quer exige uma sua objetivação, o seu engajamento, a vontade querida, de tal forma que: ―Para que a noção de existência objetiva esteja na consciência, é necessário que esta noção abstrata se realize em objetos concretos‖ (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 433). O já citado vínculo causal encontra assim sua explicação: não se trata de uma necessidade inteligível e analítica, nem de uma simples justaposição de termos empiricamente independentes, mas de uma concepção que integra estas duas últimas dentro à lei necessária ―que exprime idealmente ao pensar o encadeamento real das 16 No desenvolvimento dos pontos do último capítulo da ação seguiremos o esquema proposto por Paul Gilbert no artigo «Le phénomène, la médiation et la métaphysique». 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I necessidades práticas cujas exigências ratifica a vontade mesma‖ (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 434). Nesta ratificação ou objetivação, a cada escalão, a vontade joga o tudo por tudo, tendo diante de si constantemente a possibilidade da idolatria. E ainda, porque o sistema é transcendente a cada um de seus anéis, porque o único necessário é implícito em cada ponto da série, a opção suprema, positiva ou negativa, determinará o sentido do sistema concreto e sua realidade ontológica, como a de cada um de seus elementos. No texto que seguirá procuraremos, seguindo Blondel, esclarecer tais observações, por meio da explicitação do conhecimento privativo e do conhecimento possessivo do ser. 1.1.5.2 O conhecimento privativo do ser No segundo ponto do último capítulo da L’Action, Blondel trata de precisar alguns questionamentos que se mostrarão essenciais: 1. de que forma tudo o que a visão do espírito oferece como objetivo pode ser excluído. 2. Tal exclusão suprimirá a possessão, mas não a necessidade e o conhecimento da realidade. 3. De que modo este conhecimento privativo postula do ser excluído a mesma confirmação daquela do ato que o rejeita. A verdade real dos objetos, segundo Blondel, não residirá na irremediável representação que possuímos destes, em virtude das exigências práticas de nossa ação, mas sim no fato que depende de nós o querer e o não querer em relação a estes. Para que estes objetos sejam em nós, devemos querer que sejam para nós o que são em si mesmos. Mas como? Segundo Blondel, aceitar ou regeitar as exigências práticas, significa acolher em si ou eliminar de si a realidade da que derivam estas mesmas necessidades. Rejeitar a dinâmica da ação que transcende toda a série, pela resposta negativa diante da suprema opção em relação ao único necessário, será eliminar de nós a possessão dos outros 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I seres, porquanto privamos a experiência daquilo que a reflexão descobriu ao coração de todo conhecimento possível. Entretanto, tal não significará a supressão da necessidade e do conhecimento da realidade. A realidade e seu conhecimento, embora co-extensivos, podem ser radicalmente distintos (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 438-439). Blondel falará da existência de um conhecimento subjetivo, idêntico à opção, negativa ou positiva, a favor do ou contra o único necessário. De acordo com esta opção, o conhecimento, anteriormente abstrato, amplia-se, traduzindo em nosso pensamento a solução prática do problema ontológico. (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 438) Caso a opção seja negativa, caso se suspenda o movimento natural do conhecimento e da vontade em vista do único necessário, restará somente um conhecimento intelectual da verdade dos fenômenos, uma imensa representação sem nenhum fundo ontológico (Cf. P. GILBERT. Le phénomène, la médiation et la métaphysique, 116). O conhecimento, ao limitar-se ao que já era, será então privativo, dirigindo-se ao ser para esvaziar a si mesmo daquela realidade que, todavia, requer por força de uma necessidade; a vontade permanecerá incapaz de proceder à resolução de sua equação: ―o infinito que necessitamos, ele [o conhecimento] afirma de fronte a quem o negou, mas para recusar ao negador tudo aquilo que ele [o conhecimento] lhe afirma‖ (M. BLONDEL, L’Action, 439). 1.5.1.3 O conhecimento possessivo do ser O tema da mediação, cujo termo é proposto por Blondel já desde o primeiro ponto do presente capítulo da L’Action, no terceiro ponto, recebe uma consideração absolutamente central. A opção positiva em relação ao único necessário, segundo Blondel, com a conseqüente aceitação de tudo o que o movimento da ação nos apresenta como necessariamente requerido para seu cumprimento, nos abre a via da possessão real dos seres. Todo o demais, somente em virtude deste mediador — do único necessário — se nos comunica (M. BLONDEL, L’Action, 441-442). E, igualmente, 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I não se poderia realizar a opção verdadeiramente positiva no seu confronto, sem a solução prática do existir para ele, sacrificando a ele tudo o demais: o sacrifício é a solução do problema metafísico pelo método experimental. Justifica-se, assim, o papel central da ascese quanto a tal possessão. No entanto, uma ascese que recebe toda uma outra significação daquela proposta por Schopenhauer. Mas de tal modo, não se acabaria por subordinar o conhecimento a um ato voluntário? O conhecimento da verdade, de tal forma, não pareceria ser um resultado da vontade, de uma vontade criadora, análoga àquela de potência nietzscheana? Blondel responde claramente: a realidade não subsiste em si porque um ato de nossa vontade a erige em nós. Ao contrário, quando queremos a realidade, a ordem universal, a fazemos ser em nós como é e porque é em si mesma. Mesmo o conhecimento necessário, que precede à opção, constitui-se em uma regra inflexível, não podendo ser diferente do que é. É impossível que um decreto de nossa vontade possa modificar a ordem científica. No entanto, diante da suprema opção, ao querer livremente o que poderia ser não querido,17 o conhecimento se beneficia da possessão do objeto, levando realmente em si o que antes era somente uma idéia, uma representação (M. BLONDEL, L’Action, 440). A este ponto do seu escrito, o filósofo de Aix-en-Provence, por meio de um discurso rico de antecipações existencialistas, procura esclarecer o sentido do conhecimento possessivo. Ao centro deste, como seu órgão, Blondel identificará a caridade, ou o amor, sem o qual nada se conhece. Por um lado, a caridade se configura em uma paixão ativa. Por outro, na medida em que as coisas são, atuam e nos fazem padecer; de tal forma que o ser é amor: ―Aceitar esta paixão, recebê-la ativamente, é ser em nós aquilo que elas [as coisas] são em si‖ (M. BLONDEL, L’Action, 443). 17 A opção apresenta-se, recordamos, como um momento da série dos fenômenos, entretanto um momento decisivo para todos os outros: é a encruzilhada necessária para se atingir a solução da equação da ação. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I A pureza do desprendimento interior, e o sacrifício de si mesmo ao único necessário — sem o qual é impossível chegar a qualquer outro ser e a nós mesmos, ou seja: a caridade ascética — constitui a verdadeira filosofia — analogicamente ao que afirmou Schopenhauer, mas em todo outro sentido. Somente pela caridade se resolveria o problema das aparências, porquanto nela se encontra o privilégio do poder aproximarse de tudo o que os seres possuem de vida e de ação, sem violentar ou despojar nenhum do que lhe pertence, por meio da simples participação com a intenção do bem dos demais. Também em relação às outras liberdades humanas, a caridade permite a identificação em absoluto.18 Esta, segundo Blondel, não poderá nunca ser verdadeiramente científica se não se realiza na obra individual, na relação caritativa com o outro homem. O círculo social, exige, assim, a resolução prática, a possessão, a caridade, como cada um dos demais anéis da cadeia dos fenômenos. Sem o dinamismo da caridade entre os membros da humanidade não pode existir Deus para o homem; nem tão pouco, sem Deus, homem para o homem, porquanto o caminho de acesso ao ser estaria definitivamente obstruído. De fato, por um lado, tudo se sustenta dentro ao amor ao único necessário, porquanto Deus é o único que se pode amar por tudo e por todos. E, todavia, a Deus se ama por meio do particular. A heterogeneidade dos fenômenos, das aparências, depois da opção a favor do único necessário se funde na homogeneidade e na solidez do vínculo real. De um tal modo, ao fim da opção positiva, realizar-se-á a união universal (M. BLONDEL, L’Action, 443): Mas também é [―adeus”] a palavra da verdadeira e única união, a que consagra a mesma ausência, porque ela revela, pela supressão dos laços aparentes, a solidez do vínculo real. Se não 18 Analogamente a E. Lèvinas, Blondel não considera o conhecimento abstrato como capaz de promover a união entre duas liberdades. No entanto, diferentemente de Lèvinas, e em conformidade com S. Agostino Blondel afirma tal possibilidade por meio da Caritas. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I se chega a Deus que pela oblação de tudo o que não é ele, nele se reencontra a verdadeira realidade de tudo o que não é Deus. No entanto, afirma o nosso autor, tal não significa a supressão do princípio da individuação. A comunhão universal, longe de ser causa de confusão, constitui-se no único meio de possessão e distinção perfeita. O ser real é a unidade da múltipla aparência e a diversidade simultânea dos fenômenos universalmente solidários: a verdade de cada fenômeno da série é obrigatoriamente fundada, para que todo o demais o seja. Nenhuma ordem de fenômenos, por sua vez, poderia ser fundada por meio de uma outra: em virtude da sua heterogeneidade, cada ordem de fenômenos exige uma crítica irredutível às demais, nem mesmo ao entendimento; todavia, é exigido para a sustentação do determinismo da ação que seja elevado ao que implica de ser e de absoluto cada elemento relativo, cada aparência de fenômeno (M. BLONDEL, L’Action, 449-450). A ciência da ação nos testemunha a absoluta necessidade do determinismo da vontade, que exige para se completar, a opção positiva e tal opção nos previne antecipadamente contra os perigos do aniquilamento — ou melhor, do nihilismo — e do panteísmo — da absorção de todo ser distinto na imensidade divina.19 Nos correspondentes quarto e quinto pontos deste último capítulo Blondel procurará aprofundar estas últimas observações, a partir do estudo dos fenômenos, em vista de atingir a existência objetiva. 1.1.5.4 O problema da existência objetiva 19 Cf. M. BLONDEL, L’Action, 448. Esclarecedoras se mostram as palavras de P. Henrici comentando tais passagens: «Blondel dimostra (…) la necessità di una scelta riguardo al concetto dell’essere, proprio partendo dal fatto che l’essere esiste solo in una correlazione totale di tutti i fenomeni e che la sua realtà dipende dalla realtà dell’Unico Necessario. La decisione a favore del possesso dell’essere è dunque da intendere come esplicazione delle implicazioni ontologiche della decisione riguardi dell’Unico Necessario» (P. HENRICI, «Maurice Blondel e la filosofia dell’Azione», 610). 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I a) Ser e fenômeno Antes de tudo, Blondel procura focalizar criticamente algumas suposições filosoficamente infundadas, que originaram um pseudo-problema, ao qual a modernidade buscou em vão uma solução: ―onde se encontra a realidade ou a verdade do ser que se nos exprime nos fenômenos?‖. De fato, para Blondel — analogamente a Nietzsche —, o ser não pode ser buscado em uma realidade posta atrás ou além dos fenômenos. Do fato de que o sistema total do mundo dos fenômenos deve ser real, conclui-se que os dados sensoriais dos quais este se compõe, devem ser igualmente reais. Ademais, o númeno kantiano, não passaria, segundo Blondel, de um outro fenômeno: de idéias da metafísica à primeira potência. Em senso pleno, o ser deve ser atribuído aos fenômenos enquanto tais (Cf. P. Henrici, ―Maurice Blondel e la filosofia dell’Azione”, 610). Entretanto, todos os fenômenos como tais são essencialmente relativos a um sujeito. Seria possível, então, que o que é por nós, seja sem nós e apesar de nós? Seria possível a afirmação de uma relatividade absoluta? b) O vínculo do conhecimento Blondel encontrará uma possível resposta a partir da hipótese leibniziana do vínculo substancial,20 ao qual o nosso autor dedicou a sua famosa tese latina.21 De 20 Em relação a tal estudo, conferir o comentário introdutório de C. TROIFONTAINES in M. BLONDEL, Le lien substantiel et la substance composée d’après Leibniz, 3-141. 21 Em uma série de cartas trocadas com o jesuíta Des Bosses, Leibniz havia concebido a hipótese de um vínculo substancial, ou seja, de uma realidade que serviria de elo de ligação das mônadas entre si e que realizaria a união dos fenômenos compostos tais quais os percebemos, para tentar desta forma justificar a doutrina católica da transubstanciação eucarística em desconformidade com a concepção da substância física composta, extensa, pretendida pela teoria leibniziana. Não de forma muito clara, 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I acordo com Blondel, como toda experiência humana leva em si um quê de atividade e de passividade, assim cada fenômeno mostraria especularmente as mesmas duas partes (Cf. M. BLONDEL, L’Action, 456). O ser dos fenômenos deve ser buscado precisamente no elo desta união, que se mostrará indissolúvel. Por ela, atuamos em e sobre as coisas; elas atuam em e sobre nós: o conhecimento ativo e passivo que temos destas é o duplo fundamento do fenômeno, sensível e real. A ciência humana especulativamente distingue no real por um lado a imensa inteligibilidade dos fenômenos (razão), por outro, a originalidade de cada síntese diretamente percebida (sensibilidade), que se mostra irredutível ao conhecimento que destas possuímos. Ambos estes aspectos na realidade, mesmo que irredutíveis um ao outro, mostram-se vinculados na indissolúvel unidade sintética do dúplice vínculo do conhecimento racional e sensível. A ambigüidade do fenômeno constitui, assim, a sua verdade real (M. BLONDEL, L’Action, 454): As coisas são porque os sensos e a razão as vêem, e as vêem em comum sem que este dúplice olhar, com que cada um parece penetrá-las inteiramente, confunda-se nelas. [...] aquilo que a abstração distingue na realidade sensível deve permanecer indissoluvelmente unido: pode-se mostrar os aspectos irredutíveis, mas não se pode separar suas faces solidárias. E, precisamente, porque é impossível separá-las e reuni-las, entre estas duas aparências conhecidas subsiste o que constitui o apoio do vínculo, o que faz a verdade consistente. c) Entendimento e Reflexão Leibniz atribui tal vínculo a um ato da vontade divina, que torna existente e ordenada a unidade como tal, anteriormente somente possível. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I Observemos ainda que se as coisas apresentam-se como ativas em relação a nós e as outras coisas mediatamente o conhecimento e a percepção que possuímos destas — porquanto não podem se perceber diretamente, sendo que o seu ser consiste em ser ativas e passivas em um e mediatamente, em si —, da mesma forma, o conhecimento depende das coisas para ser, porquanto pelas coisas realiza a sua atividade e sua paixão. O conhecimento é assim também ele um elemento da série (M. BLONDEL, L’Action, 456). Diferentemente de um realismo exacerbado que se inclina a afirmar a existência de um ser diverso do que nos aparece fenomenicamente; diferentemente de um idealismo disforme para o qual o ser existiria porque nós o faríamos existir; Blondel afirma que as coisas que são conhecidas são conhecidas tais quais são (M. BLONDEL, L’Action, 457). Como entender tais afirmações? O conhecimento é um elemento da série e, portanto, não pode conhecer sem implicar a série em sua totalidade e em todas as suas exigências. No entanto, chegar a tais afirmações é encontrar-se dentro a um novo tipo de conhecimento que transcende o fenômeno do conhecimento, conhecendo seus limites, conhecendo seu ato, e, assim, conhecendo a necessidade voluntária de sua encarnação na possessão do ser: uma metafísica de segunda potência, que une tudo (M. BLONDEL, L’Action, 465). Estabelece-se, assim, a distinção entre duas instâncias do conhecimento, o entendimento e a reflexão, ou seguindo a própria nomenclatura blondeliniana, entre cognitio per notionem e cognitio per connaturalitatem, per habitum, per unionem (Cf. P. GILBERT, Le phénomène, la médiation et la métaphysique, 304-305). Tais duas formas de conhecimento para Blondel não se opõem, gozando de uma imanência recíproca, embora sem nenhuma confusão: o conhecimento objetivo e abstrato não é a reflexão objetiva e concreta. O vínculo substancial que nasce aqui se estabelece por meio de um ato, da ação completamente fiel a suas exigências, e não por meio de um qualquer novo conhecimento, a partir do qual a reflexão consideraria a série fenomenal (Cf. P. GILBERT, Le phénomène, la médiation et la métaphysique, 306). 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I A reflexão é consciente, assim, da incapacidade de auto-fundação no realconcreto do conhecimento nocional separadamente considerado, ou de cada elemento da série, em razão da insuficiência do relativo. A atividade e a passividade dos fenômenos se podem definir somente a partir de um sujeito que conhece, que opera ou que sofre. Mas, retomando a pergunta já feita, é possível uma relatividade absoluta? d) O ―Panchristismus‖ e os limites da filosofia Para se fundar uma relatividade absoluta, ou seja, a absoluta atividade e passividade dos fenômenos, Blondel faz recurso à busca de um sujeito também ele absoluto e aqui nos adentramos nos limites da filosofia. Se o ser das coisas do mundo consiste no seu poder ser passivas e ativas, não bastará, para se constituir o fundamento último do ser mundano, a referência da passividade das coisas em relação ao ato criador de Deus. Seria conveniente, assim, também uma paixão absoluta, na qual as coisas pudessem exprimir a sua atividade. A fundamental hipótese blondeliniana do panchristismus assume aqui suas justificativas: na hipótese cristã, na vida divino-humana de Cristo, se configura o vínculo substancial que sustenta o conjunto das coisas mundanas como seres reais no seu dúplice modo de manifestar-se (Cf. P. Henrici, Maurice Blondel e la filosofia dell’Azione, 611). Fazendo-se homem, em Cristo Deus percebe o mundo com os olhos da criatura e em sua paixão, Cristo realiza o sofrimento absoluto. Assim, nele se estabeleceria o perfeito vínculo entre o relativo e o absoluto (M. BLONDEL, L’Action, 460-461): A realidade do fenômeno e, com ela, o sistema total e o conjunto mesmo dos espíritos se desvaneceria sem este dúplice vínculo do relativo com o absoluto e do absoluto com o relativo. Não que o relativo seja minimamente necessário; ele não é real que na medida em que recebe do absoluto o dom de ser causa no âmbito do absoluto mesmo: necessidade condicional que não toca em nada a independência soberana da causa primeira, mas 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I que manifesta simplesmente a que condescendência, por sua parte, é subordinada a existência das causas segundas. Claro, Blondel é consciente da impossibilidade filosófico-especulativa de provar a verdade desta extrema hipótese. No entanto, o papel da filosofia é o de demonstrar a sua extrema coerência com a nossa mais profunda exigência. Como a cúpula do Pantheon de Agripa, a razão se mostra incompleta e aberta ao infinito. Mas existiria uma via para se realizar uma tal prova? Dirá Blondel: ―Fac et videbis‖ (M. BLONDEL, L’Action, 403). Ao fim do percurso a via indireta encontrará novamente a via direta (M. BLONDEL, L’Action, 463): Que não se pretenda jamais de encontrar em uma teoria, por mais perfeita que esta seja, um equivalente enganoso. Não se resolve o problema da vida sem viver; e jamais dizer ou provar dispensa o fazer e o ser. Eis então absolutamente justificado, pela ciência mesma, o papel da ação: a ciência da prática estabelece que não se pode suprir à prática. A filosofia de Blondel, em sua via indireta, depara-se, ao fim, aberta a grandes hipóteses. Uma desconfiança logo nos invade: a crítica não deveria proteger a reflexão justamente de tais admissões hipotéticas, quais sejam as do tipo da opção em relação ao único necessário? Não incluiriam estas a necessidade de um a-priori, mostrando as mesmas características pelas quais se pôs sob suspeito o nihilismo? 2. É POSSÍVEL AINDA UM SENTIDO? Às perguntas anteriores respondemos: absolutamente! A implicação do único necessário não se mostra à crítica como sendo um a-priori, um fundamento sobre o qual se construiria todo o edifício das afirmações posteriores. Ao contrário, na fidelidade ao método da L’Action, tudo o que é afirmado, o é porquanto necessariamente deve sê-lo. As hipóteses devem ser necessariamente comprovadas. No percurso crítico, algumas 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I delas não se sustentam e cedem, algumas se mostram necessárias, outras exigirão o recurso da prática para serem comprovadas. E a hipótese nihilista? Não aquela de Schopenhauer, já vencida pela crítica, mas aquela que se inspira em Nietzsche — que a seu modo, tenta responder ao pessimismo nihilista por meio da assunção do paradoxal otimismo do Übermensch diante do absurdo da imanência, no ultrapassamento e conseqüente primado da diferença — esta se sustenta à crítica? Certamente o a-priori que estimulara Nietzsche a levar a frente sua produção filosófica nihilista não pode ser considerado como um argumento válido. Ademais, a vontade de potência demonstrará todas as suas contradições quando sujeita à ciência da ação: em verdade, o movimento da vontade nunca atingirá a resolução de sua equação em meio à imanência. A vontade de potência será, conscientemente ou não, posta em xeque-mate pela reflexão blondeliniana, que mostrará sim a impotência do movimento da vontade de bastar-se a si mesmo. No entanto, recordemos que o falimento de uma argumentação usada para se sustentar uma dada tese não significa necessariamente o falimento da tese de fundo. A deriva nihilista, fundamentalmente erigida sobre os pressupostos da crítica nietzscheana à metafísica e à moral — os quais, por sua vez, segundo a nossa interpretação histórica, radicam-se no falimento do projeto moderno de cientificidade — , apresenta-se para grande parte da cultura atual como sendo uma alternativa possível. Em verdade, para muitos, erroneamente, como a única. De fato, muitas dentre as ―filosofias‖ que apostam nesta estrada como um acontecimento irrefreável e irrenunciável, fundam suas pretensões na paradoxal necessidade crítica da assunção das respostas nihilistas. Todavia, os dissensos em relação à interpretação do significado da anomalia paradigmática — mesmo dentro ao quadro dos explícitos expoentes do nihilismo — ao mesmo tempo em que abrandaram as afirmações nihilistas-nietzscheanas mais categóricas — constituindo as bases do ―pensamento fraco‖ — deixaram a descoberto a sua fragilidade, o seu caráter hipotético (Cf. F. D’AGOSTINI, Logica del nichilismo, 370- 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I 384). Até este ponto nada mais conforme ao nihilismo: paradoxo, fragilidade e hipoteticidade constituem a sua força. O nihilismo, pressupondo a necessidade da assunção de uma determinada lógica, a clássica, como pré-requisito essencial para toda filosofia que pretenda contra este uma crítica e constatada a falsificação em se afirmar esta mesma lógica como a única possível, aparece aos olhos da filosofia como um blindado impenetrável e ao mesmo tempo como uma arma de alta penetração, sob o nome de pensamento fraco. Em um artigo denominado A prospectiva metafísica entre analíticos e hermenêuticos, Enrico Berti observa que no pensar contemporâneo o adjetivo ―fraco‖ passa a gozar de uma grande força desde quando fora usado para denominar a especial forma de pensar que renuncia a categorias ―fortes‖ (bem e mal, justo e injusto etc.), para assumir posições mais esfumadas, menos categóricas. Tal se daria porque, segundo ele, lógica e epistemologia seriam dois pontos de vista inversamente proporcionais: ―as teorias mais fortes do ponto de vista epistemológico, ou seja, as mais ricas de informações, são as mais fracas do ponto de vista lógico, ou melhor, da argumentação, porque è facilíssimo refutá-las‖ (E. BERTI, La prospettiva metafisica tra analitici ed ermeneutica, 2). E vice-versa, de acordo com o mesmo autor, as teorias epistemologicamente mais débeis gozariam de uma força lógica maior pela dificuldade de sua confutação. Daqui a ―força‖ das ―teorias epistemologicamente fracas‖, ou melhor, daquelas teorias epistemológicas que admitem uma pluralidade de possibilidades na determinação de uma coisa (E. BERTI, La prospettiva metafisica tra analitici ed ermeneutica, 2). O mais importante a se notar é que Berti faz valer tais afirmações também para o campo da metafísica, chegando a individuar uma ―metafísica epistemologicamente fraca‖ como compatível com as filosofias contemporâneas hoje dominantes, analítica e hermenêutica (E. BERTI, La prospettiva metafisica tra analitici ed ermeneutica, 2): Uma metafísica forte, como era por exemplo aquela de Parmênides, segundo a qual (simplificando muito) ―todas as 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I coisas são imóveis” [...] é facilíssima de se confutar [...] Ao invés, uma metafísica fraca [...] seria muito mais dificilmente confutável, e portanto deveria ser considerada como logicamente muito forte. [...] Por isto creio que uma metafísica ―fraca‖, o de qualquer forma não excessivamente sobredeterminada, seja em realidade difícil de refutar e seja em fundo compatível com muitas correntes filosóficas de hoje. […] Neste sentido, o caráter obsoleto da metafísica poderia ser somente aparente. A agudez intelectual de Blondel em relação a tal problemática, que em verdade se configura em torno da busca de força e de resistência crítica na assunção de uma teoria epistemológica, mostrar-se-á impressionante. Já a L’Action, como anteriormente destacamos, é dominada pelo desejo de um forte rigor crítico, o qual paulatinamente faz ver o caráter novo da lógica blondeliana; posteriormente mais especificamente formulado quando da apresentação do escrito Principe élémentaire d’une logique de la vie morale, em ocasião do congresso internacional de filosofia de ano 1900, realizado em Paris. A tal escrito dedicaremos agora a nossa atenção, procurando destacar o seu caráter lógico e epistemológico, e a diversidade deste da lógica e epistemologia das filosofias de inspiração nihilista. 2.1 PRINCÍPIO ELEMENTAR DE UMA LÓGICA DA VIDA MORAL22 Fundamentalmente, com palavras do próprio Blondel, assim se podem descrever as preocupações que o orientavam (M. BLONDEL, Principio elementare, 12-13): Eu direi, transcrevendo termos precisos de Aristóteles, que a toda a lógica constituída do ponto de vista da ’απόυασιςe da ’αντίυασις, é necessário prepor uma lógica metodicamente constituída do ponto de vista da στέρησις. 22 Faremos uso de sua tradução italiana realizada por E. Castelli. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I De fato, sob o ponto de vista da filosofia até então vigente, o pensamento e a moral humanos, apresentavam-se como inconciliáveis. Embora constituíssem dimensões do próprio homem, estes mostravam-se contraditórios, ou melhor dizendo, um excluiria categoricamente o outro: o pensamento exigia um inflexível determinismo para ser absolutamente fundado; a moral, exigia a liberdade, ou melhor, a isenção de todo determinismo, mesmo lógico (M. BLONDEL, Principio elementare, 15-16). Somando-se a esta constatação, o filósofo francês alude ainda a duas outras (M. BLONDEL, Principio elementare, 13-15). Em primeiro lugar, a natureza ambígua do fato moral, ou seja, o seu caráter ao mesmo tempo coligado à intenção, sendo assim autônomo em relação ao mundo, e, por sua necessidade de concretizar-se em uma ação, coligado aos estados orgânicos anteriores, concomitantes e posteriores, ou seja, à engrenagem das forças físicas e psicológicas. Todavia, em segundo lugar, nunca a contraditória é dada de fato, sendo impossível que o seja. Segundo Blondel, duas alternativas nos restam: ou salvar a moral e permitir que a lógica sucumba diante da evidência na realidade das oposições radicais; ou salvar a lógica, a partir da pressuposição de que os fatos enquanto tais ignoram as leis de contradição e a norma ideal ou formal do pensamento. A primeira opção nos levaria a uma espécie de ―nihilismo especulativo‖ misturado com um toque de ―fideísmo moral‖. A segunda opção nos levaria à suposição de que a lei moral seria completamente formal, exigindo uma total indiferença em relação à matéria dos atos; senão, uma postura ainda mais radical na qual se termina por suprimir toda vida individual, todo desejo, todo ato particular — quietismo ou budismo.23 Ao início do mesmo escrito, Blondel afirmara (M. BLONDEL, Principio elementare, 12): Sem dúvida o pensamento filosófico realizou um imenso e feliz esforço, seja para mitigar e alargar os horizontes da sua dialética 23 A estas duas opções se podem somar as conclusões de Nietzsche, ou seja, a possibilidade de uma terceira opção: condenar seja a lógica, seja a moral. 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I abstrata, que este iguala sempre mais à inexaurível riqueza do espírito e das coisas, seja por preservar a parte original, e sempre renovada da evolução das formas viventes ou da invenção criadora das idéias, seja por reivindicar a independência ou defender a supremacia da vida moral contra a tirania das palavras e a usurpação dos conceitos. Mas em fim nos limitamos ou a subordinar, o mais possível, o real ao racional e a vida ou a mesma história à dialética idealista, ou, invés, a opor a ordem prática e moral, com o seu próprio gênero de certeza e as suas leis autônomas, à ordem especulativa ou científica e às normas do pensamento. Individuando sob tais vestes o problema central da lógica ocidental, Blondel se propõe em seguida (M. BLONDEL, Principio elementare, 12): Seria necessário então, colocando-nos a este ponto de interferência (ao passo que, em fim, para nós, viver é realizar a unidade do pensamento e da ação), desvincular o princípio elementar que preside aos desenvolvimentos, tanto orgânicos quanto originais da idéia e das ações, na integridade de uma dialética que domina, sem sacrificar um ao outro, os dois aspectos da vida moral. Segundo o filósofo de Aix-en-Provence uma tal lógica moral, criticamente fundada, não somente possuiria um princípio específico e simples, que solucionaria o problema dos aparentemente contraditórios elementos da ação, determinismo e liberdade, mas também daria acesso à chave de uma lógica geral, impensável caso não se pudesse reconstruir tais problemas que como fizeram Aristóteles ou Kant, os quais se mantiveram dentro à lógica constituída segundo o ponto de vista da ’απόυασις e da ’αντίυασις (Cf. M. BLONDEL, Principio elementare, 12). Para entender as observações blondelianas a tal respeito, devemos-nos remontar ao modo como Blondel procede a interpretação do princípio básico de tais lógicas, o princípio de não-contradição. Segundo o Filósofo da ação, o princípio de não-contradição como também aquele de identidade, não existem nos fatos: ―os fatos não podem nem produzi-lo, nem 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I sugeri-lo, e nem mesmo ser a ocasião direta ou indireta de sua aparição na consciência‖ (M. BLONDEL, Principio elementare, 16). De onde, então, proviriam as noções lógicas — contraditório, contrário, relativo, diverso etc. — que encontram-se à luz de todo conhecimento, sendo condições da consciência distinta, a qual é, explicitamente ou não, sempre consciência de uma descriminação, de uma relação e de uma oposição? Tais noções surgiriam em nós porque espontaneamente nos cremos capazes de modificar as coisas. Tal modificação se caracteriza, por um lado, pela iniciativa de nosso automatismo psicológico sempre inserido na engrenagem dos fatos; por outro, pela advertência que recebemos por parte das resistências empíricas e das lutas uterinas entre os nossos desejos co-existentes de nossa capacidade de mudar os fenômenos, adaptando-os mais ou menos às exigências da nossa atividade, determinada e determinante (Cf. M. BLONDEL, Principio elementare, 17). O filósofo francês ainda precisa que (M. BLONDEL, Principio elementare, 17): Se nós não possuíssemos nenhuma tendência original nem postulados práticos, se tudo fosse indiferente, ou igual, ou concedido sem esforço, não nos aperceberíamos absolutamente que uma coisa não existe, que um ato nunca existiu, ou não trouxe algum fruto. E, assim, é da nossa atividade exercida que surge a primeira Alba de nossa vida lógica. Deste modo, as noções lógicas surgiriam não certamente por virtude de uma abstração intelectual, mas em razão de uma oposição qualitativa e concreta dos diversos fenômenos, que entram na consciência como motivos e moventes da ação, formando espontaneamente um tudo sistemático diante da reflexão, composto por sínteses antagonistas. Uma vez escolhendo, querendo e atuando por própria iniciativa, conferimos à empírica relatividade dos fatos a fixidez que serve de fundamento resistente às oposições lógicas (M. BLONDEL, Principio elementare, 18). Dentre estas várias noções uma se mostra central: a de contradição. Sem a sua presença, ao menos implícita, as outras não poderiam, segundo Blondel, serem conscientes. Mas o que suscita uma tal noção? Segundo nosso presente autor o 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I sentimento de irreparabilidade do passado, ou seja, a nossa incapacidade de modificá-lo (M. BLONDEL, Principio elementare, 19). Somos, assim, conduzidos mais uma vez à ação. Dentro desta, o infinito poder do único necessário, sempre implicado, ocupará um lugar central e garantirá a sua orientação. O campo da atividade moral, de nossa ação, passa a constituir o lugar de explicação de nosso hábito intelectual (M. BLONDEL, Principio elementare, 19): em uma palavra, nós não possuímos a idéia do ser e da contradição que em quanto somos colocados na condição de resolver a alternativa da qual depende a orientação da nossa vida e a nossa entrada no ser, alternativa, caso se possa dizer assim, ―auto-ontológica‖. No entanto, com se vê, o modo como se concebe uma tal contradição é fortemente diverso daquele concebido pela lógica formal, que por sua vez apresenta-se como uma falsificação abstrata, essencialmente excludente dos opostos. O real sentido do princípio de não-contradição, segundo Blondel (M. BLONDEL, Principio elementare, 20): é aquele de se estabelecer que aquilo que poderia ser e incorporar-se, em virtude do nosso fazer, a aquilo que nós fomos (’έξις), é deste para sempre excluso (στέρησις), sem que aquilo que é excluso cesse de servir a pensar distintamente aquilo que fora escolhido e feito, a alimentar o esforço do conhecimento e da execução, e a determinar moralmente o ato realizado e o mesmo agente. Deste modo, a lógica metodologicamente constituída sob o ponto de vista da já citada στέρησις haveria como propriedade característica a superação dos obstáculos abstratamente e artificiosamente impostos pela lógica formal, tendente a reduzir a vida, os fenômenos, os seres ao substituto econômico dos substantivos, das palavras (M. BLONDEL, Principio elementare, 20). De tal forma, a palavra ou o conceito que simplifica, que restringe o individual, procurando servir à ciência, falsificaria o 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I resultado e a complexidade das relações que subsistem sob a idéia da contraditória exclusa. O resultado de tal processo seria aquele de uma metafísica falsa e tirânica, baseada sob a aliança da gramática e da vida física (M. BLONDEL, Principio elementare, 22). Este tipo de metafísica atribuiria à modalidade fenomênica e aos dados dos sentidos tudo o que os conceitos teriam tomado emprestado do ser pensante e real. Uma vez constituída, sob o domínio de um mundo substantivado pelas palavras, sob o domínio da lógica formal, esta imporia o próprio modo como lei do ser à atividade moral e intelectual, que não obstante deveria submetê-la criticamente, medindo aquilo que esta contém de verdade ontológica e lógica (M. BLONDEL, Principio elementare, 22). Entretanto, Blondel não considera a lógica formal como um mal a ser combatido absolutamente. Pelo contrário, destaca a importância de se entender o seu sentido e a sua utilidade. A lógica abstrata é um obstáculo, mas um obstáculo útil; uma espécie de mola necessária ao desenvolvimento da vida moral. Obstáculo útil porquanto simplifica o trabalho crítico, por meio da apresentação de todas as coisas sub specie substantiae como submetidas às leis da identidade e da não-contradição. Se devemos sem interrupção precaver-nos criticamente contra o dogmatismo dos sensos e do entendimento, estas fictícias concretizações lógicas servem como ponto de apoio ou como estímulo para a opção imediata e a decisão radical do querer, sem as quais poderíamos nos submeter a uma dialética interminável: ―pelo que possui de acósmico, o princípio de não-contradição nos estimula invencivelmente a emigrar deste mundo onde o nosso pensamento e a nossa ação não são completos‖(M. BLONDEL, Principio elementare, 24). A lógica abstrata recebe sua justificativa; forma-se a partir da lógica moral, das exigências da vida prática e da inspiração moral (M. BLONDEL, Principio elementare, 33). A lógica moral, por sua vez (M. BLONDEL, Principio elementare, 33): é assim a porta de acesso, e permanece a idéia diretiva ou a alma da lógica geral, lógica na qual as rígidas normas de Aristóteles ou de Kant seriam explicadas e transformadas, tornando-se mais dóceis, como a geometria de Euclides o pode ser por uma 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado do Seridó - Governadora Wilma Maria de Faria Faculdade de Filosofia Curso: Licenciatura em Filosofia Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza História da Filosofia Contemporânea I geometria geral; lógica que resta por constituir, fazendo entrar a um posto subordinado aquela lógica ideológica, útil e verdadeira até que se considere como momento no desenvolvimento da dialética integral da razão vivente, mas perigosa o mesmo falsa caso se desconhece que a l’αντίυασιςnão é que um símbolo inadequado da στέρησις. Percebe-se, assim, que as perguntas relacionadas com o sentido da existência, mais facilmente identificadas com questões morais, possuem, para a filosofia de Blondel, uma íntima relação com questões gnosiológicas. Sobre a possibilidade de um logos ou sobre a possibilidade de sentido, retomando a pergunta inicial, que, em verdade, nos guiou, Blondel traça o caminho de uma hipótese afirmativa. Entretanto, uma afirmativa que atingindo uma lógica segunda ou reflexiva, reconhece o seu caráter de submissão à dialética da vida que a supera; uma afirmativa hipotética que reconhece e exige a sua abertura a uma prova final prática, que coloca em questão a vontade de potência da filosofia de Nietzsche: fac et videbis (M. BLONDEL, L’Action, 403).