UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ - UFPI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA CLAUDIA RAQUEL MACEDO O SENTIDO EXISTENCIAL DE OUTRO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE HEIDEGGER Teresina - PI 2012 CLAUDIA RAQUEL MACEDO O SENTIDO EXISTENCIAL DE OUTRO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE HEIDEGGER Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pelo programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí - UFPI. Orientador: Prof. Dr. Rosario Rossano Pecoraro. Teresina - PI 2012 FICHA CATALOGRÁFICA Universidade Federal do Piauí Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco Serviço de Processamento Técnico M141s Macedo, Claudia Raquel. O sentido existencial de outro na ontologia fundamental de Heidegger / Claudia Raquel Macedo. Teresina: 2012. 110 f. Dissertação (Mestrado em Ética e Epistemologia)–Universidade Federal do Piauí, 2012. Orientador: Prof. Dr. Rosario Rossano Pecoraro 1. Metafísica. 2. Ontologia. 3. Fenomenologia. 4. Outro Hermenêutica. 5. Heidegger. I. Título. CDD: 110 TERMO DE APROVAÇÃO CLAUDIA RAQUEL MACEDO O SENTIDO EXISTENCIAL DE OUTRO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE HEIDEGGER Essa dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de Mestre em Filosofia e aprovada pelo Curso de Mestrado em Ética e Epistemologia através do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí, pela seguinte banca examinadora: _______________________________________________________________ Prof. Dr. Rosario Rossano Pecoraro/UFPI (Orientador-Presidente) _______________________________________________________________ Prof. Dr. Edgar Lyra Netto/PUC-Rio (1º Membro da Banca) _______________________________________________________________ Prof. Dr. José Ricardo Barbosa Dias/UFPI (2º Membro da Banca) _______________________________________________________________ Profa. Dra. Elnôra Maria Gondim M. Lima/UFPI (Membro Suplente) Teresina, __________ de _________________ de 2012. AGRADECIMENTOS Agradecimentos especiais ao meu orientador Rossano Pecoraro, pela confiança e ensinamentos, e aos professores Luciano Donizetti e José Sérgio pelas primeiras orientações. E agradeço profundamente ao professor José Ricardo, uma pessoa única, que me introduziu nos estudos da hermenêutica de Heidegger e também por me ajudar nesse trabalho com o acesso aos textos e com ideias. Essa pesquisa é fruto da contribuição inestimável de todos. Aos colegas de estudo, pelas trocas de conhecimento e amizade, em especial, Jair, Ana Paula, Leonardo e Lorena. E ainda, aos demais colegas do Laboratório de Informática da Pós-graduação. Aos professores Helder Buenos Aires e Elnôra Gondim, pela contribuição neste processo. Aos grupos de estudo (UFPI) “Seminário de Pesquisa em Hermenêutica Filosófica” e “Grupo de Estudo em Heidegger” pela oportunidade de reflexão e debate. Aos demais professores do Mestrado e funcionários da UFPI. Ao Programa de Bolsas REUNI, pelo apoio financeiro que tornou possível esta pesquisa. À minha revisora de texto, Catarina Santiago. À minha família, em especial, Constância e Álvaro, pelo amor. RESUMO O trabalho que segue procura elucidar o caráter de ser-outro e o seu papel na proposta desenvolvida por Heidegger em Ser e Tempo, discutindo, assim, o modo de ser-outro a partir de uma “ontologia fundamental”. Portanto, o objetivo principal dessa dissertação é explicitar o sentido existencial de outro sob o contexto do esquecimento do ser, que Heidegger atribui à metafísica ocidental. Para introduzir o problema da pesquisa buscamos identificar a questão do “sentido do ser” no âmbito da fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Nosso segundo passo foi explorar a “ontologia fundamental” comentando seus principais momentos para enfim, situar, no interior da analítica existencial, a discussão do Mitsein (ser-com), expressão que Heidegger usa para caracterizar o modo como o Dasein vive em um mundo com os outros entes. Ao explorar o fenômeno do ser-com na preocupação com os outros desde a impropriedade para a propriedade do ser do Dasein, observamos o nexo fundamental com o fenômeno da morte, em que o Dasein se compreende em seu poder-ser mais próprio e onde, então, é possível se dizer o outro como outro. Foi dessa maneira, portanto, que chegamos à interpretação de que a ontologia fundamental de Heidegger, que no fundo trata apenas da necessidade de colocar novamente a questão esquecida do sentido do ser, é também um passar pela questão do outro e sua alteridade. Palavras-chave: Heidegger. Ontologia fundamental. Outro. Morte. ABSTRACT The work that follows seeks to elucidate the character of otherness and its role in the proposal developed by Heidegger in Being and Time, arguing, so, the other way of being from a “fundamental ontology”. Therefore, the main objective of this dissertation is to explain the existential sense of other under the context of the forgetfulness of being that Heidegger attributes to western metaphysics. To introduce the research problem we seek to identify the issue of the “sense of being” within the hermeneutic phenomenology of Heidegger. Our second step was to explore the fundamental ontology commenting on the key moments to finally locate, within the existential analysis, discussion of Mitsein (being with), expression that Heidegger uses to characterize how Dasein lives in a world with other beings. In exploring the phenomenon of being-with the concern for others since the impropriety to the property of being of Dasein, we observe the fundamental connection with the phenomenon of death, in which Dasein is understood in its power to be more own and where, then, can be said the other as other. Thus, therefore, that we come to the interpretation that the fundamental ontology of Heidegger, which basically just about the need to put the question again forgotten the sense of, is also a question of going through the other and his otherness. Keywords: Heidegger. Fundamental ontology. Other. Death. SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS 7 1 A QUESTÃO DO SENTIDO DO SER 16 1.1 O problema ontológico: pergunta pelo sentido do ser 16 1.2 Posição fenomenológico-hermenêutica 25 1.3 A especificidade da filosofia 28 1.4 O problema do outro 34 2 A QUESTÃO FUNDAMENTAL EM SER E TEMPO 38 2.1 O projeto de uma ontologia fundamental 38 2.1.2 O modo de investigação da questão do ser 40 2.2 Ser temporal do Dasein 44 2.3 Ser-no-mundo do Dasein 49 3 O SER SI-MESMO, O SER-OUTRO E O IMPESSOAL 58 3.1 O ser-com de Heidegger 58 3.2 A pergunta existencial sobre o quem do Dasein 69 3.2.1 O ninguém do Dasein como interpretação fundamental do quem 75 3.3 A mundanidade do mundo 78 3.3.1. Ser com outro-ente intramundano: ocupação 78 3.3.2 Ser com outro-Dasein: preocupação 86 3.4 O ser-próprio do outro e a morte 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS 101 REFERÊNCIAS 107 7 CONSIDERAÇÕES INICIAIS [...] o questionar é a devoção do pensamento. (HEIDEGGER, A questão da técnica). O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) foi dono de uma vasta bibliografia que reunida supõe-se chegar a 102 volumes, dos quais oitenta já foram publicados na Gesamtausgabe (Obra completa).1 O acesso e, mais tarde, o estudo sistemático destas publicações e de suas traduções vem contribuindo sobremaneira para a confirmação da proposta primordial de seu pensamento sintetizado na pergunta pelo “sentido do ser”, apesar do reconhecimento da divisão de sua obra em duas ou três fases, o que implicaria num cuidado ainda maior quanto a interpretações isoladas. Na verdade, conforme mostraremos ao longo deste trabalho, a chamada “questão do ser,” expressa em sua obra, não impede ou anula uma reflexão sobre os mais diversos temas, tais como, por exemplo: intersubjetividade, identidade e alteridade. Dentre esses, destaca-se o problema em torno do qual se apresenta o sentido existencial de ser-outro que pretendemos tornar claro nesta dissertação. Assim sendo, aquela imagem de filósofo obscuro e ininteligível vem, cada vez mais, perdendo força à medida que seus escritos, principalmente, aqueles que circundam Ser e Tempo, hoje amplamente difundidos, desmistificam conceitos-chave como Dasein, ser-no-mundo, existência, diferença ontológica, transcendência. Textos como Que é metafísica?, Sobre a essência do fundamento, Sobre a essência da verdade, Introdução à metafísica, Introdução à filosofia, para citar apenas alguns, abrem as portas para o desenvolvimento de argumentações e debates que fazem do pensamento heideggeriano uma das experiências mais importantes do nosso tempo, vindo a influenciar, direta ou indiretamente, uma quantidade considerável de pensadores do século XX. 1 Heidegger organizou no final da vida o projeto de uma publicação única de todas as suas obras – a Gesamtausgabe (GA), publicada no ano de sua morte, 1976. “Caminhos não obras”, disse Heidegger ao constituir essa edição publicada por Vittorio Klostermann. A GA está dividida em quatro séries: I. Escritos publicados, 1910-1976; II. Palestras e cursos; III. Escritos não publicados, palestras e pensamentos e IV. Apontamentos e esboços. 8 Com efeito, é preciso que se tenha claro, desde já, que para Heidegger o ser não é um ente. Essa ideia é uma das mais fundamentais de seu pensamento, e tão logo entenderemos o quanto ela norteará as análises na medida em que esse ponto se encontra na base da crítica à tradição metafísica que sempre pensou o ser por meio do ente. Portanto, para entender a maneira através da qual o “outro” se nos revela ou para percebermos o sentido existencial que ele assume em Ser e Tempo, é necessário fazer uma iniciação ao projeto de Heidegger como um todo, pois em sua obra se articula uma compreensão implícita de ser que possibilita e constitui nossa relação com os outros entes. Buscamos, assim, explicitar o modo como Heidegger entende “o outro” ou “os outros” a partir da cotidianidade e, ademais, do modo originário do impessoal (das Man). O Man também constitui, conforme nossa hipótese, o ser-com do Dasein. Aqui, pensamos imediatamente no princípio fenomenológico de Husserl do “ir à coisa mesma”, de como essa questão está direcionada pelo modo de ser do próprio eu. Ser, para Heidegger, não designa um quadro, uma pedra ou um homem. Ou seja, não é sinônimo de realidade, nem só de homem, é, antes de tudo, a maneira como algo se torna presente para nós. É dessa compreensão de ser que emergem as outras relações que mantemos com o mundo. Portanto, como o próprio autor nos adverte logo na introdução de Ser e Tempo a “analítica” possui um caráter provisório no todo de seu projeto. Ela não visa apenas descrições fenomenológicas, mas pretende antes “pôr e colocar a questão esquecida do Sentido do Ser”. (LEÃO, 2000, p.194-195). Ser é uma estrutura que permite a compreensão dos entes; é possibilidade, em vez de ser apenas um objeto de pensamento como uma pedra ou um ser humano. “Ente é tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira [...]. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado” (HEIDEGGER, 2002a, p. 32), mas de modo algum se confunde com este. Por isso, para sustentar o caráter ontológico dessa investigação faremos uma explicitação dos elementos essenciais que a constituem, dentre eles: i) a originariedade, ii) a neutralidade e iii) a circularidade. A primeira perspectiva que assegura a problemática ontológica chamada aqui de originariedade consiste no caráter originário da questão do ser e, por conseguinte, da “questão do outro”. O ser é originário, mas esse significado de origem difere daquele que indica começo 9 (característico do âmbito da história, referindo-se a início). A origem constitutiva da qual se fala diz respeito ao sentido originário das coisas, ou seja, à “essência” não entificada das coisas. A abertura originária ao ser reside no fato do Dasein ser a própria transcendência, no fato de ele ser originariamente “de-caído” e “para fora” de si mesmo, isto é, junto ao ente. O Dasein é originariamente outro. De alguma forma, o Dasein é “ele mesmo”, mas sob o modo da impropriedade, na maioria das vezes. O ponto de vista da neutralidade reside no caráter neutro do Dasein, no sentido de que uma interpretação desse ente que parte da cotidianidade imprópria, antecede toda concreção fática. Essa proposta está muito clara em Ser e Tempo: “orientar a análise pelo fenômeno da de-cadência não exclui, em princípio, a possibilidade de se fazer uma experiência ontológica do Dasein que se abre nesse fenômeno.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 248). O Dasein é originariamente existência; assim, o seu próprio modo de ser não é, para ele, indiferente. De certa forma, não é possível dizer o Dasein. Porque o Dasein não é, mas se dá. Só é possível falar sobre os existenciais do Dasein e exatamente por isso é que a investigação ontológica se realiza antes de toda teoria do ser. Existe um dizer originário “anterior” ao dizer que se dirige aos entes – que é o dizer da ontologia ou da filosofia hermenêutica. Por fim, explicitaremos o caráter circular da analítica existencial. “Toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 209). Este círculo, porém, não é uma perda no processo de comprovação e sim uma estrutura de possibilidade positiva de uma interpretação originária. Ele é próprio da análise do ser e por isso mesmo não podemos evitá-lo. É nesse círculo e por ele que os entes à mão já são abertos. Pois, na ontologia hermenêutica é a chamada circularidade que faz o papel de fundamentação. O Dasein traz em sua estrutura essencial o espaço como tal, qual seja, a espacialidade. O Dasein como ser-no-mundo é um “dar espaço”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 160). Mas o que significa isso, “dar espaço”? Essa característica fundamental do Dasein consiste na liberação dos entes para a sua espacialidade. É esse “dar espaço” que torna possível a manifestação dos entes naquilo que eles são: a exemplo de um teclado como teclado, enquanto um objeto com o qual posso digitar. Trata-se de uma abertura que a cada vez se instala na existência do Dasein, em seu ser-no-mundo, e que, portanto, pertence a seu ser. Essa abertura, não obstante, que todo Dasein traz em sua estrutura, só é possível graças ao movimento do desvelar-se do ser. Mas é ela que determina o ser-com do 10 Dasein que, por sua vez, oferece a ele uma condição de vida social, de encontro e desencontro com os entes e com ele mesmo. Essa exposição do Dasein espacial em seu sentido originário de abertura serviu para mostrar o movimento em círculo do desvelar-se do ser toda vez que o manual nos vem ao encontro em sua espacialidade (preservada na não surpresa do manual), ademais, serviu para sustentar a tese de que o “ser-com” é uma característica exclusiva do Dasein, e isso porque o “deixar e fazer vir ao encontro” pertence a seu ser-no-mundo. Assim, Dasein indica o modo mais próximo e familiar com o qual nos deparamos com as coisas, é a maneira que Heidegger encontra para dizer que o existir humano nunca é uma coisa simplesmente dada. Designa, pois, o modo como o homem se encontra no mundo e, portanto, o ser-no-mundo do homem. “Chamamos de existência (Existenz) ao próprio ser com o qual o Dasein pode se comportar dessa ou daquela maneira e com o qual ele sempre se comporta de alguma maneira”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 39). O filósofo reserva, portanto, a palavra existência para o Dasein porque este compreende o ser. E ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) é a característica mais fundamental do Dasein e é a que deve orientar esse tipo de relação ou existência. Sobre isso, Heidegger (2001, p. 33) sustenta mais tarde que: “a constituição fundamental do existir humano a ser considerada daqui em diante se chamará ‘Dasein’ ou ‘ser-no-mundo’”. Apesar do significado de unidade que tal estrutura passa, ela pode, sem problemas, ser analisada mediante a determinação dos seguintes momentos estruturais: i) o sercom (o “impessoal”); ii) o ser-em; e iii) o ser-próprio. Esse primeiro é o que focaremos em nossa investigação da co-existência dos outros (ver terceiro capítulo desse trabalho) que, originariamente, se dá em situações comuns com os outros. Seguindo a determinação do ser do Dasein pelo seu ser-no-mundo, a investigação que se propõe a caracterizar o ser para com os outros, pelo que Heidegger chama de preocupação ou Fürsorge, só se concretiza pelo viés do ser próprio-impessoal, o Man-selbst. Assim, temos a tarefa de não deixar que a discussão tome a forma de uma crítica moralizante, considerando, de início, o fato de que o nosso filósofo recusa tal inclinação. Pois, o objetivo principal desta dissertação é mostrar o sentido ontológico-existencial de outro, a partir da análise do originário encontro com os outros na cotidianidade mediana. O “outro” não possui aqui um sentido moral. Justamente porque esse sentido apenas se faz presente na medida em que o Dasein é um ser-com. Apesar, e ao contrário, da acusação de que 11 Heidegger permaneceu indiferente em relação à problemática do outro, o que consiste num profundo mal-entendido, mostraremos que essa questão ocupa um importante papel nas reflexões de Ser e Tempo. No contexto da história da filosofia, esse tema se mostra extremamente relevante para as interpretações de um “eu” social que se constrói no liame do envolvimento com as coisas, sendo o lugar que a filosofia de Heidegger ocupa bastante característico no tocante a esse ponto. Sua ontologia vincula o ser com o tempo e a história e, desde então, o questionamento filosófico não sai em busca de um conceito isolado e abstrato, mas é dirigido pela questão fundamental do ser. Portanto, a presente investigação não pode sugerir que passamos de um estágio inferior (menos autêntico) a um estágio superior (mais autêntico) ou vice-versa. A impropriedade das relações impessoais não quer aqui dizer o falso que se opõe ao verdadeiro, não deve, por exemplo, nos remeter à imagem de uma dupla face onde uma não tenha nada a ver com a outra. Ora, se estamos cientes da ontologia heideggeriana, ser se diz sempre de um ente. Aqui se compreende o fato de que nunca o ser se manifesta sem o ente e que “jamais o ente é sem o ser”. (HEIDEGGER, 1973e, p. 246). Ou seja, compreende-se com isso que o ser nunca é uma coisa totalmente separada do “mundo”. Platão (2007, 241d) já dizia que, “de algum modo, o não-ser é e, por outro lado, num certo sentido, o ser não é”. Isso significa que na concepção grega não havia um sentido interior separado do real. No caso específico de Heidegger, fala-se do mesmo Dasein, que a cada momento promove “sucessos” e “fracassos”. E a explicação para isso está no que Heidegger chama de “cura” (Sorge), característica fundamental do Dasein. Enquanto cura, não somos algo dado no interior do mundo, mas projeto e um projeto lançado, de modo que somente nossa existência mesma, enquanto cura, nos peculiariza enquanto ser com o outro. Como “cura” estamos familiarizados com o mundo, com o outro. A cura é o “preceder a si mesmo por já ser em (no mundo) como ser junto a (o ente que vem ao encontro dentro do mundo)”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 257). Significa dizer que o Dasein se antecipa o tempo todo; a questão, portanto, que aqui se coloca possui um modo especial predominante e está voltada para as estruturas ontológicas do Dasein. A questão só pode ser conduzida pela abertura que pertence ao próprio Dasein. Essa abertura apresenta um modo privilegiado de disposição e compreensão chamada angústia, que acaba por remeter o Dasein “para o poder-ser 12 mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 252), em que o “mundo” e também o “Dasein-com” dos outros perde o seu significado. A angústia ou a disposição da estranheza é o modo mais fundamental encoberto de ser-no-mundo, ela retira o Dasein de sua familiaridade no impessoal. Desse modo, chamamos de angústia o fato da singularidade do ser-no-mundo do Dasein. A estranheza que designa o “não se sentir em casa” constitui o modo como ele se compreende na angústia. O impessoal, ao contrário, ressalta o caráter familiar do “ser-em” de fato e, precisamente aqui, o Dasein compreende a estranheza como um desvio para a “de-cadência”. Mas do ponto de vista fenomenal esta fuga deve significar que enquanto disposição fundamental a angústia é um modo próprio do Dasein; a fuga significa, portanto, o fato da angústia. Tal como o modo familiarizado do impessoal a estranheza é, por outro lado, o fenômeno mais originário do Dasein. Pois, “na angústia se está estranho.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 252). O se aqui nomeado revela a indeterminação do ser-em existencial por oposição à determinação categorial da “interioridade”. Esta disposição, também chamada de disposição de abertura pode, por conseguinte, revelar o ser para a sua possibilidade extrema e particular de serpara-a-morte, o que individualiza o Dasein de maneira ainda mais radical, pois a angústia só pode abrir pela primeira vez o mundo como mundo, ou colocar o ser-nomundo do Dasein diante do nada somente porque no ser do Dasein reside a possibilidade de ser-para-a-morte, porque antes ele se compreende em sua finitude. “O Dasein que eu mesmo sou só pode ser propriamente na antecipação”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 49). O primeiro capítulo, intitulado A questão do sentido do ser, apresentará a trajetória acerca do sentido do ser no pensamento de Heidegger. Nesta parte inicial do trabalho esperamos situar adequadamente a filosofia de Heidegger em relação a duas possibilidades de encontro: realista e idealista, além de procurar entender o que o filósofo quer dizer com ontológico. O segundo capítulo, denominado A questão fundamental em Ser e Tempo, versará sobre a proposta de Heidegger de uma ontologia fundamental que é apresentada na obra Ser e Tempo. Para tanto, comentaremos as principais etapas da analítica existencial. Essa parte do trabalho é de suma importância, pois é ela que fornecerá o suporte para a construção dos argumentos do capítulo central da pesquisa que irá tratar sobre o caráter de outro do Dasein. Já o terceiro e último 13 capítulo, intitulado O ser si-mesmo, o ser-outro e o impessoal, mostrará o sentido existencial de outro por meio da chamada “relação com o outro” que Heidegger chamou de “preocupação” ou se preferir “solicitude”, articulado no § 26 de Ser e Tempo. Os modos de ser-com (Mitsein) e Dasein-com (Mitdasein) que estruturam o ser do Dasein permitem a Heidegger colocar a ontologia no primado da questão diante das formas do conhecer e do querer. Além disso, a caracterização do “outro” como Mitdasein, segundo Luis Bicca (1997), pode significar um primeiro passo no sentido de pensar a alteridade do outro, o outro tal como ele é. Desta forma, essa dissertação faz parte de um trabalho de busca pela maneira de filosofar de Heidegger, sob a ótica de sua “ontologia” e mais precisamente de sua Ontologia Fundamental. Para tanto, levantaremos a “questão do outro”, entendida como um dos pilares da filosofia contemporânea, tomando como parâmetro de investigação o pensamento de Ser e Tempo. Pois, do ponto de vista ontológico, o Dasein é o único ente que acessa a si mesmo e esse si mesmo deve ser interpretado existencialmente. Ele não é uma simples presença, e sim, a sua própria possibilidade, abertura para “errar” ou “acertar”. A escolha do sentido existencial de outro se justifica, conforme nossa interpretação pretende demonstrar, pelo fato da análise da chamada “questão do outro”, em Heidegger, supor uma descrição fenomenológica do existir do Dasein e uma proximidade com seus aspectos ontológicos. Ademais, também discutiremos aqui até que ponto Heidegger terá razão quando critica e procura superar a filosofia moderna do sujeito com sua interpretação ontológico-hermenêutica do caráter de ser si-mesmo e de ser-outro do Dasein, de forma que implique na compreensão do “outro” em sua referencialidade, e não como simples presença. Espera-se, dessa maneira, chegar ao sentido existencial de “outro” dentro da articulação do ser-no-mundo que é originariamente ser-com e não um modo circunstancial de ser do Dasein. Ao explicitar essa questão, Heidegger não pretende apenas estudar as relações humanas e, menos ainda, formular princípios morais que sirvam de base para tais relações. A sua proposta é mais modesta – é simplesmente questionar em vez de dar respostas. A pergunta pelo “outro” não se preocupa com uma reflexão moral da convivência humana justamente porque existe uma preocupação com o modo fundamental de ser-com, isto é, com o modo próprio e originário de ser-com os outros, sem o qual os afazeres da vida não se nos apresentariam ou não teriam sentido para nós. Essa questão, em Heidegger, 14 assume um teor mais radical, mais fundamental. Somente porque o Dasein é sercom, é que pode o outro faltar. A proposição: “Dasein é essencialmente ser-com” não possui nenhuma relação com o espaço (como medida) e, portanto, a proximidade não é constitutiva do ser-com. Não quer ela indicar o simples fato de que não estamos sozinhos e que, pelo contrário, existimos apenas em comunidade. Para Heidegger (2002a, p. 172): “O ser-com determina existencialmente o Dasein mesmo quando um outro não é, de fato, dado ou percebido.” Ou ainda: Somente porque o Dasein como tal é determinado pela mesmidade2 pode um eu-mesmo relacionar-se com um tu-mesmo. Mesmidade é o pressuposto para a possibilidade da egoidade, que sempre apenas se revela no tu. Nunca, porém, a mesmidade está relacionada com o tu, mas é – porque possibilita isto – neutra em face do ser-eu e ser-tu e ainda com mais razão em face da “sexualidade”. Todas as proposições de uma analítica ontológica do ser-aí no homem tomam este ente de antemão nesta neutralidade. (HEIDEGGER, 1973h, p. 314). Só podemos, de fato, sentir solidão porque somos sempre ser-com, de modo que não é possível um Dasein isolado dos outros Dasein os quais também são Dasein-com e que, portanto, também realizam um Mitsein comigo. O ser-com do Dasein é um pressuposto fundamental que possibilita o “encontro de muitos em seu mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 172). Assim, as proposições de cunho ontológicoexistencial sempre consideram o ente-Dasein de um ponto de vista neutro, isto é, antes de qualquer comportamento (HEIDEGGER, 1973h, p. 302), livre de toda determinação fática desse ente em sua cotidianidade. Teceremos ainda, para finalizar, algumas considerações metodológicas referentes à redação desse trabalho. Os números das páginas citados de Ser e Tempo corresponderão sempre à tradução feita por Márcia Sá Cavalcante Schuback, edição dividida em dois volumes publicada pela Editora Vozes, em 2002. O termo co-pre-sença, no entanto, será substituído por Dasein-com inclusive nas citações. Ademais, para não entrar no mérito da discussão sobre o vocábulo que melhor traduz o que Heidegger queria dizer com a palavra Dasein, optamos por não traduzi-lo, pelo menos nas citações de Ser e Tempo. 2 Mesmidade diz a transcendência do Dasein. O que é transcendido (ultrapassado) é o “ente mesmo”, ente que ele é, enquanto existe. 15 16 1. A QUESTÃO DO SENTIDO DO SER 1.1 O problema ontológico: pergunta pelo sentido do ser A formação acadêmica de Heidegger se dá numa Alemanha que antecede a Primeira Guerra. Nessa época, o neokantismo endossava suas críticas à maneira do pensar positivista.3 Também nesse mesmo período conheceu a filosofia de Kierkegaard através do escrito, considerado o menos teológico de todos, – Post scriptum às Migalhas filosóficas, importante também pelo ataque ao sistema hegeliano. Mas foram os escritos de edificação e o “conceito de angústia" deste filósofo que, mais tarde, farão parte da construção dos argumentos de Ser e Tempo, baseando-se, sobretudo, na vivência conflituosa da fé. Carneiro Leão (2000) não tem dúvidas de que o filosofar de Heidegger teve influências do cristianismo e, em particular, daquelas leituras da chamada hermenêutica bíblica. Foi aí, então, que Heidegger começou a ler e interpretar a tradição filosófica como ninguém. O catolicismo durante muito tempo se fez presente na vida de Heidegger. Foi nesse período que entrou em contato com a primeira grande obra que está na base de seu filosofar – Do significado múltiplo do ente segundo Aristóteles de Franz Brentano. Com ela, Heidegger aprendeu a ler filosofia, como se diria mais tarde. Porém, não é a experiência católica, enquanto acontecimento histórico, que impulsiona em sua filosofia a problemática sobre a historicidade. O encontro com a fenomenologia de Husserl foi o segundo passo mais importante no pensamento de Heidegger, após ter percorrido o neokantismo e a filosofia de Kierkegaard no período de sua formação universitária. Ser e Tempo (Sein und Zeit, 1927) marcou o início de uma longa influência de seu pensamento no século XX. Essa obra não lhe rende apenas a nomeação na cátedra de Freiburg, mas também o legado de pensador ocidental decisivo, destacando-se no cenário filosófico por interrogar os aspectos fundamentais das atividades humanas. E como prova de sua inserção na história da filosofia, não é difícil ver a sua influência no 3 Cf. NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2. Ed. São Paulo: Ática, 1992. Essa obra traz ensaios que abrangem a obra de Heidegger como um todo. 17 pensamento de hoje. Com Wilhelm Dilthey e Kierkegaard, Heidegger aprendeu a importância de questionar a historicidade e a “vida”, tema que começou a despontar já nos escritos que antecederam os anos vinte, isto é, antes do surgimento de Ser e Tempo (1923 e 1927). Muito embora tenha realizado um grande feito no campo das ciências do espírito, alega Heidegger mais tarde, Dilthey não chegou a uma determinação desses conceitos. Apesar de a filosofia transcendental exercer grande influência no início do século XIX, Heidegger já se mostrava distante dela, sobretudo, em função do modo como se apropriava criticamente da metafísica (pois uma possível superação da metafísica pensada por ele, mais tarde, não significou propriamente negá-la) e quanto à rejeição dos conceitos e categorias somente como funções do pensamento. É nesse período, então, que começa a amizade com Edmund Husserl e a admiração, até certo ponto, por sua fenomenologia. Mais preocupado com questões do “mundo da vida” do que propriamente com o conhecimento científico, Heidegger, em oposição à ideia do sujeito transcendental na constituição do ser, segue o princípio fenomenológico do “ir à própria coisa”. Essa problemática fenomenológica, sem dúvida, fará parte do desenvolvimento das questões de Ser e Tempo. Heidegger assume a intencionalidade, ou seja, a ideia de que toda consciência, mesmo a chamada autorreflexiva, dirige-se para um objeto. Para Heidegger, a intencionalidade, apesar de permanecer consciência, era a ideia mais importante da fenomenologia e que lhe permitira depois aprofundar a historicidade da existência. Ele leu as Investigações Lógicas (1900-1901) de Husserl e deu atenção maior à sexta Investigação, onde aparece a noção de “intuição categorial”, mais precisamente o capítulo que se intitula – “Intuição sensível e Intuição categorial”. Este último conceito foi o que permitiu a Heidegger perguntar pelo sentido do ser. Com a carta Sobre o humanismo de 1947, inicia-se uma nova fase no pensamento de Heidegger. Já nos escritos que começam a aparecer após os anos trinta modifica-se o âmbito de sua investigação que agora se caracteriza pelo acesso direto ao ser, dispensando, portanto, a mediação de um ente; o ser, nessa fase, se dá como evento ou acontecimento (Ereignis). O que, porém, não significa termos aqui um chamado segundo Heidegger. 18 De acordo com Benedito Nunes (2004, p. 9), não há dois Heidegger, o primeiro e o segundo, como frequentemente se pensa, mas aspectos distintos de um mesmo pensar que se esclarecem mutuamente. A pergunta pelo ser em função de seu desvelamento está, pois, presente em toda a sua obra. Diz-nos Loparic (1982, p. 35): “Heidegger é o perguntador pelo ser. E não, porque essa pergunta permaneceu polissêmica, pois Heidegger não deixou claro – visto que isso era impossível [...]”. De fato, sabe-se que com essa pergunta, Heidegger queria mesmo era chamar todas as atenções para a recolocação da questão do ser. Ou ainda, como afirma Benedito Nunes (1992, p. 44): [...] a questão do sentido do ser não é o tema capital do pensamento de Heidegger apenas porque lhe forneça o ponto de partida. Como pergunta, ela se efetiva inquisitivamente, mantendo seu caráter de interrogação, e desenvolvendo-se como indagação direcional, voltada para o seu próprio objeto, o que o teor da frase alemã, der Frage nach dem Sinn vom Sein (a pergunta sobre o sentido e dirigida para o sentido do ser), deixa perceber. O ponto que nos interessa aqui, a saber, a questão ontológica, deve necessariamente se manter na fase inicial de seu filosofar, exatamente em sua ontologia fundamental, a qual somente é possível como uma analítica existencial em que se tornam “transparentes” as características fundamentais do ser de um ente privilegiadamente ôntico e ontologicamente. Isso significa investigar o ente em seu ser, isto é, o ser do ente. Heidegger chamou esse ente de Dasein (palavra que é comumente traduzida para o português como “ser-aí”), único ente que “compreende” o ser. Podemos dizer que a filosofia de Heidegger se traduz numa só questão – a questão do ser. O seu interesse em problematizar o ser o aproxima da questão grega do “ser do ente”, daquele movimento de “transcender” o ente (sentido inerente à palavra metafísica). É preciso retroceder aos entes (to onta), ao espaço de manifestação do ser no ente, de modo que o “espanto” nunca se esgote. Esse, conforme aludimos na introdução, é o primeiro ponto a considerar no pensamento de Heidegger. Mais precisamente, àquilo a que a filosofia se refere, diz-nos Heidegger, remete a nós homens em nosso próprio ser. Isso quer dizer que a filosofia está para 19 além dela mesma, está imbuída de historicidade, sendo um caminho historial de nossa existência. Enquanto, pois, não se tiver compreendido e ultrapassado a ilusão de buscar o significado do ser, interrogando os entes, e assim, a ideia de que o conhecimento do ser tem prioridade sobre a busca fundamental pelo ente no seu todo, o caráter ontológico-fundamental de nossa relação com os outros-entes simplesmente presentes e também com os outros-Dasein ficará sempre comprometido. Uma proposta desse porte, qual seja, a questão do “sentido do ser em geral” nunca foi tratada, garante Heidegger, nem mesmo por Nietzsche. Não obstante, a filosofia de Heidegger não constitui em absoluto uma descoberta singular sobre um ente muito particular – “o Dasein”, mas também não é uma análise profunda sobre o ser das coisas que não são segundo o modo de ser do Dasein, simplesmente porque esta é uma tarefa do tipo ôntica e não ontológica. Antes, pretende ser a pergunta fundamental pelo próprio ser e sua relação com o tempo sob o fundo do silêncio de muitas décadas. A pergunta pelo ser, através de seu sentido é, pois, o propósito da investigação filosófica de Heidegger. Com isso, ele quer nos fazer pensar no ser e na sua relação originária com o tempo, através da estrutura ontológica do “cuidado” (=cura). Por isso, segundo Heidegger, apenas de uma maneira filosófica podemos perguntar fundamentalmente pelo próprio ser. Essa posição filosófica deve nos conduzir em direção ao ser mesmo sem o qual nenhuma ontologia, e nem mesmo a ciência, se colocaria. O descrever fenomenológico (o “ir às coisas mesmas”) foi decisivo para este perguntar no sentido de torná-lo de certa forma efetivo; a fenomenologia de Husserl prepara a questão do sentido do ser na medida em que diz e nos faz “ver” uma nova dimensão de inteligibilidade, a dimensão fenomenológica, qual seja: o sentido que está na base de todo conhecer é o modo filosófico mesmo do conhecimento. Conquanto, a postura filosófica de Heidegger se distancia da postura filosófica de Husserl na medida em que a investigação deste último se realiza no âmbito dos atos do pensamento, isto é, se define ainda a partir de uma consciência. Heidegger propõe uma ontologia que constitui a filosofia. Mas não é só isso. Não está em jogo uma ontologia do Dasein ou uma ontologia no modo tradicional (busca pelo ente como tal). A ontologia que se instala aqui não é uma disciplina especial dentro de uma ontologia mais geral. Só é possível tratar de uma ontologia no sentido de uma ontologia fundamental tomada em seu aspecto mais amplo. Perguntar pelo 20 ser, em que consiste o ser, implica o ser do Dasein (existência). Somente porque a filosofia se constitui como ontologia é que ela também pode ser “histórica”. Uma vez que tal conexão existe, a investigação filosófica ou ontológica é fundamentalmente histórica, é constitutiva do ser do Dasein. Desse modo, para compreendermos a filosofia em seu fundamento histórico, precisamos uma vez mais nos afastar da história entendida ou como o passado que não acontece ou como o presente que também não acontece, mas simplesmente passa. A história diferentemente da historiografia é em si mesma histórica. Pois, “[...] somente na filosofia – à diferença de qualquer ciência – se edificam sempre as referências essenciais com o ente.” (HEIDEGGER, 1966, p. 86). Portanto, a investigação da questão do ser é histórica justamente porque se estende pela existência do Dasein frente às referências essenciais com o ente. A respeito da problemática moderna imanência-transcendência, noutros termos, sujeito-objeto, Carneiro Leão (1999, p. 11) nos convida a perceber em qual posição está o pensamento de Heidegger: Do ente o homem não pode prescindir. Em todas as suas indústrias e atividades, para pensar e querer, sentindo e amando, na vida e na morte, o homem não se basta a si mesmo. Sempre necessita de algo, que ele mesmo não é. Sem esse outro, o homem não pode ser. Edificando-se necessariamente dessa indigência, a existência humana exige que o ente a afete, se lhe dê e manifeste. Para existir o homem tem que imergir-se e entregar-se aos entes. Essa problemática da tensão entre a “imanência” e a “transcendência” serviu para nos conduzir à questão central de todo o pensamento de Heidegger, a saber, a questão sobre o sentido do ser sempre esquecido na história da “metafísica”. Empenhar-se nesta tarefa significa proceder numa superação da metafísica. Essa superação, no entanto, não constitui uma negação vazia exatamente porque é a própria história do ser que provoca a filosofia mesma. Portanto, o pensamento de Heidegger não pretende destruir ou aniquilar a metafísica como aparentemente se imagina. Somente na existência do Dasein se instaura a abertura ao mundo como tensão entre diferença (não-ser) e referência entre ente e ser. Estamos, assim, sempre mais imersos no retraimento do ser. Essa retração do ser, contudo, não consiste em um nada negativo, em vez disso, pertence ao próprio ser. É retraindo-se em si mesmo que o ser se manifesta, pois o movimento produzido no modo do velar- 21 se/des-velar constitui o seu próprio “sentido” e “verdade”, assim como se deu no pensamento dos gregos no modo da a-létheia. Heidegger nos dá uma explicação sobre esse sentido específico de alétheia: Deixar-ser o ente – a saber, como ente que ele é – significa entregarse ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Este aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu começo, como tà aléthea, o desvelado. Se traduzirmos a palavra alétheia por “desvelamento”, em lugar de “verdade”, esta tradução não é somente mais “literal”, mas ela compreende a indicação de repensar mais originariamente a noção corrente de verdade como conformidade da enunciação, no sentido, ainda incompreendido, do caráter de ser desvelado e do desvelamento do ente. (HEIDEGGER, 1973h, p. 336). Tal sentido do ser é possível apenas pela diferença ontológica.4 E é por meio dessa diferença, tema que já desponta em Ser e Tempo (2002a, p. 29), onde “o 'ser' não é um ente”, que podemos compreender o passo decisivo do filosofar de Heidegger. Consideramos aqui que, com a proposta de significação do ser, Heidegger supera a tradição metafísica. Toda a filosofia desde Parmênides vem se distanciando cada vez mais da “questão fundamental” porque não fez uma distinção rigorosa entre ser e ente. Para tanto, como diz Heidegger nas primeiras páginas de Ser e Tempo, é preciso “repetir a questão do ser”, ou melhor, elaborar adequadamente a “colocação da questão”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 30). O esforço não pode se aplicar mais apenas ao “ente enquanto ente”, mas precisamente, ao ser enquanto ser, porque o ser se manifesta, isto é, ele possui um sentido. Assim, a pergunta que de agora em diante se deve fazer é: qual é o sentido do ser? O ponto de partida da investigação que vinha sendo mencionado, e que agora se denomina esquecimento do ser (Seinsvergessenheit), resulta de um diálogo que o pensamento de Heidegger realiza com a metafísica tradicional (grega e moderna). Para o filósofo, o fenômeno não está fora, isto é, atrás do ser, apesar de todos os esforços do neokantismo em fechar este conceito nos limites transcendentais. Husserl foi quem primeiro observou a importância desse argumento 4 A diferença ontológica só aparece verdadeiramente como tema no curso de 1929 – Sobre a essência do fundamento. Ela não é importante pelo simples fato de fazer a diferença entre um ente e outro, mas por se referir ao espaço entre ente e ser, sendo a implicação de um ao outro. A diferença não trata da relação entre entes, por isso Heidegger a nomeia de diferença ontológica no texto já citado, pois, trata-se de dizer que o ente não é, em seu ser, do modo como é o próprio ser. 22 por meio daquilo que chamou de Anschauung, a intuição (das essências). Essa concepção influenciou o conceito heideggeriano de fenômeno como “o que se revela”; e o que se revela e se mostra é o próprio ser. Mas o ser é sempre ser de um ente. É por isso que a multiplicidade de significados dos “fenômenos”, apresentada por Heidegger no parágrafo §7 de Ser e Tempo, ora como fenômeno, ora como manifestação ou como parecer, aparecer e aparência, não será mais motivo de confusão caso tenhamos entendido o sentido fenomenológico de fenômeno como “o que constitui o ser”. É por isso que, ao se visar a uma liberação do ser, deve-se, preliminarmente, aduzir o próprio ente de modo devido. Este ente também deve-se mostrar no modo de acesso que genuinamente lhe pertence. E, deste modo, o conceito vulgar de fenômeno se torna fenomenologicamente relevante. (HEIDEGGER, 2002a, p. 68). Assim, é mérito de Husserl a ideia de nos colocar novamente em favor das coisas mesmas e Heidegger reconhece isso a ponto de ter chegado a dizer que sua investigação em Ser e Tempo, na tarefa de abrir as “coisas elas mesmas”, é devedora desse princípio de Husserl. Deste modo, é a certeza das “regiões do ser”, em todo aparecimento do objeto, que dá lugar à “questão do sentido de ser”. Eis, então, o segundo ponto da filosofia de Heidegger, sobre o qual mencionamos acima, que também servirá como crítica à ontologia tradicional. Pois, esta reflexão pertence exclusivamente ao filosofar de Heidegger. Da fenomenologia aos temas da ontologia de Aristóteles e desta para uma fenomenologia hermenêutica, isto é, para uma hermenêutica do Dasein, é esse o movimento que Heidegger realiza ao se dedicar insistentemente à leitura das Investigações Lógicas e, posteriormente, às atividades docentes como assistente de Husserl. Como ele próprio relata: A distância que Husserl aí constrói entre intuição sensível e categorial revelou-me seu alcance para a determinação do significado múltiplo do ente. [...] o que para a fenomenologia dos atos conscientes se realiza como o automostrar-se dos fenômenos é pensado mais originariamente por Aristóteles e por todo o pensamento e existência dos gregos como Alétheia. (HEIDEGGER, 1973d, p. 497-498). Mas Heidegger aborda o significado do ser de maneira mais originária e com 23 isso busca empregá-lo de forma adequada, ou seja, distinta da dos gregos, da ideia de Platão e da ousía de Aristóteles. Fazendo com que uma coisa seja o que ela própria é, de maneira ainda mais radicalmente grega5. Despertar para o que as coisas são significa: não aderir aos principais conceitos da “metafísica” como, por exemplo, “realidade” e “verdade”. Assim, a tradição concebe o ser como um conceito que constitui o ente como tal. É esse o modelo do pensar que temos desde Parmênides, Platão e Aristóteles – o da “essência”, sendo uma questão que pergunta pelo que algo é. De agora em diante, o “esquecimento do ser” torna-se o ponto de partida das inquietações de Heidegger em relação à forma tradicional de fazer filosofia. É nesse sentido que ele fala de uma recolocação da questão do ser e da significação da palavra “ser”, perseguindo ao longo de todo o seu pensamento o “sentido” simplesmente, ou a “verdade do ser”, para se aproximar aqui de uma linguagem da segunda fase de seu filosofar. A questão do sentido do ser, diz-nos Benedito Nunes (1992, p. 14), abrange e transgride, ao mesmo tempo, o campo da Metafísica com o qual entretém relações singulares através do “retorno aos gregos” – réplica de Heidegger ao “retorno às coisas” da Fenomenologia husserliana. Cabe agora insistir no ponto mais característico que separa a filosofia de Heidegger da tradição. Ademais, tentaremos explicar a proposta ontológico-existencial de Heidegger, mostrando porque a tradição, no seu dizer, se funda no esquecimento do ser e assim deixou de discutir o sentido do ser. Descartes, deixando-se levar por todo o legado filosófico ocidental, ficou impedido de esclarecer o caráter de “universalidade” da substância como tal, o que poderia, talvez, tê-lo levado a um sentido esclarecido do ser, de acordo com Heidegger. Pois, o ser do ente tomado em sua ambiguidade, ora como ser, ora como ente não foi explicitado em seus pressupostos devido à compreensão vulgar de ser. Mas o que significa, para Heidegger, entender o ser a partir de um sentido vulgar? Em poucas palavras seria: conceber o ser como “substância” (a tradução latina clássica do grego υπóστασις), o que permanece em todo ente. Essa concepção de ser torna impossível o esclarecimento do caráter fundado de todo conhecimento na 5 Pensar o que os gregos pensaram possui muito mais o significado de uma conversa do que propriamente de uma repetição; é antes enfatizar que esse pensamento em seu modo de ser é grego, mas de modo algum se encontra no mesmo nível. Porém, geralmente quando Heidegger se refere aos “gregos”, devemos nos remeter ao começo da filosofia com os pré-socráticos, no século VII a.C. 24 existência do Dasein. Se, pois, não há uma distinção clara entre o ser da res extensa e o ser da res cogitans, a determinação do ser como substância concerne tanto ao ser do Dasein quanto ao ser da res extensa, conforme a doutrina de Descartes sobre o ser do “mundo”. Nesta perspectiva, no ens criatum e em Deus, o ente é pensado como substância. A tentativa de Descartes de uma apreensão do mundo pela propriedade da extensão obstruiu o acesso ao fenômeno do mundo como tal, cujo ser ele chama de substantia, que pode designar tanto o ser de um ente, a “substancialidade”, como o próprio ente, a “substância”. Em seu projeto de uma monadologia, ou seja, na investigação do ser do ente, também Leibniz se deixa influenciar pela tradição. Apesar de ter percebido a ideia exemplar de ser no próprio ser de quem questiona como o fio condutor, tomou como suporte o interior de nós mesmos enquanto ente. Chamou, assim, de substância a mônada, uma essência que remete à alma, vida, força, espírito no sentido do “eu” como uma instância do sujeito. (HEIDEGGER, 2002a, p. 135). À luz da crítica, das correntes filosóficas como racionalismo (Descartes, Espinoza, Leibniz, dentre outros) e empirismo (Hobbes, Locke, Hume, etc.), surge Kant, o filósofo que defende que o nosso conhecimento não é outra coisa senão o composto do que recebemos e daquilo que a própria razão produz por si mesma. Resultando, porém, num conhecimento absolutamente independente da experiência, cuja origem é a priori. A este conceito de sujeito estaria faltando justamente o a priori do sujeito “de fato”, do sujeito que se encontra em sua facticidade e historicidade – o Dasein. Nesse sentido, Kant, de acordo com Heidegger, não é menos subjetivista que seus antecessores, na medida em que não fornece, como não fornece Descartes e Leibniz, uma constituição fundamental do “sujeito”, do Dasein como serno-mundo. A determinação moderna do eu como sujeito em oposição ao objeto esconde justamente o caráter ontológico de “sujeito”. Entretanto, isso não retira o mérito da noção moderna de sujeito que nasceu de uma reação contra a filosofia escolástica medieval como apenas formadora de conceitos. Sem o despertar da “modernidade”, uma filosofia orientada para a universalidade de sentido na estrutura do sujeito, seria pouco provável, e a compreensão de Heidegger muito característica da fenomenologia que culminou em seu distanciamento de Husserl, se deu muito possivelmente graças às suas leituras, nos anos vinte e trinta, de Kant e Aristóteles. 25 1.2 Posição fenomenológico-hermenêutica “Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento necessita, portanto, de uma transparência conveniente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 30). Nesse trecho encontramse os alicerces para o desenvolvimento da nossa investigação, pois daí emerge as questões de destaque nas quais se estruturam este trabalho. A primeira consiste no fato de que o ser, embora ele seja pré-iluminado, não se mostra tão facilmente como a mesa e a cadeira; não é, portanto, uma “evidência ôntica”. O ser se apresenta de modo diferente da mesa. Ao mesmo tempo em que o ser se desvela, ele também se vela, daí a necessidade de uma investigação própria, pois é justamente essa indeterminação do ser que nos faz interrogar pelo seu sentido. Desse aspecto surge, então, a segunda questão a ser considerada, qual seja, o fato fundamental de que o ser não pode ser determinado nem por outra coisa nem como uma outra coisa, mas apenas pelo seu próprio sentido. O ser não é um ente (como já dissemos). Conquanto o ser não possa ser dito nem tratado como um ente que é somado a outros entes, ele só pode se nos apresentar no concurso do ente. E se o ser está mesmo em tudo que nos movemos, em toda compreensão de mundo, tem-se, então, aqui a razão pela qual o sentido seja a única forma de chegar originariamente aos entes. Não obstante, o sentido não é uma qualidade do ente que possa vir a se tornar visível ou representada. Em contraste, “sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 208). É assim que quando, por exemplo, compreendemos a cadeira como algo para sentar, não é o sentido que a cadeira possui para nós (objeto para sentar) que é compreendido, mas somente em função dessa perspectiva de sentido é que podemos compreender algo como algo, a cadeira como algo para sentar. É pela região do sentido que a investigação de Heidegger pode, em última instância, designar o conceito ontológico-existencial dos fenômenos sem que para isso tenhamos que apoiá-lo em algo e torná-lo passível de objetivação. A partir disso, Heidegger sentiu a necessidade de realizar uma exposição sobre o conceito de fenomenologia 26 interpretado por ele pela via hermenêutica, isto é, pela compreensão ontológica. A “visão” (do latim tuere, ver) sempre foi concebida, desde os antigos, como o modo de apreensão genuína dos entes, e, dessa forma, Santo Agostinho, como bem observa Heidegger, foi o primeiro a perceber a primazia do “ver” em relação aos demais órgãos sensoriais. Não é por acaso que, segundo as análises de Heidegger sobre as Confissões, muitas vezes dizemos: “vê como soa, vê como cheira, vê como isso tem gosto, vê como é duro” (HEIDEGGER, 2002a, p. 232), usamos, assim, a visão para todas as percepções dos sentidos. De acordo com essa concepção, apreendemos os objetos mediante uma percepção puramente intuitiva. Não obstante, observa-se que desde a fenomenologia husserliana, o acesso às coisas não se dá de forma pura e imediata, considerando o fato de que nos colocamos e nos comportamos sempre em relação a um todo; é segundo essa perspectiva que já somos sempre intencionalidade. A posição fenomenológica de Heidegger consiste numa de-monstração dos objetos no sentido de realizar uma descrição que se orienta apenas pela coisa mesma. Daí o conceito de fenomenologia como “toda demonstração de um ente tal como ele se mostra em si mesmo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 66). De acordo com Heidegger, a fenomenologia é uma identificação muito peculiar dos objetos. “É a ciência do ser dos entes – é ontologia”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 68). Nesse sentido, como a palavra não se refere ao objeto, nem ao seu conceito, mas ao modo mesmo como eles vêm ao encontro, Heidegger, então, a denomina de “interpretação”, que, por sua vez, assume um caráter de descrição, sentido próprio do logos. Assim, o logos que, junto com a palavra fenômeno compõe o vocábulo fenomenologia, nada mais é que o “deixar e fazer ver” aquilo sobre o que se discorre. Fenomenologia é, dessa forma, a interpretação do Dasein que resulta numa hermenêutica, dado o movimento de mostração e ocultamento em que se revela o ser, ou seja, o dar-se do ser como manifestação. E por “hermenêutica” entende-se a interpretação que o Dasein faz de si mesmo partindo da analítica existencial. Com isso, chegamos à indicação do sentido fenomenológico de fenômeno como aquilo que se mostra em si mesmo e ao sentido de “'manifestação’ enquanto manifestação que anuncia algo que se vela nas manifestações”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 60). Nesse contexto, fica esclarecido o modo peculiar do acesso fenomenológico ou o caráter de fenômeno constitutivo da “manifestação”, 27 que tem aqui o sentido de um anúncio mediado por algo que se mostra. Pois, uma “manifestação” só é possível porque algo se mostra. A posição, pois, fenomenológico-hermenêutica de Heidegger, enquanto posição filosófica, será uma maneira de interpretar aquilo que não se mostra, mas que está implícito em toda manifestação de algo, ou seja, é o modo de acesso ao ser dos entes. Visto que, toda e qualquer manifestação só é possível com base no mostrar-se de alguma coisa. Nesse caso, o fenômeno assume aqui um sentido primordial; trata-se de discutir algo que não se mostra diretamente, mas por outro lado, pertence essencialmente ao que se mostra em si mesmo, isto é, ao “fenômeno”. Não é difícil imaginar até aqui a repercussão que teve o sentido originário que os gregos experimentaram através da physis e também o sentido fenomenológico dos fenômenos possibilitado pela fenomenologia de Husserl. O "ir às coisas mesmas” em Heidegger ressoa como a possibilidade de recuperar a dignidade daquilo que sustenta a unidade na multiplicidade de seus sentidos, de adentrar na proveniência própria que “antecede” e deve guiar toda investigação originária – o próprio ser. Daqui por diante, a ontologia fundamental em seu projeto de realizar uma discussão do sentido do ser em geral exige uma compreensão prévia da palavra “ser”. Por conseguinte, esse projeto visa uma maneira mais originária de entender nossa relação e comportamento com as coisas, de modo que ela seja uma abertura que se abre na própria condição das coisas e, ao mesmo tempo, o sentido originário que as fundamenta. Mas o sentido pretendido aqui não se identifica com o transcendental de Husserl, o qual só se realiza enquanto consciência. Ao contrário, o sentido agora vem de fora na medida em que não caracteriza mais uma consciência, nem uma essência que está por trás dos entes e que, por isso, não sofre nenhuma relação com a existência, com a história. E nesse caso, a questão em Heidegger está referida ao modo de ser no mundo, uma vez que já desde sempre sou ultrapassado. O ser-no-mundo do Dasein revela o próprio Da desse ente que, ao interpretar a si mesmo, realiza também uma compreensão do sentido do ser. Faz parte da existência do Dasein romper o “si mesmo”. Ou seja, o fenômeno do sentido originário não se separa da sua condição histórica. A compreensão não é uma atividade da consciência que se acrescenta ao fato da existência, mas um modo de 28 ser que se realiza na própria história, isto é, na existência mesma. Não é, portanto, uma atividade da consciência porque é uma atividade do ser que “antecipa” e dá espaço para os outros modos de compreender. Há, portanto, um modo de encontro originário de cunho fenomenológicohermenêutico no qual nos movemos em qualquer compreender. Assim, é tarefa da fenomenologia evidenciar este âmbito originário, ou seja, o espaço de manifestação do ser enquanto compreensão do nosso modo de ser. É por isso que Heidegger denomina a fenomenologia de hermenêutica. O seu caráter hermenêutico se dá em função do movimento circular de compreensão do ser. Isso significa que, ao compreendermos o ser, nos compreendemos em nosso próprio ser. 1.3 A especificidade da filosofia De acordo com Heidegger, a designação grega φιλοσοφία (palavra composta a partir de σοφία e φίλος) era compreendida inicialmente em seu uso prático. É por isso que esse significado pode nos ajudar numa possível “definição” da essência da filosofia. O adjetivo σοφός, que pertence à palavra σοφία, refere-se simplesmente: “àquele que tem o paladar certo para algo”, para ser mais enfático, àquele que tem “instinto para o essencial”. Dessa forma, σοφία se dirige originariamente ao trabalho artesanal. Portanto, o saber ou o compreender era primeiramente um saber artesanal, um saber lidar com a essência das coisas, isto é, compreender era lidar com as coisas em sua essência mesma. Daí a extensão do conceito de σοφία para todo e qualquer modo de compreender. Esse fato, porém, está associado com a experiência própria do compreender, qual seja, a experiência da dificuldade inerente ao compreender quando justamente ele se dirige à coisa mesma, à totalidade. Daí a ideia de que o compreender consiste num esforço particular permanente, no sentido de uma inclinação originária para as coisas. Essa inclinação própria para as coisas é o que está designado com o termo φιλία – qual seja, uma amizade que, em seu aspecto originário, luta pelo que ama. (HEIDEGGER, 2008b). Platão e Aristóteles já falavam que a pergunta pelo ser é a pergunta principal da filosofia, pois o filosofar só pode perguntar pelo conceito daquilo que já compreendemos. Na concepção grega de filosofia, como uma inclinação própria para as 29 coisas em sua totalidade, não há apenas uma indicação sobre a essência da filosofia, há, porém, e mais importante, o indício de sua finitude, característica decisiva que define a sua peculiaridade. Como uma possibilidade de nossa existência mesma, a filosofia permanece indeterminada – por princípio uma constitutiva finitude, chamada aqui de possibilidade finita. Portanto, a finitude pertence à origem da filosofia e não ao seu fim propriamente dito. “Finitude não diz primordialmente término” (HEIDEGGER, 2002b, p. 124). É com base numa determinação fundamental do sentido de filosofia que Heidegger nos diz: “filosofia é filosofar”. Ela não designa “o quê” está aí, mas o modo fundamental como se está “aí,” isto é, um modo de ser. É por isso que, segundo a interpretação de Heidegger, o termo grego φιλοσοφία (um saber lidar originário) nos dá a indicação de sua essência, à medida que a palavra na noção antiga não implica qualquer característica de conteúdo, mas apenas de uso das coisas, de comportamento. Pois: “filosofia é transcender, isto é, filosofar.” Mais precisamente, filosofia é dirigir-se para o ser. Transcender, para Heidegger, designa uma ultrapassagem como transcendência. Isso quer dizer: a ultrapassagem aqui não se refere a qualquer ultrapassagem, como por exemplo, a ultrapassagem em direção a um objeto, mas àquela que se dá enquanto essência fundamental do Dasein. A transcendência, portanto, só acontece no ente que nós mesmos somos, o Dasein. E a filosofia constitui essencialmente esse acontecer, “um deixar acontecer a transcendência.” Essa transcendência pode, por isso, designar “liberdade”, ou como afirma Heidegger (2008b, p. 426): A essência da filosofia consiste em formar a imagem da irrupção do ser-aí histórico e concreto que é determinado pela postura. Com isso, ela está voltada para o futuro em um sentido originário e bem preciso. Assim como o mito é para a filosofia uma lembrança essencial, o futuro é a sua força propriamente dita. Todo o presente, porém, não passa do ápice do instante, que toma seu poder e sua riqueza da lembrança futura. Assim, a concepção da filosofia interpretada por meio e a partir do tempo constitui a existência fática do Dasein a qual, a cada vez na história, se determina, pois “não há como contestar o fato de algo se encontrar 'fora'”. (FIGAL, 2007, p. 138). O “exterior” é essencial para a filosofia. Por outro lado, ela não pode ser entendida como que estando fora do Dasein, da existência como modelo para nós, 30 como uma instância para além do físico, suprassensível. A essência não é nada de tão profundo, atrás da coisa, mas sim a própria coisa no tornar-se de si mesma. Sobre essa caracterização do Dasein como transcendência Heidegger (2008b, p. 221) nos diz: No projeto prévio de ser sempre ultrapassamos de antemão o ente. Somente com base nessa elevação, somente com base em tal ultrapassagem, o ente se torna manifesto como ente. No entanto, na medida em que o projeto do ser pertence à essência do ser-aí, essa ultrapassagem do ente já precisa sempre ter acontecido e continuar acontecendo no fundo do ser-aí. […] Essa ultrapassagem, essa transcendência implica que ao ser-aí como tal pertença uma elevação originária própria de si mesmo. Por fim, o transcender, aqui, não está se referindo ao trans (além-físico), tal como vem sendo concebido desde a filosofia escolástica, está, antes de tudo, ligado à coisa mesma. Transcender, ou melhor, filosofar significa: distância na proximidade, ausência na presença, estar fora mesmo estando dentro, alteridade na identidade. E esta distância, como nos diz Gilvan Fogel (2009, p. 92) “já é até um pouco de morte [...]”. Ou como afirma Günter Figal (2007, p. 138): Na experiência hermenêutica lidamos com algo que nós mesmos não somos, com algo que se acha contraposto e nos apresenta aí um desafio. […] Por isso, enquanto a coisa hermenêutica, o elemento próprio ao que se encontra contraposto precisa se encontrar no centro do pensamento hermenêutico. Oposicionalidade é o tema central da filosofia que parte de um princípio hermenêutico. Com efeito, “a filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal que parte da hermenêutica do Dasein, a qual enquanto analítica da existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde retorna”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 69). Esta sentença que Heidegger utiliza em dois momentos estratégicos de Ser e Tempo, na introdução e no último parágrafo da segunda seção, compreende exatamente a especificidade do modo de ser da filosofia. Em seu sentido originário, a palavra hermenêutica designa interpretar. Esse termo de origem grega é derivado do nome de Hermes, o deus que tinha o ofício de levar as mensagens de Zeus. Filosofia é, então, filosofia hermenêutica no sentido de uma preparação para as condições de possibilidade de toda e qualquer investigação ontológica. Pois, a essência de uma coisa só se realiza numa investigação radical e 31 fundamental na qual essas condições aparecem e são propriamente. A filosofia não trata de objetos, de coisas objetivamente dadas, mas do fundamento, da possibilidade concreta de uma existência, ou seja, de um horizonte de sentido; é segundo este modo que podemos dizer que a ela não é dado nenhum objeto, mas apenas o modo como ele aparece ou o “a priori” (früher = anterior), numa linguagem posterior, como seu legítimo tema. De acordo com Heidegger, a filosofia moderna, que teve início com Descartes, batiza mais um momento de ruína da filosofia: “Descartes não leva a filosofia de volta para si mesma, para seu fundo e seu chão, mas a distancia mais ainda do questionamento da questão fundamental”. (HEIDEGGER, 2007, p. 54). Esse comportamento segue o parâmetro tradicional do saber matemático, “a mathesis em seu sentido mais amplo: conceitos e princípios fundamentais e derivação rigorosa”. (HEIDEGGER, 2007, p. 44). A matemática é o saber fundamental dos objetos que fornece um caráter de universalidade e, portanto, de conhecimento verdadeiro a partir de si mesmo, da razão humana. A matemática torna-se o critério para todo conhecimento. Mas, afinal, o que resta à filosofia? Apenas o desejo de elevar-se à categoria de ciência fundamental e universal, modelo ideal de toda cientificidade. Por isso, de acordo com Heidegger, o conteúdo da filosofia moderna até Hegel pode, muito facilmente, ser identificado com o conhecimento matemático. Esse caminho, portanto, compromete o caráter de “manifestação” originária, próprio da realidade, seu caráter ontológico constitutivo que não se deixa alcançar, mas que antes libera, dá espaço. E é porque o ontológico, afinal, libera, que ele significa história, um vir-a-ser. Daí a dificuldade da filosofia de pensar de forma radical uma realidade, pois quando operamos segundo o modo da relação – sujeito/objeto, subjetividade/objetividade, por exemplo – corremos o risco de compreender o ser a partir da simples presença, possibilitando, dessa forma, o surgimento das dicotomias imanente e transcendente, eu e outro, dentro e fora, e assim por diante. Pois, a realidade não possui esse caráter excludente que é próprio de quando fazemos uma abordagem do tipo objetivista, dirigida a um objeto que está inteiramente separado de um sujeito. No texto Que é isto a filosofia?, Heidegger nos diz que, apesar de Aristóteles já ter respondido a questão supracitada no livro I da Metafísica, ela (a resposta) não cumpre seu verdadeiro papel de penetrar na filosofia de um modo que possamos 32 meditar sobre sua própria essência. E que “a resposta somente pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto res-posta filosofa por ela mesma". (HEIDEGGER, 1973h, p. 217). De maneira semelhante, o ser não pode ser interpretado pelo ente, nem como um ente. O ser só pode ser interpretado pelo sentido. E só podemos perguntar ou meditar sobre esse sentido porque desde sempre nos movemos numa compreensão do ser. Para chegar ao problema fundamental por excelência, qual seja o problema do ser, Heidegger “escolhe” partir do que está mais próximo de nós, ao invés de partir dos conceitos que funcionam como princípios fundamentais e que estão na base de tudo aquilo que se encontra dentro do mundo. A filosofia ou ontologia, portanto, não se limita em descrever o que é simplesmente dado, justamente porque essa região que Heidegger chamou de ôntica não exprime, de maneira suficiente, o aspecto fenomenológico (ontológico ou de abertura) do ente. No entanto, nosso filósofo não propõe uma teoria e tampouco nos conforta com respostas prontas e acabadas com o objetivo de preencher o vazio deixado pelas perspectivas que o antecederam, sejam elas realistas ou idealistas. Heidegger pensa como Husserl que a investigação filosófica é mais fundamental que a relação sujeito/objeto, mas afirma, ao contrário daquele, que o fundamento está imerso na existência, a qual é feita de compreensão que já sempre temos sobre o nosso ser e não apenas sobre consciência e saber. Partir, então, do que já sempre somos, é partir da nossa compreensão enquanto ser-no-mundo, ou seja, da temporalidade finita do Dasein. Isso explica, afinal, porque a intencionalidade husserliana, como já aludimos, “continua sendo consciência”. (HEIDEGGER, 2008, p. 148). Assim, os pontos levantados pelo filósofo (como a questão do ser, por exemplo), quase sempre, são já antigos na filosofia, o que é sempre novo e extraordinário nas questões fundamentais da metafísica é, segundo o próprio Heidegger, “o fato de ter de ser continuamente posta” (HEIDEGGER, 1992, p. 13). Daí a insistência do filósofo em provocar a metafísica e o que nela está adormecido; em “corrigir, talvez, um pouco, o que está confundido”, contrastando aqui com a imagem falsa de que a filosofia heideggeriana se reduz em promover grandes inovações (como no caso da própria ontologia). Porquanto, segundo Heidegger (1992, p. 24-25), devemos: “aprender de novo a questionar. Isto acontece somente 33 na medida em que as questões (mas não, certamente, quaisquer questões) são, de facto, colocadas”. Algo de semelhante acontece com o tema do modo de ser-outro que pretendemos analisar, mais adiante, nesta dissertação. Pois, o “quem” do Dasein que desemboca na discussão do outro vai de encontro com a perspectiva hermenêutica que caracteriza a filosofia, em contraste com o modo de ser das ciências. Mas isso não significa negar a apreensão científica das coisas, significa antes de tudo, mostrar que a ciência não é o único modo de investigação da realidade e nem o mais fundamental, tampouco significa o lugar aonde a filosofia chega a termo. Por isso é que, para Heidegger, a filosofia sempre se apresenta, previamente, como um esclarecimento da própria questão (em função de seu caráter histórico), para que possamos, assim, pensar a filosofia no seu sentido profundo e não como algo além ou aquém do conhecimento científico, ou como se a ciência fosse o ponto de referência em torno do qual ela deveria se voltar. Para seguirmos em frente com o questionamento filosófico é preciso, pois, entendermos que a filosofia, não sendo nem melhor nem pior que as ciências, mas sendo apenas diferente delas, possui, dessa forma, uma maneira especial de chegar às coisas, o modo hermenêutico que lida com o que pertence a algo enquanto algo, uma vez que a compreensão ontológica ou originária das coisas está ligada ao modo de ser do Dasein enquanto ser-no-mundo. Por conseguinte, trata-se de um questionamento mais radical. O “mais” não designa aqui uma diferença de grau que pode ser medida pela posição ou lugar que a filosofia ocupa frente às ciências, mas aponta para outra dimensão do pensamento. A pretensão de um saber mais relativo à filosofia não se dirige contra a necessidade e o valor da ciência, refere-se apenas ao sentido do que é originário e fundamental. A filosofia não é algo à parte e, por isso mesmo, não é um domínio. E por não ser um domínio é que ela não pode nem ser ciência, nem cobiçar a positividade e o progresso que possuem as ciências, mas apenas ser ela mesma, ou seja, filosofia. Além disso, a questão filosófica também se diferencia da chamada “visão de mundo”, pois o nosso entendimento a respeito das coisas normalmente é resultado de uma consciência individual e particular. “Na verdade, enquanto homens, somos sujeitos e “eus” individuais e aquilo que representamos e em que acreditamos são imagens subjetivas que trazemos em nós; às próprias coisas, nunca chegamos”. 34 (HEIDEGGER, 1992, p. 22). Isso, porém, de acordo com Heidegger, não deve gerar a aparência de que o ponto de partida inverso, ou seja, a atitude que parte de uma perspectiva comum entre os homens seja, por isso, a melhor. 1.4 O problema do outro Quando pretendemos estudar a ontologia fundamental de Heidegger e, mais precisamente, o caráter de “ser-com” do Dasein, o que significa tratar do tema da “intersubjetividade”, exposto principalmente em Ser e Tempo, logo nos deparamos com um problema, pois o filósofo se recusa em diversos momentos daquela obra a pensar uma ética. O caráter de ser outro, o diferente, sempre esteve presente nas discussões da filosofia antiga. Platão, por exemplo, demonstrou que o diferente ou o “outro” (thateron) não é algo que se opõe ao ser, trata-se apenas de algo distinto do ser e dos demais gêneros. O “diferente” é um gênero que permeia a todos os outros (ser, movimento, repouso e idêntico), uma vez que cada um deles é diferente dos demais. Como vemos, parece que os gregos não separavam o “idêntico” do “diferente”, por conseguinte, não pensavam no “si mesmo” enquanto uma interioridade subjetiva, pois o “outro” estava implicado nas atividades do ser. O surgimento da problemática da “existência do outro”, que teve início na contemporaneidade, representou uma indicação do pensamento moderno que instaurou a ideia do sujeito pensante, ou seja, uma ideia muito abrangente de sujeito e do próprio conhecimento que domina a filosofia desde Descartes. Disso resulta o que a filosofia chama de “solipsismo”6: não há para mim nenhum outro ser que não o meu próprio pensamento. O pensamento é, assim, a fonte de todo conhecimento, só ele nos permite alcançar o objeto. Nesse caso, também o ser-outro nada é fora de mim e em si mesmo. Ele é um eu alheio, apenas uma coisa distinta em relação a minha consciência. A ideia cartesiana de que eu sou uma coisa que pensa isolou o homem do mundo e do outro. Uma tal concepção é responsável pelas análises contemporâneas que, em geral, apresentam o outro também como uma consciência. 6 O termo solipsismo vem do francês solipsisme, que, em linhas gerais, se refere ao limite extremo do idealismo que defende a concepção de que todos os entes ou a realidade são apenas reflexos de minhas próprias ideias. 35 Contrariando todas as expectativas de um saber que só entende o homem como sujeito e o outro como objeto, uma determinação tipicamente moderna, a “analítica existencial” de Heidegger tem a tarefa de trazer o homem de volta para a sua relação originária com o ser, para o simples da vida; para o que é e está simplesmente sendo, a physis grega. É, portanto, para ela que nos voltamos agora, para o espaço de manifestação que já se dá no aberto pelo fechamento do ser através das realizações humanas. Trata-se de preservar a estrutura que, justamente por se esquivar, possibilita o homem a viver e se comportar com os entes. Com Heidegger, o conhecimento é menos intelectualista e o Dasein é originariamente um ente que compreende o ser e não um “ser vivo” cujo caráter primordial é a razão, mas também não constitui uma vontade irracional da qual falava Schopenhauer. O conhecimento tornou-se a maneira mais comum de pensar a relação euoutro, frequentemente entendida como uma relação entre entes, o objeto e o sujeito para quem este objeto aparece. Isso é resultado de uma concepção do outro como “outro eu”, com o qual o “meu eu” se relaciona, tornando-o um mero “tu” diferente de mim. De acordo com Heidegger, compreensão não tem nada a ver com uma instância interior subjetiva que se conecta com um exterior objetivo. Não é, portanto, “o conhecimento quem cria pela primeira vez um ‘commercium’ do sujeito com um mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 102). Eis aí porque Heidegger se decide pelo uso de Dasein (substantivo do gênero neutro muito comum da língua alemã – das Dasein) em vez de sujeito. Dasein enfatiza o fato de que nós já desde sempre estamos no mundo. Por isso, não pode designar um sujeito e muito menos um objeto e sim uma relação com o seu ser ou com o mundo dos entes, na medida em que todo ente “é”. Ao mesmo tempo, porém, Heidegger determina: “o ser, que está em jogo no ser deste ente, é sempre meu”. (2002a, p. 78). Como Husserl7, o filósofo não desconsidera a existência meramente presente dentro do mundo e, assim, concorda com uma perspectiva realista segundo a qual o real existe mesmo sem referência a uma ideia de ser. Mas, por outro lado, a filosofia, de acordo com Heidegger, só pode prosseguir segundo um modo determinado, o da compreensão ontológica. Desde a filosofia transcendental de Kant, o ser não está mais entre as coisas reais. Kant fornece um importante ponto 7 A formulação de Husserl – “toda consciência é consciência de alguma coisa” – defende a realidade e o em si das coisas. 36 de partida para as abordagens do século XX. Com o argumento transcendental, ele se afasta da ideia de que nossa experiência tenha o status de um ser natural, de um ser entre outros seres. Esse argumento introduz a ideia da experiência como tal. A experiência para ser experiência tem de ser de alguma coisa, ou seja, experiência de uma determinada coisa. Na interpretação heideggeriana do mundo como significância ou contexto “em que” o Dasein já desde sempre está também reside uma determinação ontológica do estar com o outro mesmo estando sozinho. “No mundo compartilhado (Mitwelt) do cotidiano, deparo com os outros em mim mesmo e deparo comigo nos outros”. (NUNES, 1992, p. 97). Investigaremos, assim, o ser-no-mundo do Dasein e o caráter ontológico desse encontro nos capítulos dois e três do presente trabalho, respectivamente. O mundo do Dasein, ao qual Heidegger chama de mundo circundante (Umwelt), ao mesmo tempo em que é tão próximo, é também, por outro lado, não perceptível: Para quem usa óculos, por exemplo, que, do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os ‘trazemos no nariz’, esse instrumento [...] do ponto de vista do mundo circundante, acha-se mais distante do que o quadro pendurado na parede em frente. (HEIDEGGER, 2002a, p.155). A filosofia moderna concebe o “eu” a partir de minha subjetividade e, da mesma maneira, concebe o “outro” como outro eu ou outro sujeito. Com Heidegger (2002a, p.167) o eu “não é e nunca é dado sem mundo”. O originário ser para com os outros, que Heidegger chama de preocupação, se dá na lida cotidiana ocupada com os instrumentos, que possui a constituição fundamental de ser-para. Mas o outro se nos apresenta de uma forma diferente dos demais entes. Não os encontramos nem como instrumento nem como objeto; deparamo-nos com eles “junto ao trabalho”. Significa dizer, “em seu ser-no-mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 171). Essa compreensão nos leva a perceber que o “outro” não é objeto. Sempre temos o outro em conta, entendido aqui não apenas no seu sentido restrito como uma pessoa, mas olhando de modo mais amplo, trata-se do campo dos entes, ou seja, de tudo aquilo que de alguma maneira “é”, as coisas, o homem, as ações, etc. Esse foi o significado de outro mais importante que conquistamos com a obra de 37 Heidegger. E dada a sua relevância para a história do pensamento sobre o ser, o último capítulo desta dissertação pretende investigar justamente como o “relacionarse”, ou melhor, como o estar com o outro, seja na lida com os instrumentos ou na preocupação (Fürsorge) com os outros, no sentido de Heidegger, é colocado sem recurso tradicional à percepção interna, isto é, não é colocado segundo a filosofia moderna que distingue o “outro” a partir de um “eu” primariamente isolado, ou seja, de uma subjetividade, mas antes, como problema ontológico a partir da analítica existencial do Dasein. Ocupar-se dessa tarefa é identificar o quanto sua caracterização do ser-com do Dasein cotidiano na impessoalidade, nos lega uma forma não representativa de compreender o outro na medida em que o entende não como outro sujeito, e sim, como Mitdasein (Dasein-com), estrutura determinada pelo ser do Dasein. É valer-se, como também do ser-com do Dasein por meio da preocupação, a qual está reservada apenas para a relação entre os “Dasein”. Significa, portanto, apontar para os conceitos de propriedade e impropriedade como modos integrantes do ser do Dasein, os quais somente são possíveis porque o Dasein vive a possibilidade mais fundamental e, portanto, a “mais própria” de ser para a morte. O trabalho segue, finalmente, a tarefa de elucidar o modo de ser “outro” que, segundo uma proposta fenomenológico-hermenêutica, se nos revela, o mais das vezes, pelos modos “indiferentes” (mas positivos) de preocupação (ser-com) e como esta convivência cotidiana do Dasein se impõe enquanto importante questão na ontologia fundamental de Heidegger. No capítulo seguinte privilegiamos o fato de o Dasein já desde sempre se encontrar no mundo, conforme o nosso interesse de ressaltar e entender as análises posteriores de Heidegger sobre o Dasein cotidiano (Quarto capítulo de Ser e Tempo). É interessante notar que as três palavras já-desde-sempre que se encontram aqui em destaque apontam justamente para o fato da temporalidade da compreensão do ser. E é por isso que nesse trabalho a análise da temporalidade do ser do Dasein antecede a analise do ser-no-mundo do Dasein, considerando que a filosofia, enquanto possibilidade finita, conforme mostramos acima, emerge da existência cotidiana. 38 2. A QUESTÃO FUNDAMENTAL EM SER E TEMPO 2.1 O projeto de uma ontologia fundamental Conforme Heidegger, a história da palavra metafísica coincide com a própria história do pensamento ocidental. Esta palavra se compõe da preposição meta (“para além de”) e physis (natureza entendida no sentido grego como o que está diante, aquilo sobre o que o homem não interfere ou interferiu). Physis ou como veio a se chamar “natureza” para os gregos é tudo aquilo que sai ou brota de dentro de si mesmo, o surgir das coisas. Com a palavra physis os gregos (mais especificamente os pré-socráticos) designaram o ente, no sentido de “um vigor dominante daquilo, que brota e permanece”. (HEIDEGGER, 1966, p. 51). Pois, de acordo com Heidegger, “os gregos não experimentaram, o que seja a physis, nos fenômenos naturais.” (1966, p. 52). Esse significado amplo e originário, contudo, foi perdido com a tradução da palavra para o latim “natura”. Por physis os gregos entendiam o ente como tal e não um ente particular. Physis diz num sentido bem mais amplo o que se encontra diante em sua amplitude e não o sentido posterior e restrito de natureza. Portanto, a investigação filosófica que se ocupa do ente como tal, enquanto totalidade, chama-se meta ta physika, além do ente. Mais tarde, se convencionou chamar de meta ta physika, ou seja, meta-physika, os escritos de Aristóteles que sucediam aos estudos sobre ta physika. Quando foram classificados, estes escritos facilmente se distinguiam daqueles sobre a physica. Porém, ao mesmo tempo haviam tratados que pareciam similares, mas por outro lado não coincidiam e até mesmo se distinguiam entre si. E foi exatamente esta perplexidade que fez com que os escritos descobertos fossem acrescentados aos da physica. Nesse sentido, metafísica diz, por um lado “transcender” o ente, mas por outro lado significa ser na referência com o ente. Aqui é ressaltado o aspecto ambíguo da palavra metafísica, que se traduz na sua relação originária com o ente 39 apesar de haver uma distinção entre os dois – é que no ser está implicado o próprio ente. No Sofista, Platão considera o tema do ser (e do não-ser) como estando envolvido por uma “completa perplexidade”. (PLATÃO, 2007, 251a). É assim que podemos dizer que Heidegger acolhe o sentido aristotélico de metafísica como investigação do ente em sua totalidade. Porém, este élan, de acordo com Heidegger, desapareceu mais tarde na era cristã. O termo meta ta physika que antes constituía o “ser do ente” foi, mais tarde, traduzido para o latim por metaphysica, em conjunto com scientia (conhecimento do suprassensível). O conceito, que antes identificava um composto de classificação e perplexidade agora remete para um conteúdo determinado, o qual aponta para o que é “trans” (além da natureza). Significa dizer que a metafísica tornou-se a expressão dos estudos acerca do ente mais elevado; um ser superior, qual seja, Deus, em contraste com o estudo do sensível; transformando-se, portanto, em um nome (= ente), manifestação de “não-natureza”, o que mais tarde designou-se de não empírico. A metafísica posterior “é o conhecimento das coisas divinas, do suprasensível”. Pois, de acordo com Heidegger, “[...] A proveniência própria da palavra foi esquecida”. (2007, p.37). Desta forma, para esclarecer a “questão do ser” em Ser e Tempo é preciso entender, num primeiro momento, que a investigação não se opõe à metafísica, apenas quer trazer à tona o seu verdadeiro legado – o esquecimento do ser. Daí a necessidade de ver que Heidegger coloca a tradição em xeque não com o objetivo de aniquilar o seu pensamento, mas, antes, para recuperar o sentido esquecido do ser. Não por acaso ele nos diz: “a tradição [...] tende a tornar tão pouco acessível o que ela ‘lega’ que, na maioria das vezes e em primeira aproximação, o encobre e esconde”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 49). A metafísica, nesse caso, não apenas esquece o ser, investigando o ser do ente, mas também esquece o próprio esquecimento do ser. Havendo, portanto, um duplo esquecimento. O primeiro modo de ser do Dasein no mundo não é o da contemplação, mas o da preocupação. A este modo preocupado de ser do Dasein vincula-se o problema mais fundamental de toda a obra de Heidegger, que é a significação do ser e sua relação com o tempo. A tradição sempre identificou o ser com a simples presença. A noção originária de ser se dá objetivamente e, portanto, segundo o fio condutor de um determinado modo temporal – a presença. Mas que ser é este que se tornou tão 40 evidente a ponto da “ontologia” desistir da própria colocação da questão, segundo Heidegger? De modo simples e claro, é aquilo que subsiste; é uma coisa, uma substância, um objeto. É, pois, aquilo que se apresenta a nós como coisa, é algo que está presente, que perdura. Por isso, a ideia de ser aqui combina perfeitamente com a ideia de “fundamento”. Assim, a ideia de ser revelou-se completamente dominada pela ideia de “realidade”, isto é, pelo conceito de ουσία. Entendemos agora porque a recolocação da questão do ser em Heidegger é feita em relação com o tempo, mediante a análise de um ente que, conforme dissemos, se pergunta sobre o sentido do ser, isto é, compreende o ser – o Dasein. O ser, no início, “se arrancou aos fenômenos”, nos diz Heidegger. E já aqui o que se mantinha encoberto “deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 27). É certo que, parte do conceito de fenômeno, Heidegger deve a Husserl, mas a outra parte vem de Aristóteles. Dessas duas fontes, nasceram os dois pontos principais da filosofia de Heidegger, pontos esses que acabam por estruturar e perpassar todo o presente trabalho. É assim, portanto, que Heidegger assume o conceito aristotélico do “ente enquanto ente” e a ideia de que o ser se diz de várias maneiras. Com a filosofia do ser de Aristóteles e a intencionalidade husserliana, Heidegger chega aos variados modos de ser “no” mundo de um ente determinado – o Dasein, segundo uma interpretação ontológico-fenomenológica de seu ser. 2.1.2 O modo de investigação da questão do ser Diz-nos Heidegger que as questões e, menos ainda, as questões fundamentais não se encontram tão facilmente como pedras e água. “Questões SÃO e são apenas, enquanto se investigam realmente”. (HEIDEGGER, 1966, p. 59). De acordo com essa perspectiva, a toda questão pertence uma interpretação. Eis o que diz o princípio hermenêutico. Portanto, a questão proposta em Ser e Tempo não possui o modo de ser de um simples questionário, justamente porque tal questão, a questão fundamental do ser, não se dirige propriamente a um ente e não se constitui numa busca incessante pelo enigma do mundo ou acerca da natureza do ser. Pois como diria Heidegger 41 (2002a, p. 109) as “coisas” não estão diante de mim, o que primeiro vem ao encontro não são as coisas ou o objeto como queria Husserl, mas o próprio ser, que, por si mesmo, se “des-vela”. Portanto, só há coisas, só há realidade, porque se abre um horizonte de ser ao questionar. Mas o que se questiona não é algo estranho para o próprio questionar, mas algo constitutivo de seu próprio ser. Assim, o questionamento perfaz um caminho circular em que o ato de questionar algo remete ao próprio questionamento – a questão privilegiada do ser. Por outras palavras, o ente (o interrogado na questão) que se determinado em “seu ser” (temos aqui o perguntado - o sentido do ser) remete à questão do próprio ser; apresenta-se em tal questionamento, pois, como o ente privilegiado, o ente que nós mesmos somos, o Dasein. Mas como isso é possível? Pois, toda procura retira do procurado sua direção prévia e de algum modo o sentido do ser já se deu. É desta compreensão implícita do ser que emerge a compreensão explícita do ser, ou melhor, o sentido do ser, o qual foi esquecido pela tradição. Mas isso não quer dizer que esta busca seria em vão porque ainda que a compreensão do ser constitua aquilo em que desde sempre nos movemos, ela até hoje não foi determinada em seu significado, pois não foi colocada de forma adequada de modo que esse “é” precisa de esclarecimento. Eis, então, uma das tarefas mais importantes de Ser e Tempo e do pensamento de Heidegger como um todo – questionar o ser pela pergunta diretriz sobre o “sentido do ser”. No entanto, o sentido do ser não pode de início fornecer tal esclarecimento. O fio condutor da questão, isto é, o sentido do ser, só pode ser atingido com a elaboração do conceito de ser e dos modos de compreensão inerente a ele. Contrariando, assim, os princípios lógicos, o “ser” é algo que necessita de interpretação, pois o procurado não é algo estranho para nós onticamente - o ser. Dessa forma, a investigação do ente como ente não pode ser conduzida ao encontro de outro ente. Assim, o interrogado, em tal questão, só pode ser o ente, visto que, o ser não se deixa dizer, estando, portanto, naquilo que é e como é. Por isso, “o ser é sempre o ser de um ente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 35). Mas é justamente porque o ente já se deu tal como ele é em si mesmo que ele pode apenas ser interrogado em seu ser. Desse ponto, surgem questões tais como: existe um privilégio entre os entes? Em qual dos entes deve-se abrir o sentido do ser? De que maneira deve-se compreender o ser? Aqui se apresenta uma dificuldade, porque os modos de 42 visualizar e compreender o ser são, ao mesmo tempo, modos de ser do ente que questiona, isto é, o Dasein em sua existência. Isso quer dizer que, interpretar o ser significa tornar claro o ente que nós mesmos somos (o Dasein) em seu ser. Conforme vem sendo dito, a investigação desenvolvida neste trabalho percorre um círculo de compreensão, porque “a caminho do objeto estava-se também a procura do caminho”. (STEIN, 1988, p.35). Mas, segundo Heidegger, isso não é motivo para uma contradição lógica, pois é neste círculo mesmo que reside o mistério do compreender. Esse aspecto do seu filosofar pervaga toda a sua obra. Então, reforçando o que foi dito anteriormente, o conceito de ser já pressuposto no questionamento não consiste num conceito explícito do “sentido do ser”. Daí a necessidade da filosofia e sua tarefa mais essencial. Porque o que está em jogo aqui não é o estabelecimento de um princípio segundo o qual se chegaria a uma resposta, por dedução, mas a “mera” compreensão cotidiana do ser em que sempre nos movemos. A pergunta constitui já uma resposta, de acordo com a estrutura do questionamento sobre o sentido do ser. Somos, dessa forma, atingidos pelo questionado, porque no próprio ser deste ente dá-se uma compreensão do ser, ou melhor, somos o próprio questionamento, somos, portanto, ontológicos, somos no ser e para o ser. Mas para que serve tal questão do ser, pergunta Heidegger. Ora, o todo dos objetos torna-se depois objeto do conhecimento científico. A ciência, nesse sentido, consiste num modo derivado de compreensão. Portanto, há uma interpretação précientífica da região do ser antes mesmo de uma determinação dos setores dos objetos (biologia, história, antropologia). Isso mostra que, já na ciência, podemos conferir o primado do que Heidegger chama os “conceitos fundamentais”. Assim, são eles que servem de guia para as pesquisas ônticas e, nesse caso, essas pressupõe o ser, isto é, a pergunta pelo ente na sua totalidade. Não devemos, portanto, entrar nas discussões que tentam equiparar a filosofia à ciência, no sentido de não se poder determinar ou a ciência em vista da filosofia e, por outro lado, determinar a filosofia como ciência. Num sentido originário, toda ciência emerge em meio aos “conceitos fundamentais” e, assim, não pode ela encontrar-se numa situação inferior à filosofia, sendo esta, porquanto, entendida como a ciência mais pura. Isso, na verdade não ocorre pelo simples fato de que a filosofia não pode ser designada de ciência. O que se pode considerar é o seguinte: a filosofia é mais originária na 43 medida em que é dela que a ciência originariamente advém. Pois, o conhecimento científico deve querer dizer: redução do ser ao ente, tratar o ser como se fosse um objeto qualquer, uma coisa. À ciência não compete uma investigação do ser do ente; porém, esse fato não consiste meramente numa opção que assim foi feita por este conhecimento, mas, antes, no próprio modo de ser dele como ciência. De maneira correspondente, a filosofia não pode ser considerada em vista de algo fora dela mesma, como, por exemplo, a ciência. À filosofia compete apenas ser ela mesma e nada mais. Chegamos agora à questão do primado ôntico e ontológico do Dasein (único ente que compreende o ser). O Dasein não se comporta como os outros entes. Ele possui uma primazia em relação aos demais entes. Isso ocorre porque em seu ser, ou melhor, sendo, em sua existência, ele estabelece uma relação de ser com seu próprio ser. (HEIDEGGER, 2002a, p. 38). Ou seja, dar-se uma compreensão de ser em seu próprio ser, isto é, sendo. Daí dizer que este privilégio ôntico do Dasein consiste em ser ele próprio ontológico, o que significa dizer que este primado não se dá num âmbito cronológico ou natural. Resumindo, o Dasein é o único ente que é determinado em seu ser pela existência. Ontologicamente também o Dasein tem primazia, pois ao Dasein pertence uma compreensão do ser de todos os entes que não possuem o modo de ser do Dasein. (HEIDEGGER, 2002a, p. 40). Ou seja, é constitutiva do Dasein uma compreensão do ser em geral. Ao querer determinar o ente em “seu ser”, Heidegger se depara, então, com a questão do próprio ser. Os lógicos certamente encontraram um círculo em tal questionamento e o chamaram de círculo vicioso; ao passo que, Heidegger, em resposta às críticas a Ser e Tempo, se defende no ensaio – A origem da obra de arte, onde diz que tal círculo constitui a “festa do pensamento’’ e que dele não se pode fugir, e mais, dele não se deve de modo algum escapar. Neste sentido, porém, a ontologia tradicional também investigou o ente como ente (a essência de cada ente e do ente em geral) e, no entanto, não colocou o problema de modo suficiente. Mas por que isso ocorreu? Segundo Heidegger, ao investir numa busca pelo ser de cada ente, a ontologia antiga tomou como fio condutor a existência do próprio ente. Ou seja, daqui advém toda confusão, quando, porém, se tomou o ser pelo ente, o problema da existência, que em Heidegger se coloca no âmbito do ser do sendo, foi reduzido à existentia (um existente dentro do mundo). O ser é, aqui, pensado a partir 44 do ente, tornando-o como um ser entre outros. Desse modo, o conceito de ser como realidade (ousía) sempre tomou a frente na problemática ontológica, de modo que, o que já se produziu até hoje, fez-se no projeto de uma simples presença. Mas é precisamente porque o ser não é um ente que ele (o Dasein) não pode se colocar diante dele mesmo, então, o Dasein, de certo modo, nunca é. A diferença ontológica não mais se dá num âmbito da metafísica tradicional, e sim, na própria existência como caráter do Dasein. Aqui não está em jogo o conceito clássico de ser enquanto substância nem o conceito moderno de existência como “subjetividade” nem tampouco o da “filosofia da existência” (que supõe a distinção escolástica entre essentia e existentia). Heidegger quer resgatar aquele pensamento originário sobre a existência como verdade que, salvo as diferenças metodológicas, foi pensado inicialmente pelos gregos. Pois, o Dasein sempre lida com algo (significância), sempre temos a ver com algo. A existência enquanto transcendência está na base de uma ontologia fundamental que somente se tornou possível em Ser e Tempo a partir da elaboração da questão do sentido do ser. Neste contexto de reflexão, portanto, é o ser - o questionado. Daqui pode-se compreender o sentido profundo do ser (Da-sein) como o ek-stático da ek-sistência (o estar fora). 2.2 Ser temporal do Dasein Kant dá um passo à frente na questão do ser quando compreende o tempo como fenômeno do sujeito. Por essa razão, o objeto exprime algo que não é outro objeto, uma representação. O objeto, nesse caso, possui um significado. Nesse sentido, ele avança no tratamento que é dado à relação entre ser e tempo, uma relação que já estava presente na filosofia antiga, mas que a partir de Kant se confirma uma vez que, desde então, não é mais possível se falar do tempo como uma realidade absoluta. Porém, a noção de tempo abordada aqui não constitui a mesma que foi legada pela tradição e que determinou, inclusive, a concepção kantiana do “tempo”. Kant percebeu o movimento fundamental que vai do ser ao Dasein, mas somente isso. Faltou a ele uma ontologia explícita do Dasein, além da elaboração da questão fundamental do ser. E por essa questão estar tão próxima de nós, ou seja, nós 45 mesmos estamos inseridos neste processo que questionamos, é que a consideramos demasiado complicada e de difícil acesso. É, pois, com base nesta perspectiva histórica do ser que Heidegger pode afirmar: O modo de ser do Dasein exige, portanto, de uma interpretação ontológica, daquela que se pôs como meta a originariedade da demonstração fenomenal, que essa interpretação conquiste o ser desse ente contra sua tendência própria de encobrimento. É por isto que, para as pretensões de auto-suficiência e evidência tranquila inerentes à interpretação cotidiana, a análise existencial guarda sempre um caráter de violência. (HEIDEGGER, 2002b, p. 104, grifo nosso). Assim, de acordo com ele, não só na tradição grega, mas também em Kant a noção de ser se orienta por uma única faceta do tempo – o tempo presente. O interesse principal de Heidegger consiste em sustentar que, para Kant, “a presença, o presente” indicam imediatamente uma relação com o tempo, da mesma forma que “a constância” e “a persistência”.8 Este algo de permanente que subsiste naquilo que muda nada mais é que o próprio tempo, na concepção de Kant. A “permanência” (o tempo), que não muda e se torna condição de um tempo sem fim, encobre a dimensão da temporalidade originária; o conceito vulgar de tempo do qual fala Heidegger em Ser e Tempo nos remete justamente ao que ele chamou de “tempoagora”, aquele que persiste, ou seja, que simplesmente vem e passa não dispondo, assim, de um horizonte que lhe permita constituir como uma possibilidade do tempo da convivência cotidiana, qual seja, o tempo do relógio ou concreto que se dirige para a eternidade. Até mesmo a sua determinação do ser enquanto “posição” manifesta uma primazia do tempo presente que se orienta para um tempo eterno. (HEIDEGGER, 1973a). Pois, o que é se torna depois objeto do meu representar, torna-se um existente, um objeto. E o existente enquanto a permanência nas modificações dos fenômenos encontra-se numa relação primeira com o tempo. Portanto, na interpretação de Heidegger, Kant não levou em conta a temporalidade originária. Este fala como se o modo da temporalidade fosse apenas o presente. O passado não é mais e o futuro não é ainda. Desta forma, o tempo, para Kant, coincide com cada instante, com cada agora. Na definição kantiana de “existência” 8 Sobre o conceito kantiano de tempo, cf. HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Tradução Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 1992. 46 (Dasein) enquanto presença constante, a relação com o tempo é primordial. Cada existente traz consigo o sentido de um “permanecer”, “mas a permanência, como presença constante, é, segundo Kant, a característica fundamental do tempo”. (HEIDEGGER, 1973a, p. 222). Em suma, o tempo, não obstante fenomênico, constitui o que permanece na mudança, o que nunca passa e por isso tende para um tempo infinito e eterno. Para Heidegger, essa primazia do “presentar” determina todas as caracterizações do ser, inclusive a de Kant. Em Ser e tempo, Heidegger afirma que somente na “destruição”9 da tradição ontológica é que se pode ter a certeza da necessidade de uma repetição da questão do ser. (HEIDEGGER, 2002a, p. 56). Isso quer dizer que uma concreção da investigação ontológica só começa dentro do horizonte liberado pelo tempo. Pois, a investigação filosófica ou ontológica que procura “pôr-nos à escuta da voz do ser” não representa uma ruptura com a história. (HEIDEGGER, 1966, p. 22). Nesta passagem, Heidegger nos remonta para a correspondência dirigida ao apelo do ser do ente que é entendido como sendo a própria filosofia. A filosofia moderna, de fato, confirma o nexo especial entre ser e um determinado modo do “tempo”, mas o faz baseando-se numa concepção corrente de tempo. A noção de tempo da tradição é o tempo cronológico, aquele que segue a ordem dos acontecimentos notáveis de um determinado momento, o qual implica num tempo eterno, atemporal, sem começo nem fim. Em suma, o “tempo do relógio”, como diz Heidegger, resulta num tempo infinito, num tempo fora do próprio tempo, ou ainda: A determinação do sentido do ser como παρουσία e ουσία, que, do ponto de vista ontológico-temporário, significa “vigência” representa um documento externo dessa situação, mas somente isso. O ente é entendido em seu ser como “vigência”, isto é, a partir de determinado modo do tempo, do “presente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 54). Como tal, o tempo não deve ser tratado ao lado da questão do ser ou como algo que é encontrado dentro do mundo ao lado de outros entes, mas como sendo o próprio ser. Ou seja, o tempo originário (ou existencial) é exatamente o oposto do tempo no sentido clássico, do conceito vulgar que define o tempo como “futuro, passado e presente”. Em vez disso, é um “acontecimento” que se realiza na própria 9 O termo usado por Heidegger em Ser e Tempo para dizer destruição é: Destruktion, palavra de origem latina e não Zerstörung. O termo Destruktion, escolhido para dizer “destruição”, não possui, portanto, o sentido negativo de aniquilação. 47 existência, na existência do Dasein, é o evento mais profundo da “vida”. Ademais, não resta dúvida de que a análise da temporalidade originária está imbricada com o fato de que o ser é “histórico”. “Temporalidade é o 'fora de si' em si e para si mesmo originário”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 123). Reside aqui, portanto, o fato de que ela só pode ser entendida existencialmente. O tempo não é algo simplesmente dado que está ao lado do Dasein, ele constitui o movimento mesmo que acontece entre ente e ser, entre o Dasein e sua existência. Heidegger nega a ideia de que o tempo tenha que se reduzir ao tempo vigente das coisas ou ao tempo psicológico e, com isso, introduz uma profunda mudança em toda a ontologia tradicional. Somos o que já foi justamente porque o ser só é a partir do futuro. O porvir condiciona o ter sido e a apresentação junto às coisas. É o “fenômeno primordial da temporalidade originária e própria”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 124). O tempo originário é, portanto, a conjunção daquilo que chamamos de passado, presente e futuro. Temos, assim, que olhar a tradição de uma forma diferente. E isso só é possível se violarmos a noção de história orientada para o passado; porém, destruir a história da ontologia não tem o sentido negativo de aniquilar o passado, mas de recuperá-lo como uma filosofia futura que irá olhar adiante para o passado. Sobre este ponto Jonathan Rée (2000, p. 21) nos dá um exemplo: Herdar uma tradição não é o mesmo que celebrá-la. Tomamos posse de uma herança quando assumimos o controle dela e lhe damos uma abertura para o futuro, não quando simplesmente ficamos atrás dela guiando-se pelo seu passado. A concepção de Heidegger de uma destruição da tradição tem esse sentido positivo de uma apropriação produtiva do passado e não de uma cessação de um processo. No § 6 de Ser e Tempo, Heidegger sustenta essa tarefa positiva da destruição na medida em que avalia as influências do pensamento ocidental após uma rápida exposição dos seus limites, segundo o fio condutor da questão do ser. É por isso que é possível dizer que só o Dasein existe. Isto significa não considerá-lo como uma coisa feita e acabada, mas antes como “possibilidade”. Existir, pois, sob o ponto de vista desse ente, significa ek-sistir, isto é, sair de si a todo instante, é dirigir-se ao seu ser como à sua possibilidade mais própria. Inúmeras vezes em Ser e Tempo, Heidegger faz referência à “essência” do Dasein 48 como sendo sua própria “existência”10, ideia essa que resulta do caráter mesmo da investigação ontológica em contraste com o modo moderno de perceber algo que existe como algo “dado” e distante de nós, isto é, como objeto. Antes, o que distingue o Dasein dos outros entes simplesmente presentes não é a sua função racional, mas a sua relação originária com o ser, com o qual ele se comporta o tempo todo em tudo que faz e diz. Assim, determinou-se de préontológica essa relação fundamental. Esse privilégio ôntico do Dasein, isto é, a constatação de que só ele compreende o ser, consiste no fato de ser ele ontológico. Assim, faz parte de sua constituição ontológica este interrogar-se sobre o ser que coincide com o próprio existir. Além disso, não se pode confundir a existência do Dasein que constitui para ele próprio um “assunto ôntico” com a análise ontológica realizada em Ser e Tempo, que tem como objeto – o Dasein (das Sein). Ou seja, o problema ontológico está na base dessa discussão. A questão do ser tem primazia em relação ao conhecimento teórico do ser. Isso confirma a tese do § 15 de Ser e Tempo que diz: o primeiro modo de ser do Dasein no mundo não é o do conhecimento perceptivo, mas o da ocupação na lida com as coisas. (HEIDEGGER, 2002a, p. 108). Pois bem, uma ontologia fundamental proposta como solo para as demais ontologias somente deve se apoiar no sentido do ser em geral, o qual pertence única e exclusivamente ao ser do Dasein e, nesse sentido, a ontologia fundamental só é possível enquanto analítica existencial, isto é, como analítica do ser desse ente. Como vemos, a metafísica clássica tratou o ser segundo o modelo do ente (ficou reduzida ao modo da Vorhandenheit); não obstante, nessa “ontologia inadequada da substância” havia um propósito – o “transcender” o ente. Porém, somente na ontologia fundamental de Heidegger a “existência”, ou melhor, o ser desse ente, tornou-se tema de uma análise ontológica. Isso não significa, contudo, perder de vista o espaço de manifestação do ente recorrente na filosofia grega. É sobre este ser “ontologicamente diverso”, o ser do Dasein, que se ocupa o filosofar de Heidegger; enquanto Aristóteles determina o ser do ente de ousía e a filosofia medieval de “transcendental”. Essas determinações se dão à custa de um questionamento ontológico – do sentido de ser liberado pelo fenômeno originário da 10 Heidegger desenvolve o sentido “essencial” do Dasein em várias passagens de Ser e Tempo (2002), merecendo destaque: § 9, p. 77; § 25, p. 168; § 45, p. 9; §60, p. 88; § 63, p. 107. 49 temporalidade, tendo em vista que o significado do ser não tem mais a estrutura de uma essência que transcende a temporalidade ao se estruturar na base de uma interpretação do tempo que vai do agora em direção à eternidade. Gianni Vattimo11, um comentador crítico de Heidegger, lança mão de três pontos básicos para compreender a fundamentação da temporalidade: 1) que esta fundamentação da temporalidade não possui o propósito simples de revelar o aspecto temporal do Dasein, mas, antes, pretende ser a própria fundação da temporalidade como tal. Pois, a concepção adequada do tempo não pode ter como referência o modelo do ente, mas do Dasein. A metafísica, por pensar o ser como simples presença se subtraiu de discutir a relação ser-tempo; 2) apesar de tudo, para Heidegger, não está em questão fundar a noção de tempo na estrutura existencial do Dasein, pois o ser do Dasein definiu-se unitariamente como cura. O próprio sentido da cura (“cuidado”) é a temporalidade; 3) disso resulta a diferença que há entre a problemática heideggeriana e agostiniana. Mas Heidegger se distancia de Agostinho por não fundar a temporalidade na consciência. Além disso, o significado do seu discurso não abarca só o tempo ou só o ser do homem, mas o ser como tal. O ser possui, portanto, um nexo peculiar com o Dasein: as coisas chegam ao ser apenas enquanto se situam no projeto aberto pelo Dasein, e este só é enquanto cura. Explicitar agora que o sentido unitário das estruturas da cura é a temporalidade significa, enfim, pensar numa construção ulterior da relação sertempo.12 2.3 Ser-no-mundo do Dasein Tradicionalmente, o ser se identifica com o conceito de simples presença. De modo claro, aquilo que perdura ou que se apresenta a nós, é o ente atual. Mas, 11 Cf. VATTIMO, G. Introdução a Heidegger. 10. Ed. Tradução João Gama. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. 12 Heidegger trataria do tempo originário como horizonte do sentido de ser em Tempo e Ser, naquela que seria a terceira seção da primeira parte de Ser e Tempo. Porém, ela não foi publicada, assim como as três seções que integrariam a segunda e última parte desta obra. Heidegger, no entanto, nos deixou como que um esboço daquela terceira seção na preleção do semestre de verão de 1927 – Problemas fundamentais da fenomenologia, apresentada em Marburg. Além disso, deixou ainda os temas das três seções da segunda parte. 50 de acordo com o ser histórico do Dasein, a noção de ser precisa ser provocada na sua relação originária com o tempo. E isto só é possível a partir da “analítica existencial”, isto é, de uma interpretação do ente que provoca o ser e que, além disso, ainda pode se interrogar sobre o seu sentido. É por isso que a compreensão (Verstehen), para Heidegger, constitui um modo de ser do Dasein dentre outros e não uma atividade do intelecto. Em Ser e Tempo, ele começa fazendo uma análise desse ser, o qual é estudado em sua significação mais geral e comum. Isso leva a investigação a colocar o problema do ser partindo da cotidianidade e é, nesse ponto, que Heidegger deixa perceber a influência da fenomenologia e a noção de ser que está implícita, a chamada précompreensão de ser. Essa pré-compreensão, contudo, não deve ser descartada em prol de uma compreensão dita mais legítima e fundamental. Pelo contrário, deve-se aceitá-la como indispensável a toda e qualquer compreensão. É graças a ela que podemos dizer qualquer coisa; em vez de complicar e confundir a compreensão, a torna possível. O ser do Dasein exprime “possibilidade”. Essa ideia está sob a forma: “Dasein é sempre sua possibilidade”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 78). Pois, é esse o sentido que traz o fato de seu ser está em sua “existência”. O poder-ser é o modo de ser do Dasein, que Heidegger chamou de existência. Mas para adentrarmos ainda mais na sua proposta, precisamos nos libertar do conceito tradicional de existência. Heidegger transformou as ontologias, antiga e moderna, colocando em discussão o conceito tradicional de existência concebido como um simples “dado” que possui o modo de ser da realidade, em contraste com as concepções clássicas acerca da existência no sentido de existentia (simples presença), conceito que não se aplicava ao homem, mas apenas ao ser simplesmente dado (substância). Heidegger, assim, reserva o termo “existência” só para o Dasein e compreende o seu ser como possibilidade de ser ou não “si mesmo”, pelo fato de estar referido ao próprio ser como à própria possibilidade. O Dasein não existe como uma simples presença. Pois, o que o torna diferente dos outros entes é justamente o fato de estar referido a possibilidades, isto é, ao seu próprio ser. Entendemos agora as razões de a “analítica existencial” preferir determinar o modo de ser do Dasein ou a sua realidade por meio dos “existenciais” (Existenzialen) em contraposição às categorias, as quais se aplicam às 51 coisas simplesmente presentes. O ponto de partida da analítica (§ 9) consiste, assim, em determinar o Dasein a partir de sua existência: “a ‘essência’ do Dasein está em sua existência”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 77). O ser do Dasein consiste no comportar-se com o seu ser. Mas o referir-se do ser do Dasein não se realiza num conhecimento abstrato, na intimidade do eu. Pois, o conhecimento subjetivo tem como pressuposto a ideia da filosofia tradicional de que o ser do homem, diferentemente do ser das coisas, se caracteriza de forma negativa: o homem é o não objeto. De fato, o Dasein ultrapassa a realidade simples das coisas, mas não é só isso. Mais profundamente, essa ultrapassagem é, antes, do tipo concreta. Conforme Vattimo (1996, p. 27), existência, Dasein, ser-no-mundo, são termos sinônimos, os quais indicam o fato do Dasein estar “situado” de forma dinâmica, isto é, estar à maneira de um poder-ser. Certos de que o ser-no-mundo define “essencialmente” o Dasein, devemos agora evidenciar a noção de mundo e, mais precisamente, o nexo fundamental significância-mundo expresso em Ser e Tempo, através da “mundanidade” do mundo. Assim, mundo aqui não possui o caráter de coisa, nem pode ser concebido como uma totalidade de coisas. Em vez disso, deve indicar uma totalidade de significados. Mundo possui o caráter do Dasein. Isso quer dizer que Heidegger abandona o conceito tradicional de mundo como objeto de nosso conhecimento e entende o mundo como um existencial, ou seja, um elemento que constitui o ser do Dasein, justamente porque ele não pode ser pensado a partir das coisas que nos cercam. Pois, as coisas que se encontram no mundo são para nós instrumentos antes de serem coisas simplesmente presentes. Elas se mostram em sua significatividade: lápis para escrever, cadeira para sentar, teclado para escrever, livro para ler e assim por diante. Essa ideia que, à primeira vista, parece tão simples é muito importante, pois representa uma mudança em relação à filosofia tradicional que só reconhece como real aquilo que se submete ao nosso conhecimento objetivo, ou seja, ao exame despreocupado e independente de nós. A exemplo dos óculos (citado na introdução), coisas que usamos no dia-adia, como lápis, teclado, caderno, justamente porque se encontram imediatamente à mão, isto é, porque se mostram segundo seu caráter de “manualidade” (Zuhandenheit) é que não causam nenhuma surpresa para nós e, portanto, não 52 chamam a nossa atenção. Mas a partir do momento em que param de funcionar esses instrumentos emergem como objetos de nosso pensamento teórico, aparecem agora não mais sob o ponto de vista da lida preocupada, mas pelo modo da simples presença (Vorhandenheit). Essa distinção assaz característica, que exibe a primazia da lida preocupada cotidiana sobre a simples presença, serve apenas para salientar o modo pelo qual o Dasein se compreende em seu estar no mundo mais frequente e, não, para acentuar a diferença entre esses modos de ser com a mera finalidade de priorizar um em detrimento do outro. Heidegger não nega o conhecimento científico e nem poderia, pois o mesmo é um modo derivado do modo originário de ser das coisas – o modo de ser do instrumento que, por sua vez, nos remete à estrutura ontológica, ou seja, ao fundamento de possibilidade concreta do ser dos entes. Essa estrutura ontológica, isto é, a significatividade das coisas, revela-se para o Dasein em sua existência entendida como uma referencialidade que já desde sempre pertence ao seu próprio ser. É por isso que as coisas se nos apresentam originariamente em sua manualidade. Daí se poder dizer que a existência do Dasein ou o ser do Dasein é ser-no-mundo. Essa é outra diferença que se apresenta em relação à filosofia de Husserl. Para este, o âmbito fundamental (fenomenológico) se articula na suspensão daquilo que chamou de atitude natural (âmbito da ciência). Em nossa lida preocupada com os instrumentos, portanto, “não se dá ao encontro apenas um ente manual, mas também entes que possuem o modo de ser do homem”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 113). A estrutura do ser-para (Um-zu) constitui a característica mais fundamental de nossas relações com o mundo. Assim, O instrumento sempre corresponde à sua instrumentalidade a partir da pertinência a outros instrumentos: instrumento para escrever, pena, tinta, papel, suporte, mesa, lâmpada, móvel, janela, portas, quarto. Essas “coisas” nunca se mostram primeiro por si para então encherem um quarto como um conjunto de coisas reais. (HEIDEGGER, 2002a, p. 110). Por isso dizemos que o mundo é uma característica do Dasein e que o seu ser não se identifica com a simples presença, mas antes com a totalidade dos instrumentos que é o próprio mundo. Tudo isso se explica mediante a interpretação do instrumento. O instrumento traz em sua estrutura o caráter de referencialidade. 53 Ele se refere à finalidade para a qual o instrumento foi, àquele que faz uso dele, bem como faz referência ao seu material, etc. Conforme o desenvolvimento da analítica existencial, fica cada vez mais visível o nexo fundamental entre o mundo dos entes e a significatividade das coisas. Essa parte da analítica que define o ser-no-mundo mediante a mundanidade ou a familiaridade constitutiva das coisas já vislumbra a importância da linguagem. Pois, o fato de Heidegger ter adiado uma discussão sobre a linguagem não quer dizer que ela não se fez presente antes de ela vir a aparecer de fato no § 34 (Ser e Tempo). Além disso, o nexo totalidade significativa/mundo habilita o aparecimento da noção de “compreensão” (Verstehen) como o existencial que é o fio condutor da investigação do ser-em (In-Sein). Portanto, é segundo o modo da compreensão que o Dasein está no mundo com os entes, considerando de antemão, como ficou dito, o mundo como uma totalidade de referências. O Dasein, como sabemos, não está dentro do mundo como um sapato ou uma pedra. Ele está no mundo no sentido de morar, habitar, porque originariamente apresenta um nexo com essa totalidade de significados. Equivale a dizer que os entes dentro do mundo se lhes apresentam somente em seu ser-para, isto é, por meio de um significado. O sapato, por exemplo, se nos revela originariamente como algo para calçar e não como um objeto que está diante de mim, inteiramente distante. Ao mesmo tempo em que os entes só podem se apresentar como coisas de uso exatamente porque pertencem a uma totalidade de significados que o Dasein já dispõe. Isso mostra claramente o aspecto circular da compreensão, e não somente isso, mas também a singularidade desta compreensão circular que difere do caráter vazio e negativo do mero andar em círculo em que se move um conhecimento qualquer. Esse caráter circular da compreensão, ao contrário, é a condição de possibilidade de uma compreensão “mais originária” – a compreensão ontológica. Pois, “o ‘círculo’ da compreensão pertence à estrutura do sentido [...], enquanto compreensão que interpreta.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 210). Assim, o Dasein enquanto ente que está em jogo seu próprio ser como ser-no-mundo possui uma estrutura de círculo ontológico. Neste sentido, os existenciais do Dasein possuem este caráter de abertura e assim também a compreensão que já desde sempre dispomos. Ou seja, o círculo da compreensão exprime exatamente a referencialidade do ser que mencionamos acima. A compreensão é abertura porque já dispõe de uma totalidade de significados em toda atividade compreensiva do 54 Dasein, mas isto só acontece porque o Dasein está no mundo como poder-ser, como abertura, fazendo com que os entes se lhes apresentem na forma de uma possibilidade: “A compreensão enquanto abertura do Da sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em toda compreensão de mundo, a existência também está compreendida e vice-versa.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 209). Entendemos agora porque, de acordo Heidegger, conhecer não é se colocar como sujeito inteiramente abstrato em direção a um objeto, a uma simples presença, é antes articular uma compreensão originária em que as coisas já são possibilidades abertas, uma vez que a relação entre “sujeito” e “objeto” é uma relação de circularidade. A articulação dessa compreensão designa o sentido da interpretação (Auslegung). Trata-se, pois, de uma compreensão que interpreta e não o contrário. Acompanhando o tema do ser-em, segundo o nexo originário entre mundo e totalidade de significados, aparecem mais dois existenciais tão originários quanto a compreensão, o discurso (Rede) e a disposição (Befindlichkeit). O Dasein não apenas já dispõe de uma pré-compreensão ao encontrar com os entes dentro do mundo, mas também se acha sempre numa disposição. A compreensão é, portanto, “disposicional”, não havendo o predomínio de uma instância teórica no processo do conhecimento, uma vez que a disposição garante uma abertura ao mundo que “antecede” a nossa relação com os entes. De acordo com Vattimo (1996, p.39-40), este existencial é de fundamental importância no desenvolvimento de Ser e Tempo, no sentido de tornar a analítica do Dasein mais efetiva e concreta: Se até aqui as estruturas do ser no mundo poderiam fazer pensar ainda numa forma de transcendentalismo no próprio Heidegger, agora este possível equívoco fica desfeito. O ser-no-mundo nunca é um sujeito puro porque nunca é um espectador desinteressado das coisas e dos significados; o “projeto” dentro do qual o mundo aparece ao Dasein não é uma abertura da razão (como o a priori kantiano), mas sempre um projeto “qualificado”, definido […]. Ora, se a disposição “abre o Dasein em seu estar-lançado” (HEIDEGGER, 2002a, p. 194), é ela, pois, que evidencia o caráter finito do Dasein. Indo mais além na proposta de Heidegger da analítica existencial, é importante salientar o fato da disposição constituir o próprio modo de ser existencial em que o Dasein se encontra absorvido pelo “mundo” de maneira a se esquivar de si mesmo, além de possuir 55 essa capacidade básica de abertura. Tal constituição existencial evidenciará o que Heidegger chama de “de-cadência” (Verfallen). A “disposição abre o Dasein em seu estar-lançado e, na maior parte das vezes e antes de tudo, segundo o modo de um desvio que se esquiva.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 190). Pois, o fato de os humores se mostrarem segundo o modo da “indiferença” na ocupação cotidiana nos autoriza a dizer simplesmente que “o Dasein já está sempre de humor”. (HEIDEGGER, 2002a, p.188). Em suma, a compreensão e a disposição são os existenciais em que o Dasein é o seu próprio Da. São, assim, modos que caracterizam a abertura originária do ser-no-mundo. Essa abertura, igualmente originária, pertencente à disposição corresponde a outro sentido ontológico de abertura. De acordo com a analítica existencial, ou seja, com uma interpretação ontológica, estamos sempre abertos ao mundo (significância) de maneira a “escutar” as coisas que já sempre se abriram. É um estar-lançado a esta abertura, que chamamos de “abertura lançada”. Portanto, o estar aberto ao mundo, enquanto característica constitutiva do ser do Dasein é um fato definido e, portanto, “finito”. O fenômeno do estar-lançado evidencia imediatamente a “facticidade” (Fakticität) do Dasein, o fato de ser (Dass es ist). Este fato, porém, difere daquele que exprime a fatualidade da simples presença. É antes uma determinação existencial de um ente, o Dasein, que é no modo de serno-mundo. É por isso que esse “fato” jamais pode ser descoberto por uma intuição: Do ponto de vista ontológico-fundamental, devemos em princípio deixar a descoberta primária do mundo ao “simples humor”. Uma intuição pura, mesmo introduzida nas artérias mais interiores de alguma coisa simplesmente dada, jamais chegaria a descobrir algo como ameaça. (HEIDEGGER, 2002a, p. 192). A facticidade do Dasein pertence à estrutura do estar-lançado. O Dasein é finito e, no entanto, é abertura ao mundo. Por isso, não podemos associar esta abertura a um tipo de transcendental puro e subjetivo. O Dasein é ele mesmo “a possibilidade que lhe foi inteiramente lançada”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 199). Podemos dizer que a cura, que traz no seu todo a existencialidade, a facticidade e a de-cadência, é a estrutura existencial que evidencia a constituição temporal do Dasein, que Heidegger expõe de maneira mais radical no segundo tomo de Ser e Tempo, no qual ele intensifica a tarefa de mostrar o que ele chama o testemunho da constituição de ser do Dasein como “possibilidade” de ser o que ele já desde sempre 56 “é”. “A existencialidade determina-se essencialmente pela facticidade” (HEIDEGGER, 2002a, p. 257). Aqui importa “concretizar” a questão do ser e problematizar o si mesmo, o qual não pode ser compreendido a partir de um eu abstrato. O fio condutor da investigação de Heidegger é a concretização do eu que o transcendentalismo concebia sempre como eu puro. (VATTIMO, 1996, p. 49). A “voz da consciência” (Stimme des Gewissens) constitui justamente esse testemunho de que falamos, é o fenômeno existenciário de que pode partir o tornarse próprio do Dasein. Ela remete o Dasein ao “si mesmo”. A “consciência” fala, mas fala através do silêncio. O nada constitutivo da consciência evidencia uma culpa originária do Dasein. Esse nada a que sempre alude o sentido de culpa é o nada que se revela no modo da “de-cadência”, isto é, na convivência cotidiana. Mas a impropriedade cotidiana funda-se no ser lançado: o ser lançado é o modo em que nos encontramos sem o termos querido, portanto, uma condição de que importa solidez e “decisão” (Entscheidung). Em suma, o caráter de “nulidade” do Dasein, que a consciência apresenta com a noção de culpa, é o fato de o Dasein ser o fundamento de uma negatividade. A voz da consciência só pode escutar-se respondendo-lhe o que significa negar o anonimato do impessoal para “decidir-se” pelo que é “mais próprio”. A “decisão” implica que as possibilidades entre as quais está o Dasein impróprio sejam adotadas como “próprias”. Adotá-las como próprias significa assumi-las como possibilidades originárias e, em relação com a possibilidade mais própria, ou seja, com a morte. A “decisão” que responde à voz da consciência e que torna próprio o Dasein não significa apenas assumir as dificuldades desta ou daquela possibilidade existenciária, significa antes a decisão antecipadora da morte, significa não se compreender entre as meras possibilidades, mas se lançar diante da possibilidade ou se compreender como um não-ser. Com esta noção de decisão antecipadora da morte se vincula a noção de temporalidade, entendida como o sentido do ser do Dasein. Assim, enquanto antecipação da morte, a decisão é o que torna possível a própria possibilidade. A decisão tem um porvir, um futuro constitutivo. Dizer que o Dasein já dispõe de uma certa compreensão e, que esta só é numa disposição, que, ademais, é entendida em sua base como lançada, significa perceber uma vez mais a ligação com o fato de o Dasein ser sempre com os outros entes, de ser-com. Porque em sua essência, o Dasein é entendido como “cura” 57 (Sorge) e, assim, é que se pode compreender o Dasein-com dos outros nos encontros dentro do mundo como “preocupação” (Fürsorge). Nota-se que aqui Heidegger usa dois termos cognatos, termos que possuem a mesma raiz precisamente porque o seu propósito é evidenciar uma outra experiência de preocupação: no sentido de abandonar, como veremos na próxima seção, a posição para com os entes ou com o mundo como sendo originariamente desinteressada e desprovida de significado. 58 3. O SER SI-MESMO, O SER-OUTRO E O IMPESSOAL 3.1 O ser-com de Heidegger As várias interpretações que apresentam um Heidegger inclinado para a forma do solipsismo13 com base numa visão errada, mas predominante do ser-nomundo do Dasein como uma subjetividade e, por consequência, para uma apatia com relação à “existência do outro”, estão entre as mais conhecidas ou lidas no meio acadêmico. Ante as incompreensões que sempre se deram em meio ao tema do outro em Heidegger, vimos a necessidade de analisar, primeiramente, os pressupostos dessas críticas, deixando, assim, para um segundo momento a tentativa de colocar este tema no seu devido lugar dentro da filosofia de Heidegger, ou seja – no contexto da ontologia fundamental ou da analítica existencial. Ora, o ser “si-mesmo” do Dasein não exclui nem o ser-outro nem o “impessoal”; isto é, o simesmo do Dasein inclui também os outros. Mas descrever o ser humano como serno-mundo não é simplesmente constatar que o ser do homem consiste na existência cotidiana ou sair em defesa da dissolução do conhecimento. Do mesmo modo, dizer que o Dasein é sempre ser-com não significa meramente que ele nunca está sozinho. Ao contrário, o estar sozinho somente é possível porque o Dasein é sercom. Na verdade, a constituição originária do ser-com, tão originária quanto o serno-mundo, é já a estrutura da intersubjetividade. No que se segue, a filosofia ou a ontologia não responde à questão do outro, porque nem mesmo chega a suscitá-la como questão. Resulta daí, então, a direção que tomará esta pesquisa: não existe um pensamento ético explicitado na obra de Heidegger, entendido aqui como um conjunto de normas de convivência. A ética, tal qual entendemos hoje, perde de vista esse sentido originário do “ser-com” ou o que os gregos chamavam de ethos, “aquilo que diz respeito à livre conduta e atitude, que concerne à configuração do ser 13 Referimo-nos aqui às objeções de Emmanuel Levinas e Sartre com relação ao fato de que Heidegger pauta todo o conhecimento numa compreensão do ser. Levinas fala da ontologia de Heidegger como de um ontologismo fundamental. Na concepção de Levinas, Heidegger teria subordinado a relação com o outro à relação com o ser. Sartre colocou o ontológico de Heidegger no mesmo nível da forma abstrata do sujeito kantiano. Basicamente, compartilham da opinião de que a sentença de Ser e Tempo que diz: o Dasein é a sua própria possibilidade, isto é, o Dasein é o ente que existe acerca de sua própria existência, do próprio ser, traduz um encobrimento da alteridade. 59 Histórico do homem [...]”. (HEIDEGGER, 1966, p. 55). O “ser-com” de Heidegger, ao invés de formular e apresentar regras e leis desse convívio procura se referir ao sentido originário e fundamental que ficou esquecido. É justamente para esse constitutivo fundamental do Dasein, o ser-com, que esta dissertação deve avançar. A queixa mais frequente da filosofia da mente14 com relação ao método fenomenológico, sobretudo, à fenomenologia hermenêutica de Heidegger, consiste no fato de que este método e, mais tarde, a compreensão muito singular de Heidegger sobre ele, estaria comprometido com a forma do solipsismo à medida que se ocupa apenas com processos autofenomenológicos e que, portanto, teria negligenciado uma discussão sobre o outro, melhor, sobre a mente do outro. E mesmo os estudos mais recentes15 que batem de frente com essa visão mais aceita da teoria da mente e que já partem das descrições fenomenológicas do Heidegger de Ser e Tempo, mais precisamente as que se situam no primeiro tomo da obra, deixam de lado a sua ontologia hermenêutica, isto é, sua “questão do ser”. Em contrapartida existem pesquisadores16 que defendem uma ética originária na filosofia de Heidegger, observada a partir da publicação da carta Sôbre o humanismo (1947). Essa obra inaugura uma segunda fase de seu filosofar, na qual ele se pronuncia sobre os temas mais debatidos de Ser e Tempo. Demonstram seus argumentos a partir de uma frase retirada do texto já referido: “o pensamento que pensa a Verdade do Ser já é a ética originária”. (HEIDEGGER, 1967, p. 88). Mas vejamos o lugar desta afirmação no texto Sôbre o humanismo. Pois é muito importante para o presente trabalho ver que Heidegger se reporta à relação entre “ontologia” e “ética”, atendendo assim um convite de Jean Beaufret17, somente em 14 A teoria da mente, que em anos recentes se tornou uma discussão da natureza da cognição social, toma como ponto de partida de sua investigação as discussões de Sartre da corporeidade e as críticas do Wittgenstein tardio aos estados mentais e procura assim se contrapor ao idealismo e ao solipsismo. 15 Sobre esse ponto ver GALLAGHER, Shaum; ZAHAVI, Dan.The phenomenological mind: an introduction to philosophy of mind and cognitive science. London; New York: Routledge, 2007. Ver também RATCLIFFE, Mathew. The world we live in. IN:_____. Rethinking commonsense psychology: a critique of folk psychology, theory of mind and simulation. University of Hertfordshire: Palgrave Mamillan, 2007. Ambos detalham bem a questão. 16 Cf. LYRA NETTO, E. O pensamento de Heidegger: a questão do pensamento como ética originária. 1999. 207f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. 17 Jean Beaufret é um pensador francês que trocou algumas cartas com Heidegger e que, em 1946, lhe enviou várias perguntas sobre um possível humanismo, bem como pela forma de humanismo desenvolvido por Sartre – o existencialismo. As respostas de Heidegger ao então filósofo e amigo se articulam em consonância com as teses de Ser e Tempo, dando origem ao pequeno texto “Sobre o humanismo”, publicado em 1947. 60 seu sentido originário de acordo com o que foi pensado pelos gregos em termos de ethos. A relação originária tornou-se numa questão posterior sobre as relações entre duas disciplinas da filosofia, de modo que “os nomes, 'Lógica', 'Ética', 'Física', só surgiram quando o pensamento originário chegou ao fim”. (HEIDEGGER, 1967, p. 28). Isto é, tal discussão já se encontra num âmbito conceitual, ou seja, já mergulhou no esquecimento do ser. Por isso, Heidegger nos convida a pensar se o que os termos evocam ainda permanece na proximidade da “Verdade do Ser”. “Com a 'lógica' e 'física', a 'ética' aparece, pela primeira vez, na Escola de Platão”. (HEIDEGGER, 1967, p. 84). Porquanto, “antes desse tempo, os pensadores não conheciam nem 'lógica' nem 'ética' nem 'física'”. Todavia, “seu pensamento não era nem ilógico nem imoral”. (HEIDEGGER, 1967, p. 85). Na sua origem grega, antes de Platão e Aristóteles, ethos significa estada, lugar de morada e “a ontologia só pensa o ente (on) em seu ser”. (HEIDEGGER, 1967, p. 88) Desse modo, a ética é diferente da ontologia e, ademais, o pensamento que, em Ser e Tempo, diz Heidegger, tentou preparar-se para a Verdade do Ser foi intitulado Ontologia Fundamental. Ou seja, esse pensamento que pensa a Verdade do Ser é o fundamento das próprias ontologias, entre elas a ética. Foi o que o pensador tentou dizer já em Ser e Tempo: O uso do termo ontologia não visa a designar uma determinada disciplina filosófica dentre outras. Não se pretende, de forma alguma, cumprir a tarefa de uma dada disciplina, previamente dada. Ao contrário, é a partir da necessidade real de determinadas questões e do modo de tratar imposto pelas “coisas em si mesmas” que em todo caso, uma disciplina pode ser elaborada. (HEIDEGGER, 2002a, p. 56). Assim, de acordo com o significado essencial dos termos “ética” e “ontologia”, pode-se agora determinar suas relações: O pensamento, que questiona a Verdade do Ser e com isso determina a morada da Essência do homem a partir e na direção do ser, não é nem ética nem ontologia. Daí não haver lugar nele para a questão sobre as relações de ambas as disciplinas. […] um tal pensamento não é nem teórico nem prático. É antes dessa distinção do teórico e prático que ele se a-propria. (HEIDEGGER, 1967, p. 8990). Para Carneiro Leão, a ambiguidade da linguagem pertence ao movimento que é próprio do pensamento. “Por isso toda tentativa de se determinar o sentido 61 dos termos e das funções gramaticais fora do contexto de pensamento, em que se articulam, tranca-se a qualquer possibilidade de entendimento”. (LEÃO, 1967, p. 11). Nesse sentido, fica claro, ao mesmo tempo, que o ser-no-mundo do Dasein cotidiano tem relevância para as questões ontológicas, rebatendo aqui as declarações de Gadamer (2007b, 61) de que as análises do “ser-com” em Ser e Tempo consistem num “excurso parco ou um parágrafo incidental” daquela obra. De fato, os argumentos que fazem do Dasein um ser-no-mundo e um ser-com estão em consonância com a sua proposta de uma ontologia fundamental. “A ambiguidade aqui reinante se prende à necessidade de mover-se sempre no horizonte da metafísica”. (LEÃO, 1999a, p. 22). Por isso, o aspecto prático da filosofia de Heidegger nada tem a ver com o tema da liberdade e responsabilidade como em Sartre, por exemplo. Bem como observa Ernildo Stein: [...] o novo trazido para a filosofia pela teoria hermenêutica de Heidegger, que ele chama de Fenomenologia Hermenêutica, é que ele acrescenta um aspecto prático na medida em que descreve o ser humano como ser-no-mundo que desde sempre já se compreende a si mesmo no mundo, mas só se compreende a si mesmo no mundo porque já antecipou sempre uma compreensão do ser. (STEIN, 1996, p. 61, grifo nosso). Desse ponto surge o nosso interesse em problematizar a chamada “relação com o outro” na obra de Heidegger, no sentido de querer mostrar o aspecto originário o qual confere ao ser-com, enquanto se articula na “preocupação” (Fürsorge),18 ou seja, na diferença com o problema moderno da intersubjetividade. Isso não significa, porém, que o ser-com de Heidegger exclui temas práticos como a liberdade, por exemplo. Porque é justamente a uniformidade e originariedade deste fenômeno que permite variados modos “de ser”, isto é, as características ontológicas constitutivas. Estas características, quando se mostram, “são igualmente originárias 18 Em seu sentido comum, Fürsorge significa solicitude, cuidado com..., assistência e previdência; ele vem, portanto, sempre acompanhado de um significado social muito forte. Nesse contexto, Fürsorge significa geralmente renunciar seus próprios problemas em função dos problemas dos outros; é estar sempre predisposto a ajudar o outro. No quadro da analítica existencial de Heidegger, porém, Fürsorge é concebido na estrutura de Sorge (cura, “cuidado”). Graças ao existencial Sorge, o Dasein não está solto, pairando acima das coisas, mas junto aos entes simplesmente presentes e com os outros “Dasein”. O termo Fürsorge, o qual pode ser traduzido por preocupação (adotaremos esta tradução para falar especificamente deste significado) exprime aqui o cuidado com o outro em dois sentidos: (i) o impróprio, desobrigando o outro de seu próprio “cuidado”; (ii) e o próprio, tomando a frente do outro para devolvê-lo o “cuidado”. 62 do ponto de vista existencial”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 185). Com efeito, no tocante ao sentido de ser-outro, assumiremos, assim, a posição de que o pensamento de Heidegger, enquanto exprime o “sentido do ser em geral” não pode pretender uma Ética. Muito já se especulou sobre o outro e o real teor dessa questão em sua obra, sobretudo, em Ser e Tempo. Dessa forma, no quadro da analítica existencial, a “decadência” do Dasein não pode suscitar a emergência de uma Ética, exatamente porque a impropriedade do Dasein de que fala Heidegger, nos §§ 9, 27 e 38, não possui uma significação depreciativa, mas um caráter existencial e, portanto, um caráter positivo do ser. O momento de insegurança e desolação pelo qual passa o homem moderno não deve dar lugar a uma Ética, em vez disso, como diz Marques, deve trazer à tona a recolocação da questão do ser. Para o autor, a chave da solução do problema, na concepção de Heidegger, é a perspectiva ontológica. (MARQUES, 1989, p. 60). É graças a ela que a filosofia pode se dar o direito de não precisar refletir sobre uma Ética. Em um artigo de 1998, O Mitsein Heideggeriano, Marques nos diz algo que pode, talvez, explicar porque esse tema exerce uma espécie de fascinação sobre alguns comentadores: Heidegger trabalha a noção do ser-com (mitsein) e da coexistência (mitdasein) de um modo tão intenso e decisivo, que, parece, à primeira vista, um paladino da moralidade que se investe contra contextos de compreensão do mundo e de sociedade, ao mesmo tempo que ataca instituições mais ou menos consagradas, que passam por um processo de desintegração. Mas tal leitura é um erro de perspectiva. (MARQUES, 1998, p. 17). Nesse sentido, o pensamento de Heidegger não é, por isso, indiferente ao ser do outro. Pois, a relação que o Dasein sempre mantém com o seu próprio ser é fundamental e originária. Mas, para melhor entendermos a posição de Heidegger, devemos pensar que a sua linha de argumentação em Ser e Tempo muito se aproxima da tese idealista da consciência, ao articular, segundo Stein (2011, p. 39), “um modo não clássico de transcendental, de condição de possibilidade”, o que quer dizer que está, pois, bem perto do a priori kantiano desde que ele não signifique uma redução de tudo a um sujeito ou a uma consciência. Eis o que o próprio filósofo nos diz: “o fato de não se poder esclarecer o ser pelo ente e de a realidade só ser possível numa compreensão ontológica não dispensa um questionamento do ser da consciência, da própria res cogitans”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 274). Como se pode 63 perceber, a consciência é, para Heidegger, uma região problemática que precisa de uma análise adequada. Mas de que a priori Heidegger está se referindo, afinal? O a priori de Heidegger nada tem a ver com o a priori puro ou abstrato; pelo contrário, está ligado aos existenciais do ente que possui o modo de ser do Dasein. Trata-se, portanto, de um a priori existencial ou concreto. O existencial “ser-com” que está na base de nossa vida social, da “convivência cotidiana”, se mantendo aqui mais próximo da linguagem heideggeriana, funciona como um a priori “concreto de possibilidade”. “Pensar o homem em seu ser-com é pensar um sem-número de problemas que, sem querer absolutamente moralizar ou ditar preceitos, revela o que existe de mais profundo e digno de ser perguntado: que é o homem em seu ser?” (MARQUES, 1998, p. 29). Seguindo aqui o sentido de Heidegger, queremos apenas enfatizar o fato de que não podemos de maneira nenhuma esperar qualquer investida, no entendimento do homem, de uma teoria do ser ou das modernas teorias objetivistas (teorias psicológicas). Ora, como pode Heidegger ter ficado alheio ao “outro” quando, na verdade, se propõe como objetivo o próprio ser do ente Dasein, o qual nunca é dado sem mundo ou sem os outros? É aqui, pois, que reside a linha de investigação de nossa pesquisa: o ontológico, em Heidegger, possui um caráter concreto de possibilidade. Assim, o ser-no-mundo do Dasein ou a compreensão do ser constitui sua característica fundamental na contraposição com o lógos (razão) da metafísica tradicional. Porquanto, uma discussão moral pressupõe uma analítica existencial do ser-com e esta, por sua vez, uma analítica ontológica do Dasein. Enquanto tem a “cura” (Sorge) cravada em seu ser, o Dasein é sempre “com” o outro, o outro ente simplesmente presente e o outro Dasein. Em outros termos, o Dasein se preocupa com o outro-Dasein. A “preocupação” (Fürsorge) e a cura respectiva dizem respeito à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa (Besorgen). Ela (a cura), como já dissemos, é a condição para que os outros não sejam coisas soltas, separadas de seu contexto. Esse preocupar-se se funda na constituição ontológica do Dasein como ser-com, justamente porque o tipo de relação que nos referimos não pode ser entendido no sentido moderno. O conceito de relacionamento foi determinado de acordo com o modelo matemático de relação (em que o seu conteúdo advém a partir de si mesmo e para si mesmo), no qual está baseado o modo de ser para o outro como empatia (Einfühlung). 64 Antes de dar início ao parágrafo vinte e cinco do quarto capítulo de Ser e Tempo, somos lembrados de que a característica ontológica do Dasein está em sua existência. É justamente nessa base que se coloca a proposta deste capítulo, onde se pretende trabalhar a questão sobre o “quem” (ser-próprio) do Dasein. Pois, o Dasein não é apenas um ente que se acha situado em meio ao ente, na ocupação: “ele se relaciona também com o ente e, desta maneira, consigo mesmo”. (HEIDEGGER, 1973h, p. 319). Se “relacionar” com algo ou alguém é se relacionar consigo mesmo o que pode, contudo, não ser a cada vez o “eu mesmo”. Esse é o fenômeno mais importante que aparece no quarto capítulo – o “próprio-impessoal” que o filósofo distingue do si mesmo “em sua propriedade”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 182). O pensamento moderno encarna uma reação ao modo antigo de se fazer filosofia. E, como tal, anula a physis grega, as suas teorias ou a compreensão ingênua da realidade ao definir o conhecer como uma atividade do sujeito em direção ao objeto, salientando, assim, uma capacidade a priori do compreender (formas, categorias), um sujeito transcendental, que torna o objeto conhecido por aquele. Ora, o que mais caracteriza o pensar grego é a relação de pertença com as coisas. Isso é compreensível porque, em princípio, os antigos não postulavam uma ideia do sujeito, pois se dava muita importância à mostração das coisas, ao aparecer do ente (on). É por isso que a concepção moderna bate de frente com este pensar. Heidegger, por sua vez, incorpora uma oposição à tese moderna de sujeito, à ideia de que o “eu” consiste num princípio fechado e mantém com os gregos um diálogo permanente, chegando até mesmo a considerar Aristóteles como o precursor do método fenomenológico. A concepção idealista é fundamental para combater o que podemos chamar – a metafísica ingênua das coisas. Porém, a ideia revolucionária de um sujeito absoluto em torno do qual gira todo objeto é problemática. Como consequência, conferimos uma confiança exacerbada à subjetividade em detrimento do aparecer da coisa (Sache) mesma. Isso leva Heidegger a se aproximar de Husserl, especialmente do método fenomenológico. Husserl, sem deixar de ser idealista, restitui à realidade objetiva a sua parte na constituição do conhecimento. O eu “transcendental” de Husserl, diferentemente daquele do idealismo alemão, não constitui uma supremacia do espírito ou uma 65 abstração, e, sim, uma relação exterior que mantemos com nós mesmos, uma maneira de nos perceber como objeto. (LEVINAS, 1997, p. 51). Apesar do esforço dessa filosofia que, de certo modo, se mostrou revolucionária frente ao idealismo transcendental, ela só se sustenta à luz de uma consciência transcendental (pensamento puro) dirigida aos objetos enquanto sínteses de noemas.19 A fenomenologia husserliana ainda se define como o fundamento das funções do conhecimento. Assim, o idealismo de Husserl ainda coincide com o idealismo de seus predecessores. O “eu” é o sujeito transcendental e, com efeito, o ser do outro se mede, na verdade, pelo conhecimento que o outro tem de si mesmo. Nesse contexto, o que é considerado sobre o conhecimento do objeto pode se repetir a respeito do conhecimento dos outros. O que explica facilmente o sucesso das teorias modernas da empatia, as quais preenchem perfeitamente o interesse por parte de alguns autores, como Levinas e Sartre, pelo problema da “existência do outro”. Faz sentido agora a afirmação de Sartre (1997, p. 321) de que “a relação do ‘Mitsein’ não poderia nos servir absolutamente para resolver o problema psicológico e concreto do reconhecimento do outro”. É por isso que a análise do ser-com e do Dasein-com de Heidegger é insuficiente nesse contexto de pensamento. Porém, você pode estar com o outro sem que para isso você tenha que passar pelo que o outro está passando, no sentido de que há uma distância, seja real ou ideal, entre você e o outro e que essa relação possa se caracterizar como uma espécie de sintonia, empatia. É isso que Heidegger (2002a, p. 169) afirma em Ser e Tempo. O outro não é um objeto, não é simplesmente outro – “todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria”. A forma como a teoria moderna do sujeito considera o outro está, desse modo, sob a influência da interpretação tradicional do ser do ente como substância. E o conceito de ser como substância, de acordo com Heidegger (2004, p. 16): “[...] começa com a recepção das palavras gregas no pensamento romano-latino. υποκειμένον tornou-se subjectum, υπóστασις vira substantia, συμβεβηkóς torna-se accidens. Esta tradução dos nomes 19 Os termos noese e noema são fundamentais para compreender a redução fenomenológica de Husserl. Noese vem do grego noesis que significa “conhecimento”. Na filosofia de Husserl noese é o aspecto subjetivo da experiência vivida e noema é o seu aspecto objetivo. Noema não é a “coisa”, mas o objeto entendido como unidade de sentido para a consciência. 66 gregos na língua latina não constitui de modo algum o acontecimento sem consequência por que ainda hoje é tido. Antes se esconde, por detrás da tradução aparentemente literal, e que por isso preserva, uma tra-dução da experiência grega, para outro modo de pensar. O pensamento romano recebe os nomes gregos sem a correspondente experiência original do que eles dizem, sem a palavra grega. O desenraizamento do pensamento ocidental começa com esta tradução. No texto A origem da obra de arte, Heidegger nos convida a pensar o caráter de obra da obra a partir do conhecimento do plano a que pertencem os entes, isto é, por meio de tudo aquilo que não é uma obra de arte no âmago da Estética. Aqui o filósofo enfatiza, porém, que: [...] o abalo desta questionação habitual não é o essencial. O que importa é uma primeira abertura do olhar para o fato de o caráter de obra, […] o elemento coisal da coisa, só se tornar mais próximo de nós, se pensarmos o ser do ente. (HEIDEGGER, 2004, p. 30) Esse recuo também está presente nas descrições do Dasein como ser-nomundo e do Zuhandenheit como o modo de ser dos entes à mão. Na verdade, o importante aqui não é a “descoberta” que se faz sobre os entes que estão dentro do mundo, mas salientar o caráter de familiaridade que é próprio do modo como o Dasein vive no mundo, o qual só se tornou visível, e assim também o ser do ente que se usa, mediante o pensamento do “sentido do ser em geral” que pertence ao ser do Dasein. Assim, a ideia da fenomenologia de que estamos desde sempre imersos no mundo é, talvez, a primeira tentativa para se evitar o solipsismo. Mas, neste ponto, como veremos, é a fenomenologia hermenêutica de Heidegger que traz alguns avanços. Conforme Sartre (1997, p. 303), quando Husserl se preocupa em refutar o solipsismo nas “Meditações cartesianas” e em “Lógica formal e transcendental”, supõe tê-lo conseguido: pois, o recurso ao outro é condição indispensável à constituição de um mundo. Heidegger, em Ser e Tempo, estabelece entre mim e os outros uma ponte, a qual chamou de ontológica. Esta relação prescinde de uma capacidade do conhecimento da experiência alheia ou da capacidade de reconhecimento. Em vez disso, a relação ontológica de ser-com outros se dá muito antes do aparecimento da Einfühlung (empatia), de uma relação solipsista entre dois “sujeitos” simplesmente 67 dados. A empatia não abriga uma relação ontológica entre Daseins no-mundo. Pelo contrário, favorece sobremaneira uma desmundanização do existir do Dasein. Mas o Dasein não é um sujeito destituído de mundo, e os entes que lhe vêm ao encontro não são, por isso, objetos. Pois, as coisas nos chegam a partir do mundo, do mundo em geral, e não o contrário. “Ao se querer identificar o mundo em geral com o ente intramundano, dever-se-ia então dizer: ‘mundo’ é também Dasein”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 169). Porque o que se coloca aqui, de acordo com Heidegger, não é propriamente “o outro” enquanto pessoa, entendida no seu aspecto biológico, mas enquanto algo que “vêm ao encontro” em seu ser-no-mundo. Pois, em Heidegger (2002a, p. 170) o mundo é sempre “mundo compartilhado” (Mitwelt). Pensamos que com essa afirmação o filósofo se mostra, no mínimo, muito longe de conceber o “sujeito” como uma realidade solipsista, isolada. O ser-com é parte integrante de nosso ser, diz respeito ao ser do Dasein e não à simples presença. É justamente porque o Dasein é ser-com que podemos, por ventura, nos colocar no lugar do outro, isto é, sentir empatia. Então, é possível até mesmo dizer que o “ser-com” pode, com efeito, enquanto constituinte, recusar algo como o “problema do outro”. Ora, para a tradição idealista essa questão se forma no âmbito do conhecimento ou da relação sujeitoobjeto. No sentido de que a existência do outro é construída a partir da minha subjetividade e, assim, o conceito de outro como tal, isto é, o outro tal como ele é, ficaria sem explicação. Há aqui uma redução da estrutura do outro. Quem oferece o caminho de uma interpretação do outro como outro, ou seja, do outro em sua alteridade é o pensamento de Heidegger, como veremos no decurso deste estudo. Na perspectiva da analítica existencial a relação sujeito-objeto é desfeita exatamente porque não se fala mais aqui num “eu” como sinônimo de isolamento. A ontologia fundamental de Heidegger não fala mais a partir da “relação”, mas da referência, da proveniência originária. Jordino Marques (1998, p. 24) nos diz que a expressão “Mitsein” indica que a constituição do Dasein está sempre aberta a priori para a outra existência. Pensamos que Marques poderia estar se referindo, porque não, à própria terminologia da palavra “Dasein”, cujo sentido traz perfeitamente um tom de “projeto” (Entwurf), alçando aqui à tese de que o mundo é sempre um mundo compartilhado e ainda ao significado do verbo ser (Sein), que na língua alemã, possui até dois 68 sentidos: ser e estar. Pelo contrário, para a filosofia transcendental e, mais especificamente falando, para o idealismo alemão, o eu só reconhece seus próprios estados. Baseando-se no princípio da analogia, o conhecimento do outro é mediado pelo nosso próprio eu. O título ser-com na estrutura dos argumentos de Ser e Tempo nem consiste numa “filosofia do cotidiano” nem numa “filosofia da cultura” e, menos ainda, é uma busca obstinada por “questões inovadoras”. Ao contrário do que se pensa, a consequência principal das análises dessa obra não é o ataque à metafísica de que se utiliza a filosofia grega, mas o tornar visível, agora não mais metafisicamente, as deficiências de todo o pensamento ocidental. A questão que pervaga a filosofia heideggeriana é a já antiga e esquecida questão do próprio ser. Por isso, essas análises e os principais tópicos da “filosofia da mente” não estão tão próximos quanto parece. Para Jonathan Rée, as semelhanças entre a descrição do ser-no-mundo de Heidegger e as teorias contemporâneas são tão reais quanto enganosas. Conforme Rée (2000, p. 26), a partir da distinção Vorhandenheit-Zuhandenheit tão citada pelos teóricos de hoje: “Heidegger estava tentando detalhar o entendimento que o próprio Dasein tem de seu estar no-mundo quotidiano, e não propor uma nova teoria que tivesse desenvolvido”. De inspiração fenomenológica, a resposta de Heidegger para o “problema do outro” nos “revela” algo que não se deixa reduzir, o próprio ser. Tendo em vista aqui a noção de ser para Heidegger, já expressa acima, o ser do Dasein é originário e não se deixa reduzir porque é um poder-ser, é um projeto lançado. No tocante ao seu ser como cura, o Dasein se determina como temporalidade. Heidegger se pergunta ainda pela unidade mundo e Dasein no § 69 e descobre o modo pelo qual o mundo se dá para o Dasein: “o mundo já está […] 'muito mais fora' do que qualquer objeto pode estar”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 168). É nesse sentido que, diz-nos Heidegger: o Dasein, “em existindo, é seu mundo”. (2002b, p. 166). E mundo para o Dasein é sempre mundo compartilhado. É importante observar, que no contexto de uma analítica existencial, Heidegger radicaliza o idealismo de Husserl, levantando a seguinte questão: será que aquele modo de doação do próprio eu consegue interpretar o fenômeno “quem” do Dasein cotidiano? O chamado “sujeito” da cotidianidade é um modo do Dasein fundado no ser-no-mundo. Esse modo de ser 69 do Dasein remete às estruturas também fundamentais do ser-com e do Dasein-com dos outros. Portanto, entre as possibilidades de encontro que o Dasein, enquanto “cura”, desenvolve com o mundo, o mundo da simples presença e o mundo do próprio Dasein, destacaremos este último na presente interpretação do mundo-com originário em que “o outro” ou “os outros” nos são dados. É por isso que, como veremos no decorrer da discussão, o outro revelar-se-á, de certo modo, como sendo o próprio mundo. 3.2 A pergunta existencial sobre o quem do Dasein Os §§ 25-27 de Ser e Tempo tomam como eixo de investigação a seguinte pergunta: “quem” (Wer) é o Dasein em sua cotidianidade? A pergunta de Heidegger se dirige agora ao quem desse Dasein, mais precisamente, ao fenômeno “eu” (Ich) desse ente. Uma investigação desse tipo conduz às estruturas fundamentais do serno-mundo do Dasein: o ser-com (Mitsein) e o Dasein-com (Mitdasein). O “eu” e o “simesmo” pertencem a estas determinações do Dasein como ser-no-mundo. É, pois, com base nelas que chegaremos à caracterização do quem do Dasein cotidiano como “a gente” ou impessoal (das Man). Formalmente, diz Heidegger, (2002a, p. 165) a resposta que se encaminha ao fenômeno “quem” do Dasein já foi dada ao longo do § 9: Dasein é o ente que sempre eu mesmo sou e o ser desse ente é sempre meu. Vejamos, então, o cenário no qual se abrem estas determinações fundamentais de seu ser e que prepara a mostração do fenômeno “quem”. O § 9 inaugura o primeiro capítulo de Ser e Tempo e tem como tarefa fazer uma análise preparatória do Dasein. É aqui que Heidegger demarca o ponto de partida da analítica do Dasein com a famosa frase: “a ‘essência’ do Dasein está em sua existência”. Diferentemente da ontologia clássica, esse ponto de partida não é um conceito, nem as “categorias” (Kategorien) universais que são as determinações dos entes simplesmente dados. Esses conceitos são condições transcendentais do ser enquanto tal, sem as quais o próprio objeto deixaria de existir. A ontologia fundamental de Heidegger (2002a, p. 79), em vez disso, parte do cotidiano, pois o problemático ou o ontológico está no modo indiferente da 70 cotidianidade, na medianidade (Durchschnittlickeit). Porque os caracteres ontológicos do Dasein se determinam a partir da existencialidade, Heidegger os chama de “existenciais”. Os existenciais são usados na contraposição com as categorias (determinações dos entes que não possuem o ser do Dasein). Existência, portanto, não tem aqui nenhuma ligação com o sentido tradicional de “realidade” ou presença simples (existentia) que se opõe à essentia. Sartre dá continuidade a essa concepção de existência, ficando, assim, na esteira do pensamento moderno do sujeito. O filósofo francês apenas inverte os conceitos platônicos dizendo – a existência precede a essência. (SARTRE, 1973b, p. 11). O vocábulo “existência” constitui-se da preposição ek (fora de) e do verbo sistere – eksistência. Trata-se de uma estrutura que não está nem “dentro” nem “fora”, mas no-mundo; é, portanto, uma estrutura de manifestação, que só pode ser apreendida por meio de suas estruturas ontológicas, as quais permitem a colocação da questão do ser. Em suma: Existenciais e categorias são as duas possibilidades fundamentais de caracteres ontológicos. O ente, que lhes corresponde, impõe cada vez, um modo diferente de se interrogar primariamente: o ente é um quem (existência) ou um que (algo simplesmente dado no sentido mais amplo). (HEIDEGGER, 2002a, p. 81). Em contraste com o que afirma a ontologia tradicional, existência se refere ao ser do Dasein. Mas tudo isso quer apenas dizer que o ontológico (o antecipar-se), em nós, consiste em um já estar no mundo. É essa dimensão ontológica que vai aparecer no segundo capítulo do primeiro tomo da obra. Os caracteres ontológicos que já foram dados (§§ 9 e 12) tornarão ainda mais claras as “investigações posteriores”, as quais, contudo, devem tomar por base a constituição mais fundamental do Dasein: o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). (HEIDEGGER, 2002a, p. 90). Agora compreendemos porque Heidegger fez preceder à análise do “quem” do Dasein a interpretação ontológica do mundo. O sentido formal das determinações do Dasein, que responde quem é o ente-Dasein que vive no-mundo, indica uma constituição ontológica e esta igualmente contém uma indicação ôntica. Ora, perguntar quem é o Dasein na cotidianidade (in der Alltäglichkeit das Dasein) é perguntar pelo que assim está sendo dado e o que é pura e simplesmente dado possui um caráter ôntico. 71 Ontologicamente, ou seja, conforme o sentido que foi legado pela tradição, esse quem consiste numa essência, qual seja, em ser sempre o mesmo (selbst). É, pois, daqui que surge o caráter de “eu” (si-mesmo) do Dasein. Partindo, portanto, dessa perspectiva da essência, a interpretação do quem não tem como fugir da constância do ser simplesmente dado, justamente porque o caráter indeterminado e geral de seu ser sempre implica este sentido – o caráter ôntico do Dasein cotidiano – “um eu e não um outro”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 165). Mas desconfia-se de que talvez esta evidência ôntica não possa conceder adequadamente a região fenomenal do Dasein cotidiano. Pois, “o eu só pode ser entendido no sentido de uma indicação formal não constringente de algo que, em cada contexto ontológico-fenomenal, pode talvez se revelar como o seu contrário”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 167). Do ponto de vista da ontologia escolástica de Tomás de Aquino, o “quem” é experimentado como uma substância, como sujeito. Isto é, o Dasein se percebe, onticamente, como uma coisa simplesmente dada, que se deixa mostrar pelos caracteres ontológicos das coisas dentro do mundo. O sujeito torna-se apenas uma coisa da qual nos ocupamos. Sendo que o Dasein é sempre o mesmo, é sempre em referência a uma quididade que quer dizer aquilo que se mantém idêntico numa variedade múltipla de ser. A “ontologia” ou a tradição interpretou o Dasein como substância (ousia), consequentemente o ser do eu, daquele “ser-em” (In-Sein) foi interpretado a partir de sua substancialidade, de sua quididade como mesa, livro, cadeira. Heidegger colocou em discussão o conceito tradicional de ser concebido como um simples “dado” que possui o modo de ser da “realidade”. Por isso, ele reserva o termo “existência” só para o Dasein e compreende o seu ser como possibilidade de ser ou não si-mesmo, pelo fato de estar referido ao próprio ser como à própria possibilidade. No grego, o verbo εiναι (= ser) causava grande confusão entre as coisas que são e estão sendo (on, o infinitivo “ser”) e aquelas que existem (to on, o verbo substantivado “o ser”). Não havia ali uma distinção entre existir e ser, isto é, entre o que é e ser. A palavra ser podia designar tanto ser, como “existência” (presença simples). Diante de tal embaraço, Heidegger viu a necessidade de nos voltarmos novamente para o significado da palavra ser, mas agora partindo do “sentido de ser”. O ente é. Essa é, pois, a única maneira de definir seu modo de ser. Por isso, a 72 confusão. Com efeito, o ser do homem foi determinado negativamente como um não-objeto e, assim, o que existe (o ser) foi compreendido a partir do modo de ser das coisas. Descartes confirma essa concepção do ser-realidade com a ideia de uma alma-substância imaterial e com a ideia de que a existência estaria apenas na subjetividade e não na objetividade. Mas a existência, tal como se encontra expressa em Ser e Tempo, não é a realidade do “eu penso” e não é sujeito nem objeto. Nesse caso, também Kant, apesar de ter realizado grandes avanços por colocar o ser para fora de uma essência com a ideia do sujeito transcendental20, ficou preso ainda à ideia de ser enquanto presença simples. O termo Dasein que já aparece na filosofia de Kant tinha exatamente esse sentido de existência como existentia (presença simples). Muito embora Heidegger não parta da realidade do “eu penso” cartesiano na análise existencial do Dasein, não se pode negar a referência “a algo cujo ser guarda, explícita ou implicitamente, o sentido de ser simplesmente dado”, no âmago da resposta à questão sobre o quem do Dasein. (HEIDEGGER, 2002a, p. 165). Porém, ontologicamente, o “quem” do Dasein não condiz com algo tal como um fundamento moral que é preenchido pelos valores e normas sociais. Esse quem não é sujeito, um eu isolado e sim a “relação” que eu mesmo sou, o “meu” ser-nomundo. O ponto de partida da questão quem que exprime formalmente: “sou eu que sempre sou o Dasein e o ser é sempre meu” apenas “indica uma constituição ontológica”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 165). Essa determinação, portanto, ainda não informa que constituição ontológica é essa. Quer isso dizer: a questão sobre o quem do Dasein ainda não foi interpretada ontologicamente de maneira adequada, pois o caráter de “si mesmo” do Dasein não é mera constatação de uma coisa dada. Por isso, Heidegger deixa claro que a experiência ôntica que se mostra como algo simplesmente dado ou como substância, não traduz de forma própria ou ontológicoexistencial o fenômeno quem do Dasein cotidiano. Por outro lado, para que a questão se mantenha no “modo de ser do próprio ente” (HEIDEGGER, 2002a, p. 166), é necessário que se preserve uma referência originária com o ente. É por isso que a cada determinação do todo do ser do Dasein, Heidegger diz precisar de um 20 O termo transcendental em Kant não tem nenhuma ligação com o significado de “transcendente”, que designa um ser absoluto ou superior – um Deus. 73 testemunho ôntico. Tal como acontece na pesquisa fenomenológica, a questão aqui é guiada pela “própria coisa”. Na verdade, Heidegger assume a crítica husserliana (dirigida ao psicologismo) de que o fundamento não constitui um princípio geral de explicação, ou seja, de que não há nada por trás das coisas e sim a região do sentido que é o modo mesmo no qual se dá conhecimento. Daí o seguinte questionamento: no contexto da analítica existencial, será mesmo necessária, para um acesso apropriado ao Dasein, uma reflexão sobre o eu dos seus atos? Essa análise, portanto, dispensa o crivo da lógica. Gadamer nos diz que com a expressão “indicação formal” (Formale Anzeige) Heidegger queria nos falar como se quisesse nos mostrar algo. As coisas não podem escapar de seu sentido formal o qual só aponta para onde se deve voltar a nossa atenção. (GADAMER, 2007a, p. 30). Então, pergunta-se: será que no conjunto das afirmações ôntico-ontológicas a doação do eu como percepção pura (eu-eu) abre o Dasein em sua cotidianidade? “E se a constituição de ser sempre meu do Dasein fosse uma razão para ele, […] não ser ele próprio?” (HEIDEGGER, 2002a, p. 166). No âmbito da analítica existencial, “ser sempre meu” pertence à existência do Dasein, como condição que possibilita propriedade e impropriedade, e não ao ser dotado do caráter da substância. Deve-se, portanto, tomar a expressão “meu” como um conceito ontológico, como uma possibilidade da existência. E se avançamos para além daquela indicação formal de existência, logo nos deparamos com o constituinte ser-nomundo. O Dasein sempre existe num daqueles modos, mesmo numa indiferença para com eles. (HEIDEGGER, 2002a, p. 90). O ser si-mesmo enquanto ser-nomundo está entregue à responsabilidade desse ser e ao “verdadeiro poder ouvir” de que fala Heidegger ainda no primeiro tomo da obra. Eis aí o significado existencial da questão quem que, contudo, não se separa de um sentido formal. Os “indícios formais” são o instrumento da fenomenologia. Pensar é deixar aparecer os indícios, em vez dos conceitos acabados. (STEIN, 2011, p. 12). Ou como diz Safranski (2000, p. 208) em sua biografia de Heidegger: Na propriedade heideggeriana com efeito não se trata primeiramente do agir bom e eticamente correto, mas da abertura de chances para grandes momentos; […] Os universitários que naquele tempo parodiavam Heidegger dizendo: “Estou decidido, só não sei sobre o que”. Compreenderam Heidegger porque realmente ele falava de uma decisão sem nomear conteúdos ou valores pelos quais a gente 74 pudesse se decidir. Mas o interpretavam mal na medida em que deviam ter esperado da filosofia dele tais indicações e orientações. O não-eu não é desprovido de ‘eu’, mas indica um determinado modo de ser do próprio ‘eu’ como, por exemplo, a perda de si próprio. Porque esse “não-eu”, esta privação21 do eu, não configura aqui uma negação do “eu” e sim o ser. Já em Platão, num confronto com a famosa frase de Parmênides – “o não-ser não é”, está presente a ideia de que o não-ser não é o oposto do ser. “De algum modo, o não-ser é e, por outro lado, num certo sentido, o ser não é”. (PLATÃO, 2007, 241d). Tal como se encontra expresso em Ser e Tempo, o mundo abordado não é o mundo como um conjunto de coisas da natureza ou como objeto de conhecimento teórico, mas antes o contexto “em que” estas coisas são. Mundo não consiste numa determinação de um ente que não possui o caráter do Dasein. O ser-no-mundo, enquanto constituição fundamental do Dasein, é a estrutura que designa uma dimensão “anterior” constitutiva deste ente; é, assim, conforme uma linguagem ulterior, o a priori. Pois Heidegger (2002a, p. 105) nos diz que ao investigarmos ontologicamente o “mundo” não abandonamos o campo temático da analítica do Dasein. Isso quer dizer que a “natureza”, como conjunto categorial das estruturas ontológicas do ente presente “no” mundo, não pode, de modo algum, possibilitar a mundanidade (Weltlichkeit) e que ela só pode ser apreendida ontologicamente a partir do sentido de mundo, isto é, através da analítica do Dasein. Por esse motivo, o mundo não pode, de forma alguma, ser interpretado a partir da natureza. Então, de que mundo Heidegger está falando em Ser e Tempo? Do mundo “subjetivo” ou do mundo comum a todos no qual também nos encontramos? Nem de uma coisa nem outra, mas do fenômeno da “mundanidade do mundo em geral” (Weltlichkeit überhaupt) com o qual nos deparamos, mesmo sem perceber mediante o ser dos entes intramundanos. Chegamos aqui a um ponto marcante do filosofar heideggeriano – o adjetivo derivado “mundano” indica um modo de ser do Dasein, enquanto o termo intramundano está reservado para o ente simplesmente presente. O fundamento a que nos referimos não equivale ao “princípio de razão 21 Este fenômeno, que primeiro foi identificado por Platão no diálogo Sofista, ultrapassa a simples negação (do tipo – a parede não escuta); ele guarda, porém, o sentido de que algo que não é, mas que deveria ser, por exemplo, dizer que o cego não ver implica dizer que ele não possui algo que por natureza deveria ter. O termo “privação de” em Ser e Tempo traz exatamente este sentido – o de privar-se daquilo que você já possui. 75 suficiente” de Leibniz e, portanto, não coincide com a superioridade da sentença – “todo ente tem uma razão (fundamento)”. (HEIDEGGER, 1973h, p. 297). Em Ser e Tempo, a interpretação do ser tomou como fio condutor a existência – e, nas palavras de Heidegger (2002a, p. 77): “a 'essência' do Dasein está em sua existência”. Com efeito, é importante frisar que esta investigação que objetiva perguntar sobre o sentido de ser: […] não medita nem rumina sobre alguma coisa que estivesse no fundo do ser. Ela pergunta sobre ele mesmo na medida em que ele se dá dentro da compreensibilidade do Dasein. O sentido de ser jamais pode ser contraposto ao ente ou ao ser enquanto “fundamento” de sustentação de um ente, porque o “fundamento” só é acessível como sentido mesmo que, em si mesmo, seja o abismo de uma falta de sentido. (HEIDEGGER, 2002a, p. 209). Vem justamente daí o nosso interesse pelo Dasein cotidiano ou pelo a priori existencial conforme o contexto da obra indica. E a razão para isso está no ser do próprio Dasein como “cura”; é preocupado (besorgt) com algo que vive o Dasein, porém, o modo como ele se encontra na maior parte das vezes e antes de tudo é totalmente absorvido pelo mundo. Devemos notar que este modo especial de ser do Dasein só recebe sua determinação precisa no § 38, expressa pela “de-cadência” (Verfallen) do Dasein. Eis, então, a importância das análises dos fenômenos “mundo” e “quem” na analítica existencial. Essas investigações revelam, assim, a essência mesma da ontologia de Heidegger. Pois, as análises que se valem do Dasein tendo a impessoalidade como ponto de partida “são provavelmente as mais bem conhecidas de todo Ser e Tempo, mas talvez igualmente as menos compreendidas”. (RÈE, 2000, p. 32). Mas, o fundo de incompreensão que perpassa o seu pensamento nos servirá como meio de caracterizar o existencial ser-com. 3.2.1 O ninguém do Dasein como interpretação fundamental do quem A análise precedente do ser-com mostrou que a “ipseidade” do próprio Dasein dos outros se determina existencialmente, isto é, a partir de determinados modos de ser. Os outros “são o que empreendem” (HEIDEGGER, 2002a, p. 178) e não uma coisa da qual nos ocupamos. 76 Nas ocupações do que se faz com, contra ou a favor dos outros, diz Heidegger, sempre se “cuida” de uma diferença com os outros. O caráter de diferença (Unterschied) constitui o ser da convivência. Nesta distância constitutiva do ser-com reside, porém, o fato de o Dasein, enquanto convivência cotidiana, está sob a “tutela” dos outros. Não é o próprio Dasein que é, os outros é que lhe tomam o ser. Mas esses “outros” não são, por isso, “determinados”. Pelo contrário, qualquer outro pode representá-los. (HEIDEGGER, 2002a, p. 179). Apenas o domínio e a influência deles (os outros) são assumidos sem que o Dasein se dê conta. O “impessoal” é, assim, constitutivo dos outros e desta maneira, os “outros” são (da sind) na convivência cotidiana. Essa convivência dissolve o próprio Dasein no modo de ser dos “outros”, de tal modo que eles desaparecem em sua possibilidade de diferença e, nessa falta de surpresa, o impessoal consolida o seu poder e assim estabelece o modo de ser da cotidianidade. O “impessoal” possui ele mesmo modos próprios de ser. O caráter de afastamento (Abständigkeit) descrito acima se funda no fato de que a convivência desenvolve a “medianidade”. Mas esse modo de ser não é uma depreciação da convivência cotidiana, mas um caráter existencial do impessoal. A medianidade do Dasein passa por cima de toda primazia: “tudo que é originário se vê da noite para o dia nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita luta torna-se banal”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 180). Daí outra tendência fundamental do ser-com, o nivelamento (Einebnung) de todas as possibilidades de ser. Todas essas formas de ser da convivência, a saber, o espaçamento, a medianidade e o nivelamento constituem o modo de ser impessoal “público” (Öffentlichkeit). Esse modo público “rege […], tendo razão em tudo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 180). Mas isso não é porque se mantém originariamente no ser das “coisas”, pelo contrário, ela é contra todas as diferenças de nível e autenticidade (Echtheit). (HEIDEGGER, 2002a, p. 180). E apesar de o impessoal está em toda parte, quando é chamado à “decisão”, foge. Na impessoalidade, o Dasein dá conta de tudo com a maior facilidade, pois não há ninguém que se responsabilize por isto ou aquilo. As coisas, na cotidianidade do Dasein, são realizadas “por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 180). “Todo mundo é outro e ninguém é si próprio. O impessoal, que responde à pergunta quem do Dasein cotidiano, é ninguém, a quem 77 o Dasein já se entregou na convivência de um com outro”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 181). Eis, portanto, que se caracterizam mais duas tendências do ser-com – o “desencargo de ser” (Seinsentlastung) e a “contraposição” (Entgegenkommen). Em todas as características do impessoal já citadas reside uma “consistência” (Ständigkeit) do Dasein que não é, todavia, a consistência de algo simplesmente dado, mas um caráter relacionado com o modo de ser do Dasein, enquanto ser-com. É por isso que se diz que nestes modos de ser o si-mesmo do Dasein e o simesmo do outro nem se “encontrou”, nem se “perdeu”. De acordo com esse caráter de consistência, o impessoal, apesar de ele ser e está originariamente no modo da inconsistência da impropriedade sob a forma do “ninguém”, não pode significar um nada negativo. Pois se engana quem encontra aqui um Dasein degradado, rebaixado a uma situação depreciativa de seu ser. Nesse modo de ser, ao contrário, diz-nos Heidegger: “o Dasein é um ens realissimum, caso se entenda 'realidade' como um ser dotado do caráter do Dasein”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 181). Para uma análise ôntico-ontológica, “o impessoal se revela como 'o sujeito mais real' da cotidianidade”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 181). O “quem” do Dasein, o impessoal, não é algo simplesmente dado, ou seja, não é dado como objeto à minha consciência. Também não é o “sujeito universal” que independe dos entes. O impessoal não é uma espécie de gênero do Dasein cotidiano, bem como não repousa neste ente como uma propriedade duradoura. “O impessoal é um existencial e, enquanto fenômeno originário, pertence à constituição positiva do Dasein”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 182). Desse modo, numa tal impessoalidade, o Dasein pode se retirar de si mesmo, mas não pode nunca “desobrigar-se” de si mesmo, pois ele só se manifesta no fechamento próprio deste modo público de ser um com o outro, ressaltando aqui o então caráter de originariedade constitutivo desta abertura que o Dasein já trás consigo. A presente análise quer apenas indicar que o impessoal consiste na nossa originária interpretação do mundo e do ser-nomundo. É como significância e familiaridade ao impessoal que o mundo libera o ente que vem ao encontro, seja ele uma cadeira ou outro Dasein, pois aqui está presente aquela ideia de que o outro não está manifesto, ou seja, a noção de referencialidade. É, portanto, o próprio-impessoal que articula o contexto referencial da significância. Quer isso dizer: o sujeito da cotidianidade não consiste na presença de um objeto na consciência. Na verdade, “eu' não 'sou' no sentido do propriamente 78 si mesmo e sim os outros nos moldes do impessoal. O “eu” se faz pelo “outro”. É a partir deste e como este que, de início, eu “sou dado” a mim mesmo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 182). Mas o projeto do Dasein é um poder-ser de si-mesmo. Como? Existindo, ele está lançado e, enquanto lançado, entregue a responsabilidade de entes dos quais ele necessita para poder ser como ele é, ou seja, em função de si mesmo. É como simples presença ou objeto que o Dasein se compreende. “O ser dos entes em seu Dasein-com é então compreendido como ser simplesmente dado”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 183). Neste modo de ser cotidiano a constituição fundamental do Dasein se encobre, mas também se manifesta. Não se pode, contudo, compreender o que é próprio como algo “dado”. “O ser do que é próprio não repousa num estado excepcional do sujeito que se separou do impessoal. Ele é uma modificação existenciária do impessoal como existencial constitutivo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 183). Assim, a identidade considerada por Heidegger não consiste no que se mantém sempre o mesmo numa variedade das vivências e sim naquilo que não pode ser sem a contrapartida da diferença no quadro de si mesmo. A identidade pessoal aqui faz referência ao ente chamado Dasein e não ao ente simplesmente dado, por mais que o Dasein se compreenda de início e na maioria das vezes, como simples presença. A crítica que é feita aqui é a mesma que se tentou instalar a partir do segundo capítulo do primeiro tomo de Ser e Tempo com a expressão “ser-no-mundo”. Numa passagem significativa lemos: “o conceito ontológico de sujeito não caracteriza o si-mesmo do eu como si-mesmo e sim a coincidência e a constância de algo já sempre simplesmente dado”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 113). 3.3 A mundanidade do mundo 3.3.1 Ser com outro-ente intramundano: ocupação Podemos dizer que Aristóteles, na Metafísica, ao distinguir dois modos de 79 existência – o existir em ato e o existir em potência – antecipa a ideia do ser-com em Heidegger. O ato é a existência plena da coisa, do que está em potência. Há, contudo, um ato que é sempre igual a si mesmo, que chamou de ato puro. Já a potência possui o sentido primeiro que diz: “O princípio da mudança em algo é o mesmo que outro.” (ARISTÓTELES, 2004, 1046a-5, tradução nossa). Isso quer dizer que a potência possui uma tendência a ser outra coisa, como é o caso da madeira (Hermes em potência), utilizando aqui um exemplo de Aristóteles. Essa é a razão pela qual que já em Aristóteles o universal (que se opõe ao universal transcendente ou abstrato), ser aquilo que está numa coisa que é, pois do contrário a coisa não seria. Uma tal essência não coincide mais com a universalidade do gênero, que não possui uma realidade ontológica separada. Essas duas formas distintas de ser, a forma de ser em ato e a forma de ser em potência, as quais merecem destaque na Metafísica, acaba aproximando um sentido de devir da estrutura ontológica por oposição ao ser idêntico da Escola eleática e ao ser no sentido do gênero. Essa descoberta de Aristóteles, diz-nos Heidegger, colocou a problemática do ser num outro patamar. (HEIDEGGER, 2002a, p. 28). A partir daí, Heidegger começou a ver já em Aristóteles “um acesso ao fenomenólogo”. (GADAMER, 2007a, p. 32). O Dasein só é na referência fundamental com o ser. Quando Heidegger nos diz em Ser e Tempo que a existência está em toda compreensão de mundo, ele quer exatamente enfatizar essa referência ao ser. O Dasein existe, ou melhor, eksiste.22 É sendo que o Dasein está aberto para si mesmo em seu ser. Daí o significado do nexo ser – compreensão do ser. Por que será, então, que nós nos compreendemos primariamente como um “eu” separado, destituído de mundo que estabelece uma relação com o “outro” totalmente diferente de nós? Ora, numa passagem de Ser e Tempo Heidegger nos diz: “o entendimento comum considera apenas o que conhece onticamente, por isso estranha o que conhece ontologicamente”. Apesar de os conceitos aristotélicos se inserirem no pensamento moderno por intermédio da filosofia tomista e escolástica, Heidegger, contudo, não leu Aristóteles dessa maneira, ao menos não por muito tempo. Pois estava ciente de 22 Heidegger usa o termo latino ex (s) istência do verbo exsistere para enfatizar o “estar fora” do Dasein. Esse termo que depois se tormou Existenz, Heidegger o escreve por vezes como exsistenz ou ek-sistenz. Heidegger descobre que muito antes da distinção da idade média cristã entre existentia e essentia, o grego clássico não possuía uma palavra equivalente ao termo latino existentia. Ekstasis é literalmente “dar um passo para fora”. Significa, pois, “êxtase, transe”, não existência. 80 que o Estagirita tinha sido um fenomenólogo. Essa posição já vinha desde o tempo de sua formação, portanto, antes de vir a se tornar assistente de Husserl em Freiburg, como bem relata Gadamer (2007a, p. 30). Este nos diz que já no livro Lambda da Metafísica, Aristóteles chega a inferir, a partir do modo como a Inteligência divina existe, o caráter intencional do conhecimento humano: Se, pois, a Inteligência divina é o que há de mais perfeito, ela pensa a si mesma e o seu pensamento é pensamento de pensamento. Parece que a ciência, a sensação, a opinião e a razão discursiva apontam sempre para outra coisa e só incidentalmente para si mesma. (ARISTÓTELES, 2004, 1074b-35, tradução nossa). É por isso que a analítica existencial possui, diz Heidegger (2002a, p. 40), em última instância, raízes “existenciárias”, isto é, “ônticas”. Mas é também a ideia que o “jovem Heidegger” 23 , com sua tematização da facticidade, acolhe no que assim veio a se chamar de questão do ser. Nota-se, com isso, que a “consistência” da pesquisa de Heidegger não pode, entretanto, desistir de reconhecer um caráter formal para a filosofia. Pois Heidegger (2002b, p. 103) nos diz que o fato do Dasein “não só não deve ser negado como não deve ser confessado à força [...]. A filosofia nunca haverá de contestar as suas ‘pressuposições’ mas também não quererá admiti-las sem discussão”. Mitsein significa ser “com” o outro. A preposição alemã “mit” (= com) expressa ação comum, mútua, participação, envolvimento, fazer parte ou pertencer. Heidegger (2002a, p. 167) nos diz assumir aqui a posição de Scheler de que não existe um “eu isolado sem os outros”, ou seja, a existência não é uma existência trancada em si, isolada, mas a maneira de existir do Dasein como ser-no-mundo. Os existenciais que caracterizam o ser do Dasein carregam com eles essa acepção de verbo. Portanto, os existenciais inerentes ao ser-no-mundo exercem uma ação expressa pela preposição mit. Assim, no sentido de Ser e Tempo, o “mit” é “com”. Toda existência ou se preferir, todo ser, é ser-com. Heidegger, porém, reserva a preposição “mit” para se referir ao comportar-se do Dasein com o ente que é ele mesmo outro Dasein. “Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 173). Ao passo que a preposição “bei” indica proximidade local. Por isso, o estar junto em Ser e Tempo é estar junto e 23 Gadamer usa a expessão “jovem Heidegger” para se referir ao Heidegger que precede a publicação de Ser e Tempo. 81 no mundo das ocupações. Pois, na estrutura do ser-com do Dasein, “o caráter ontológico da ocupação”24 caracteriza o modo de ser para o ente intramundano. Essa distinção entre os usos do “mit” e do “bei” é de fundamental importância para nos assegurar do sentido existencial de ser-com os outros. A verdade é que pensar o “quem” do Dasein é o mesmo que pensar o mundo e os “outros”, na medida em que o ente-Dasein é e está no-mundo em que vem ao encontro segundo o modo de ser-no-mundo e desta maneira, os outros, no meio dos quais também se está. (HEIDEGGER, 2002a, p. 169-170). A ontologia tradicional, diz-nos Heidegger, sempre passou por cima do fenômeno da mundanidade. Mas esse passar “por cima do fenômeno da mundanidade” nos coloca na espreita de um caminho adequado de análise. Exatamente por esse motivo, Heidegger insiste que o ser-no-mundo e também o mundo devam se tornar tema da analítica no âmbito da convivência cotidiana, que tem o mundo circundante (Umwelt) como o que está mais próximo dela. Do mesmo modo, chegamos à mundanidade circundante (Umweltlichkeit) e à mundanidade em geral. Chamamos também de “modo de lidar” (Umgang) “no” mundo e “com” o ente intramundano esse modo do Dasein cotidiano ou se preferir, modo do ser-no-mundo cotidiano. Não devemos, contudo, entender esse estar junto ao ente como um “abandono da esfera interna”: Nesse “estar fora”, junto ao objeto, o Dasein está “dentro”, num sentido que deve ser entendido corretamente, ou seja, é ele mesmo que, como ser-no-mundo, conhece. [...] a percepção do que é conhecido não é um retorno para a “cápsula” da consciência com uma presa na mão, após ter saído em busca de apreender alguma coisa. Tanto num [...] ‘mero’ representar a si mesmo, num ‘puro’ pensar em alguma coisa [...] estou fora no mundo, junto ao ente. (HEIDEGGER, 2002a, p. 101). Porque ele já se “dispersou” nos afazeres do cotidiano ou na ocupação, ele possui um “conhecimento” próprio, um modo mais imediato de lidar que descarta o conhecimento meramente perceptivo. Isso explica o significado da frase: “o ente 24 “Os dois modos distintos de relação exprimem-se com derivados de “Sorge” (cura): os termos 'Besorgen' (ocupar-se) e 'Fürsorge' (preocupar-se). A tradução decidiu utilizar o radical latino “cura” para Sorge, ocupação para Besorgen e preocupação para Fürsorge. O motivo dessa decisão atém-se ao fato de o próprio Ser e Tempo ter remetido à fábula latina de Higino sobre a Cura e à inexistência em português de derivados de cura na acepção de um relacionamento específico do Dasein com os seres simplesmente dados e com os seres existentes”. (LEÃO. Notas explicativas. In: HEIDEGGER, 2002a, p. 312-313). 82 sempre acompanha previamente a tematização”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 108) Esse é o momento no qual se faz notar que o usado (Gebrauchte), o ente prétemático, é aquele que se mostra “primeiramente” (nos referimos aqui ao que está mais próximo e não ao seu sentido cronológico) na lida e não o ente que é objeto de conhecimento teórico e científico. Porém, essa distinção, não impede Heidegger de se colocar a favor do caráter a priori de todo conhecer. Pois, “conhecer […] é um modo do Dasein fundado no ser-no-mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 102). Esse a priori não quer dizer a priori em termos kantianos, ou seja, independente de qualquer relação, mas um a priori do tipo concreto. Isso determina também o caráter ontológico dessa interpretação que se mostra no modo de lidar com o ente. Estamos já desde sempre no modo da ocupação. O “já desde sempre” aqui exprime basicamente aquilo que se adianta no relacionar-se. Diz-nos Heidegger (2002a, p. 109) que quando, pois, nos dirigimos ao ente como “coisa” encobrimos “o ente tal como ele, a partir de si mesmo, vem ao encontro na ocupação e para ela”. Segundo ainda Heidegger, os gregos tinham um termo bastante sugestivo para dizer as “coisas”: pragmata, aquilo com que se lida (práxis) na ocupação. Ora, o filósofo assume mais radicalmente do que os gregos essa sentença: o instrumento (Zeug), como chamou estes pragmata, se distingue por seu “ser para” (Um-zu), por sua instrumentalidade. “No modo de lidar por aí, encontram-se instrumentos de escrever, de medição, de costura, carros, ferramentas”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 109). Assim, como o modo de lidar não apreende tematicamente o ente como uma mera “coisa” também o uso não compreende a estrutura do instrumento como tal, pois no simples “ficar à mão” (zuhanden zu sein) está contida a referencialidade do Dasein. A este modo de ser do instrumento em que ele se revela por si mesmo, chama-se “manualidade” (Zuhandenheit), por oposição ao outro modo de ser do ente, isto é, ao simplesmente presente (Vorhandenheit). No primeiro modo, o ente se entrega à multiplicidade de referências do ser-para e não às “ferramentas em si mesmas”. Quando estas são consideradas em si mesmas, o ente fica “privado” de seu caráter de ser-para, de práxis, pois o instrumento só vem ao encontro numa totalidade de referências, ou seja, no seu uso. Todavia, o objetivo aqui não é priorizar o conhecimento prático em detrimento do conhecimento teórico. O ser-para não é especificamente prático no sentido comum de que se contrapõe à teoria. Contudo, foi apenas nessa perspectiva de diferença característica do filosofar de Heidegger 83 que se basearam as teorias do século XX como, por exemplo, o pragmatismo americano que se constituiu no horizonte da filosofia do Wittgenstein das Investigações filosóficas. Assim, não são os entes reunidos como uma soma que dão ideia de mundo, pelo contrário, “o ente intramundano só pode se mostrar porque mundo ‘se dá”. (HEIDEGGER, 2002a, p.114). Mas como, porém, o mundo se descortina como mundanidade, como ele “se dá”? E porque o Dasein precisaria de uma compreensão explícita de mundo se ele se constitui onticamente como ser-no-mundo e, portanto, possui essencialmente uma compreensão de mundo, uma compreensão préontológica? Não será que o fenômeno do mundo não se dá sempre numa interpretação pré-fenomenológica, numa compreensão não temática do ente, justamente, porque ao ser do Dasein já pertence uma compreensão ontológica e, de alguma maneira, a mundanidade se descortina “junto com” o ente intramundano da ocupação? Diante de tais questões o que está dado é que à cotidianidade do ser-nomundo pertencem modos de ocupação que evidenciam a mundanidade do ente intramundano. A exemplo do que acontece com o ente à mão que assume os seguintes modos: i) o modo da “surpresa” em que o ente se mostra danificado e, portanto, não pode ser usado; ii) o modo da “importunidade” em que algo não está mais à mão; iii) o modo da “impertinência” que indica “aquilo para o que a ocupação não pode se voltar, para o que ela não tem ‘tempo”, em que algo não está mais à mão, no sentido de não ter tido chance de estar à mão. Esses modos de encontros modificados25 com o manual, que tem a função específica de evidenciar o caráter de algo como mera coisa, descobrem “a circunvisão do modo de lidar no uso”, ou seja, “o manual se mostra como o que é sempre manual no seu ser simplesmente dado incontornável”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 117). Isso significa que o ser simplesmente dado, anunciado naquilo que não pode ser empregado ainda está ligado, de certo modo, à manualidade do instrumento, mesmo que seja de maneira não temática, revelando, assim, a sua impossibilidade de separação. Exatamente “nesse todo, anuncia-se o mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 117). Assim, uma totalidade de referências significativas 25 O termo “modificado” aqui jamais possui um sentido valorativo no qual o meu encontro com o mundo dos entes tenha sido corrompido, quer para melhor, quer para pior. Esse caráter de modificação possui um sentido ontológico, isto é, refere-se a uma possibilidade do ser. 84 presentes em atividades rotineiras como, por exemplo, ao atravessar uma rua, no cumprimentar um amigo ou ao digitar um texto, qual seja, referências instauradas em atividades muito simples e cotidianas. E é para isto que Heidegger convoca a nossa existência (Dasein), para o que, originariamente, e com mais frequência está “aí”. Do mesmo modo: As referências determinam a estrutura do ser do manual enquanto instrumentos. O “em si” próprio e evidente das “coisas” mais próximas encontra-se na ocupação que faz uso das coisas, embora sem tomá-las explicitamente, podendo se deparar com o que não é passível de emprego. [...] No subordinar-se da ocupação às referências, elas não são consideradas em si, elas estão pre-sentes (“aí”). Numa perturbação da referência – na impossibilidade de emprego para [...] a referência se explicita, se bem que ainda não como estrutura ontológica mas, onticamente, para a circuvisão, que se depara com o dano da ferramenta. [...] O conjunto instrumental não se evidencia como algo nunca visto mas como um todo já sempre visto antecipadamente na circunvisão. (HEIDEGGER, 2002a, p. 117). Desse modo, o não emprego de um manual, isto é, daquilo que por ventura não utilizamos, mas que, seja por um defeito qualquer, seja pela falta ou pela não finalização de algo, constitui uma “quebra” dos nexos referenciais, como denominou Heidegger. Essa quebra de nexos serve para nos mostrar o significado das coisas e o quanto somos uma possibilidade de nós mesmos e ainda que o significado das coisas está implicado com o ser do Dasein. Nesse caso, “a circunvisão depara-se com o vazio e só então é que vê “para que” (wofür) e “com que” (womit) estava à mão aquilo que faltava”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 118). Aqui novamente o mundo põe-se a descoberto. É sempre assim, a significância ou o conjunto instrumental só aparece em termos do manual ou do ente simplesmente presente. Tanto que, diz Heidegger: “o não anunciar-se do mundo é a condição de possibilidade para que o manual não cause surpresa”. Ora, o manual da ocupação só pode faltar porque o mundo como mundanidade ou totalidade referencial já é pressuposto, porque já sempre esteve aberto e essa abertura apenas se dá pelo fato do intramundano já se ter colocado em “situação”, isto é, à disposição compreensiva. Por isso, mundo não pode significar um conjunto de manuais, visto que junto com o anunciar-se do mundo ocorre a desmundanização do manual, isto é, a quebra da referencialidade. Daqui conclui-se que somente a partir do fenômeno do mundo pode-se 85 determinar ontologicamente o “em si” do intramundano. E em conformidade com o que já foi dito, Heidegger conclui que “ser-no-mundo significa: o empenho não temático, guiado pela circunvisão, nas referências constitutivas da manualidade de um conjunto instrumental”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 119). Ou como diz Carneiro Leão (2000, p. 193): A conjuntura opera continuamente. Ela nos ensina que o homem é originariamente ser no mundo, in-der-Welt-sein. Ser no mundo, entretanto, não quer dizer que o homem se acha no meio da natureza, ao lado de árvores, animais e coisas. Ser no mundo não é um fato nem uma necessidade ao nível dos fatos. Ser no mundo é uma estrutura de ser e de realização. Por sua dinâmica, o homem está sempre superando os limites entre o dentro e o fora. Por sua força, tudo se compreende num sistema de referências. Por sua dialética, se instala a identidade e diferença no ser quando, teórica ou praticamente, se diz que o homem não é uma coisa. Para compreendermos agora que “o mundo do Dasein é mundo compartilhado” (die Welt des Daseins ist Mitwelt) (HEIDEGGER, 2002a, p. 170) precisamos, contudo, enfatizar que a constituição fundamental do Dasein como serno-mundo designa também o fato da familiaridade com as coisas, a qual possibilita as demais possibilidades do ser-em-si do ente intramundano.26 Esta afirmação traduz muito bem o fato de que o nosso interesse pelo Dasein não reside apenas no seu modo de ser e estar no mundo, mas também no fato de que ele se relaciona com o mundo segundo um modo de ser predominante, o modo para o qual o Dasein é conduzido usualmente – modo em que está “absorvido pelo seu mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 164) Nossa investigação, portanto, situa-se exatamente nesse contexto do mundo compartilhado e, com a mesma força, sobre o ser simesmo do Dasein cotidiano ou como preferir, sobre o próprio do impessoal, modo que também é fundamental. O fenômeno que estamos tentando investigar, a saber, o Dasein cotidiano “é determinado pelo modo de ser que se empenha no mundo e […] todas as estruturas ontológicas do Dasein, e também o fenômeno que responde 26 A fim de reforçar essa concepção heideggeriana de familiaridade com as coisas, Taylor, num ensaio (1993) intitulado “Engageagency and background in Heidegger”, argumenta a necessidade de uma articulação do background que torna possível nosso envolvimento na ação, em que critica a visão desengajada do agente no racionalismo e empirismo clássicos. Taylor, neste ensaio, se utiliza das noções de agente engajado e contexto pragmático, a partir do pensamento de Heidegger, que segundo ele, foi a figura de maior destaque do século XX que nos ajudou a nos libertar das amarras do racionalismo moderno. 86 à pergunta quem, são modos de seu ser”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 164.). Entendemos, por isso, de maneira errada que talvez Heidegger pudesse estar se referindo a tipos diferentes de entes entre os quais incluímos também o mundo e nós mesmos como pertencentes a ele (ente intramundano). Ontologicamente, contudo, o que muda é a maneira como nos deparamos com o mundo e com o “nosso” simesmo em nossas interpretações, sejam elas próprias ou impróprias. 3.3.2 Ser com outro-Dasein: preocupação O pensamento moderno tem como parâmetro o modo da analogia que faz com que o meu “eu” funcione como mediador dos demais “eu”. Do mesmo modo, o outro é como eu. “Em Heidegger a expressão que condensa o ponto de partida de toda reflexão social é: ‘Eu sou como os outros’’. (BICCA, 1997, p. 288). Como vemos no quadro moderno a noção de sujeito tem privilégio sobre a instância do outro, ou seja, o eu é primeiro. Bicca (1997, p. 290) afirma ainda que “o pensamento da identificação do outro como “eu” pode significar um primeiro passo no sentido de encobrir o outro na sua própria alteridade”. As reflexões do século XX, ao contrário, partem de um dado social. Em Heidegger, “o ‘eu’ é constituído pelos outros”. (BICCA, 1997, p. 289). Ou seja, o “eu” é construído em função das relações estabelecidas de uns com os outros sem que eu tenha de “projetar” nelas um eu, porque o outro não é um “projeto” meu e particular. Pois, o projeto (Entwurf)27 é sempre projeto de mundo e é ele que torna possível nosso entendimento do outro como outro, isto é, como Mitdasein (Dasein-com), permitindo ao Dasein projetar-se a si mesmo. Portanto, não é uma “projeção” ou teoria psicológica que determina o seroutro, segundo Heidegger. 27 De acordo com o Dicionário Heidegger, um “Entwurf” assumiu, em Ser e Tempo, o sentido do verbo entwerfen, que vem de werfen, “lançar”. Sob a influência do francês projeter, projetar, jogar antes, Entwurf é um rascunho, esboço, desenho, esquema, projeto. Estas palavras foram assim traduzidas por projeto e projeção, do latim proicere, “lançar para frente”. Por isso, a noção de projeto envolve a concepção prévia e o “a priori”, do latim, “o que vem antes, mais cedo”; é “o anterior”. [A palavra “a priori” soa muito mais como uma decisão, ou naquilo que preferimos chamar de entrega, que como uma descoberta]. Assim ao projetar, Dasein sempre projeta a si mesmo em função das possibilidades que lhe são abertas. Melhor dizendo projeta a si mesmo em seu próprio projeto; ele “se lança no modo de ser do projeto”. Isso explica o significado da frase de que todo projeto é projeto lançado e por que Dasein não compreende a si mesmo independente do projeto. (INWOOD, 2002, p.151-53). 87 Projetar o ser é colocar em jogo o seu próprio ser, é o “cuidado” com o seu próprio ser. O termo “cura” (Sorge), na ontologia fundamental de Heidegger, não deve ser entendido sob o aspecto ôntico do cuidado no sentido de ser ou não atencioso com algo ou alguém. “O Dasein já está sempre ‘além de si mesmo’, não como atitude frente aos outros entes que ele mesmo não é, mas como ser para o poder-ser que ele mesmo é”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 256). Essa estrutura do ser que Heidegger chamou de cura é formalmente o preceder a si mesmo (futuro) por já ser e estar em um mundo (passado) junto aos entes (presente). Ou seja, a cura se constitui pela conjunção dos modos da existencialidade, facticidade e de-cadência, e assim compõe um todo que se unifica na temporalidade. “A cura não indica, portanto, primordial e exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo” (HEIDEGGER, 2002a, p. 257), pois a expressão “cura de si mesmo” não é nenhuma atitude especial para consigo mesmo e sim uma tautologia. (HEIDEGGER, 2002a, p. 257). Ela caracteriza o ser-no-mundo do Dasein. De início indica o seu ser junto ao mundo e com os outros e, ademais, o caráter ontológico da estrutura do seu ser, revelando, assim, que é como cura, isto é, como cuidado com o outro que o Dasein se dá. Somente porque o Dasein tem na estrutura de seu ser a cura é que ele pode ser com o outro. Já podemos afirmar, então, que no mundo dos afazeres não apenas nos deparamos originariamente com o ente manual, mas também com o ente que possui o modo de ser do Dasein, ao mesmo tempo em que “vem ao encontro” não o mundo de outrem, mas o nosso. E com isso conquistamos o entendimento de que a determinação da maneira como o ente aparece para o Dasein na ocupação, a saber, em sua manualidade, deixou fazer ver o fenômeno do mundo, isto é, a “pressuposição” do mundo em tudo que empregamos e que se torna acessível a qualquer um de nós. Pois, o mundo é sempre mundo compartilhado com os outros. Por isso, o caráter de manualidade do ente não pode ser compreendido: Como mero caráter de apreensão, como se tais “aspectos” fossem impostos num discurso ao “ente” que de imediato vem ao encontro, ou como se uma matéria do mundo, já simplesmente dada em si, fosse desse modo “colorida subjetivamente”. Isso já contradiz o sentido ontológico do conhecimento [...] como modo fundado do serno-mundo. (HEIDEGGER, 2002a, p. 113-114). 88 A análise ontológica do Dasein mostrou que a existência é já desde sempre existência com os outros. Vimos que juntamente com o ente à mão evocado na obra, vêm ao encontro também os outros entes para os quais a obra se destina. Dito de outro modo, minha relação com os outros “Dasein”, que se dá em termos de preocupação, não existe, contudo, sem a conjuntura do ser-para na ocupação. Mas, “esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um ser simplesmente dado ‘em conjunto’ dentro de um mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 170). Desta maneira, os outros que assim vêm ao encontro não são algo que vem de fora e que depois é colocado ao lado dos “entes simplesmente dados”. O “também” deve ser compreendido “existencialmente” e não categorialmente, como nos diz Heidegger (2002a, p. 170). Pois os “outros” não são apenas outros e sim um modo de ser do Dasein fundado no modo de ser-no-mundo, isto é, são também outros “Dasein”, mas não no sentido de que se distinguem do “eu”. De modo análogo ao termo “também”, o “com” é um existencial, isto é, uma determinação do Dasein e não uma propriedade como casa, cadeira, etc. Assim, o estar “com” o outro constitui uma relação totalmente diferente, por exemplo, daquela relação “visar” e “visado” que encontramos na redução fenomenológica de Husserl. Como já foi dito, Heidegger não entende o outro como um objeto de que nos ocupamos. “São como o próprio Dasein liberador (freigebende) – são também Dasein-com”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 169). E de acordo com essa posição, o encontro com o outro, isto é, com uma alteridade como tal se dá pelo próprio Dasein; pois Dasein é originariamente Dasein-com. É a partir do mundo no qual o Dasein é no modo empenhado dos afazeres, em que se dão imediatamente os entes à mão no mundo circundante, que os outros se nos revela. O outro é, portanto, precedido pelo “essencial” (existencial) ser-com. “A expressão ‘Dasein’ mostra claramente que ‘de início’, esse ente não se acha remetido a outros e que apenas posteriormente é que também pode ser Dasein ‘com’ outros” (HEIDEGGER, 2002a, p. 171), mas isso não deve desconsiderar o fato de que os outros já são no mundo. É, pois, a partir dos utensílios dentro do mundo que o Dasein-com dos outros se mostra a nós e não por meio de uma postura primariamente teórica em relação a outros sujeitos simplesmente dados, como também não consiste “numa visão primeira de si onde então se estabelece o referencial da diferença”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 170). O outro é constitutivo do ser e por isso mesmo não pode ser reduzido à coisa 89 simplesmente dada, à simplesmente outro. O “outro”, em Heidegger, não é compreendido tradicionalmente pelo viés da diferença. O si-mesmo está na dependência dos outros. Isto significa que o Dasein, enquanto ser-com, está sempre aberto para outros entes, posto que o si mesmo não independe da lida na ocupação. O outro Dasein é também meu Dasein, de tal modo que “ninguém se diferencia propriamente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 169). Por conseguinte, não há entre mim e os outros uma relação de confronto na medida em que o eu não constitui aqui uma realidade solipsista, trancada em si mesma. Assim, é porque o ser-com constitui existencialmente o ser-no-mundo que devemos aqui interpretá-lo, diz-nos Heidegger, pelo fenômeno da cura que determina o ser do Dasein em geral. Pois, os fenômenos da ocupação (Besorgen) e da preocupação (Fürsorge), que caracterizam ontologicamente o ser-com do Dasein, são derivados do existencial cura (Sorge). Nesse sentido, como cura o Dasein é “originariamente” ser-com. O ser-com se define como um preocupar-se com algo, ou seja, ser-com é preocupar-se com seu ser. Mas, de acordo com Heidegger, a “preocupação diz respeito à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa”. (2002a, p. 174). Desta maneira, pergunta-se agora pelo modo desse ser-com preocupado no mundo. Como o Dasein se preocupa? Como o Dasein é com outro Dasein? Nessa abordagem surge, então, a estrutura da disposição (Befindlichkeit) para dizer que o Dasein se compreende ou se preocupa segundo o modo da disposição. A disposição de que tratamos aqui não é um fenômeno da vida psíquica, um estado da consciência e sim um modo de ser, um existencial. Heidegger lembra bem que a primeira interpretação dos sentimentos não foi discutida no âmbito da psicologia (Aristóteles investiga a πάθη no segundo livro de sua Retórica) e que pertence à fenomenologia o mérito de ter recriado uma visão mais livre desses fenômenos. (HEIDEGGER, 2002a, p. 193). Com o fenômeno da disposição, mais conhecido por todos como o estado de humor (Stimmung), Heidegger quer nos fazer ver uma outra possibilidade de compreensão. Os humores que fazem parte do Dasein cotidiano não são um nada e a atividade racional não é nem a única nem a forma mais originária de pensar o Dasein. Pois, o fato de o Dasein, no estado de humor, sempre se deparar com o seu ser enquanto Da nos faz ver que a compreensão não é uma atividade subjetiva do sujeito e sim um modo de ser do 90 Dasein. É, portanto, no modo “deficiente” (defizienter)28 de preocupação que o Dasein se mantém na maioria das vezes, modo que caracteriza a convivência (Mitainandersein) cotidiana, o modo ôntico da não surpresa. É também este modo indiferente da convivência que pode, talvez, desviar a interpretação ontológica de nós mesmos como seres simplesmente dados de vários sujeitos. Heidegger salienta os modos positivos (existenciais) nos quais a preocupação se manifesta em dois extremos: i) no modo impróprio (uneigentlich), tomando o lugar (einspringen) do outro; e ii) no modo próprio (eingentlih), antepondo (vorausspringt) o outro. O primeiro modo caracteriza a de-cadência do Dasein. Vale, contudo, ressaltar que a de-cadência não deve aqui ser entendida no sentido nietzscheano como processo de degeneração e dissolução do ser. Em Heidegger ela não exprime um sentido negativo, mas apenas o modo como o Dasein está “antes” de tudo e na maior parte das vezes – “junto e no 'mundo' das ocupações”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 236). Aqui ele “retira” o “cuidado” do outro e se mantém nas ocupações, esquecendo-se dele próprio enquanto “cura”. O fato dele não ser ele próprio é, todavia, uma possibilidade positiva do Dasein cotidiano. É, como dissemos, o modo no qual o Dasein se compreende de início e na maior parte das vezes. No outro extremo temos o modo que deixa o outro livre para a sua possibilidade mais própria. É essa relação própria que inicia o originário ser-com outros, a “solicitude”, como tal, “que libera o outro em sua liberdade para si mesmo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 174). A convivência cotidiana sempre se mantém entre esses dois extremos: a substituição dominadora e a anteposição libertadora. (HEIDEGGER, 2002a, p. 174). Esses títulos não estão querendo designar meramente o que fazemos e sim as possibilidades constitutivas da preocupação em sua propriedade e impropriedade. Isso implica dizer que o mundo libera também Dasein, isto é, os outros em seu Dasein-com, além dos utensílios. Portanto, no ser-com os outros já estão abertos em seu Dasein, ou seja, já “são” no mundo. Porque essa abertura dos outros também perfaz a mundanidade em geral (significância), é que os outros não podem ser algo simplesmente dado, nem sujeitos largados em meio aos outros sujeitos, também considerados como simples 28 Esse termo não deve indicar o sentido pejorativo de imperfeição ou falta; deve, contudo, indicar apenas o modo próprio da preocupação na cotidianidade, isto é, o modo como o Dasein é na maioria das vezes. 91 presença. Essa abertura não possui o caráter de uma compreensão teórica ou psicológica, mas o da convivência “temática” (que não se opõe à prática). No quadro da analítica existencial não faz sentido, portanto, falar desse fenômeno nos termos da empatia, como nos diz Heidegger, justamente porque o “outro”, ele mesmo, possui o modo de ser do Dasein, como já ficou claro. A título de conclusão temos então o seguinte: O ser-com é um constitutivo existencial do ser-no-mundo. O Daseincom se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Na medida em que o Dasein é, ele possui o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários sujeitos [...] Empenhando-se no mundo das ocupações, ou seja, também no ser-com os outros, o Dasein também é o que ele próprio não é. (HEIDEGGER, 2002a, p. 178). O ser-com do Dasein possui, portanto, um significado ontológico-existencial e não o sentido ingênuo de que não estamos sozinhos, justamente porque não compreendemos o ser para o outro como empatia. Mesmo quando o Dasein está só, ele é ser-com no mundo; por isso, o estar sozinho somente é possível porque o Dasein é ser-com. Também quando dizemos está realmente só diante de uma multidão, os outros não são naquele momento algo simplesmente dado, são, contudo, Dasein-com ainda que no modo da estranheza ou distanciamento. O Dasein-com dos outros “vem ao encontro no modo da indiferença e estranheza”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 172). É por isso que Heidegger chama o “outro” de Daseincom. O fato da estranheza nos mostra que o “outro”, enquanto constituição fundamental do ser-no-mundo, nunca pode ser uma simples presença e sim um modo próprio do Dasein, de que ele “é” um existencial. Constituindo, assim, o não familiar no seio da familiaridade. Pois, o “outro” é constitutivo de proximidade à medida que vem aqui a ser aquilo que já sempre é. Há, contudo, uma diferença fundamental entre o não se sentir tocado pelos outros, entre a “falta” do outro e a “indiferença” própria das coisas. É neste sentido que Heidegger nos diz que a cadeira nunca pode tocar a parede mesmo que se constate um espaço igual a zero entre ambas. (HEIDEGGER, 2002a, p. 93). Isso porque só a partir do mundo o ente poderá se tornar um ente simplesmente dado. Duas coisas, portanto, não podem se “tocar”, não podem nunca estar juntas uma da outra, justamente, porque são destituídas de mundo; pois só o Dasein possui mundo. 92 Mas, como dissemos anteriormente, o ser com os outros pertence ao ser do Dasein. Ele é um existencial, e como tal, é o único ente que sendo, está em jogo seu próprio ser. Desse modo, enquanto ser-com o Dasein sempre “é” em função dos outros. Nesse caso, nossas relações para com os outros são marcadas pelo que Heidegger vai chamar “impessoal” (das Man), como diz no § 27 em resposta à pergunta pelo “quem” do Dasein na convivência cotidiana. Portanto, a chamada “compreensão do outro”, em Heidegger, pertence à compreensão do ser do Dasein. Essa compreensão não é nem teórica nem prática, mas existencial, o que torna possível o conhecimento, o reconhecimento e a determinação ôntica da empatia. Assim, a relação ontológica com os outros se torna, pois, projeção do ser-próprio para si mesmo “num outro”. O outro é um duplo de próprio. (HEIDEGGER, 2002a, p. 177). É, de fato, um compreender na preocupação que consiste num compreenderse, num preocupar-se. Isso, porém, não quer dizer que a filosofia de Heidegger comprometa o estar com os “outros” e priorize um compreender individualista. Não significa que o Dasein assume uma postura egoísta; na verdade, “ser em função de si mesmo” diz respeito ao próprio ser do Dasein e não propriamente ao ser do homem. Isso significa que o “em função de si” possui um caráter ontológico e não ôntico e, como tal, deve seguir a circularidade do Dasein, isto é, a circularidade da compreensão. Compreendendo a si mesmo em seu ser, o Dasein compreende o ser e, compreendendo o ser, compreende a si mesmo. O preocupar-se do Dasein é a condição de possibilidade para que ele se determine segundo este ou aquele comportamento. O ser com os outros possui, assim, o modo de ser da convivência cotidiana. Veremos mais adiante o caráter de impessoalidade do Dasein como o modo existencial que define o ser do Dasein cotidiano. 3.4 O ser-próprio do outro e a morte As análises do ser-com e do Dasein-com mostraram que o Dasein não é a cada vez ele mesmo no sentido próprio e sim os outros em termos do impessoal, e que por essa razão, o eu não é mais um “ego” no sentido cartesiano. Mas sim um “eu” sou os outros. Porém, vimos também que a impropriedade do Dasein não 93 designa um modo inferior de ser, pelo contrário, determina uma compreensão concreta do Dasein “em seus ofícios, estímulos, interesses e prazeres”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 78). A análise precedente, contudo, acena para uma diferença com a descrição ontológica do fenômeno da morte (segundo tomo da obra) como a possibilidade “mais própria” do Dasein. Neste sentido, a morte é o fenômeno que mais singulariza o ser do Dasein e, portanto, é aqui que o Dasein deixa de ser-com os outros na impropriedade. Assim, a análise ontológica do “ser para a morte” (Sein zum Tode) é essencial nesse contexto uma vez que representa a possibilidade mais própria do Dasein de ser com o outro na diferenciação com a possibilidade do próprio impessoal, no que se segue a estrutura fundamental da preocupação, enquanto o “originário” modo de ser-com o outro. Aqui também, Heidegger aponta para a possibilidade de o Dasein negar o modo impróprio no qual ele vive originária e frequentemente e assumir a propriedade de seu poder-ser, antecipando-se diante de seu poder-ser mais comum e, por isso, impróprio. O Dasein pode, de fato, negar o seu poder-ser mais próprio no modo público do impessoal, mas jamais pode rejeitálo ou retirar-se dele, uma vez que só há compreensão numa relação de circularidade. Isso significa que o Dasein não se relaciona apenas com os entes segundo o modo da ocupação, mas também pela preocupação. Também aqui o Dasein projeta seu ser próprio em sua propriedade. Pois, o Dasein só chega ao seu poder-ser próprio como uma possibilidade ontológica, isto é, uma possibilidade da possibilidade de ser. No fenômeno originário da morte e, por consequência, no fenômeno da preocupação, Heidegger observa a possibilidade de o Dasein não se compreender na impropriedade, justamente porque aqui é dado a ele uma capacidade de “ouvir a voz do ser”. Pois, devemos ter sempre em conta que “o ser com os outros pertence ao ser do Dasein, que sendo, está em jogo seu próprio ser”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 175). Porém, é exatamente na morte que o tema do outro aparece propriamente. Ou seja, é aqui que o Dasein pode experimentar uma relação própria com o outro. Mediante o modo fundamental da preocupação, enquanto estrutura constituinte da Sorge e, por isso mesmo, entendida como o estar com o outro em sentido próprio ou originário, espera-se que o Dasein se assuma como um ser-paraa-morte e que, então, questione sobre a finitude de seu ser. À medida que 94 compreende que é finito, assume a singularização de seu ser na morte, isto é, assume o seu poder-ser “mais próprio”. E assim, na compreensão de que o outro também é um Dasein, dar-se, então aqui, o outro como outro, como o poder-ser que já desde sempre é. Acompanhando Heidegger, podemos dizer, então, que o Dasein, mesmo na morte, fenômeno intransferível e insuperável que é por ele assumido explicitamente como sua possibilidade mais peculiar, revela o fato paradoxal de ser aquilo que ele não é. Na verdade, o termo Dasein serve exatamente para designar alguma coisa que ele não é, a sua dependência em relação ao outro para poder ser ele mesmo. Mas isso só até o Dasein assumir a morte como o seu poder-ser mais próprio, como um fenômeno da própria existência. Pois aquele caráter negativo da morte, o qual limita nosso poder-ser, isto é, nossa existência, só é levado em conta na medida em que a morte é entendida como um fim físico da vida, em seu sentido vulgar. Entretanto, enquanto antecipa (compreende) a morte (o futuro), o Dasein sempre pode negar o impessoal e, dessa forma, compreender-se na possibilidade da impossibilidade da convivência cotidiana. A morte como antecipação do poder-ser do Dasein revela que o seu poder-ser só pode ser assumido por ele mesmo e, como tal, como o único fenômeno que se refere exclusivamente ao si-mesmo do eu. A morte como antecipação singulariza o Dasein. É, portanto, a análise existencial da morte que permite a Heidegger entender o outro como aquele que igualmente pode ser “livre” para seu poder-ser mais próprio, na medida em que somente na morte o Dasein é a impossibilidade de ser-com os outros entes e de se tornar acessível como algo simplesmente presente ou como instrumento; como também é segundo o modo da preocupação que o outro se nos revela na diferença do encontro com as coisas, na ocupação como instrumentos ou objetos, apesar de ela, a preocupação, apenas se dar no círculo dos entes na ocupação. Daqui se depreende o “espaçamento” constitutivo da preocupação. Num sentido positivo ou ontológico, a preocupação concede um caráter de abertura para a nossa relação uns com os outros. O outro nunca se faz presente ou aparece, assim, como uma cadeira ou uma pedra. Por isso dizemos que o outro não é objeto, que é em seu ser-no-mundo que ele se manifesta. Esse não aparecimento do outro é, sem dúvida, o objeto de análise do quarto capítulo de Ser e Tempo que, por conseguinte, se encontra na mesma dimensão ontológica da análise posterior da 95 morte como “antecipação”. Em contraponto a isso, com os conceitos fundamentais de ser-para-a-morte e de ser na preocupação, enquanto estrutura ontológica do ser-com, o modo cotidiano como nós enfrentamos a morte, descrito por Heidegger no § 47, é o exemplo que mais se enquadra dentro da interpretação do eu como momento do “impessoal”. O Dasein cotidiano faz de tudo para afastar a morte do seu convívio social como forma de aliviar o seu “encargo” de ser. O que ocorre, porém, é que este “desencargo de ser” do impessoal traduz a nossa fuga29 diante da morte que, por sua vez, caracteriza a impropriedade de ser do Dasein. Portanto, conforme dissemos, o Dasein só pode ser propriamente na medida em que morre. Mas, como acontece com os demais conceitos também o de morte foi apreendido de forma inadequada. Heidegger não entende a morte como um processo biológico e sim ontológico. Esse sentido ontológico nos diz que só porque o Dasein está vivo é que ele pode morrer. Pois, “é existindo que o Dasein morre de fato, embora, de início e na maior parte das vezes, o faça no modo da de-cadência”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 33). Logo, não é por acaso que dizemos correntemente – “para morrer basta estar vivo”. Só podemos morrer enquanto ainda estamos vivos. Porém, estamos sempre jovens ou velhos demais para morrer, na concepção própria impessoal; deve-se, no entanto, morrer quando se é jovem ou velho. Em linhas gerais, Heidegger nos diz que a desconfiança de que a morte dos outros pode nos levar à experiência de nós mesmos como tal repousa sobre a seguinte pressuposição enganosa: é possível fazer a substituição de um Dasein por outro com base no que é feito constantemente na cotidianidade da ocupação. Aqui a substituição sempre se realiza “em” ou “junto” a alguma coisa, isto é, na ocupação de alguma coisa. Corriqueiramente, o Dasein evita a morte, encobrindo para si mesmo o ser-para-a-morte mais próprio. Essa fuga caracteriza a “de-cadência”30 do Dasein. Sabe-se, portanto, que o Dasein não é ele próprio enquanto convivência 29 Este caráter de fuga possui aqui um sentido ontológico, ou seja, a fuga é um elemento constituinte do ser do Dasein. 30 Conforme o “Dicionário Heidegger”, os verbos cair, tombar é fallen, “queda” é Fall. O prefixo ver dá a verfallen ideia de declínio, deterioração. Mas apesar desse significado literal de deterioração, verfallen não é um termo de desaprovação moral. A queda não é acidental, ela já sempre se deu; o Dasein, em seu poder-ser mais próprio já caiu de si mesmo e de-caiu no mundo, uma (ultra) passagem que só se realiza na angústia. 96 cotidiana. Sendo, ele é outro na medida em que assume o modo do “impessoal” ou se preferir, do “a gente”. Aqui a preocupação assume a forma do impessoal, na qual nos compreendemos a partir dos outros enquanto nos subtraímos de “nós mesmos”. Neste sentido negativo, mas originário porque é um dado que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, o “quem” do Dasein não é este ou aquele, nem o próprio do impessoal, nem alguns nem muito menos a soma de todos. O “quem” é o neutro, o impessoal. (HEIDEGGER, 2002a, p. 179). Vivemos, diz Heidegger, a “ditadura” (Diktatur) do impessoal. 31 No § 51, Heidegger caracteriza o cotidiano do Dasein como uma impessoalidade própria expressa no falatório. Ali ele pergunta pelo tratamento dado à morte no modo impessoal e sugere que na convivência cotidiana “fala-se” de “casos de morte”, da morte do outro, negando-se a cada vez a possibilidade de uma morte imediata. É um fenômeno que, embora esteja prestes a ocorrer, é algo de que não devemos nos preocupar. Pois, a morte é sempre a morte dos outros. Assim, sem que o Dasein se dê conta, o impessoal assume a condição dos outros e “consolida seu poder”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 179). A morte, nesse contexto, não constitui uma ameaça. Fala-se publicamente sobre a morte, desconsiderando-se o fato de que não se pode experimentar a morte dos outros e que a morte é sempre minha. De acordo com esse discurso, a presença “perde-se” no impessoal no que se refere ao seu poder-ser mais próprio. É assim que durante uma doença grave costuma-se convencer o moribundo de que ele escapará à morte, buscando-se, dessa forma, tranquiliza-lo a respeito dela. A tranquilização do Dasein através do impessoal é um modo implícito de seu comportamento perante a morte. “Considera-se” que pensar na morte é sinal de um temor covarde. Essa indiferença, própria da de-cadência, “aliena o Dasein de seu poder-ser mais próprio e irremissível”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 37). O ser-para-amorte cotidiano constitui já desde sempre uma fuga dele mesmo, sendo um “decadente”. A fuga do de-cadente da morte, mesmo não sendo um pensar explicitamente na morte, demonstra que o impessoal se determina como ser-para-amorte. Ou seja, a análise da fuga cotidiana da morte serviu, pelo menos, para 31 Fizemos questão de transcrever a expressão ditadura do impessoal de Ser e Tempo para explicar que ela não possui aqui o sentido negativo de algum tipo de imposição que faz uso da força ou da violência, seja ela física ou psicológica. Trata-se, antes, de uma forma ontológica de domínio; faz parte do poder-ser de todo Dasein essa forma imprópria da existência. Em contraparte temos a possibilidade do ser si-mesmo próprio da existência. 97 visualizar a morte como fenômeno. Isto prova que uma análise do Dasein cotidiano não exclui, em princípio, a possibilidade de se fazer uma experiência ontológica do Dasein que se abre nos fenômenos próprios desta região. O ser-para-o-fim foi determinado como o ser-para-a-morte a partir da análise do modo da cotidianidade. A começar de uma investigação complementadora do “ser-para-o-fim cotidiano”, Heidegger pretende chegar ao ser todo do Dasein, isto é, ao sentido existencial de morte. A cotidianidade, diz ele, não duvida da morte; da morte ela tem certeza ainda que não em sentido próprio, porque tal certeza tem a função de encobri-la. É assim também com o ser-com de cada um. A diferença característica do ser-com, que a cada vez ganha força na cotidianidade, rouba o seu poder-ser mais próprio, ou seja, coloca-o sob o domínio dos outros. “Estar-certo de” significa: “ter por verdadeiro enquanto verdadeiro”. É, então, compreender alguma coisa pelo testemunho da própria coisa (adequatio res et intelectus). O encobrimento da morte pelo Dasein cotidiano indica que o Dasein está na não-verdade (entendendo-se verdade como alethéia - des-velamento, descobrimento). A certeza do Dasein cotidiano é um ter por verdadeiro inadequado, mas não é uma dúvida ou incerteza. A morte, vista pela impessoalidade, é um fato da experiência. Nesse caso, ela é interpretada do ponto de vista meramente biológico. A cotidianidade tem a certeza empírica do deixar de viver, mas não da morte no sentido existencial. Por outras palavras, “pensa-se” na morte biológica como algo certo, mas que se realizará num futuro bem distante. Contudo, a morte não é pensada como algo possível a cada momento. A morte é certa, mas o seu quando é indeterminado. A indeterminação do quando da morte revela que o ser-todo do Dasein não coincide com o deixar de viver, uma vez que a morte não é simplesmente deixar de viver, mas um morrer-se um pouco a cada dia. Por essa razão, a interpretação do ainda-não do Dasein como pendência é incorreta “devido à sua não totalidade”. Enquanto nos empenhamos no mundo das ocupações, inibimos, por assim dizer, a surpresa de nossas relações e nivelamos toda e qualquer primazia que, incessantemente, se impõe. Por isso, a impessoalidade, inerente ao modo de ser da cotidianidade, retira do Dasein a sua responsabilidade e, por assim dizer, o seu encargo e “impõe” a cada um de nós uma vida de “superficialidade” e “facilitação”. Lembrando sempre, como já ficou dito, que estes vocábulos não possuem um 98 sentido negativo e que são, contudo, determinações existenciais do próprio Dasein. O quem é, na verdade, “ninguém” (Niemand) “a quem o Dasein já se entregou na convivência de um com o outro” (HEIDEGGER, 2002a, p. 181). Porém, o impessoal, enquanto ninguém, não é um nada, mas também não é algo simplesmente dado que se dá em conjunto com outros sujeitos, nem tampouco um “sujeito universal”, mas possui o caráter de Dasein, e como tal, é um existencial, uma constituição positiva do Dasein. Após haver estabelecido o modo impróprio do Dasein de se relacionar com a morte, Heidegger questiona agora a possibilidade de um poder-ser existenciário.32 Num primeiro momento, parece que Heidegger tenta explicar o sentido próprio do ser-para-a-morte a partir da negação de sua impropriedade. A fuga de-cadente da morte é um ser-para-a-morte impróprio. Mas pensar a possibilidade de um ser-paraa-morte próprio é “uma possibilidade existenciária do Dasein”. (HEIDEGGER, 2002b, p.43). Então, o ser-para-a-morte é caracterizado como uma “possibilidade privilegiada do próprio Dasein”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 44). Ser-para-a-morte não é simplesmente ocupar-se de sua realização como o que está à mão, como algo disponível. Isso, por outro lado, significa simplesmente deixar de viver, uma vez que a morte é uma possibilidade que deve ser mostrada o mínimo possível pela compreensão comum. O ser-para-a-morte é uma antecipação dessa possibilidade e não, ao contrário, o seu adiamento. A antecipação da morte constitui a possibilidade de compreensão do poder-ser mais próprio e extremo do Dasein. Como já dissemos, a compreensão do Dasein do seu ser-para-a-morte como possibilidade mais própria desentranha-a do nível da impessoalidade e indica que esse poder-ser só pode ser assumido por ele mesmo. A antecipação torna possível a compreensão do Dasein no seu poder-ser-todo existenciário. Apesar do ser-para-a-morte caracterizar-se como o modo de ser próprio do Dasein, a morte, embora certa, é indeterminada, colocando sempre o Dasein diante de uma ameaça. Somente a angústia pode manter o Dasein aberto para esta 32 O termo existenciário refere-se a uma possibilidade ôntica aberta para o Dasein e a compreensão que o Dasein possui dela e as escolhas que faz são, portanto, assuntos existenciários. Para relações ônticas, usa-se o termo existenciário (Existenziell) e para relações ontológicas usa-se existencial (Existenzial). (INWOOD, 2002, p. 59-60). 99 ameaça. Em suma, a antecipação coloca o Dasein “diante da possibilidade de ser ele próprio: […] na liberdade para a morte”. (HEIDEGGER, 2002b, p.50). Nesse sentido, só a morte individualiza o ser do Dasein. Ela nos coloca perante o nosso próprio ser. É por isso que, a partir da análise da morte, fenômeno que nos coloca em vista de nosso ser mais próprio, é que podemos chegar à interpretação do modo próprio de ser outro, à medida que se concebe o Dasein em sua propriedade, isto é, no seu ser-com existencial. No modo da propriedade, o Dasein pode liberar “o outro em sua liberdade para si mesmo”. Isto quer dizer que, “no ser-com, enquanto o existencial de ser em função dos outros, os outros já estão abertos em seu Dasein”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 174). Em suma, o “próprio” do Dasein vem ao encontro “no” mundo, de “início” e na maior parte das vezes, como o “próprio-impessoal”, e nesse caso, buscando sempre encontrar a si mesmo. É desse modo que o ser-no-mundo se torna explícito em sua cotidianidade e medianidade. Assim, na convivência cotidiana, o Dasein é “na maioria as vezes” ser-com e ser-próprio no impessoal. Mas, veja bem, essa interpretação do ser mais imediato como impessoal não significa que esse modo de ser seja um mero nada ou outro Dasein; trata-se do mesmo Dasein, só que, nesse caso, “modificado".33 A “publicidade” do impessoal e a “de-cadência”, enquanto não representa prejuízo à possibilidade genuína de recuperação do Dasein, apenas quer mostrar “um modo existencial de ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2002a, p. 238), o mais básico e fundamental modo de ser do Dasein. “De-cair no mundo” indica o empenho na convivência na medida em que esta é conduzida pelo falatório, curiosidade e ambiguidade”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 237). Agora sim, diz Heidegger, o modo de ser impróprio ou a impropriedade com a descrição fenomenológica da decadência pode ser determinada mais precisamente. A análise ontológica da “de-cadência” que se desentranha da “algazarra da compreensão impessoal”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 86). Essa interpretação, entretanto, não deve aqui exprimir qualquer avaliação negativa, em vez disso, deve apenas indicar que o Dasein está “junto” e no “mundo” das ocupações, “privado” de seu ser. Platão tinha concebido, conforme aludimos antes, o fenômeno da privação como um processo ontológico (como um vir-a-ser): “uma vez que o ser é privado de 33 Ver nota 25 da terceira seção deste capítulo. 100 si mesmo, ele será não-ser”. (PLATÂO, 2007, 245a-246a). A impropriedade do ser não deve ser concebida como uma situação concreta onde se prefere um modo de viver a outro. Por isso, embora esse “estar junto” ao mundo já tenha sido anunciado no § 12 de Ser e Tempo, somente agora (§ 38), mediante uma discussão acerca do modo de ser da cotidianidade, de uma interpretação ontológica da “de-cadência”, é que ele se torna mais visível. Este empenhar-se e estar junto se deixa dominar pelo mundo na medida em que possui o caráter ontológico de “perder-se na publicidade do impessoal”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 237). Daí se dizer que, na impropriedade, o Dasein nem perde totalmente o seu ser nem diz não mais estar no mundo e sim um modo especial de ser-no-mundo. Assim, enquanto determinação existencial do Dasein é, portanto, uma possibilidade positiva, é de fato o modo mais próximo e familiar do Dasein. 101 CONSIDERAÇÕES FINAIS Faz nove décadas desde a publicação de Ser e Tempo e o ser-com estabelecido no interior da “analítica existencial” continua provocando calorosas discussões e abrindo caminhos que envolvem ética, política, arte, ecologia e tantos outros campos de investigação. Em linhas gerais, esse trabalho mostrou, porém, que de Heidegger não se pode esperar uma demonstração meramente teórica da filosofia, nem muito menos uma simples descrição fenomenológica do modo prático de ser-no-mundo, a qual serviria apenas de auxílio no processo de reformulação das ciências. O ser-no-mundo do Dasein, enquanto constituição mais fundamental desse ente, não se confunde com o comportamento. A práxis constitutiva do ser-no-mundo e, por sua vez, do modo de ser-outro é uma condição transcendental, porém diferente da concepção tipicamente transcendental de Kant. Na medida em que se buscou o acesso fenomenológico-hermenêutico ao modo de ser-outro, o ser-nomundo, segundo nossa perspectiva, está num limite entre o transcendental e o concreto. Transcendental, uma vez que a questão exige certa “compreensão” que é fundamental; concreto, porque esta compreensão não é uma atividade do entendimento e, portanto, não se define a partir da subjetividade da consciência. A compreensão é um modo de ser do Dasein. O Dasein é, antes de tudo, um ser temporal, uma vez que “antecipa” o seu futuro e está sempre adiante de si mesmo e também atrás pelo fato de fazer alusão ao seu passado. É importante insistirmos sobre este aspecto temporal do Dasein na medida em que somos da opinião de que a filosofia de Heidegger representa uma filosofia menos subjetivista, menos pura, sem, contudo, torná-la uma mera atitude do homem, dado o seu caráter “essencial” de possibilidade finita. Nesta perspectiva, foi possível evidenciar que o caráter fundamental do modo de ser-outro em Heidegger desempenha um papel central no interior da analítica existencial. Levado por seu esforço em retomar a questão fundamental da filosofia (a questão do ser), tomou como tarefa primordial a questão do sentido de ser, o qual é impassível de objetivação. É por isso que, para Heidegger, não existe uma esfera egoísta e solipsista ante uma esfera externa que a filosofia moderna 102 denomina de “outro eu”. E o modo de ser para o outro como empatia reforça justamente esta concepção moderna. A empatia é a segurança de que o “eu” fará comunicação com o “outro eu”. É este processo mental que define a chamada “relação com o outro” na filosofia moderna da subjetividade. Isso porque o “eu” continua sendo, de início, um eu voltado para o seu interior. Heidegger acha que é possível manter tal relação, mas sem que haja necessidade de situar o outro exteriormente ao “sujeito”, a quem chamou de Dasein. O ser com o outro já pertence ao ser do Dasein, de modo que em “seu” ser ele já é desde sempre um ser-com. Dessa maneira, o “outro” aqui não se apresenta como algo que está lá fora e que é tomado pelo eu de maneira totalmente indiferente. Portanto, todo Dasein apresenta em sua essência um ser-com. Somente porque o Dasein é determinado como ser-com é que pode ele se compreender em comunidade com os outros, numa relação de afinidades e interesses comuns e não o contrário. Na verdade, este modo fundamental, o ser-com, deve ser entendido na constituição neutra do Dasein, no fato de que o Dasein não é nem masculino nem feminino. Para o Dasein ser faticamente ou segundo o gênero masculino ou segundo o gênero feminino, ele precisa já conter essencialmente um ser-com. Por isso, entendemos que a neutralidade de seu ser é já desde sempre rompida por ele. Em resumo, o “outro” de Heidegger constitui um ser-outro, uma existência que se realiza enquanto atividade de um ser e não como estado da consciência. Neste sentido, o outro mesmo, o outro enquanto tal é um modo de ser da própria existência do Dasein. Em razão disso, Heidegger conseguiu tomar certa distância do ideal moderno da consciência. Por meio do ser-com, o Dasein é também outro, isto é, Dasein-com. O Dasein em sua existência é já ultrapassado. Desta maneira, a ontologia hermenêutica de Heidegger se destacou, por exemplo, da fenomenologia transcendental de Husserl apesar da novidade trazida por este em relação ao idealismo alemão. Desde então se pode falar num outro, que tendo um sentido, não se constitui na perspectiva do conhecimento. Justamente porque, para Heidegger, ser-com o outro não é se relacionar com um objeto. Compreender o outro não é tender em direção a um objeto, não é, portanto, representar. A diferença se refere exatamente ao modo como esse compreender se dá. Para a fenomenologia tradicional o compreender não se constitui pela história. Para Heidegger, em contraste, a compreensão do outro só é possível como ser-no- 103 mundo, ou seja, como compreensão do ser. E esta compreensão, por sua vez, só se realiza na história; em síntese, a compreensão do outro é uma maneira de o Dasein se relacionar com o seu próprio ser e não uma atividade do intelecto. No que concerne à nossa questão proposta – o outro na fenomenologiahermenêutica de Heidegger – tentamos mostrar aqui como o problema do sentido de outro é colocado na “analítica existencial”. Ao se perguntar pelo “si mesmo” (o quem) do Dasein, pergunta-se em que consiste ser esse “si mesmo” no modo existencial da cotidianidade. Heidegger, então, responde: o si mesmo não significa originariamente um “eu”, no caso de esse “eu” for entendido como uma criação do sujeito. O si mesmo do Dasein não chega a sua completude através da reflexão sobre si; a tomada irrefletida (indiferente) em direção a algo também constitui um ser si mesmo. Compreende-se a partir daí que o Dasein é um ser finito, já desde sempre é um sercom o ente: o ente intramundano e o Dasein, e não um ser em si vazio e abstrato. Essa orientação do ser-com sempre em direção ao todo mostrou, portanto, que o ser-com na “preocupação” com outros “Dasein” difere do ser-com junto à “ocupação” de entes simplesmente presentes. As duas formas, portanto, preocupação e ocupação, são essenciais para o ser-com o outro que, por sua vez tornam possível o convívio social, nas suas mais variadas formas. Nessa perspectiva, vimos até que ponto a filosofia de Heidegger caminha contra uma mera apreensão pura das coisas. O outro, que Heidegger chama de Dasein-com pertence ao mesmo círculo de manifestação. Pensemos, então, na presença do computador em relação ao estudante. O estudante é um ser-com o ente-computador, ou seja, o computador é um ente desvelado, “manifesto”. Ao contrário, para o ente-computador, o estudante não é algo desvelado e o mesmo acontece quando este ente está junto de outro ente intramundano. É por isso que os entes simplesmente presentes não podem ser-com, ainda que contenham as mesmas características. Já sabemos que o Dasein é essencialmente “fora”, portanto, nunca um Dasein está como que ao lado do outro. É aí, então, que percebemos como Heidegger se distancia da tradição moderna. Porque o ser-outro é parte integrante do eu. Só podemos dizer quem somos (nós mesmos) a partir do momento em que dizemos quem não somos. Sem a diferença, sem “o outro” a identidade não se mantém. Como Dasein ele só é saindo de si; se assim não for, ele não é ele mesmo. É dessa forma, pois, que cada um já pertence ao espaço de manifestação do outro. Em razão disso, podemos dizer, a 104 partir de Heidegger, que ao Dasein pertence um ser-com mesmo quando um outro Dasein não está presente: O ser-aí já traz consigo a esfera de uma vizinhança possível; ele já é por si mesmo vizinho de... Em contrapartida, por exemplo, duas pedras jamais podem ser avizinhadas. O ser-com implica: um liberar e um passar adiante o aí – como algo que manifestamente irrompeu e em que o ente pode por sua vez se anunciar segundo o seu modo de ser. (HEIDEGGER, 2008b, p. 146-147). Observamos, portanto, que Heidegger consegue, por assim dizer, falar do outro, seja no modo próprio ou impróprio, porque consegue abandonar o pensamento moderno tradicional de um total isolamento do “eu” ou de uma esfera egoísta considerada de uma maneira idealista. O “outro” não é esse ou aquele, ou seja, não é um fora de mim, mas é também um Dasein, um Dasein-com, e para que possamos ser “na” esfera de manifestação do outro, isto é, para que o si-mesmo do outro-Dasein seja descoberto, é preciso que haja uma dissolução do eu-egoísta. O grande problema não reside na existência de um “eu”, mas na sua entificação. Sobre isso nos diz Heidegger (2002a, p. 252): A angústia singulariza e abre o Dasein como o solus ipse. Esse “solipsismo” existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere ao Dasein justamente um sentido extremo em que ele é trazido como mundo para o seu mundo e, assim, como serno-mundo para si mesmo. Por esse motivo, o tema da morte foi tão importante para as análises do seroutro em seu sentido próprio. A “compreensão do outro” depende de nosso ser-nomundo, em que nos compreendemos antecipadamente. Na decisão antecipadora da morte o Dasein, enquanto um ser-com, se abre para o Dasein-com dos outros e não se compreende mais como um ser presente, na medida em que o seu poder-ser se abre na disposição fundamental da angústia. Pois, “o ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia.” (HEIDEGGER, 2002b, p. 50). Em suma, o ser-para-amorte é ser-com o outro no seu modo próprio à medida que compreende o outro como o Dasein que já desde sempre é. Nesse contexto, a morte como antecipação serviu para nos mostrar o sentido existencial de outro, na medida em que o outro não é um “ele”, ou seja, um ser fechado no presente, mas um Dasein livre para o 105 seu poder-ser mais próprio, um poder-ser livre para ser o que já desde sempre é, um Dasein. A filosofia moderna da subjetividade, em contraste, exige uma supervalorização do intelecto, fazendo crescer mais e mais o isolamento do eu. Esse total afastamento se dá não pelo fato de se preservar a instância do eu, mas por se achar que esse mesmo eu evidencia um mundo vazio e obscuro de entes-coisa. Quando discorremos sobre o modo como o Dasein é no mundo, comentamos de modo breve, o existencial “cura”. A importância desse existencial consiste, portando, em tomar o ente Dasein e também o ente intramundano igualmente de maneira empenhada. Como vimos, a preocupação com os outros pertence à estrutura da cura. E o ser como cura só tem a unidade de seu ser na temporalidade. Neste sentido, é como ser-para-a-morte que o Dasein é esse Dasein que já sempre é. Pois, é justamente na antecipação da morte, mediante a angústia, que o Dasein nega o ser com os outros na impropridade e compreende o ser-com dos outros propriamente em sua alteridade. Finalmente, o que tentamos fazer aqui não foi investigar a “questão do outro” baseando-se meramente na terminologia heideggeriana. A nossa proposta consistiu em mostrar o lugar dessa questão na analítica existencial como meio de despertar para a “questionação” do questionamento do ser. Para tanto, consideramos importante primeiro fazer uma exposição breve sobre a questão de fundo do pensamento de Heidegger, a qual julgamos ser aquela que lhe permitiu superar a metafísica tradicional – a “questão do sentido do ser” para, enfim, dar a direção para a qual esta dissertação iria apontar. Por isso, finalizamos o primeiro capítulo apresentando a chamada “questão do outro” e sua função no contexto de Ser e Tempo. Em seguida fizemos uma exposição breve sobre a analítica existencial, dando prioridade ao caráter de ser temporal e o de ser-no-mundo do Dasein. Ao final, o terceiro capítulo apresentou a resposta de cunho fenomenógicohermenêutica de Heidegger à “questão do outro”. Essa parte final do trabalho consistiu em mostrar como Heidegger trouxe o sentido de outro para o originário, para o Da do Dasein. Isso significou evidenciar o caráter constitutivo do ser-outro, uma vez que esse fenômeno faz parte da constituição fundamental do Dasein como ser-no-mundo. E tal proposta só se fez claro na medida em que sempre se buscou, segundo o modo existencial da Befindlichkeit (disposição), adentrar no outro mesmo 106 para conquistar o seu sentido e nada mais. Sendo que o sentido de outro aqui fala de um sentido existencial. Ele fala de um sentido “profundo” e “originário”, o qual é pensado como condição de possibilidade finita da vida em sociedade. Pois, é só por causa desse “outro”, desse “não”, que podemos, de fato, dizer o “estar só” e o “nós”. E só agora entendemos porque Heidegger, quando busca respostas para a ipseidade do Dasein, a pergunta não é “que é o Dasein?”, mas sim “quem é o Dasein?”. Pois, o Dasein não é uma coisa dada e sim ele mesmo. A filosofia é essencialmente um dizer que se preserva, está no domínio do não saber. Sendo possível agora dizer por que a compreensão do outro enquanto compreensão do ser é um tanto problemática para a noção comum de filosofia. É possível considerar que a filosofia tal como se entende usualmente, ao não pensar o ser na diferença com o ente, tende a entender o ser de maneira ôntica e, portanto, a separar o seu sentido de outro; a filosofia, desta forma, tornou comum o referir-se ao si-mesmo como um eu e ao outro como um tu. Mas, como diz Heidegger, “[...] o ofício da filosofia é, em última instância, preservar a força das palavras mais elementares, em que o Dasein se pronuncia a fim de que elas não sejam niveladas à incompreensão do entendimento comum, fonte de pseudoproblemas”. (2002a, p. 288). O ser, em sua origem grega, não é algo que se opõe ao não-ser, considerando aqui apenas o que ficou acertado sobre a physis – como a própria realidade. Assim, o outro de Heidegger, como também todo e qualquer modo de ser do Dasein, no fundo se revela como “um” caminho para se chegar ao “sentido do ser em geral”, à essência finita das coisas que é a condição fundamental para qualquer compreender. Entendemos, porém, por “essência”, não o significado corrente que diz o que algo é, mas o modo como algo é naquilo que repousa no ser do Dasein, isto é, no sentido do ser. Dessa forma, o ser-com e o Dasein-com enquanto pertencem à ontologia fundamental34 seriam, então, a base para toda e qualquer teoria que se diz uma “filosofia da alteridade” ou ainda para aqueles que se propõem a falar sobre o outro. 34 Mas segundo a interpretação de Heidegger: “A Ontologia Fundamental não é meramente o geral em relação às Ontologias Regionais, uma esfera mais elevada pairando acima delas (ou um porão que se encontra abaixo) contra (ou na) qual as Ontologias Regionais podem proteger-se. Ontologia Fundamental é aquele pensar que se movimenta no fundo de toda ontologia”. (2001, p. 206). 107 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução Hernán Zucchi. Buenos Aires: Debolsillo, 2004. BICCA, L. Alteridade e reconhecimento. In: Racionalidade moderna e subjetividade. São Paulo: Loyola, 1997. p. 287-332. DEPRAZ, N. Compreender Husserl. 2. ed. Tradução Fábio dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2008. (Coleção Compreender). FIGAL, G. 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