O sentido existencial de outro na ontologia fundamental de Heidegger

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ - UFPI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
CLAUDIA RAQUEL MACEDO
O SENTIDO EXISTENCIAL DE OUTRO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE
HEIDEGGER
Teresina - PI
2012
CLAUDIA RAQUEL MACEDO
O SENTIDO EXISTENCIAL DE OUTRO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE
HEIDEGGER
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Filosofia pelo programa de
Pós-Graduação em Ética e Epistemologia
da Universidade Federal do Piauí - UFPI.
Orientador: Prof. Dr. Rosario Rossano
Pecoraro.
Teresina - PI
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco
Serviço de Processamento Técnico
M141s
Macedo, Claudia Raquel.
O sentido existencial de outro na ontologia fundamental de
Heidegger / Claudia Raquel Macedo. Teresina: 2012.
110 f.
Dissertação (Mestrado em Ética e Epistemologia)–Universidade
Federal do Piauí, 2012.
Orientador: Prof. Dr. Rosario Rossano Pecoraro
1. Metafísica. 2. Ontologia. 3. Fenomenologia. 4. Outro Hermenêutica. 5. Heidegger. I. Título.
CDD:
110
TERMO DE APROVAÇÃO
CLAUDIA RAQUEL MACEDO
O SENTIDO EXISTENCIAL DE OUTRO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE
HEIDEGGER
Essa dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de Mestre em Filosofia e
aprovada pelo Curso de Mestrado em Ética e Epistemologia através do Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí, pela seguinte banca
examinadora:
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Rosario Rossano Pecoraro/UFPI (Orientador-Presidente)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Edgar Lyra Netto/PUC-Rio (1º Membro da Banca)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. José Ricardo Barbosa Dias/UFPI (2º Membro da Banca)
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Elnôra Maria Gondim M. Lima/UFPI (Membro Suplente)
Teresina, __________ de _________________ de 2012.
AGRADECIMENTOS
Agradecimentos especiais ao meu orientador Rossano Pecoraro, pela
confiança e ensinamentos, e aos professores Luciano Donizetti e José Sérgio pelas
primeiras orientações. E agradeço profundamente ao professor José Ricardo, uma
pessoa única, que me introduziu nos estudos da hermenêutica de Heidegger e
também por me ajudar nesse trabalho com o acesso aos textos e com ideias. Essa
pesquisa é fruto da contribuição inestimável de todos.
Aos colegas de estudo, pelas trocas de conhecimento e amizade, em
especial, Jair, Ana Paula, Leonardo e Lorena. E ainda, aos demais colegas do
Laboratório de Informática da Pós-graduação.
Aos professores Helder Buenos Aires e Elnôra Gondim, pela contribuição
neste processo.
Aos grupos de estudo (UFPI) “Seminário de Pesquisa em Hermenêutica
Filosófica” e “Grupo de Estudo em Heidegger” pela oportunidade de reflexão e
debate.
Aos demais professores do Mestrado e funcionários da UFPI.
Ao Programa de Bolsas REUNI, pelo apoio financeiro que tornou possível
esta pesquisa.
À minha revisora de texto, Catarina Santiago.
À minha família, em especial, Constância e Álvaro, pelo amor.
RESUMO
O trabalho que segue procura elucidar o caráter de ser-outro e o seu papel na
proposta desenvolvida por Heidegger em Ser e Tempo, discutindo, assim, o modo de
ser-outro a partir de uma “ontologia fundamental”. Portanto, o objetivo principal
dessa dissertação é explicitar o sentido existencial de outro sob o contexto do
esquecimento do ser, que Heidegger atribui à metafísica ocidental. Para introduzir o
problema da pesquisa buscamos identificar a questão do “sentido do ser” no âmbito
da fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Nosso segundo passo foi explorar a
“ontologia fundamental” comentando seus principais momentos para enfim, situar, no
interior da analítica existencial, a discussão do Mitsein (ser-com), expressão que
Heidegger usa para caracterizar o modo como o Dasein vive em um mundo com os
outros entes. Ao explorar o fenômeno do ser-com na preocupação com os outros
desde a impropriedade para a propriedade do ser do Dasein, observamos o nexo
fundamental com o fenômeno da morte, em que o Dasein se compreende em seu
poder-ser mais próprio e onde, então, é possível se dizer o outro como outro. Foi
dessa maneira, portanto, que chegamos à interpretação de que a ontologia
fundamental de Heidegger, que no fundo trata apenas da necessidade de colocar
novamente a questão esquecida do sentido do ser, é também um passar pela
questão do outro e sua alteridade.
Palavras-chave: Heidegger. Ontologia fundamental. Outro. Morte.
ABSTRACT
The work that follows seeks to elucidate the character of otherness and its role in the
proposal developed by Heidegger in Being and Time, arguing, so, the other way of
being from a “fundamental ontology”. Therefore, the main objective of this
dissertation is to explain the existential sense of other under the context of the
forgetfulness of being that Heidegger attributes to western metaphysics. To introduce
the research problem we seek to identify the issue of the “sense of being” within the
hermeneutic phenomenology of Heidegger. Our second step was to explore the
fundamental ontology commenting on the key moments to finally locate, within the
existential analysis, discussion of Mitsein (being with), expression that Heidegger
uses to characterize how Dasein lives in a world with other beings. In exploring the
phenomenon of being-with the concern for others since the impropriety to the
property of being of Dasein, we observe the fundamental connection with the
phenomenon of death, in which Dasein is understood in its power to be more own
and where, then, can be said the other as other. Thus, therefore, that we come to the
interpretation that the fundamental ontology of Heidegger, which basically just about
the need to put the question again forgotten the sense of, is also a question of going
through the other and his otherness.
Keywords: Heidegger. Fundamental ontology. Other. Death.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
7
1 A QUESTÃO DO SENTIDO DO SER
16
1.1 O problema ontológico: pergunta pelo sentido do ser
16
1.2 Posição fenomenológico-hermenêutica
25
1.3 A especificidade da filosofia
28
1.4 O problema do outro
34
2 A QUESTÃO FUNDAMENTAL EM SER E TEMPO
38
2.1 O projeto de uma ontologia fundamental
38
2.1.2 O modo de investigação da questão do ser
40
2.2 Ser temporal do Dasein
44
2.3 Ser-no-mundo do Dasein
49
3 O SER SI-MESMO, O SER-OUTRO E O IMPESSOAL
58
3.1 O ser-com de Heidegger
58
3.2 A pergunta existencial sobre o quem do Dasein
69
3.2.1 O ninguém do Dasein como interpretação fundamental do quem
75
3.3 A mundanidade do mundo
78
3.3.1. Ser com outro-ente intramundano: ocupação
78
3.3.2 Ser com outro-Dasein: preocupação
86
3.4 O ser-próprio do outro e a morte
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
REFERÊNCIAS
107
7
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
[...] o questionar é a devoção do pensamento.
(HEIDEGGER, A questão da técnica).
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) foi dono de uma vasta
bibliografia que reunida supõe-se chegar a 102 volumes, dos quais oitenta já foram
publicados na Gesamtausgabe (Obra completa).1 O acesso e, mais tarde, o estudo
sistemático destas publicações e de suas traduções vem contribuindo sobremaneira
para a confirmação da proposta primordial de seu pensamento sintetizado na
pergunta pelo “sentido do ser”, apesar do reconhecimento da divisão de sua obra em
duas ou três fases, o que implicaria num cuidado ainda maior quanto a
interpretações isoladas. Na verdade, conforme mostraremos ao longo deste
trabalho, a chamada “questão do ser,” expressa em sua obra, não impede ou anula
uma
reflexão
sobre
os
mais
diversos
temas,
tais
como,
por
exemplo:
intersubjetividade, identidade e alteridade. Dentre esses, destaca-se o problema em
torno do qual se apresenta o sentido existencial de ser-outro que pretendemos tornar
claro nesta dissertação.
Assim sendo, aquela imagem de filósofo obscuro e ininteligível vem, cada
vez mais, perdendo força à medida que seus escritos, principalmente, aqueles que
circundam Ser e Tempo, hoje amplamente difundidos, desmistificam conceitos-chave
como Dasein, ser-no-mundo, existência, diferença ontológica, transcendência.
Textos como Que é metafísica?, Sobre a essência do fundamento, Sobre a essência
da verdade, Introdução à metafísica, Introdução à filosofia, para citar apenas alguns,
abrem as portas para o desenvolvimento de argumentações e debates que fazem do
pensamento heideggeriano uma das experiências mais importantes do nosso tempo,
vindo a influenciar, direta ou indiretamente, uma quantidade considerável de
pensadores do século XX.
1 Heidegger organizou no final da vida o projeto de uma publicação única de todas as suas obras – a
Gesamtausgabe (GA), publicada no ano de sua morte, 1976. “Caminhos não obras”, disse
Heidegger ao constituir essa edição publicada por Vittorio Klostermann. A GA está dividida em
quatro séries: I. Escritos publicados, 1910-1976; II. Palestras e cursos; III. Escritos não publicados,
palestras e pensamentos e IV. Apontamentos e esboços.
8
Com efeito, é preciso que se tenha claro, desde já, que para Heidegger o ser
não é um ente. Essa ideia é uma das mais fundamentais de seu pensamento, e tão
logo entenderemos o quanto ela norteará as análises na medida em que esse ponto
se encontra na base da crítica à tradição metafísica que sempre pensou o ser por
meio do ente. Portanto, para entender a maneira através da qual o “outro” se nos
revela ou para percebermos o sentido existencial que ele assume em Ser e Tempo,
é necessário fazer uma iniciação ao projeto de Heidegger como um todo, pois em
sua obra se articula uma compreensão implícita de ser que possibilita e constitui
nossa relação com os outros entes. Buscamos, assim, explicitar o modo como
Heidegger entende “o outro” ou “os outros” a partir da cotidianidade e, ademais, do
modo originário do impessoal (das Man). O Man também constitui, conforme nossa
hipótese, o ser-com do Dasein. Aqui, pensamos imediatamente no princípio
fenomenológico de Husserl do “ir à coisa mesma”, de como essa questão está
direcionada pelo modo de ser do próprio eu.
Ser, para Heidegger, não designa um quadro, uma pedra ou um homem. Ou
seja, não é sinônimo de realidade, nem só de homem, é, antes de tudo, a maneira
como algo se torna presente para nós. É dessa compreensão de ser que emergem
as outras relações que mantemos com o mundo. Portanto, como o próprio autor nos
adverte logo na introdução de Ser e Tempo a “analítica” possui um caráter provisório
no todo de seu projeto. Ela não visa apenas descrições fenomenológicas, mas
pretende antes “pôr e colocar a questão esquecida do Sentido do Ser”. (LEÃO,
2000, p.194-195).
Ser é uma estrutura que permite a compreensão dos entes; é possibilidade,
em vez de ser apenas um objeto de pensamento como uma pedra ou um ser
humano. “Ente é tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos
comportamos dessa ou daquela maneira [...]. Ser está naquilo que é e como é, na
realidade, no ser simplesmente dado” (HEIDEGGER, 2002a, p. 32), mas de modo
algum se confunde com este.
Por isso, para sustentar o caráter ontológico dessa investigação faremos
uma explicitação dos elementos essenciais que a constituem, dentre eles: i) a
originariedade, ii) a neutralidade e iii) a circularidade. A primeira perspectiva que
assegura a problemática ontológica chamada aqui de originariedade consiste no
caráter originário da questão do ser e, por conseguinte, da “questão do outro”. O ser
é originário, mas esse significado de origem difere daquele que indica começo
9
(característico do âmbito da história, referindo-se a início). A origem constitutiva da
qual se fala diz respeito ao sentido originário das coisas, ou seja, à “essência” não
entificada das coisas. A abertura originária ao ser reside no fato do Dasein ser a
própria transcendência, no fato de ele ser originariamente “de-caído” e “para fora” de
si mesmo, isto é, junto ao ente. O Dasein é originariamente outro. De alguma forma,
o Dasein é “ele mesmo”, mas sob o modo da impropriedade, na maioria das vezes.
O ponto de vista da neutralidade reside no caráter neutro do Dasein, no sentido de
que uma interpretação desse ente que parte da cotidianidade imprópria, antecede
toda concreção fática. Essa proposta está muito clara em Ser e Tempo: “orientar a
análise pelo fenômeno da de-cadência não exclui, em princípio, a possibilidade de
se fazer uma experiência ontológica do Dasein que se abre nesse fenômeno.”
(HEIDEGGER, 2002a, p. 248). O Dasein é originariamente existência; assim, o seu
próprio modo de ser não é, para ele, indiferente. De certa forma, não é possível dizer
o Dasein. Porque o Dasein não é, mas se dá. Só é possível falar sobre os
existenciais do Dasein e exatamente por isso é que a investigação ontológica se
realiza antes de toda teoria do ser. Existe um dizer originário “anterior” ao dizer que
se dirige aos entes – que é o dizer da ontologia ou da filosofia hermenêutica.
Por fim, explicitaremos o caráter circular da analítica existencial. “Toda
interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter
compreendido o que se quer interpretar”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 209). Este
círculo, porém, não é uma perda no processo de comprovação e sim uma estrutura
de possibilidade positiva de uma interpretação originária. Ele é próprio da análise do
ser e por isso mesmo não podemos evitá-lo. É nesse círculo e por ele que os entes
à mão já são abertos. Pois, na ontologia hermenêutica é a chamada circularidade
que faz o papel de fundamentação. O Dasein traz em sua estrutura essencial o
espaço como tal, qual seja, a espacialidade. O Dasein como ser-no-mundo é um
“dar espaço”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 160). Mas o que significa isso, “dar espaço”?
Essa característica fundamental do Dasein consiste na liberação dos entes para a
sua espacialidade. É esse “dar espaço” que torna possível a manifestação dos entes
naquilo que eles são: a exemplo de um teclado como teclado, enquanto um objeto
com o qual posso digitar. Trata-se de uma abertura que a cada vez se instala na
existência do Dasein, em seu ser-no-mundo, e que, portanto, pertence a seu ser.
Essa abertura, não obstante, que todo Dasein traz em sua estrutura, só é possível
graças ao movimento do desvelar-se do ser. Mas é ela que determina o ser-com do
10
Dasein que, por sua vez, oferece a ele uma condição de vida social, de encontro e
desencontro com os entes e com ele mesmo. Essa exposição do Dasein espacial
em seu sentido originário de abertura serviu para mostrar o movimento em círculo do
desvelar-se do ser toda vez que o manual nos vem ao encontro em sua
espacialidade (preservada na não surpresa do manual), ademais, serviu para
sustentar a tese de que o “ser-com” é uma característica exclusiva do Dasein, e isso
porque o “deixar e fazer vir ao encontro” pertence a seu ser-no-mundo.
Assim, Dasein indica o modo mais próximo e familiar com o qual nos
deparamos com as coisas, é a maneira que Heidegger encontra para dizer que o
existir humano nunca é uma coisa simplesmente dada. Designa, pois, o modo como
o homem se encontra no mundo e, portanto, o ser-no-mundo do homem.
“Chamamos de existência (Existenz) ao próprio ser com o qual o Dasein pode se
comportar dessa ou daquela maneira e com o qual ele sempre se comporta de
alguma maneira”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 39). O filósofo reserva, portanto, a
palavra existência para o Dasein porque este compreende o ser. E ser-no-mundo
(In-der-Welt-sein) é a característica mais fundamental do Dasein e é a que deve
orientar esse tipo de relação ou existência. Sobre isso, Heidegger (2001, p. 33)
sustenta mais tarde que: “a constituição fundamental do existir humano a ser
considerada daqui em diante se chamará ‘Dasein’ ou ‘ser-no-mundo’”. Apesar do
significado de unidade que tal estrutura passa, ela pode, sem problemas, ser
analisada mediante a determinação dos seguintes momentos estruturais: i) o sercom (o “impessoal”);
ii) o ser-em; e iii) o ser-próprio. Esse primeiro é o que
focaremos em nossa investigação da co-existência dos outros (ver terceiro capítulo
desse trabalho) que, originariamente, se dá em situações comuns com os outros.
Seguindo a determinação do ser do Dasein pelo seu ser-no-mundo, a
investigação que se propõe a caracterizar o ser para com os outros, pelo que
Heidegger chama de preocupação ou Fürsorge, só se concretiza pelo viés do ser
próprio-impessoal, o Man-selbst. Assim, temos a tarefa de não deixar que a
discussão tome a forma de uma crítica moralizante, considerando, de início, o fato
de que o nosso filósofo recusa tal inclinação. Pois, o objetivo principal desta
dissertação é mostrar o sentido ontológico-existencial de outro, a partir da análise do
originário encontro com os outros na cotidianidade mediana. O “outro” não possui
aqui um sentido moral. Justamente porque esse sentido apenas se faz presente na
medida em que o Dasein é um ser-com. Apesar, e ao contrário, da acusação de que
11
Heidegger permaneceu indiferente em relação à problemática do outro, o que
consiste num profundo mal-entendido, mostraremos que essa questão ocupa um
importante papel nas reflexões de Ser e Tempo.
No contexto da história da filosofia, esse tema se mostra extremamente
relevante para as interpretações de um “eu” social que se constrói no liame do
envolvimento com as coisas, sendo o lugar que a filosofia de Heidegger ocupa
bastante característico no tocante a esse ponto. Sua ontologia vincula o ser com o
tempo e a história e, desde então, o questionamento filosófico não sai em busca de
um conceito isolado e abstrato, mas é dirigido pela questão fundamental do ser.
Portanto, a presente investigação não pode sugerir que passamos de um estágio
inferior (menos autêntico) a um estágio superior (mais autêntico) ou vice-versa. A
impropriedade das relações impessoais não quer aqui dizer o falso que se opõe ao
verdadeiro, não deve, por exemplo, nos remeter à imagem de uma dupla face onde
uma não tenha nada a ver com a outra. Ora, se estamos cientes da ontologia
heideggeriana, ser se diz sempre de um ente. Aqui se compreende o fato de que
nunca o ser se manifesta sem o ente e que “jamais o ente é sem o ser”.
(HEIDEGGER, 1973e, p. 246). Ou seja, compreende-se com isso que o ser nunca é
uma coisa totalmente separada do “mundo”.
Platão (2007, 241d) já dizia que, “de algum modo, o não-ser é e, por outro
lado, num certo sentido, o ser não é”. Isso significa que na concepção grega não
havia um sentido interior separado do real. No caso específico de Heidegger, fala-se
do mesmo Dasein, que a cada momento promove “sucessos” e “fracassos”. E a
explicação para isso está no que Heidegger chama de “cura” (Sorge), característica
fundamental do Dasein. Enquanto cura, não somos algo dado no interior do mundo,
mas projeto e um projeto lançado, de modo que somente nossa existência mesma,
enquanto cura, nos peculiariza enquanto ser com o outro. Como “cura” estamos
familiarizados com o mundo, com o outro. A cura é o “preceder a si mesmo por já ser
em (no mundo) como ser junto a (o ente que vem ao encontro dentro do mundo)”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 257). Significa dizer que o Dasein se antecipa o tempo
todo; a questão, portanto, que aqui se coloca possui um modo especial
predominante e está voltada para as estruturas ontológicas do Dasein. A questão só
pode ser conduzida pela abertura que pertence ao próprio Dasein.
Essa
abertura
apresenta
um
modo
privilegiado
de
disposição
e
compreensão chamada angústia, que acaba por remeter o Dasein “para o poder-ser
12
mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 252), em que o “mundo” e também o “Dasein-com” dos
outros perde o seu significado. A angústia ou a disposição da estranheza é o modo
mais fundamental encoberto de ser-no-mundo, ela retira o Dasein de sua
familiaridade no impessoal. Desse modo, chamamos de angústia o fato da
singularidade do ser-no-mundo do Dasein. A estranheza que designa o “não se
sentir em casa” constitui o modo como ele se compreende na angústia. O impessoal,
ao contrário, ressalta o caráter familiar do “ser-em” de fato e, precisamente aqui, o
Dasein compreende a estranheza como um desvio para a “de-cadência”. Mas do
ponto de vista fenomenal esta fuga deve significar que enquanto disposição
fundamental a angústia é um modo próprio do Dasein; a fuga significa, portanto, o
fato da angústia. Tal como o modo familiarizado do impessoal a estranheza é, por
outro lado, o fenômeno mais originário do Dasein. Pois, “na angústia se está
estranho.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 252). O se aqui nomeado revela a
indeterminação do ser-em existencial por oposição à determinação categorial da
“interioridade”. Esta disposição, também chamada de disposição de abertura pode,
por conseguinte, revelar o ser para a sua possibilidade extrema e particular de serpara-a-morte, o que individualiza o Dasein de maneira ainda mais radical, pois a
angústia só pode abrir pela primeira vez o mundo como mundo, ou colocar o ser-nomundo do Dasein diante do nada somente porque no ser do Dasein reside a
possibilidade de ser-para-a-morte, porque antes ele se compreende em sua finitude.
“O Dasein que eu mesmo sou só pode ser propriamente na antecipação”.
(HEIDEGGER, 2002b, p. 49).
O primeiro capítulo, intitulado A questão do sentido do ser, apresentará a
trajetória acerca do sentido do ser no pensamento de Heidegger. Nesta parte inicial
do trabalho esperamos situar adequadamente a filosofia de Heidegger em relação a
duas possibilidades de encontro: realista e idealista, além de procurar entender o
que o filósofo quer dizer com ontológico.
O segundo capítulo, denominado A questão fundamental em Ser e Tempo,
versará sobre a proposta de Heidegger de uma ontologia fundamental que é
apresentada na obra Ser e Tempo. Para tanto, comentaremos as principais etapas
da analítica existencial. Essa parte do trabalho é de suma importância, pois é ela
que fornecerá o suporte para a construção dos argumentos do capítulo central da
pesquisa que irá tratar sobre o caráter de outro do Dasein. Já o terceiro e último
13
capítulo, intitulado O ser si-mesmo, o ser-outro e o impessoal, mostrará o sentido
existencial de outro por meio da chamada “relação com o outro” que Heidegger
chamou de “preocupação” ou se preferir “solicitude”, articulado no § 26 de Ser e
Tempo. Os modos de ser-com (Mitsein) e Dasein-com (Mitdasein) que estruturam o
ser do Dasein permitem a Heidegger colocar a ontologia no primado da questão
diante das formas do conhecer e do querer. Além disso, a caracterização do “outro”
como Mitdasein, segundo Luis Bicca (1997), pode significar um primeiro passo no
sentido de pensar a alteridade do outro, o outro tal como ele é.
Desta forma, essa dissertação faz parte de um trabalho de busca pela
maneira de filosofar de Heidegger, sob a ótica de sua “ontologia” e mais
precisamente de sua Ontologia Fundamental. Para tanto, levantaremos a “questão
do outro”, entendida como um dos pilares da filosofia contemporânea, tomando
como parâmetro de investigação o pensamento de Ser e Tempo. Pois, do ponto de
vista ontológico, o Dasein é o único ente que acessa a si mesmo e esse si mesmo
deve ser interpretado existencialmente. Ele não é uma simples presença, e sim, a
sua própria possibilidade, abertura para “errar” ou “acertar”. A escolha do sentido
existencial de outro se justifica, conforme nossa interpretação pretende demonstrar,
pelo fato da análise da chamada “questão do outro”, em Heidegger, supor uma
descrição fenomenológica do existir do Dasein e uma proximidade com seus
aspectos ontológicos. Ademais, também discutiremos aqui até que ponto Heidegger
terá razão quando critica e procura superar a filosofia moderna do sujeito com sua
interpretação ontológico-hermenêutica do caráter de ser si-mesmo e de ser-outro do
Dasein, de forma que implique na compreensão do “outro” em sua referencialidade,
e não como simples presença.
Espera-se, dessa maneira, chegar ao sentido existencial de “outro” dentro
da articulação do ser-no-mundo que é originariamente ser-com e não um modo
circunstancial de ser do Dasein. Ao explicitar essa questão, Heidegger não pretende
apenas estudar as relações humanas e, menos ainda, formular princípios morais
que sirvam de base para tais relações. A sua proposta é mais modesta – é
simplesmente questionar em vez de dar respostas. A pergunta pelo “outro” não se
preocupa com uma reflexão moral da convivência humana justamente porque existe
uma preocupação com o modo fundamental de ser-com, isto é, com o modo próprio
e originário de ser-com os outros, sem o qual os afazeres da vida não se nos
apresentariam ou não teriam sentido para nós. Essa questão, em Heidegger,
14
assume um teor mais radical, mais fundamental. Somente porque o Dasein é sercom, é que pode o outro faltar.
A proposição: “Dasein é essencialmente ser-com” não possui nenhuma
relação com o espaço (como medida) e, portanto, a proximidade não é constitutiva
do ser-com. Não quer ela indicar o simples fato de que não estamos sozinhos e que,
pelo contrário, existimos apenas em comunidade. Para Heidegger (2002a, p. 172):
“O ser-com determina existencialmente o Dasein mesmo quando um outro não é, de
fato, dado ou percebido.” Ou ainda:
Somente porque o Dasein como tal é determinado pela mesmidade2
pode um eu-mesmo relacionar-se com um tu-mesmo. Mesmidade é o
pressuposto para a possibilidade da egoidade, que sempre apenas
se revela no tu. Nunca, porém, a mesmidade está relacionada com o
tu, mas é – porque possibilita isto – neutra em face do ser-eu e ser-tu
e ainda com mais razão em face da “sexualidade”. Todas as
proposições de uma analítica ontológica do ser-aí no homem tomam
este ente de antemão nesta neutralidade. (HEIDEGGER, 1973h, p.
314).
Só podemos, de fato, sentir solidão porque somos sempre ser-com, de modo
que não é possível um Dasein isolado dos outros Dasein os quais também são
Dasein-com e que, portanto, também realizam um Mitsein comigo. O ser-com do
Dasein é um pressuposto fundamental que possibilita o “encontro de muitos em seu
mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 172). Assim, as proposições de cunho ontológicoexistencial sempre consideram o ente-Dasein de um ponto de vista neutro, isto é,
antes de qualquer comportamento (HEIDEGGER, 1973h, p. 302), livre de toda
determinação fática desse ente em sua cotidianidade.
Teceremos ainda, para finalizar, algumas considerações metodológicas
referentes à redação desse trabalho. Os números das páginas citados de Ser e
Tempo corresponderão sempre à tradução feita por Márcia Sá Cavalcante
Schuback, edição dividida em dois volumes publicada pela Editora Vozes, em 2002.
O termo co-pre-sença, no entanto, será substituído por Dasein-com inclusive nas
citações. Ademais, para não entrar no mérito da discussão sobre o vocábulo que
melhor traduz o que Heidegger queria dizer com a palavra Dasein, optamos por não
traduzi-lo, pelo menos nas citações de Ser e Tempo.
2 Mesmidade diz a transcendência do Dasein. O que é transcendido (ultrapassado) é o “ente
mesmo”, ente que ele é, enquanto existe.
15
16
1. A QUESTÃO DO SENTIDO DO SER
1.1 O problema ontológico: pergunta pelo sentido do ser
A formação acadêmica de Heidegger se dá numa Alemanha que antecede
a Primeira Guerra. Nessa época, o neokantismo endossava suas críticas à maneira
do pensar positivista.3 Também nesse mesmo período conheceu a filosofia de
Kierkegaard através do escrito, considerado o menos teológico de todos, – Post
scriptum às Migalhas filosóficas, importante também pelo ataque ao sistema
hegeliano. Mas foram os escritos de edificação e o “conceito de angústia" deste
filósofo que, mais tarde, farão parte da construção dos argumentos de Ser e Tempo,
baseando-se, sobretudo, na vivência conflituosa da fé.
Carneiro Leão (2000) não tem dúvidas de que o filosofar de Heidegger teve
influências do cristianismo e, em particular, daquelas leituras da chamada
hermenêutica bíblica. Foi aí, então, que Heidegger começou a ler e interpretar a
tradição filosófica como ninguém. O catolicismo durante muito tempo se fez presente
na vida de Heidegger. Foi nesse período que entrou em contato com a primeira
grande obra que está na base de seu filosofar – Do significado múltiplo do ente
segundo Aristóteles de Franz Brentano. Com ela, Heidegger aprendeu a ler filosofia,
como se diria mais tarde. Porém, não é a experiência católica, enquanto
acontecimento histórico, que impulsiona em sua filosofia a problemática sobre a
historicidade.
O encontro com a fenomenologia de Husserl foi o segundo passo mais
importante no pensamento de Heidegger, após ter percorrido o neokantismo e a
filosofia de Kierkegaard no período de sua formação universitária. Ser e Tempo (Sein
und Zeit, 1927) marcou o início de uma longa influência de seu pensamento no
século XX. Essa obra não lhe rende apenas a nomeação na cátedra de Freiburg,
mas também o legado de pensador ocidental decisivo, destacando-se no cenário
filosófico por interrogar os aspectos fundamentais das atividades humanas. E como
prova de sua inserção na história da filosofia, não é difícil ver a sua influência no
3 Cf. NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2. Ed. São Paulo: Ática,
1992. Essa obra traz ensaios que abrangem a obra de Heidegger como um todo.
17
pensamento de hoje.
Com Wilhelm Dilthey e Kierkegaard, Heidegger aprendeu a importância de
questionar a historicidade e a “vida”, tema que começou a despontar já nos escritos
que antecederam os anos vinte, isto é, antes do surgimento de Ser e Tempo (1923 e
1927). Muito embora tenha realizado um grande feito no campo das ciências do
espírito, alega Heidegger mais tarde, Dilthey não chegou a uma determinação
desses conceitos.
Apesar de a filosofia transcendental exercer grande influência no início do
século XIX, Heidegger já se mostrava distante dela, sobretudo, em função do modo
como se apropriava criticamente da metafísica (pois uma possível superação da
metafísica pensada por ele, mais tarde, não significou propriamente negá-la) e
quanto à rejeição dos conceitos e categorias somente como funções do
pensamento.
É nesse período, então, que começa a amizade com Edmund Husserl e a
admiração, até certo ponto, por sua fenomenologia. Mais preocupado com questões
do “mundo da vida” do que propriamente com o conhecimento científico, Heidegger,
em oposição à ideia do sujeito transcendental na constituição do ser, segue o
princípio fenomenológico do “ir à própria coisa”. Essa problemática fenomenológica,
sem dúvida, fará parte do desenvolvimento das questões de Ser e Tempo.
Heidegger assume a intencionalidade, ou seja, a ideia de que toda consciência,
mesmo a chamada autorreflexiva, dirige-se para um objeto. Para Heidegger, a
intencionalidade, apesar de permanecer consciência, era a ideia mais importante da
fenomenologia e que lhe permitira depois aprofundar a historicidade da existência.
Ele leu as Investigações Lógicas (1900-1901) de Husserl e deu atenção maior à
sexta Investigação, onde aparece a noção de “intuição categorial”, mais
precisamente o capítulo que se intitula – “Intuição sensível e Intuição categorial”.
Este último conceito foi o que permitiu a Heidegger perguntar pelo sentido do ser.
Com a carta Sobre o humanismo de 1947, inicia-se uma nova fase no
pensamento de Heidegger. Já nos escritos que começam a aparecer após os anos
trinta modifica-se o âmbito de sua investigação que agora se caracteriza pelo acesso
direto ao ser, dispensando, portanto, a mediação de um ente; o ser, nessa fase, se
dá como evento ou acontecimento (Ereignis). O que, porém, não significa termos
aqui um chamado segundo Heidegger.
18
De acordo com Benedito Nunes (2004, p. 9), não há dois Heidegger, o
primeiro e o segundo, como frequentemente se pensa, mas aspectos distintos de um
mesmo pensar que se esclarecem mutuamente. A pergunta pelo ser em função de
seu desvelamento está, pois, presente em toda a sua obra. Diz-nos Loparic (1982, p.
35): “Heidegger é o perguntador pelo ser. E não, porque essa pergunta permaneceu
polissêmica, pois Heidegger não deixou claro – visto que isso era impossível [...]”.
De fato, sabe-se que com essa pergunta, Heidegger queria mesmo era chamar
todas as atenções para a recolocação da questão do ser. Ou ainda, como afirma
Benedito Nunes (1992, p. 44):
[...] a questão do sentido do ser não é o tema capital do pensamento
de Heidegger apenas porque lhe forneça o ponto de partida. Como
pergunta, ela se efetiva inquisitivamente, mantendo seu caráter de
interrogação, e desenvolvendo-se como indagação direcional,
voltada para o seu próprio objeto, o que o teor da frase alemã, der
Frage nach dem Sinn vom Sein (a pergunta sobre o sentido e dirigida
para o sentido do ser), deixa perceber.
O ponto que nos interessa aqui, a saber, a questão ontológica, deve
necessariamente se manter na fase inicial de seu filosofar, exatamente em sua
ontologia fundamental, a qual somente é possível como uma analítica existencial em
que se tornam “transparentes” as características fundamentais do ser de um ente
privilegiadamente ôntico e ontologicamente. Isso significa investigar o ente em seu
ser, isto é, o ser do ente. Heidegger chamou esse ente de Dasein (palavra que é
comumente traduzida para o português como “ser-aí”), único ente que “compreende”
o ser.
Podemos dizer que a filosofia de Heidegger se traduz numa só questão – a
questão do ser. O seu interesse em problematizar o ser o aproxima da questão
grega do “ser do ente”, daquele movimento de “transcender” o ente (sentido inerente
à palavra metafísica). É preciso retroceder aos entes (to onta), ao espaço de
manifestação do ser no ente, de modo que o “espanto” nunca se esgote. Esse,
conforme aludimos na introdução, é o primeiro ponto a considerar no pensamento de
Heidegger.
Mais precisamente, àquilo a que a filosofia se refere, diz-nos Heidegger,
remete a nós homens em nosso próprio ser. Isso quer dizer que a filosofia está para
19
além dela mesma, está imbuída de historicidade, sendo um caminho historial de
nossa existência. Enquanto, pois, não se tiver compreendido e ultrapassado a ilusão
de buscar o significado do ser, interrogando os entes, e assim, a ideia de que o
conhecimento do ser tem prioridade sobre a busca fundamental pelo ente no seu
todo, o caráter ontológico-fundamental de nossa relação com os outros-entes
simplesmente
presentes
e
também
com
os
outros-Dasein
ficará
sempre
comprometido. Uma proposta desse porte, qual seja, a questão do “sentido do ser
em geral” nunca foi tratada, garante Heidegger, nem mesmo por Nietzsche.
Não obstante, a filosofia de Heidegger não constitui em absoluto uma
descoberta singular sobre um ente muito particular – “o Dasein”, mas também não é
uma análise profunda sobre o ser das coisas que não são segundo o modo de ser
do Dasein, simplesmente porque esta é uma tarefa do tipo ôntica e não ontológica.
Antes, pretende ser a pergunta fundamental pelo próprio ser e sua relação com o
tempo sob o fundo do silêncio de muitas décadas. A pergunta pelo ser, através de
seu sentido é, pois, o propósito da investigação filosófica de Heidegger. Com isso,
ele quer nos fazer pensar no ser e na sua relação originária com o tempo, através da
estrutura ontológica do “cuidado” (=cura). Por isso, segundo Heidegger, apenas de
uma maneira filosófica podemos perguntar fundamentalmente pelo próprio ser. Essa
posição filosófica deve nos conduzir em direção ao ser mesmo sem o qual nenhuma
ontologia, e nem mesmo a ciência, se colocaria. O descrever fenomenológico (o “ir
às coisas mesmas”) foi decisivo para este perguntar no sentido de torná-lo de certa
forma efetivo; a fenomenologia de Husserl prepara a questão do sentido do ser na
medida em que diz e nos faz “ver” uma nova dimensão de inteligibilidade, a
dimensão fenomenológica, qual seja: o sentido que está na base de todo conhecer é
o modo filosófico mesmo do conhecimento.
Conquanto, a postura filosófica de Heidegger se distancia da postura
filosófica de Husserl na medida em que a investigação deste último se realiza no
âmbito dos atos do pensamento, isto é, se define ainda a partir de uma consciência.
Heidegger propõe uma ontologia que constitui a filosofia. Mas não é só isso. Não
está em jogo uma ontologia do Dasein ou uma ontologia no modo tradicional (busca
pelo ente como tal). A ontologia que se instala aqui não é uma disciplina especial
dentro de uma ontologia mais geral. Só é possível tratar de uma ontologia no sentido
de uma ontologia fundamental tomada em seu aspecto mais amplo. Perguntar pelo
20
ser, em que consiste o ser, implica o ser do Dasein (existência). Somente porque a
filosofia se constitui como ontologia é que ela também pode ser “histórica”. Uma vez
que tal conexão existe, a investigação filosófica ou ontológica é fundamentalmente
histórica, é constitutiva do ser do Dasein.
Desse modo, para compreendermos a filosofia em seu fundamento histórico,
precisamos uma vez mais nos afastar da história entendida ou como o passado que
não acontece ou como o presente que também não acontece, mas simplesmente
passa. A história diferentemente da historiografia é em si mesma histórica. Pois, “[...]
somente na filosofia – à diferença de qualquer ciência – se edificam sempre as
referências essenciais com o ente.” (HEIDEGGER, 1966, p. 86). Portanto, a
investigação da questão do ser é histórica justamente porque se estende pela
existência do Dasein frente às referências essenciais com o ente. A respeito da
problemática moderna imanência-transcendência, noutros termos, sujeito-objeto,
Carneiro Leão (1999, p. 11) nos convida a perceber em qual posição está o
pensamento de Heidegger:
Do ente o homem não pode prescindir. Em todas as suas indústrias e
atividades, para pensar e querer, sentindo e amando, na vida e na
morte, o homem não se basta a si mesmo. Sempre necessita de
algo, que ele mesmo não é. Sem esse outro, o homem não pode ser.
Edificando-se necessariamente dessa indigência, a existência
humana exige que o ente a afete, se lhe dê e manifeste. Para existir
o homem tem que imergir-se e entregar-se aos entes.
Essa problemática da tensão entre a “imanência” e a “transcendência” serviu
para nos conduzir à questão central de todo o pensamento de Heidegger, a saber, a
questão sobre o sentido do ser sempre esquecido na história da “metafísica”.
Empenhar-se nesta tarefa significa proceder numa superação da metafísica. Essa
superação, no entanto, não constitui uma negação vazia exatamente porque é a
própria história do ser que provoca a filosofia mesma. Portanto, o pensamento de
Heidegger não pretende destruir ou aniquilar a metafísica como aparentemente se
imagina. Somente na existência do Dasein se instaura a abertura ao mundo como
tensão entre diferença (não-ser) e referência entre ente e ser. Estamos, assim,
sempre mais imersos no retraimento do ser. Essa retração do ser, contudo, não
consiste em um nada negativo, em vez disso, pertence ao próprio ser. É retraindo-se
em si mesmo que o ser se manifesta, pois o movimento produzido no modo do velar-
21
se/des-velar constitui o seu próprio “sentido” e “verdade”, assim como se deu no
pensamento dos gregos no modo da a-létheia. Heidegger nos dá uma explicação
sobre esse sentido específico de alétheia:
Deixar-ser o ente – a saber, como ente que ele é – significa entregarse ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece,
e que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Este aberto foi
concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu começo, como tà
aléthea, o desvelado. Se traduzirmos a palavra alétheia por
“desvelamento”, em lugar de “verdade”, esta tradução não é somente
mais “literal”, mas ela compreende a indicação de repensar mais
originariamente a noção corrente de verdade como conformidade da
enunciação, no sentido, ainda incompreendido, do caráter de ser
desvelado e do desvelamento do ente. (HEIDEGGER, 1973h, p.
336).
Tal sentido do ser é possível apenas pela diferença ontológica.4 E é por meio
dessa diferença, tema que já desponta em Ser e Tempo (2002a, p. 29), onde “o 'ser'
não é um ente”, que podemos compreender o passo decisivo do filosofar de
Heidegger. Consideramos aqui que, com a proposta de significação do ser,
Heidegger supera a tradição metafísica. Toda a filosofia desde Parmênides vem se
distanciando cada vez mais da “questão fundamental” porque não fez uma distinção
rigorosa entre ser e ente. Para tanto, como diz Heidegger nas primeiras páginas de
Ser e Tempo, é preciso “repetir a questão do ser”, ou melhor, elaborar
adequadamente a “colocação da questão”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 30). O esforço
não pode se aplicar mais apenas ao “ente enquanto ente”, mas precisamente, ao ser
enquanto ser, porque o ser se manifesta, isto é, ele possui um sentido. Assim, a
pergunta que de agora em diante se deve fazer é: qual é o sentido do ser?
O ponto de partida da investigação que vinha sendo mencionado, e que
agora se denomina esquecimento do ser (Seinsvergessenheit), resulta de um
diálogo que o pensamento de Heidegger realiza com a metafísica tradicional (grega
e moderna). Para o filósofo, o fenômeno não está fora, isto é, atrás do ser, apesar de
todos os esforços do neokantismo em fechar este conceito nos limites
transcendentais. Husserl foi quem primeiro observou a importância desse argumento
4
A diferença ontológica só aparece verdadeiramente como tema no curso de 1929 – Sobre a
essência do fundamento. Ela não é importante pelo simples fato de fazer a diferença entre um
ente e outro, mas por se referir ao espaço entre ente e ser, sendo a implicação de um ao outro. A
diferença não trata da relação entre entes, por isso Heidegger a nomeia de diferença ontológica no
texto já citado, pois, trata-se de dizer que o ente não é, em seu ser, do modo como é o próprio ser.
22
por meio daquilo que chamou de Anschauung, a intuição (das essências). Essa
concepção influenciou o conceito heideggeriano de fenômeno como “o que se
revela”; e o que se revela e se mostra é o próprio ser. Mas o ser é sempre ser de um
ente. É por isso que a multiplicidade de significados dos “fenômenos”, apresentada
por Heidegger no parágrafo §7 de Ser e Tempo, ora como fenômeno, ora como
manifestação ou como parecer, aparecer e aparência, não será mais motivo de
confusão caso tenhamos entendido o sentido fenomenológico de fenômeno como “o
que constitui o ser”.
É por isso que, ao se visar a uma liberação do ser, deve-se,
preliminarmente, aduzir o próprio ente de modo devido. Este ente
também deve-se mostrar no modo de acesso que genuinamente lhe
pertence. E, deste modo, o conceito vulgar de fenômeno se torna
fenomenologicamente relevante. (HEIDEGGER, 2002a, p. 68).
Assim, é mérito de Husserl a ideia de nos colocar novamente em favor das
coisas mesmas e Heidegger reconhece isso a ponto de ter chegado a dizer que sua
investigação em Ser e Tempo, na tarefa de abrir as “coisas elas mesmas”, é
devedora desse princípio de Husserl. Deste modo, é a certeza das “regiões do ser”,
em todo aparecimento do objeto, que dá lugar à “questão do sentido de ser”. Eis,
então, o segundo ponto da filosofia de Heidegger, sobre o qual mencionamos acima,
que também servirá como crítica à ontologia tradicional. Pois, esta reflexão pertence
exclusivamente ao filosofar de Heidegger.
Da fenomenologia aos temas da ontologia de Aristóteles e desta para uma
fenomenologia hermenêutica, isto é, para uma hermenêutica do Dasein, é esse o
movimento que Heidegger realiza ao se dedicar insistentemente à leitura das
Investigações Lógicas e, posteriormente, às atividades docentes como assistente de
Husserl. Como ele próprio relata:
A distância que Husserl aí constrói entre intuição sensível e
categorial revelou-me seu alcance para a determinação do
significado múltiplo do ente. [...] o que para a fenomenologia dos atos
conscientes se realiza como o automostrar-se dos fenômenos é
pensado mais originariamente por Aristóteles e por todo o
pensamento e existência dos gregos como Alétheia. (HEIDEGGER,
1973d, p. 497-498).
Mas Heidegger aborda o significado do ser de maneira mais originária e com
23
isso busca empregá-lo de forma adequada, ou seja, distinta da dos gregos, da ideia
de Platão e da ousía de Aristóteles. Fazendo com que uma coisa seja o que ela
própria é, de maneira ainda mais radicalmente grega5. Despertar para o que as
coisas são significa: não aderir aos principais conceitos da “metafísica” como, por
exemplo, “realidade” e “verdade”. Assim, a tradição concebe o ser como um conceito
que constitui o ente como tal. É esse o modelo do pensar que temos desde
Parmênides, Platão e Aristóteles – o da “essência”, sendo uma questão que
pergunta pelo que algo é.
De agora em diante, o “esquecimento do ser” torna-se o ponto de partida
das inquietações de Heidegger em relação à forma tradicional de fazer filosofia. É
nesse sentido que ele fala de uma recolocação da questão do ser e da significação
da palavra “ser”, perseguindo ao longo de todo o seu pensamento o “sentido”
simplesmente, ou a “verdade do ser”, para se aproximar aqui de uma linguagem da
segunda fase de seu filosofar. A questão do sentido do ser, diz-nos Benedito Nunes
(1992, p. 14), abrange e transgride, ao mesmo tempo, o campo da Metafísica com o
qual entretém relações singulares através do “retorno aos gregos” – réplica de
Heidegger ao “retorno às coisas” da Fenomenologia husserliana. Cabe agora insistir
no ponto mais característico que separa a filosofia de Heidegger da tradição.
Ademais, tentaremos explicar a proposta ontológico-existencial de Heidegger,
mostrando porque a tradição, no seu dizer, se funda no esquecimento do ser e
assim deixou de discutir o sentido do ser.
Descartes, deixando-se levar por todo o legado filosófico ocidental, ficou
impedido de esclarecer o caráter de “universalidade” da substância como tal, o que
poderia, talvez, tê-lo levado a um sentido esclarecido do ser, de acordo com
Heidegger. Pois, o ser do ente tomado em sua ambiguidade, ora como ser, ora como
ente não foi explicitado em seus pressupostos devido à compreensão vulgar de ser.
Mas o que significa, para Heidegger, entender o ser a partir de um sentido vulgar?
Em poucas palavras seria: conceber o ser como “substância” (a tradução latina
clássica do grego υπóστασις), o que permanece em todo ente. Essa concepção de
ser torna impossível o esclarecimento do caráter fundado de todo conhecimento na
5 Pensar o que os gregos pensaram possui muito mais o significado de uma conversa do que propriamente de uma repetição; é antes enfatizar que esse pensamento em seu modo de ser é grego, mas
de modo algum se encontra no mesmo nível. Porém, geralmente quando Heidegger se refere aos
“gregos”, devemos nos remeter ao começo da filosofia com os pré-socráticos, no século VII a.C.
24
existência do Dasein. Se, pois, não há uma distinção clara entre o ser da res
extensa e o ser da res cogitans, a determinação do ser como substância concerne
tanto ao ser do Dasein quanto ao ser da res extensa, conforme a doutrina de
Descartes sobre o ser do “mundo”. Nesta perspectiva, no ens criatum e em Deus, o
ente é pensado como substância. A tentativa de Descartes de uma apreensão do
mundo pela propriedade da extensão obstruiu o acesso ao fenômeno do mundo
como tal, cujo ser ele chama de substantia, que pode designar tanto o ser de um
ente, a “substancialidade”, como o próprio ente, a “substância”.
Em seu projeto de uma monadologia, ou seja, na investigação do ser do
ente, também Leibniz se deixa influenciar pela tradição. Apesar de ter percebido a
ideia exemplar de ser no próprio ser de quem questiona como o fio condutor, tomou
como suporte o interior de nós mesmos enquanto ente. Chamou, assim, de
substância a mônada, uma essência que remete à alma, vida, força, espírito no
sentido do “eu” como uma instância do sujeito. (HEIDEGGER, 2002a, p. 135).
À luz da crítica, das correntes filosóficas como racionalismo (Descartes,
Espinoza, Leibniz, dentre outros) e empirismo (Hobbes, Locke, Hume, etc.), surge
Kant, o filósofo que defende que o nosso conhecimento não é outra coisa senão o
composto do que recebemos e daquilo que a própria razão produz por si mesma.
Resultando, porém, num conhecimento absolutamente independente da experiência,
cuja origem é a priori. A este conceito de sujeito estaria faltando justamente o a priori
do sujeito “de fato”, do sujeito que se encontra em sua facticidade e historicidade – o
Dasein. Nesse sentido, Kant, de acordo com Heidegger, não é menos subjetivista
que seus antecessores, na medida em que não fornece, como não fornece
Descartes e Leibniz, uma constituição fundamental do “sujeito”, do Dasein como serno-mundo. A determinação moderna do eu como sujeito em oposição ao objeto
esconde justamente o caráter ontológico de “sujeito”. Entretanto, isso não retira o
mérito da noção moderna de sujeito que nasceu de uma reação contra a filosofia
escolástica medieval como apenas formadora de conceitos. Sem o despertar da
“modernidade”, uma filosofia orientada para a universalidade de sentido na estrutura
do sujeito, seria pouco provável, e a compreensão de Heidegger muito característica
da fenomenologia que culminou em seu distanciamento de Husserl, se deu muito
possivelmente graças às suas leituras, nos anos vinte e trinta, de Kant e Aristóteles.
25
1.2 Posição fenomenológico-hermenêutica
“Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da
questão
fundamental,
seu
questionamento
necessita,
portanto,
de
uma
transparência conveniente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 30). Nesse trecho encontramse os alicerces para o desenvolvimento da nossa investigação, pois daí emerge as
questões de destaque nas quais se estruturam este trabalho. A primeira consiste no
fato de que o ser, embora ele seja pré-iluminado, não se mostra tão facilmente como
a mesa e a cadeira; não é, portanto, uma “evidência ôntica”. O ser se apresenta de
modo diferente da mesa. Ao mesmo tempo em que o ser se desvela, ele também se
vela, daí a necessidade de uma investigação própria, pois é justamente essa
indeterminação do ser que nos faz interrogar pelo seu sentido. Desse aspecto surge,
então, a segunda questão a ser considerada, qual seja, o fato fundamental de que o
ser não pode ser determinado nem por outra coisa nem como uma outra coisa, mas
apenas pelo seu próprio sentido. O ser não é um ente (como já dissemos).
Conquanto o ser não possa ser dito nem tratado como um ente que é somado a
outros entes, ele só pode se nos apresentar no concurso do ente. E se o ser está
mesmo em tudo que nos movemos, em toda compreensão de mundo, tem-se,
então, aqui a razão pela qual o sentido seja a única forma de chegar originariamente
aos entes.
Não obstante, o sentido não é uma qualidade do ente que possa vir a se
tornar visível ou representada. Em contraste, “sentido é aquilo em que se sustenta a
compreensibilidade de alguma coisa”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 208). É assim que
quando, por exemplo, compreendemos a cadeira como algo para sentar, não é o
sentido que a cadeira possui para nós (objeto para sentar) que é compreendido, mas
somente em função dessa perspectiva de sentido é que podemos compreender algo
como algo, a cadeira como algo para sentar. É pela região do sentido que a
investigação de Heidegger pode, em última instância, designar o conceito
ontológico-existencial dos fenômenos sem que para isso tenhamos que apoiá-lo em
algo e torná-lo passível de objetivação. A partir disso, Heidegger sentiu a
necessidade de realizar uma exposição sobre o conceito de fenomenologia
26
interpretado por ele pela via hermenêutica, isto é, pela compreensão ontológica.
A “visão” (do latim tuere, ver) sempre foi concebida, desde os antigos, como
o modo de apreensão genuína dos entes, e, dessa forma, Santo Agostinho, como
bem observa Heidegger, foi o primeiro a perceber a primazia do “ver” em relação aos
demais órgãos sensoriais. Não é por acaso que, segundo as análises de Heidegger
sobre as Confissões, muitas vezes dizemos: “vê como soa, vê como cheira, vê como
isso tem gosto, vê como é duro” (HEIDEGGER, 2002a, p. 232), usamos, assim, a
visão para todas as percepções dos sentidos. De acordo com essa concepção,
apreendemos os objetos mediante uma percepção puramente intuitiva. Não
obstante, observa-se que desde a fenomenologia husserliana, o acesso às coisas
não se dá de forma pura e imediata, considerando o fato de que nos colocamos e
nos comportamos sempre em relação a um todo; é segundo essa perspectiva que já
somos sempre intencionalidade. A posição fenomenológica de Heidegger consiste
numa de-monstração dos objetos no sentido de realizar uma descrição que se
orienta apenas pela coisa mesma. Daí o conceito de fenomenologia como “toda demonstração de um ente tal como ele se mostra em si mesmo”. (HEIDEGGER,
2002a, p. 66).
De acordo com Heidegger, a fenomenologia é uma identificação muito
peculiar dos objetos. “É a ciência do ser dos entes – é ontologia”. (HEIDEGGER,
2002a, p. 68). Nesse sentido, como a palavra não se refere ao objeto, nem ao seu
conceito, mas ao modo mesmo como eles vêm ao encontro, Heidegger, então, a
denomina de “interpretação”, que, por sua vez, assume um caráter de descrição,
sentido próprio do logos. Assim, o logos que, junto com a palavra fenômeno compõe
o vocábulo fenomenologia, nada mais é que o “deixar e fazer ver” aquilo sobre o que
se discorre. Fenomenologia é, dessa forma, a interpretação do Dasein que resulta
numa hermenêutica, dado o movimento de mostração e ocultamento em que se
revela o ser, ou seja, o dar-se do ser como manifestação. E por “hermenêutica”
entende-se a interpretação que o Dasein faz de si mesmo partindo da analítica
existencial. Com isso, chegamos à indicação do sentido fenomenológico de
fenômeno como aquilo que se mostra em si mesmo e ao sentido de “'manifestação’
enquanto manifestação que anuncia algo que se vela nas manifestações”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 60). Nesse contexto, fica esclarecido o modo peculiar do
acesso fenomenológico ou o caráter de fenômeno constitutivo da “manifestação”,
27
que tem aqui o sentido de um anúncio mediado por algo que se mostra. Pois, uma
“manifestação” só é possível porque algo se mostra.
A posição, pois, fenomenológico-hermenêutica de Heidegger, enquanto
posição filosófica, será uma maneira de interpretar aquilo que não se mostra, mas
que está implícito em toda manifestação de algo, ou seja, é o modo de acesso ao
ser dos entes. Visto que, toda e qualquer manifestação só é possível com base no
mostrar-se de alguma coisa. Nesse caso, o fenômeno assume aqui um sentido
primordial; trata-se de discutir algo que não se mostra diretamente, mas por outro
lado, pertence essencialmente ao que se mostra em si mesmo, isto é, ao
“fenômeno”.
Não é difícil imaginar até aqui a repercussão que teve o sentido originário
que os gregos experimentaram através da physis e também o sentido
fenomenológico dos fenômenos possibilitado pela fenomenologia de Husserl. O "ir
às coisas mesmas” em Heidegger ressoa como a possibilidade de recuperar a
dignidade daquilo que sustenta a unidade na multiplicidade de seus sentidos, de
adentrar na proveniência própria que “antecede” e deve guiar toda investigação
originária – o próprio ser. Daqui por diante, a ontologia fundamental em seu projeto
de realizar uma discussão do sentido do ser em geral exige uma compreensão
prévia da palavra “ser”. Por conseguinte, esse projeto visa uma maneira mais
originária de entender nossa relação e comportamento com as coisas, de modo que
ela seja uma abertura que se abre na própria condição das coisas e, ao mesmo
tempo, o sentido originário que as fundamenta.
Mas o sentido pretendido aqui não se identifica com o transcendental de
Husserl, o qual só se realiza enquanto consciência. Ao contrário, o sentido agora
vem de fora na medida em que não caracteriza mais uma consciência, nem uma
essência que está por trás dos entes e que, por isso, não sofre nenhuma relação
com a existência, com a história. E nesse caso, a questão em Heidegger está
referida ao modo de ser no mundo, uma vez que já desde sempre sou ultrapassado.
O ser-no-mundo do Dasein revela o próprio Da desse ente que, ao interpretar a si
mesmo, realiza também uma compreensão do sentido do ser. Faz parte da
existência do Dasein romper o “si mesmo”. Ou seja, o fenômeno do sentido
originário não se separa da sua condição histórica. A compreensão não é uma
atividade da consciência que se acrescenta ao fato da existência, mas um modo de
28
ser que se realiza na própria história, isto é, na existência mesma. Não é, portanto,
uma atividade da consciência porque é uma atividade do ser que “antecipa” e dá
espaço para os outros modos de compreender.
Há, portanto, um modo de encontro originário de cunho fenomenológicohermenêutico no qual nos movemos em qualquer compreender. Assim, é tarefa da
fenomenologia evidenciar este âmbito originário, ou seja, o espaço de manifestação
do ser enquanto compreensão do nosso modo de ser. É por isso que Heidegger
denomina a fenomenologia de hermenêutica. O seu caráter hermenêutico se dá em
função do movimento circular de compreensão do ser. Isso significa que, ao
compreendermos o ser, nos compreendemos em nosso próprio ser.
1.3 A especificidade da filosofia
De acordo com Heidegger, a designação grega φιλοσοφία (palavra composta
a partir de σοφία e φίλος) era compreendida inicialmente em seu uso prático. É por
isso que esse significado pode nos ajudar numa possível “definição” da essência da
filosofia. O adjetivo σοφός, que pertence à palavra σοφία, refere-se simplesmente:
“àquele que tem o paladar certo para algo”, para ser mais enfático, àquele que tem
“instinto para o essencial”. Dessa forma, σοφία se dirige originariamente ao trabalho
artesanal. Portanto, o saber ou o compreender era primeiramente um saber
artesanal, um saber lidar com a essência das coisas, isto é, compreender era lidar
com as coisas em sua essência mesma. Daí a extensão do conceito de σοφία para
todo e qualquer modo de compreender. Esse fato, porém, está associado com a
experiência própria do compreender, qual seja, a experiência da dificuldade inerente
ao compreender quando justamente ele se dirige à coisa mesma, à totalidade. Daí a
ideia de que o compreender consiste num esforço particular permanente, no sentido
de uma inclinação originária para as coisas. Essa inclinação própria para as coisas é
o que está designado com o termo φιλία – qual seja, uma amizade que, em seu
aspecto originário, luta pelo que ama. (HEIDEGGER, 2008b). Platão e Aristóteles já
falavam que a pergunta pelo ser é a pergunta principal da filosofia, pois o filosofar só
pode perguntar pelo conceito daquilo que já compreendemos.
Na concepção grega de filosofia, como uma inclinação própria para as
29
coisas em sua totalidade, não há apenas uma indicação sobre a essência da
filosofia, há, porém, e mais importante, o indício de sua finitude, característica
decisiva que define a sua peculiaridade. Como uma possibilidade de nossa
existência mesma, a filosofia permanece indeterminada – por princípio uma
constitutiva finitude, chamada aqui de possibilidade finita. Portanto, a finitude
pertence à origem da filosofia e não ao seu fim propriamente dito. “Finitude não diz
primordialmente término” (HEIDEGGER, 2002b, p. 124). É com base numa
determinação fundamental do sentido de filosofia que Heidegger nos diz: “filosofia é
filosofar”. Ela não designa “o quê” está aí, mas o modo fundamental como se está
“aí,” isto é, um modo de ser. É por isso que, segundo a interpretação de Heidegger, o
termo grego φιλοσοφία (um saber lidar originário) nos dá a indicação de sua
essência, à medida que a palavra na noção antiga não implica qualquer
característica de conteúdo, mas apenas de uso das coisas, de comportamento. Pois:
“filosofia é transcender, isto é, filosofar.” Mais precisamente, filosofia é dirigir-se para
o
ser.
Transcender,
para
Heidegger,
designa
uma
ultrapassagem
como
transcendência. Isso quer dizer: a ultrapassagem aqui não se refere a qualquer
ultrapassagem, como por exemplo, a ultrapassagem em direção a um objeto, mas
àquela que se dá enquanto essência fundamental do Dasein. A transcendência,
portanto, só acontece no ente que nós mesmos somos, o Dasein. E a filosofia
constitui essencialmente esse acontecer, “um deixar acontecer a transcendência.”
Essa transcendência pode, por isso, designar “liberdade”, ou como afirma Heidegger
(2008b, p. 426):
A essência da filosofia consiste em formar a imagem da irrupção do
ser-aí histórico e concreto que é determinado pela postura. Com isso,
ela está voltada para o futuro em um sentido originário e bem
preciso. Assim como o mito é para a filosofia uma lembrança
essencial, o futuro é a sua força propriamente dita. Todo o presente,
porém, não passa do ápice do instante, que toma seu poder e sua
riqueza da lembrança futura.
Assim, a concepção da filosofia interpretada por meio e a partir do tempo
constitui a existência fática do Dasein a qual, a cada vez na história, se determina,
pois “não há como contestar o fato de algo se encontrar 'fora'”. (FIGAL, 2007, p.
138). O “exterior” é essencial para a filosofia. Por outro lado, ela não pode ser
entendida como que estando fora do Dasein, da existência como modelo para nós,
30
como uma instância para além do físico, suprassensível. A essência não é nada de
tão profundo, atrás da coisa, mas sim a própria coisa no tornar-se de si mesma.
Sobre essa caracterização do Dasein como transcendência Heidegger (2008b, p.
221) nos diz:
No projeto prévio de ser sempre ultrapassamos de antemão o ente.
Somente com base nessa elevação, somente com base em tal
ultrapassagem, o ente se torna manifesto como ente. No entanto, na
medida em que o projeto do ser pertence à essência do ser-aí, essa
ultrapassagem do ente já precisa sempre ter acontecido e continuar
acontecendo no fundo do ser-aí. […] Essa ultrapassagem, essa
transcendência implica que ao ser-aí como tal pertença uma
elevação originária própria de si mesmo.
Por fim, o transcender, aqui, não está se referindo ao trans (além-físico), tal
como vem sendo concebido desde a filosofia escolástica, está, antes de tudo, ligado
à coisa mesma. Transcender, ou melhor, filosofar significa: distância na proximidade,
ausência na presença, estar fora mesmo estando dentro, alteridade na identidade. E
esta distância, como nos diz Gilvan Fogel (2009, p. 92) “já é até um pouco de morte
[...]”. Ou como afirma Günter Figal (2007, p. 138):
Na experiência hermenêutica lidamos com algo que nós mesmos não
somos, com algo que se acha contraposto e nos apresenta aí um
desafio. […] Por isso, enquanto a coisa hermenêutica, o elemento
próprio ao que se encontra contraposto precisa se encontrar no
centro do pensamento hermenêutico. Oposicionalidade é o tema
central da filosofia que parte de um princípio hermenêutico.
Com efeito, “a filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal que
parte da hermenêutica do Dasein, a qual enquanto analítica da existência, amarra o
fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde
retorna”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 69). Esta sentença que Heidegger utiliza em dois
momentos estratégicos de Ser e Tempo, na introdução e no último parágrafo da
segunda seção, compreende exatamente a especificidade do modo de ser da
filosofia. Em seu sentido originário, a palavra hermenêutica designa interpretar. Esse
termo de origem grega é derivado do nome de Hermes, o deus que tinha o ofício de
levar as mensagens de Zeus. Filosofia é, então, filosofia hermenêutica no sentido de
uma preparação para as condições de possibilidade de toda e qualquer investigação
ontológica. Pois, a essência de uma coisa só se realiza numa investigação radical e
31
fundamental na qual essas condições aparecem e são propriamente. A filosofia não
trata de objetos, de coisas objetivamente dadas, mas do fundamento, da
possibilidade concreta de uma existência, ou seja, de um horizonte de sentido; é
segundo este modo que podemos dizer que a ela não é dado nenhum objeto, mas
apenas o modo como ele aparece ou o “a priori” (früher = anterior), numa linguagem
posterior, como seu legítimo tema.
De acordo com Heidegger, a filosofia moderna, que teve início com
Descartes, batiza mais um momento de ruína da filosofia: “Descartes não leva a
filosofia de volta para si mesma, para seu fundo e seu chão, mas a distancia mais
ainda do questionamento da questão fundamental”. (HEIDEGGER, 2007, p. 54).
Esse comportamento segue o parâmetro tradicional do saber matemático, “a
mathesis em seu sentido mais amplo: conceitos e princípios fundamentais e
derivação rigorosa”. (HEIDEGGER, 2007, p. 44). A matemática é o saber
fundamental dos objetos que fornece um caráter de universalidade e, portanto, de
conhecimento verdadeiro a partir de si mesmo, da razão humana. A matemática
torna-se o critério para todo conhecimento. Mas, afinal, o que resta à filosofia?
Apenas o desejo de elevar-se à categoria de ciência fundamental e universal,
modelo ideal de toda cientificidade. Por isso, de acordo com Heidegger, o conteúdo
da filosofia moderna até Hegel pode, muito facilmente, ser identificado com o
conhecimento matemático. Esse caminho, portanto, compromete o caráter de
“manifestação” originária, próprio da realidade, seu caráter ontológico constitutivo
que não se deixa alcançar, mas que antes libera, dá espaço. E é porque o
ontológico, afinal, libera, que ele significa história, um vir-a-ser. Daí a dificuldade da
filosofia de pensar de forma radical uma realidade, pois quando operamos segundo
o modo da relação – sujeito/objeto, subjetividade/objetividade, por exemplo –
corremos o risco de compreender o ser a partir da simples presença, possibilitando,
dessa forma, o surgimento das dicotomias imanente e transcendente, eu e outro,
dentro e fora, e assim por diante. Pois, a realidade não possui esse caráter
excludente que é próprio de quando fazemos uma abordagem do tipo objetivista,
dirigida a um objeto que está inteiramente separado de um sujeito.
No texto Que é isto a filosofia?, Heidegger nos diz que, apesar de Aristóteles
já ter respondido a questão supracitada no livro I da Metafísica, ela (a resposta) não
cumpre seu verdadeiro papel de penetrar na filosofia de um modo que possamos
32
meditar sobre sua própria essência. E que “a resposta somente pode ser uma
resposta filosofante, uma resposta que enquanto res-posta filosofa por ela mesma".
(HEIDEGGER, 1973h, p. 217). De maneira semelhante, o ser não pode ser
interpretado pelo ente, nem como um ente. O ser só pode ser interpretado pelo
sentido. E só podemos perguntar ou meditar sobre esse sentido porque desde
sempre nos movemos numa compreensão do ser. Para chegar ao problema
fundamental por excelência, qual seja o problema do ser, Heidegger “escolhe” partir
do que está mais próximo de nós, ao invés de partir dos conceitos que funcionam
como princípios fundamentais e que estão na base de tudo aquilo que se encontra
dentro do mundo.
A filosofia ou ontologia, portanto, não se limita em descrever o que é
simplesmente dado, justamente porque essa região que Heidegger chamou de
ôntica não exprime, de maneira suficiente, o aspecto fenomenológico (ontológico ou
de abertura) do ente. No entanto, nosso filósofo não propõe uma teoria e tampouco
nos conforta com respostas prontas e acabadas com o objetivo de preencher o vazio
deixado pelas perspectivas que o antecederam, sejam elas realistas ou idealistas.
Heidegger pensa como Husserl que a investigação filosófica é mais
fundamental que a relação sujeito/objeto, mas afirma, ao contrário daquele, que o
fundamento está imerso na existência, a qual é feita de compreensão que já sempre
temos sobre o nosso ser e não apenas sobre consciência e saber. Partir, então, do
que já sempre somos, é partir da nossa compreensão enquanto ser-no-mundo, ou
seja,
da
temporalidade
finita
do
Dasein.
Isso
explica,
afinal, porque
a
intencionalidade husserliana, como já aludimos, “continua sendo consciência”.
(HEIDEGGER, 2008, p. 148).
Assim, os pontos levantados pelo filósofo (como a questão do ser, por
exemplo), quase sempre, são já antigos na filosofia, o que é sempre novo e
extraordinário nas questões fundamentais da metafísica é, segundo o próprio
Heidegger, “o fato de ter de ser continuamente posta” (HEIDEGGER, 1992, p. 13).
Daí a insistência do filósofo em provocar a metafísica e o que nela está adormecido;
em “corrigir, talvez, um pouco, o que está confundido”, contrastando aqui com a
imagem falsa de que a filosofia heideggeriana se reduz em promover grandes
inovações (como no caso da própria ontologia). Porquanto, segundo Heidegger
(1992, p. 24-25), devemos: “aprender de novo a questionar. Isto acontece somente
33
na medida em que as questões (mas não, certamente, quaisquer questões) são, de
facto, colocadas”.
Algo de semelhante acontece com o tema do modo de ser-outro que
pretendemos analisar, mais adiante, nesta dissertação. Pois, o “quem” do Dasein
que desemboca na discussão do outro vai de encontro com a perspectiva
hermenêutica que caracteriza a filosofia, em contraste com o modo de ser das
ciências. Mas isso não significa negar a apreensão científica das coisas, significa
antes de tudo, mostrar que a ciência não é o único modo de investigação da
realidade e nem o mais fundamental, tampouco significa o lugar aonde a filosofia
chega a termo. Por isso é que, para Heidegger, a filosofia sempre se apresenta,
previamente, como um esclarecimento da própria questão (em função de seu caráter
histórico), para que possamos, assim, pensar a filosofia no seu sentido profundo e
não como algo além ou aquém do conhecimento científico, ou como se a ciência
fosse o ponto de referência em torno do qual ela deveria se voltar. Para seguirmos
em frente com o questionamento filosófico é preciso, pois, entendermos que a
filosofia, não sendo nem melhor nem pior que as ciências, mas sendo apenas
diferente delas, possui, dessa forma, uma maneira especial de chegar às coisas, o
modo hermenêutico que lida com o que pertence a algo enquanto algo, uma vez que
a compreensão ontológica ou originária das coisas está ligada ao modo de ser do
Dasein enquanto ser-no-mundo. Por conseguinte, trata-se de um questionamento
mais radical. O “mais” não designa aqui uma diferença de grau que pode ser medida
pela posição ou lugar que a filosofia ocupa frente às ciências, mas aponta para outra
dimensão do pensamento. A pretensão de um saber mais relativo à filosofia não se
dirige contra a necessidade e o valor da ciência, refere-se apenas ao sentido do que
é originário e fundamental.
A filosofia não é algo à parte e, por isso mesmo, não é um domínio. E por
não ser um domínio é que ela não pode nem ser ciência, nem cobiçar a positividade
e o progresso que possuem as ciências, mas apenas ser ela mesma, ou seja,
filosofia. Além disso, a questão filosófica também se diferencia da chamada “visão
de mundo”, pois o nosso entendimento a respeito das coisas normalmente é
resultado de uma consciência individual e particular. “Na verdade, enquanto homens,
somos sujeitos e “eus” individuais e aquilo que representamos e em que acreditamos
são imagens subjetivas que trazemos em nós; às próprias coisas, nunca chegamos”.
34
(HEIDEGGER, 1992, p. 22). Isso, porém, de acordo com Heidegger, não deve gerar
a aparência de que o ponto de partida inverso, ou seja, a atitude que parte de uma
perspectiva comum entre os homens seja, por isso, a melhor.
1.4 O problema do outro
Quando pretendemos estudar a ontologia fundamental de Heidegger e, mais
precisamente, o caráter de “ser-com” do Dasein, o que significa tratar do tema da
“intersubjetividade”, exposto principalmente em Ser e Tempo, logo nos deparamos
com um problema, pois o filósofo se recusa em diversos momentos daquela obra a
pensar uma ética.
O caráter de ser outro, o diferente, sempre esteve presente nas discussões
da filosofia antiga. Platão, por exemplo, demonstrou que o diferente ou o “outro”
(thateron) não é algo que se opõe ao ser, trata-se apenas de algo distinto do ser e
dos demais gêneros. O “diferente” é um gênero que permeia a todos os outros (ser,
movimento, repouso e idêntico), uma vez que cada um deles é diferente dos demais.
Como vemos, parece que os gregos não separavam o “idêntico” do “diferente”, por
conseguinte, não pensavam no “si mesmo” enquanto uma interioridade subjetiva,
pois o “outro” estava implicado nas atividades do ser.
O surgimento da problemática da “existência do outro”, que teve início na
contemporaneidade, representou uma indicação do pensamento moderno que
instaurou a ideia do sujeito pensante, ou seja, uma ideia muito abrangente de sujeito
e do próprio conhecimento que domina a filosofia desde Descartes. Disso resulta o
que a filosofia chama de “solipsismo”6: não há para mim nenhum outro ser que não o
meu próprio pensamento. O pensamento é, assim, a fonte de todo conhecimento, só
ele nos permite alcançar o objeto. Nesse caso, também o ser-outro nada é fora de
mim e em si mesmo. Ele é um eu alheio, apenas uma coisa distinta em relação a
minha consciência. A ideia cartesiana de que eu sou uma coisa que pensa isolou o
homem do mundo e do outro. Uma tal concepção é responsável pelas análises
contemporâneas que, em geral, apresentam o outro também como uma consciência.
6 O termo solipsismo vem do francês solipsisme, que, em linhas gerais, se refere ao limite extremo
do idealismo que defende a concepção de que todos os entes ou a realidade são apenas reflexos
de minhas próprias ideias.
35
Contrariando todas as expectativas de um saber que só entende o homem
como sujeito e o outro como objeto, uma determinação tipicamente moderna, a
“analítica existencial” de Heidegger tem a tarefa de trazer o homem de volta para a
sua relação originária com o ser, para o simples da vida; para o que é e está
simplesmente sendo, a physis grega. É, portanto, para ela que nos voltamos agora,
para o espaço de manifestação que já se dá no aberto pelo fechamento do ser
através das realizações humanas. Trata-se de preservar a estrutura que, justamente
por se esquivar, possibilita o homem a viver e se comportar com os entes. Com
Heidegger, o conhecimento é menos intelectualista e o Dasein é originariamente um
ente que compreende o ser e não um “ser vivo” cujo caráter primordial é a razão,
mas também não constitui uma vontade irracional da qual falava Schopenhauer.
O conhecimento tornou-se a maneira mais comum de pensar a relação euoutro, frequentemente entendida como uma relação entre entes, o objeto e o sujeito
para quem este objeto aparece. Isso é resultado de uma concepção do outro como
“outro eu”, com o qual o “meu eu” se relaciona, tornando-o um mero “tu” diferente de
mim. De acordo com Heidegger, compreensão não tem nada a ver com uma
instância interior subjetiva que se conecta com um exterior objetivo. Não é, portanto,
“o conhecimento quem cria pela primeira vez um ‘commercium’ do sujeito com um
mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 102). Eis aí porque Heidegger se decide pelo uso
de Dasein (substantivo do gênero neutro muito comum da língua alemã – das
Dasein) em vez de sujeito. Dasein enfatiza o fato de que nós já desde sempre
estamos no mundo. Por isso, não pode designar um sujeito e muito menos um
objeto e sim uma relação com o seu ser ou com o mundo dos entes, na medida em
que todo ente “é”. Ao mesmo tempo, porém, Heidegger determina: “o ser, que está
em jogo no ser deste ente, é sempre meu”. (2002a, p. 78).
Como Husserl7, o filósofo não desconsidera a existência meramente
presente dentro do mundo e, assim, concorda com uma perspectiva realista segundo
a qual o real existe mesmo sem referência a uma ideia de ser. Mas, por outro lado, a
filosofia, de acordo com Heidegger, só pode prosseguir segundo um modo
determinado, o da compreensão ontológica. Desde a filosofia transcendental de
Kant, o ser não está mais entre as coisas reais. Kant fornece um importante ponto
7
A formulação de Husserl – “toda consciência é consciência de alguma coisa” – defende a
realidade e o em si das coisas.
36
de partida para as abordagens do século XX. Com o argumento transcendental, ele
se afasta da ideia de que nossa experiência tenha o status de um ser natural, de um
ser entre outros seres. Esse argumento introduz a ideia da experiência como tal. A
experiência para ser experiência tem de ser de alguma coisa, ou seja, experiência
de uma determinada coisa.
Na interpretação heideggeriana do mundo como significância ou contexto
“em que” o Dasein já desde sempre está também reside uma determinação
ontológica do estar com o outro mesmo estando sozinho. “No mundo compartilhado
(Mitwelt) do cotidiano, deparo com os outros em mim mesmo e deparo comigo nos
outros”. (NUNES, 1992, p. 97). Investigaremos, assim, o ser-no-mundo do Dasein e
o caráter ontológico desse encontro nos capítulos dois e três do presente trabalho,
respectivamente. O mundo do Dasein, ao qual Heidegger chama de mundo
circundante (Umwelt), ao mesmo tempo em que é tão próximo, é também, por outro
lado, não perceptível:
Para quem usa óculos, por exemplo, que, do ponto de vista do
intervalo, estão tão próximos que os ‘trazemos no nariz’, esse
instrumento [...] do ponto de vista do mundo circundante, acha-se
mais distante do que o quadro pendurado na parede em frente.
(HEIDEGGER, 2002a, p.155).
A filosofia moderna concebe o “eu” a partir de minha subjetividade e, da
mesma maneira, concebe o “outro” como outro eu ou outro sujeito. Com Heidegger
(2002a, p.167) o eu “não é e nunca é dado sem mundo”. O originário ser para com
os outros, que Heidegger chama de preocupação, se dá na lida cotidiana ocupada
com os instrumentos, que possui a constituição fundamental de ser-para. Mas o
outro se nos apresenta de uma forma diferente dos demais entes. Não os
encontramos nem como instrumento nem como objeto; deparamo-nos com eles
“junto ao trabalho”. Significa dizer, “em seu ser-no-mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p.
171).
Essa compreensão nos leva a perceber que o “outro” não é objeto. Sempre
temos o outro em conta, entendido aqui não apenas no seu sentido restrito como
uma pessoa, mas olhando de modo mais amplo, trata-se do campo dos entes, ou
seja, de tudo aquilo que de alguma maneira “é”, as coisas, o homem, as ações, etc.
Esse foi o significado de outro mais importante que conquistamos com a obra de
37
Heidegger. E dada a sua relevância para a história do pensamento sobre o ser, o
último capítulo desta dissertação pretende investigar justamente como o “relacionarse”, ou melhor, como o estar com o outro, seja na lida com os instrumentos ou na
preocupação (Fürsorge) com os outros, no sentido de Heidegger, é colocado sem
recurso tradicional à percepção interna, isto é, não é colocado segundo a filosofia
moderna que distingue o “outro” a partir de um “eu” primariamente isolado, ou seja,
de uma subjetividade, mas antes, como problema ontológico a partir da analítica
existencial do Dasein.
Ocupar-se dessa tarefa é identificar o quanto sua caracterização do ser-com
do Dasein cotidiano na impessoalidade, nos lega uma forma não representativa de
compreender o outro na medida em que o entende não como outro sujeito, e sim,
como Mitdasein (Dasein-com), estrutura determinada pelo ser do Dasein. É valer-se,
como também do ser-com do Dasein por meio da preocupação, a qual está
reservada apenas para a relação entre os “Dasein”. Significa, portanto, apontar para
os conceitos de propriedade e impropriedade como modos integrantes do ser do
Dasein, os quais somente são possíveis porque o Dasein vive a possibilidade mais
fundamental e, portanto, a “mais própria” de ser para a morte. O trabalho segue,
finalmente, a tarefa de elucidar o modo de ser “outro” que, segundo uma proposta
fenomenológico-hermenêutica, se nos revela, o mais das vezes, pelos modos
“indiferentes” (mas positivos) de preocupação (ser-com) e como esta convivência
cotidiana do Dasein se impõe enquanto importante questão na ontologia
fundamental de Heidegger.
No capítulo seguinte privilegiamos o fato de o Dasein já desde sempre se
encontrar no mundo, conforme o nosso interesse de ressaltar e entender as análises
posteriores de Heidegger sobre o Dasein cotidiano (Quarto capítulo de Ser e
Tempo). É interessante notar que as três palavras já-desde-sempre que se
encontram aqui em destaque apontam justamente para o fato da temporalidade da
compreensão do ser. E é por isso que nesse trabalho a análise da temporalidade do
ser do Dasein antecede a analise do ser-no-mundo do Dasein, considerando que a
filosofia, enquanto possibilidade finita, conforme mostramos acima, emerge da
existência cotidiana.
38
2. A QUESTÃO FUNDAMENTAL EM SER E TEMPO
2.1 O projeto de uma ontologia fundamental
Conforme Heidegger, a história da palavra metafísica coincide com a própria
história do pensamento ocidental. Esta palavra se compõe da preposição meta
(“para além de”) e physis (natureza entendida no sentido grego como o que está
diante, aquilo sobre o que o homem não interfere ou interferiu). Physis ou como veio
a se chamar “natureza” para os gregos é tudo aquilo que sai ou brota de dentro de si
mesmo, o surgir das coisas. Com a palavra physis os gregos (mais especificamente
os pré-socráticos) designaram o ente, no sentido de “um vigor dominante daquilo,
que brota e permanece”. (HEIDEGGER, 1966, p. 51). Pois, de acordo com
Heidegger, “os gregos não experimentaram, o que seja a physis, nos fenômenos
naturais.” (1966, p. 52). Esse significado amplo e originário, contudo, foi perdido com
a tradução da palavra para o latim “natura”.
Por physis os gregos entendiam o ente como tal e não um ente particular.
Physis diz num sentido bem mais amplo o que se encontra diante em sua amplitude
e não o sentido posterior e restrito de natureza. Portanto, a investigação filosófica
que se ocupa do ente como tal, enquanto totalidade, chama-se meta ta physika,
além do ente. Mais tarde, se convencionou chamar de meta ta physika, ou seja,
meta-physika, os escritos de Aristóteles que sucediam aos estudos sobre ta physika.
Quando foram classificados, estes escritos facilmente se distinguiam daqueles sobre
a physica. Porém, ao mesmo tempo haviam tratados que pareciam similares, mas
por outro lado não coincidiam e até mesmo se distinguiam entre si. E foi exatamente
esta perplexidade que fez com que os escritos descobertos fossem acrescentados
aos da physica.
Nesse sentido, metafísica diz, por um lado “transcender” o ente, mas por
outro lado significa ser na referência com o ente. Aqui é ressaltado o aspecto
ambíguo da palavra metafísica, que se traduz na sua relação originária com o ente
39
apesar de haver uma distinção entre os dois – é que no ser está implicado o próprio
ente. No Sofista, Platão considera o tema do ser (e do não-ser) como estando
envolvido por uma “completa perplexidade”. (PLATÃO, 2007, 251a). É assim que
podemos dizer que Heidegger acolhe o sentido aristotélico de metafísica como
investigação do ente em sua totalidade.
Porém, este élan, de acordo com Heidegger, desapareceu mais tarde na era
cristã. O termo meta ta physika que antes constituía o “ser do ente” foi, mais tarde,
traduzido para o latim por metaphysica, em conjunto com scientia (conhecimento do
suprassensível). O conceito, que antes identificava um composto de classificação e
perplexidade agora remete para um conteúdo determinado, o qual aponta para o que
é “trans” (além da natureza). Significa dizer que a metafísica tornou-se a expressão
dos estudos acerca do ente mais elevado; um ser superior, qual seja, Deus, em
contraste com o estudo do sensível; transformando-se, portanto, em um nome (=
ente), manifestação de “não-natureza”, o que mais tarde designou-se de não
empírico. A metafísica posterior “é o conhecimento das coisas divinas, do suprasensível”. Pois, de acordo com Heidegger, “[...] A proveniência própria da palavra foi
esquecida”. (2007, p.37).
Desta forma, para esclarecer a “questão do ser” em Ser e Tempo é preciso
entender, num primeiro momento, que a investigação não se opõe à metafísica,
apenas quer trazer à tona o seu verdadeiro legado – o esquecimento do ser. Daí a
necessidade de ver que Heidegger coloca a tradição em xeque não com o objetivo
de aniquilar o seu pensamento, mas, antes, para recuperar o sentido esquecido do
ser. Não por acaso ele nos diz: “a tradição [...] tende a tornar tão pouco acessível o
que ela ‘lega’ que, na maioria das vezes e em primeira aproximação, o encobre e
esconde”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 49). A metafísica, nesse caso, não apenas
esquece o ser, investigando o ser do ente, mas também esquece o próprio
esquecimento do ser. Havendo, portanto, um duplo esquecimento.
O primeiro modo de ser do Dasein no mundo não é o da contemplação, mas
o da preocupação. A este modo preocupado de ser do Dasein vincula-se o problema
mais fundamental de toda a obra de Heidegger, que é a significação do ser e sua
relação com o tempo. A tradição sempre identificou o ser com a simples presença. A
noção originária de ser se dá objetivamente e, portanto, segundo o fio condutor de
um determinado modo temporal – a presença. Mas que ser é este que se tornou tão
40
evidente a ponto da “ontologia” desistir da própria colocação da questão, segundo
Heidegger? De modo simples e claro, é aquilo que subsiste; é uma coisa, uma
substância, um objeto. É, pois, aquilo que se apresenta a nós como coisa, é algo
que está presente, que perdura. Por isso, a ideia de ser aqui combina perfeitamente
com a ideia de “fundamento”. Assim, a ideia de ser revelou-se completamente
dominada pela ideia de “realidade”, isto é, pelo conceito de ουσία.
Entendemos agora porque a recolocação da questão do ser em Heidegger é
feita em relação com o tempo, mediante a análise de um ente que, conforme
dissemos, se pergunta sobre o sentido do ser, isto é, compreende o ser – o Dasein.
O ser, no início, “se arrancou aos fenômenos”, nos diz Heidegger. E já aqui o que se
mantinha
encoberto
“deu
fôlego
às
pesquisas
de
Platão
e Aristóteles”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 27).
É certo que, parte do conceito de fenômeno, Heidegger deve a Husserl, mas
a outra parte vem de Aristóteles. Dessas duas fontes, nasceram os dois pontos
principais da filosofia de Heidegger, pontos esses que acabam por estruturar e
perpassar todo o presente trabalho. É assim, portanto, que Heidegger assume o
conceito aristotélico do “ente enquanto ente” e a ideia de que o ser se diz de várias
maneiras. Com a filosofia do ser de Aristóteles e a intencionalidade husserliana,
Heidegger chega aos variados modos de ser “no” mundo de um ente determinado –
o Dasein, segundo uma interpretação ontológico-fenomenológica de seu ser.
2.1.2 O modo de investigação da questão do ser
Diz-nos Heidegger que as questões e, menos ainda, as questões
fundamentais não se encontram tão facilmente como pedras e água. “Questões SÃO
e são apenas, enquanto se investigam realmente”. (HEIDEGGER, 1966, p. 59). De
acordo com essa perspectiva, a toda questão pertence uma interpretação. Eis o que
diz o princípio hermenêutico.
Portanto, a questão proposta em Ser e Tempo não possui o modo de ser de
um simples questionário, justamente porque tal questão, a questão fundamental do
ser, não se dirige propriamente a um ente e não se constitui numa busca incessante
pelo enigma do mundo ou acerca da natureza do ser. Pois como diria Heidegger
41
(2002a, p. 109) as “coisas” não estão diante de mim, o que primeiro vem ao
encontro não são as coisas ou o objeto como queria Husserl, mas o próprio ser, que,
por si mesmo, se “des-vela”. Portanto, só há coisas, só há realidade, porque se abre
um horizonte de ser ao questionar. Mas o que se questiona não é algo estranho para
o próprio questionar, mas algo constitutivo de seu próprio ser. Assim, o
questionamento perfaz um caminho circular em que o ato de questionar algo remete
ao próprio questionamento – a questão privilegiada do ser. Por outras palavras, o
ente (o interrogado na questão) que se determinado em “seu ser” (temos aqui o
perguntado - o sentido do ser) remete à questão do próprio ser; apresenta-se em tal
questionamento, pois, como o ente privilegiado, o ente que nós mesmos somos, o
Dasein. Mas como isso é possível? Pois, toda procura retira do procurado sua
direção prévia e de algum modo o sentido do ser já se deu. É desta compreensão
implícita do ser que emerge a compreensão explícita do ser, ou melhor, o sentido do
ser, o qual foi esquecido pela tradição. Mas isso não quer dizer que esta busca seria
em vão porque ainda que a compreensão do ser constitua aquilo em que desde
sempre nos movemos, ela até hoje não foi determinada em seu significado, pois não
foi colocada de forma adequada de modo que esse “é” precisa de esclarecimento.
Eis, então, uma das tarefas mais importantes de Ser e Tempo e do pensamento de
Heidegger como um todo – questionar o ser pela pergunta diretriz sobre o “sentido
do ser”.
No entanto, o sentido do ser não pode de início fornecer tal esclarecimento.
O fio condutor da questão, isto é, o sentido do ser, só pode ser atingido com a
elaboração do conceito de ser e dos modos de compreensão inerente a ele.
Contrariando, assim, os princípios lógicos, o “ser” é algo que necessita de
interpretação, pois o procurado não é algo estranho para nós onticamente - o ser.
Dessa forma, a investigação do ente como ente não pode ser conduzida ao encontro
de outro ente. Assim, o interrogado, em tal questão, só pode ser o ente, visto que, o
ser não se deixa dizer, estando, portanto, naquilo que é e como é. Por isso, “o ser é
sempre o ser de um ente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 35). Mas é justamente porque o
ente já se deu tal como ele é em si mesmo que ele pode apenas ser interrogado em
seu ser. Desse ponto, surgem questões tais como: existe um privilégio entre os
entes? Em qual dos entes deve-se abrir o sentido do ser? De que maneira deve-se
compreender o ser? Aqui se apresenta uma dificuldade, porque os modos de
42
visualizar e compreender o ser são, ao mesmo tempo, modos de ser do ente que
questiona, isto é, o Dasein em sua existência. Isso quer dizer que, interpretar o ser
significa tornar claro o ente que nós mesmos somos (o Dasein) em seu ser.
Conforme vem sendo dito, a investigação desenvolvida neste trabalho
percorre um círculo de compreensão, porque “a caminho do objeto estava-se
também a procura do caminho”. (STEIN, 1988, p.35). Mas, segundo Heidegger, isso
não é motivo para uma contradição lógica, pois é neste círculo mesmo que reside o
mistério do compreender. Esse aspecto do seu filosofar pervaga toda a sua obra.
Então, reforçando o que foi dito anteriormente, o conceito de ser já pressuposto no
questionamento não consiste num conceito explícito do “sentido do ser”. Daí a
necessidade da filosofia e sua tarefa mais essencial. Porque o que está em jogo aqui
não é o estabelecimento de um princípio segundo o qual se chegaria a uma
resposta, por dedução, mas a “mera” compreensão cotidiana do ser em que sempre
nos movemos. A pergunta constitui já uma resposta, de acordo com a estrutura do
questionamento sobre o sentido do ser. Somos, dessa forma, atingidos pelo
questionado, porque no próprio ser deste ente dá-se uma compreensão do ser, ou
melhor, somos o próprio questionamento, somos, portanto, ontológicos, somos no
ser e para o ser.
Mas para que serve tal questão do ser, pergunta Heidegger. Ora, o todo dos
objetos torna-se depois objeto do conhecimento científico. A ciência, nesse sentido,
consiste num modo derivado de compreensão. Portanto, há uma interpretação précientífica da região do ser antes mesmo de uma determinação dos setores dos
objetos (biologia, história, antropologia). Isso mostra que, já na ciência, podemos
conferir o primado do que Heidegger chama os “conceitos fundamentais”. Assim, são
eles que servem de guia para as pesquisas ônticas e, nesse caso, essas pressupõe
o ser, isto é, a pergunta pelo ente na sua totalidade. Não devemos, portanto, entrar
nas discussões que tentam equiparar a filosofia à ciência, no sentido de não se
poder determinar ou a ciência em vista da filosofia e, por outro lado, determinar a
filosofia como ciência. Num sentido originário, toda ciência emerge em meio aos
“conceitos fundamentais” e, assim, não pode ela encontrar-se numa situação inferior
à filosofia, sendo esta, porquanto, entendida como a ciência mais pura. Isso, na
verdade não ocorre pelo simples fato de que a filosofia não pode ser designada de
ciência. O que se pode considerar é o seguinte: a filosofia é mais originária na
43
medida em que é dela que a ciência originariamente advém. Pois, o conhecimento
científico deve querer dizer: redução do ser ao ente, tratar o ser como se fosse um
objeto qualquer, uma coisa. À ciência não compete uma investigação do ser do ente;
porém, esse fato não consiste meramente numa opção que assim foi feita por este
conhecimento, mas, antes, no próprio modo de ser dele como ciência. De maneira
correspondente, a filosofia não pode ser considerada em vista de algo fora dela
mesma, como, por exemplo, a ciência. À filosofia compete apenas ser ela mesma e
nada mais.
Chegamos agora à questão do primado ôntico e ontológico do Dasein (único
ente que compreende o ser). O Dasein não se comporta como os outros entes. Ele
possui uma primazia em relação aos demais entes. Isso ocorre porque em seu ser,
ou melhor, sendo, em sua existência, ele estabelece uma relação de ser com seu
próprio ser. (HEIDEGGER, 2002a, p. 38). Ou seja, dar-se uma compreensão de ser
em seu próprio ser, isto é, sendo. Daí dizer que este privilégio ôntico do Dasein
consiste em ser ele próprio ontológico, o que significa dizer que este primado não se
dá num âmbito cronológico ou natural. Resumindo, o Dasein é o único ente que é
determinado em seu ser pela existência. Ontologicamente também o Dasein tem
primazia, pois ao Dasein pertence uma compreensão do ser de todos os entes que
não possuem o modo de ser do Dasein. (HEIDEGGER, 2002a, p. 40). Ou seja, é
constitutiva do Dasein uma compreensão do ser em geral.
Ao querer determinar o ente em “seu ser”, Heidegger se depara, então, com
a questão do próprio ser. Os lógicos certamente encontraram um círculo em tal
questionamento e o chamaram de círculo vicioso; ao passo que, Heidegger, em
resposta às críticas a Ser e Tempo, se defende no ensaio – A origem da obra de
arte, onde diz que tal círculo constitui a “festa do pensamento’’ e que dele não se
pode fugir, e mais, dele não se deve de modo algum escapar. Neste sentido, porém,
a ontologia tradicional também investigou o ente como ente (a essência de cada
ente e do ente em geral) e, no entanto, não colocou o problema de modo suficiente.
Mas por que isso ocorreu? Segundo Heidegger, ao investir numa busca pelo ser de
cada ente, a ontologia antiga tomou como fio condutor a existência do próprio ente.
Ou seja, daqui advém toda confusão, quando, porém, se tomou o ser pelo ente, o
problema da existência, que em Heidegger se coloca no âmbito do ser do sendo, foi
reduzido à existentia (um existente dentro do mundo). O ser é, aqui, pensado a partir
44
do ente, tornando-o como um ser entre outros. Desse modo, o conceito de ser como
realidade (ousía) sempre tomou a frente na problemática ontológica, de modo que, o
que já se produziu até hoje, fez-se no projeto de uma simples presença.
Mas é precisamente porque o ser não é um ente que ele (o Dasein) não
pode se colocar diante dele mesmo, então, o Dasein, de certo modo, nunca é. A
diferença ontológica não mais se dá num âmbito da metafísica tradicional, e sim, na
própria existência como caráter do Dasein. Aqui não está em jogo o conceito
clássico de ser enquanto substância nem o conceito moderno de existência como
“subjetividade” nem tampouco o da “filosofia da existência” (que supõe a distinção
escolástica entre essentia e existentia). Heidegger quer resgatar aquele pensamento
originário sobre a existência como verdade que, salvo as diferenças metodológicas,
foi pensado inicialmente pelos gregos. Pois, o Dasein sempre lida com algo
(significância), sempre temos a ver com algo. A existência enquanto transcendência
está na base de uma ontologia fundamental que somente se tornou possível em Ser
e Tempo a partir da elaboração da questão do sentido do ser. Neste contexto de
reflexão, portanto, é o ser - o questionado. Daqui pode-se compreender o sentido
profundo do ser (Da-sein) como o ek-stático da ek-sistência (o estar fora).
2.2 Ser temporal do Dasein
Kant dá um passo à frente na questão do ser quando compreende o tempo
como fenômeno do sujeito. Por essa razão, o objeto exprime algo que não é outro
objeto, uma representação. O objeto, nesse caso, possui um significado. Nesse
sentido, ele avança no tratamento que é dado à relação entre ser e tempo, uma
relação que já estava presente na filosofia antiga, mas que a partir de Kant se
confirma uma vez que, desde então, não é mais possível se falar do tempo como
uma realidade absoluta.
Porém, a noção de tempo abordada aqui não constitui a mesma que foi
legada pela tradição e que determinou, inclusive, a concepção kantiana do “tempo”.
Kant percebeu o movimento fundamental que vai do ser ao Dasein, mas somente
isso. Faltou a ele uma ontologia explícita do Dasein, além da elaboração da questão
fundamental do ser. E por essa questão estar tão próxima de nós, ou seja, nós
45
mesmos estamos inseridos neste processo que questionamos, é que a
consideramos demasiado complicada e de difícil acesso. É, pois, com base nesta
perspectiva histórica do ser que Heidegger pode afirmar:
O modo de ser do Dasein exige, portanto, de uma interpretação
ontológica, daquela que se pôs como meta a originariedade da demonstração fenomenal, que essa interpretação conquiste o ser desse
ente contra sua tendência própria de encobrimento. É por isto que,
para as pretensões de auto-suficiência e evidência tranquila
inerentes à interpretação cotidiana, a análise existencial guarda
sempre um caráter de violência. (HEIDEGGER, 2002b, p. 104, grifo
nosso).
Assim, de acordo com ele, não só na tradição grega, mas também em Kant
a noção de ser se orienta por uma única faceta do tempo – o tempo presente. O
interesse principal de Heidegger consiste em sustentar que, para Kant, “a presença,
o presente” indicam imediatamente uma relação com o tempo, da mesma forma que
“a constância” e “a persistência”.8 Este algo de permanente que subsiste naquilo que
muda nada mais é que o próprio tempo, na concepção de Kant. A “permanência” (o
tempo), que não muda e se torna condição de um tempo sem fim, encobre a
dimensão da temporalidade originária; o conceito vulgar de tempo do qual fala
Heidegger em Ser e Tempo nos remete justamente ao que ele chamou de “tempoagora”, aquele que persiste, ou seja, que simplesmente vem e passa não dispondo,
assim, de um horizonte que lhe permita constituir como uma possibilidade do tempo
da convivência cotidiana, qual seja, o tempo do relógio ou concreto que se dirige
para a eternidade. Até mesmo a sua determinação do ser enquanto “posição”
manifesta uma primazia do tempo presente que se orienta para um tempo eterno.
(HEIDEGGER, 1973a). Pois, o que é se torna depois objeto do meu representar,
torna-se um existente, um objeto. E o existente enquanto a permanência nas
modificações dos fenômenos encontra-se numa relação primeira com o tempo.
Portanto, na interpretação de Heidegger, Kant não levou em conta a temporalidade
originária. Este fala como se o modo da temporalidade fosse apenas o presente. O
passado não é mais e o futuro não é ainda. Desta forma, o tempo, para Kant,
coincide com cada instante, com cada agora. Na definição kantiana de “existência”
8 Sobre o conceito kantiano de tempo, cf. HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos
princípios transcendentais. Tradução Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 1992.
46
(Dasein) enquanto presença constante, a relação com o tempo é primordial. Cada
existente traz consigo o sentido de um “permanecer”, “mas a permanência, como
presença constante, é, segundo Kant, a característica fundamental do tempo”.
(HEIDEGGER, 1973a, p. 222). Em suma, o tempo, não obstante fenomênico,
constitui o que permanece na mudança, o que nunca passa e por isso tende para
um tempo infinito e eterno. Para Heidegger, essa primazia do “presentar” determina
todas as caracterizações do ser, inclusive a de Kant.
Em Ser e tempo, Heidegger afirma que somente na “destruição”9 da tradição
ontológica é que se pode ter a certeza da necessidade de uma repetição da questão
do ser. (HEIDEGGER, 2002a, p. 56). Isso quer dizer que uma concreção da
investigação ontológica só começa dentro do horizonte liberado pelo tempo. Pois, a
investigação filosófica ou ontológica que procura “pôr-nos à escuta da voz do ser”
não representa uma ruptura com a história. (HEIDEGGER, 1966, p. 22). Nesta
passagem, Heidegger nos remonta para a correspondência dirigida ao apelo do ser
do ente que é entendido como sendo a própria filosofia. A filosofia moderna, de fato,
confirma o nexo especial entre ser e um determinado modo do “tempo”, mas o faz
baseando-se numa concepção corrente de tempo. A noção de tempo da tradição é o
tempo cronológico, aquele que segue a ordem dos acontecimentos notáveis de um
determinado momento, o qual implica num tempo eterno, atemporal, sem começo
nem fim. Em suma, o “tempo do relógio”, como diz Heidegger, resulta num tempo
infinito, num tempo fora do próprio tempo, ou ainda:
A determinação do sentido do ser como παρουσία e ουσία, que, do
ponto de vista ontológico-temporário, significa “vigência” representa
um documento externo dessa situação, mas somente isso. O ente é
entendido em seu ser como “vigência”, isto é, a partir de determinado
modo do tempo, do “presente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 54).
Como tal, o tempo não deve ser tratado ao lado da questão do ser ou como
algo que é encontrado dentro do mundo ao lado de outros entes, mas como sendo o
próprio ser. Ou seja, o tempo originário (ou existencial) é exatamente o oposto do
tempo no sentido clássico, do conceito vulgar que define o tempo como “futuro,
passado e presente”. Em vez disso, é um “acontecimento” que se realiza na própria
9 O termo usado por Heidegger em Ser e Tempo para dizer destruição é: Destruktion, palavra de
origem latina e não Zerstörung. O termo Destruktion, escolhido para dizer “destruição”, não possui,
portanto, o sentido negativo de aniquilação.
47
existência, na existência do Dasein, é o evento mais profundo da “vida”. Ademais,
não resta dúvida de que a análise da temporalidade originária está imbricada com o
fato de que o ser é “histórico”. “Temporalidade é o 'fora de si' em si e para si mesmo
originário”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 123). Reside aqui, portanto, o fato de que ela só
pode ser entendida existencialmente. O tempo não é algo simplesmente dado que
está ao lado do Dasein, ele constitui o movimento mesmo que acontece entre ente e
ser, entre o Dasein e sua existência.
Heidegger nega a ideia de que o tempo tenha que se reduzir ao tempo
vigente das coisas ou ao tempo psicológico e, com isso, introduz uma profunda
mudança em toda a ontologia tradicional. Somos o que já foi justamente porque o
ser só é a partir do futuro. O porvir condiciona o ter sido e a apresentação junto às
coisas. É o “fenômeno primordial da temporalidade originária e própria”.
(HEIDEGGER, 2002b, p. 124). O tempo originário é, portanto, a conjunção daquilo
que chamamos de passado, presente e futuro.
Temos, assim, que olhar a tradição de uma forma diferente. E isso só é
possível se violarmos a noção de história orientada para o passado; porém, destruir
a história da ontologia não tem o sentido negativo de aniquilar o passado, mas de
recuperá-lo como uma filosofia futura que irá olhar adiante para o passado. Sobre
este ponto Jonathan Rée (2000, p. 21) nos dá um exemplo:
Herdar uma tradição não é o mesmo que celebrá-la. Tomamos posse
de uma herança quando assumimos o controle dela e lhe damos
uma abertura para o futuro, não quando simplesmente ficamos atrás
dela guiando-se pelo seu passado.
A concepção de Heidegger de uma destruição da tradição tem esse sentido
positivo de uma apropriação produtiva do passado e não de uma cessação de um
processo. No § 6 de Ser e Tempo, Heidegger sustenta essa tarefa positiva da
destruição na medida em que avalia as influências do pensamento ocidental após
uma rápida exposição dos seus limites, segundo o fio condutor da questão do ser.
É por isso que é possível dizer que só o Dasein existe. Isto significa não
considerá-lo como uma coisa feita e acabada, mas antes como “possibilidade”.
Existir, pois, sob o ponto de vista desse ente, significa ek-sistir, isto é, sair de si a
todo instante, é dirigir-se ao seu ser como à sua possibilidade mais própria.
Inúmeras vezes em Ser e Tempo, Heidegger faz referência à “essência” do Dasein
48
como sendo sua própria “existência”10, ideia essa que resulta do caráter mesmo da
investigação ontológica em contraste com o modo moderno de perceber algo que
existe como algo “dado” e distante de nós, isto é, como objeto.
Antes, o que distingue o Dasein dos outros entes simplesmente presentes
não é a sua função racional, mas a sua relação originária com o ser, com o qual ele
se comporta o tempo todo em tudo que faz e diz. Assim, determinou-se de préontológica essa relação fundamental. Esse privilégio ôntico do Dasein, isto é, a
constatação de que só ele compreende o ser, consiste no fato de ser ele ontológico.
Assim, faz parte de sua constituição ontológica este interrogar-se sobre o ser que
coincide com o próprio existir. Além disso, não se pode confundir a existência do
Dasein que constitui para ele próprio um “assunto ôntico” com a análise ontológica
realizada em Ser e Tempo, que tem como objeto – o Dasein (das Sein). Ou seja, o
problema ontológico está na base dessa discussão. A questão do ser tem primazia
em relação ao conhecimento teórico do ser. Isso confirma a tese do § 15 de Ser e
Tempo que diz: o primeiro modo de ser do Dasein no mundo não é o do
conhecimento perceptivo, mas o da ocupação na lida com as coisas. (HEIDEGGER,
2002a, p. 108).
Pois bem, uma ontologia fundamental proposta como solo para as demais
ontologias somente deve se apoiar no sentido do ser em geral, o qual pertence única
e exclusivamente ao ser do Dasein e, nesse sentido, a ontologia fundamental só é
possível enquanto analítica existencial, isto é, como analítica do ser desse ente.
Como vemos, a metafísica clássica tratou o ser segundo o modelo do ente (ficou
reduzida ao modo da Vorhandenheit); não obstante, nessa “ontologia inadequada da
substância” havia um propósito – o “transcender” o ente. Porém, somente na
ontologia fundamental de Heidegger a “existência”, ou melhor, o ser desse ente,
tornou-se tema de uma análise ontológica. Isso não significa, contudo, perder de
vista o espaço de manifestação do ente recorrente na filosofia grega.
É sobre este ser “ontologicamente diverso”, o ser do Dasein, que se ocupa o
filosofar de Heidegger; enquanto Aristóteles determina o ser do ente de ousía e a
filosofia medieval de “transcendental”. Essas determinações se dão à custa de um
questionamento ontológico – do sentido de ser liberado pelo fenômeno originário da
10 Heidegger desenvolve o sentido “essencial” do Dasein em várias passagens de Ser e Tempo
(2002), merecendo destaque: § 9, p. 77; § 25, p. 168; § 45, p. 9; §60, p. 88; § 63, p. 107.
49
temporalidade, tendo em vista que o significado do ser não tem mais a estrutura de
uma essência que transcende a temporalidade ao se estruturar na base de uma
interpretação do tempo que vai do agora em direção à eternidade.
Gianni Vattimo11, um comentador crítico de Heidegger, lança mão de três
pontos básicos para compreender a fundamentação da temporalidade: 1) que esta
fundamentação da temporalidade não possui o propósito simples de revelar o
aspecto temporal do Dasein, mas, antes, pretende ser a própria fundação da
temporalidade como tal. Pois, a concepção adequada do tempo não pode ter como
referência o modelo do ente, mas do Dasein. A metafísica, por pensar o ser como
simples presença se subtraiu de discutir a relação ser-tempo; 2) apesar de tudo,
para Heidegger, não está em questão fundar a noção de tempo na estrutura
existencial do Dasein, pois o ser do Dasein definiu-se unitariamente como cura. O
próprio sentido da cura (“cuidado”) é a temporalidade; 3) disso resulta a diferença
que há entre a problemática heideggeriana e agostiniana. Mas Heidegger se
distancia de Agostinho por não fundar a temporalidade na consciência. Além disso, o
significado do seu discurso não abarca só o tempo ou só o ser do homem, mas o ser
como tal.
O ser possui, portanto, um nexo peculiar com o Dasein: as coisas chegam
ao ser apenas enquanto se situam no projeto aberto pelo Dasein, e este só é
enquanto cura. Explicitar agora que o sentido unitário das estruturas da cura é a
temporalidade significa, enfim, pensar numa construção ulterior da relação sertempo.12
2.3 Ser-no-mundo do Dasein
Tradicionalmente, o ser se identifica com o conceito de simples presença.
De modo claro, aquilo que perdura ou que se apresenta a nós, é o ente atual. Mas,
11 Cf. VATTIMO, G. Introdução a Heidegger. 10. Ed. Tradução João Gama. Lisboa: Instituto Piaget,
1996.
12 Heidegger trataria do tempo originário como horizonte do sentido de ser em Tempo e Ser, naquela
que seria a terceira seção da primeira parte de Ser e Tempo. Porém, ela não foi publicada, assim
como as três seções que integrariam a segunda e última parte desta obra. Heidegger, no entanto,
nos deixou como que um esboço daquela terceira seção na preleção do semestre de verão de
1927 – Problemas fundamentais da fenomenologia, apresentada em Marburg. Além disso, deixou
ainda os temas das três seções da segunda parte.
50
de acordo com o ser histórico do Dasein, a noção de ser precisa ser provocada na
sua relação originária com o tempo. E isto só é possível a partir da “analítica
existencial”, isto é, de uma interpretação do ente que provoca o ser e que, além
disso, ainda pode se interrogar sobre o seu sentido.
É por isso que a compreensão (Verstehen), para Heidegger, constitui um
modo de ser do Dasein dentre outros e não uma atividade do intelecto. Em Ser e
Tempo, ele começa fazendo uma análise desse ser, o qual é estudado em sua
significação mais geral e comum. Isso leva a investigação a colocar o problema do
ser partindo da cotidianidade e é, nesse ponto, que Heidegger deixa perceber a
influência da fenomenologia e a noção de ser que está implícita, a chamada précompreensão de ser. Essa pré-compreensão, contudo, não deve ser descartada em
prol de uma compreensão dita mais legítima e fundamental. Pelo contrário, deve-se
aceitá-la como indispensável a toda e qualquer compreensão. É graças a ela que
podemos dizer qualquer coisa; em vez de complicar e confundir a compreensão, a
torna possível.
O ser do Dasein exprime “possibilidade”. Essa ideia está sob a forma:
“Dasein é sempre sua possibilidade”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 78). Pois, é esse o
sentido que traz o fato de seu ser está em sua “existência”. O poder-ser é o modo de
ser do Dasein, que Heidegger chamou de existência. Mas para adentrarmos ainda
mais na sua proposta, precisamos nos libertar do conceito tradicional de existência.
Heidegger transformou as ontologias, antiga e moderna, colocando em discussão o
conceito tradicional de existência concebido como um simples “dado” que possui o
modo de ser da realidade, em contraste com as concepções clássicas acerca da
existência no sentido de existentia (simples presença), conceito que não se aplicava
ao homem, mas apenas ao ser simplesmente dado (substância). Heidegger, assim,
reserva o termo “existência” só para o Dasein e compreende o seu ser como
possibilidade de ser ou não “si mesmo”, pelo fato de estar referido ao próprio ser
como à própria possibilidade.
O Dasein não existe como uma simples presença. Pois, o que o torna
diferente dos outros entes é justamente o fato de estar referido a possibilidades, isto
é, ao seu próprio ser. Entendemos agora as razões de a “analítica existencial”
preferir determinar o modo de ser do Dasein ou a sua realidade por meio dos
“existenciais” (Existenzialen) em contraposição às categorias, as quais se aplicam às
51
coisas simplesmente presentes.
O ponto de partida da analítica (§ 9) consiste, assim, em determinar o
Dasein a partir de sua existência: “a ‘essência’ do Dasein está em sua existência”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 77). O ser do Dasein consiste no comportar-se com o seu
ser. Mas o referir-se do ser do Dasein não se realiza num conhecimento abstrato, na
intimidade do eu. Pois, o conhecimento subjetivo tem como pressuposto a ideia da
filosofia tradicional de que o ser do homem, diferentemente do ser das coisas, se
caracteriza de forma negativa: o homem é o não objeto. De fato, o Dasein ultrapassa
a realidade simples das coisas, mas não é só isso. Mais profundamente, essa
ultrapassagem é, antes, do tipo concreta. Conforme Vattimo (1996, p. 27),
existência, Dasein, ser-no-mundo, são termos sinônimos, os quais indicam o fato do
Dasein estar “situado” de forma dinâmica, isto é, estar à maneira de um poder-ser.
Certos de que o ser-no-mundo define “essencialmente” o Dasein, devemos
agora evidenciar a noção de mundo e, mais precisamente, o nexo fundamental
significância-mundo expresso em Ser e Tempo, através da “mundanidade” do
mundo. Assim, mundo aqui não possui o caráter de coisa, nem pode ser concebido
como uma totalidade de coisas. Em vez disso, deve indicar uma totalidade de
significados. Mundo possui o caráter do Dasein. Isso quer dizer que Heidegger
abandona o conceito tradicional de mundo como objeto de nosso conhecimento e
entende o mundo como um existencial, ou seja, um elemento que constitui o ser do
Dasein, justamente porque ele não pode ser pensado a partir das coisas que nos
cercam.
Pois, as coisas que se encontram no mundo são para nós instrumentos
antes de serem coisas simplesmente presentes. Elas se mostram em sua
significatividade: lápis para escrever, cadeira para sentar, teclado para escrever, livro
para ler e assim por diante. Essa ideia que, à primeira vista, parece tão simples é
muito importante, pois representa uma mudança em relação à filosofia tradicional
que só reconhece como real aquilo que se submete ao nosso conhecimento
objetivo, ou seja, ao exame despreocupado e independente de nós.
A exemplo dos óculos (citado na introdução), coisas que usamos no dia-adia, como lápis, teclado, caderno, justamente porque se encontram imediatamente à
mão, isto é, porque se mostram segundo seu caráter de “manualidade”
(Zuhandenheit) é que não causam nenhuma surpresa para nós e, portanto, não
52
chamam a nossa atenção. Mas a partir do momento em que param de funcionar
esses instrumentos emergem como objetos de nosso pensamento teórico, aparecem
agora não mais sob o ponto de vista da lida preocupada, mas pelo modo da simples
presença (Vorhandenheit). Essa distinção assaz característica, que exibe a primazia
da lida preocupada cotidiana sobre a simples presença, serve apenas para salientar
o modo pelo qual o Dasein se compreende em seu estar no mundo mais frequente
e, não, para acentuar a diferença entre esses modos de ser com a mera finalidade
de priorizar um em detrimento do outro. Heidegger não nega o conhecimento
científico e nem poderia, pois o mesmo é um modo derivado do modo originário de
ser das coisas – o modo de ser do instrumento que, por sua vez, nos remete à
estrutura ontológica, ou seja, ao fundamento de possibilidade concreta do ser dos
entes.
Essa estrutura ontológica, isto é, a significatividade das coisas, revela-se
para o Dasein em sua existência entendida como uma referencialidade que já desde
sempre pertence ao seu próprio ser. É por isso que as coisas se nos apresentam
originariamente em sua manualidade. Daí se poder dizer que a existência do Dasein
ou o ser do Dasein é ser-no-mundo. Essa é outra diferença que se apresenta em
relação à filosofia de Husserl. Para este, o âmbito fundamental (fenomenológico) se
articula na suspensão daquilo que chamou de atitude natural (âmbito da ciência).
Em nossa lida preocupada com os instrumentos, portanto, “não se dá ao
encontro apenas um ente manual, mas também entes que possuem o modo de ser
do homem”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 113). A estrutura do ser-para (Um-zu) constitui
a característica mais fundamental de nossas relações com o mundo. Assim,
O instrumento sempre corresponde à sua instrumentalidade a partir
da pertinência a outros instrumentos: instrumento para escrever,
pena, tinta, papel, suporte, mesa, lâmpada, móvel, janela, portas,
quarto. Essas “coisas” nunca se mostram primeiro por si para então
encherem um quarto como um conjunto de coisas reais.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 110).
Por isso dizemos que o mundo é uma característica do Dasein e que o seu
ser não se identifica com a simples presença, mas antes com a totalidade dos
instrumentos que é o próprio mundo. Tudo isso se explica mediante a interpretação
do instrumento. O instrumento traz em sua estrutura o caráter de referencialidade.
53
Ele se refere à finalidade para a qual o instrumento foi, àquele que faz uso dele, bem
como faz referência ao seu material, etc. Conforme o desenvolvimento da analítica
existencial, fica cada vez mais visível o nexo fundamental entre o mundo dos entes e
a significatividade das coisas. Essa parte da analítica que define o ser-no-mundo
mediante a mundanidade ou a familiaridade constitutiva das coisas já vislumbra a
importância da linguagem. Pois, o fato de Heidegger ter adiado uma discussão sobre
a linguagem não quer dizer que ela não se fez presente antes de ela vir a aparecer
de fato no § 34 (Ser e Tempo). Além disso, o nexo totalidade significativa/mundo
habilita o aparecimento da noção de “compreensão” (Verstehen) como o existencial
que é o fio condutor da investigação do ser-em (In-Sein). Portanto, é segundo o
modo da compreensão que o Dasein está no mundo com os entes, considerando de
antemão, como ficou dito, o mundo como uma totalidade de referências. O Dasein,
como sabemos, não está dentro do mundo como um sapato ou uma pedra. Ele está
no mundo no sentido de morar, habitar, porque originariamente apresenta um nexo
com essa totalidade de significados. Equivale a dizer que os entes dentro do mundo
se lhes apresentam somente em seu ser-para, isto é, por meio de um significado. O
sapato, por exemplo, se nos revela originariamente como algo para calçar e não
como um objeto que está diante de mim, inteiramente distante. Ao mesmo tempo em
que os entes só podem se apresentar como coisas de uso exatamente porque
pertencem a uma totalidade de significados que o Dasein já dispõe. Isso mostra
claramente o aspecto circular da compreensão, e não somente isso, mas também a
singularidade desta compreensão circular que difere do caráter vazio e negativo do
mero andar em círculo em que se move um conhecimento qualquer. Esse caráter
circular da compreensão, ao contrário, é a condição de possibilidade de uma
compreensão “mais originária” – a compreensão ontológica.
Pois, “o ‘círculo’ da compreensão pertence à estrutura do sentido [...],
enquanto compreensão que interpreta.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 210). Assim, o
Dasein enquanto ente que está em jogo seu próprio ser como ser-no-mundo possui
uma estrutura de círculo ontológico. Neste sentido, os existenciais do Dasein
possuem este caráter de abertura e assim também a compreensão que já desde
sempre dispomos. Ou seja, o círculo da compreensão exprime exatamente a
referencialidade do ser que mencionamos acima. A compreensão é abertura porque
já dispõe de uma totalidade de significados em toda atividade compreensiva do
54
Dasein, mas isto só acontece porque o Dasein está no mundo como poder-ser,
como abertura, fazendo com que os entes se lhes apresentem na forma de uma
possibilidade: “A compreensão enquanto abertura do Da sempre diz respeito a todo
o ser-no-mundo. Em toda compreensão de mundo, a existência também está
compreendida e vice-versa.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 209).
Entendemos agora porque, de acordo Heidegger, conhecer não é se colocar
como sujeito inteiramente abstrato em direção a um objeto, a uma simples presença,
é antes articular uma compreensão originária em que as coisas já são possibilidades
abertas, uma vez que a relação entre “sujeito” e “objeto” é uma relação de
circularidade. A articulação dessa compreensão designa o sentido da interpretação
(Auslegung). Trata-se, pois, de uma compreensão que interpreta e não o contrário.
Acompanhando o tema do ser-em, segundo o nexo originário entre mundo e
totalidade de significados, aparecem mais dois existenciais tão originários quanto a
compreensão, o discurso (Rede) e a disposição (Befindlichkeit).
O Dasein não apenas já dispõe de uma pré-compreensão ao encontrar com
os entes dentro do mundo, mas também se acha sempre numa disposição. A
compreensão é, portanto, “disposicional”, não havendo o predomínio de uma
instância teórica no processo do conhecimento, uma vez que a disposição garante
uma abertura ao mundo que “antecede” a nossa relação com os entes. De acordo
com Vattimo (1996, p.39-40), este existencial é de fundamental importância no
desenvolvimento de Ser e Tempo, no sentido de tornar a analítica do Dasein mais
efetiva e concreta:
Se até aqui as estruturas do ser no mundo poderiam fazer pensar
ainda numa forma de transcendentalismo no próprio Heidegger,
agora este possível equívoco fica desfeito. O ser-no-mundo nunca é
um sujeito puro porque nunca é um espectador desinteressado das
coisas e dos significados; o “projeto” dentro do qual o mundo aparece
ao Dasein não é uma abertura da razão (como o a priori kantiano),
mas sempre um projeto “qualificado”, definido […].
Ora, se a disposição “abre o Dasein em seu estar-lançado” (HEIDEGGER,
2002a, p. 194), é ela, pois, que evidencia o caráter finito do Dasein. Indo mais além
na proposta de Heidegger da analítica existencial, é importante salientar o fato da
disposição constituir o próprio modo de ser existencial em que o Dasein se encontra
absorvido pelo “mundo” de maneira a se esquivar de si mesmo, além de possuir
55
essa capacidade básica de abertura. Tal constituição existencial evidenciará o que
Heidegger chama de “de-cadência” (Verfallen). A “disposição abre o Dasein em seu
estar-lançado e, na maior parte das vezes e antes de tudo, segundo o modo de um
desvio que se esquiva.” (HEIDEGGER, 2002a, p. 190). Pois, o fato de os humores
se mostrarem segundo o modo da “indiferença” na ocupação cotidiana nos autoriza
a dizer simplesmente que “o Dasein já está sempre de humor”. (HEIDEGGER,
2002a, p.188). Em suma, a compreensão e a disposição são os existenciais em que
o Dasein é o seu próprio Da. São, assim, modos que caracterizam a abertura
originária do ser-no-mundo. Essa abertura, igualmente originária, pertencente à
disposição corresponde a outro sentido ontológico de abertura. De acordo com a
analítica existencial, ou seja, com uma interpretação ontológica, estamos sempre
abertos ao mundo (significância) de maneira a “escutar” as coisas que já sempre se
abriram. É um estar-lançado a esta abertura, que chamamos de “abertura lançada”.
Portanto, o estar aberto ao mundo, enquanto característica constitutiva do
ser do Dasein é um fato definido e, portanto, “finito”. O fenômeno do estar-lançado
evidencia imediatamente a “facticidade” (Fakticität) do Dasein, o fato de ser (Dass es
ist). Este fato, porém, difere daquele que exprime a fatualidade da simples presença.
É antes uma determinação existencial de um ente, o Dasein, que é no modo de serno-mundo. É por isso que esse “fato” jamais pode ser descoberto por uma intuição:
Do ponto de vista ontológico-fundamental, devemos em princípio
deixar a descoberta primária do mundo ao “simples humor”. Uma
intuição pura, mesmo introduzida nas artérias mais interiores de
alguma coisa simplesmente dada, jamais chegaria a descobrir algo
como ameaça. (HEIDEGGER, 2002a, p. 192).
A facticidade do Dasein pertence à estrutura do estar-lançado. O Dasein é
finito e, no entanto, é abertura ao mundo. Por isso, não podemos associar esta
abertura a um tipo de transcendental puro e subjetivo. O Dasein é ele mesmo “a
possibilidade que lhe foi inteiramente lançada”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 199).
Podemos dizer que a cura, que traz no seu todo a existencialidade, a facticidade e a
de-cadência, é a estrutura existencial que evidencia a constituição temporal do
Dasein, que Heidegger expõe de maneira mais radical no segundo tomo de Ser e
Tempo, no qual ele intensifica a tarefa de mostrar o que ele chama o testemunho da
constituição de ser do Dasein como “possibilidade” de ser o que ele já desde sempre
56
“é”.
“A
existencialidade
determina-se
essencialmente
pela
facticidade”
(HEIDEGGER, 2002a, p. 257). Aqui importa “concretizar” a questão do ser e
problematizar o si mesmo, o qual não pode ser compreendido a partir de um eu
abstrato. O fio condutor da investigação de Heidegger é a concretização do eu que o
transcendentalismo concebia sempre como eu puro. (VATTIMO, 1996, p. 49).
A “voz da consciência” (Stimme des Gewissens) constitui justamente esse
testemunho de que falamos, é o fenômeno existenciário de que pode partir o tornarse próprio do Dasein. Ela remete o Dasein ao “si mesmo”. A “consciência” fala, mas
fala através do silêncio. O nada constitutivo da consciência evidencia uma culpa
originária do Dasein. Esse nada a que sempre alude o sentido de culpa é o nada que
se revela no modo da “de-cadência”, isto é, na convivência cotidiana. Mas a
impropriedade cotidiana funda-se no ser lançado: o ser lançado é o modo em que
nos encontramos sem o termos querido, portanto, uma condição de que importa
solidez e “decisão” (Entscheidung).
Em suma, o caráter de “nulidade” do Dasein, que a consciência apresenta
com a noção de culpa, é o fato de o Dasein ser o fundamento de uma negatividade.
A voz da consciência só pode escutar-se respondendo-lhe o que significa negar o
anonimato do impessoal para “decidir-se” pelo que é “mais próprio”. A “decisão”
implica que as possibilidades entre as quais está o Dasein impróprio sejam adotadas
como “próprias”. Adotá-las como próprias significa assumi-las como possibilidades
originárias e, em relação com a possibilidade mais própria, ou seja, com a morte.
A “decisão” que responde à voz da consciência e que torna próprio o Dasein
não significa apenas assumir as dificuldades desta ou daquela possibilidade
existenciária, significa antes a decisão antecipadora da morte, significa não se
compreender entre as meras possibilidades, mas se lançar diante da possibilidade
ou se compreender como um não-ser. Com esta noção de decisão antecipadora da
morte se vincula a noção de temporalidade, entendida como o sentido do ser do
Dasein. Assim, enquanto antecipação da morte, a decisão é o que torna possível a
própria possibilidade. A decisão tem um porvir, um futuro constitutivo.
Dizer que o Dasein já dispõe de uma certa compreensão e, que esta só é
numa disposição, que, ademais, é entendida em sua base como lançada, significa
perceber uma vez mais a ligação com o fato de o Dasein ser sempre com os outros
entes, de ser-com. Porque em sua essência, o Dasein é entendido como “cura”
57
(Sorge) e, assim, é que se pode compreender o Dasein-com dos outros nos
encontros dentro do mundo como “preocupação” (Fürsorge). Nota-se que aqui
Heidegger usa dois termos cognatos, termos que possuem a mesma raiz
precisamente porque o seu propósito é evidenciar uma outra experiência de
preocupação: no sentido de abandonar, como veremos na próxima seção, a posição
para com os entes ou com o mundo como sendo originariamente desinteressada e
desprovida de significado.
58
3. O SER SI-MESMO, O SER-OUTRO E O IMPESSOAL
3.1 O ser-com de Heidegger
As várias interpretações que apresentam um Heidegger inclinado para a
forma do solipsismo13 com base numa visão errada, mas predominante do ser-nomundo do Dasein como uma subjetividade e, por consequência, para uma apatia
com relação à “existência do outro”, estão entre as mais conhecidas ou lidas no
meio acadêmico. Ante as incompreensões que sempre se deram em meio ao tema
do outro em Heidegger, vimos a necessidade de analisar, primeiramente, os
pressupostos dessas críticas, deixando, assim, para um segundo momento a
tentativa de colocar este tema no seu devido lugar dentro da filosofia de Heidegger,
ou seja – no contexto da ontologia fundamental ou da analítica existencial. Ora, o ser
“si-mesmo” do Dasein não exclui nem o ser-outro nem o “impessoal”; isto é, o simesmo do Dasein inclui também os outros. Mas descrever o ser humano como serno-mundo não é simplesmente constatar que o ser do homem consiste na existência
cotidiana ou sair em defesa da dissolução do conhecimento. Do mesmo modo, dizer
que o Dasein é sempre ser-com não significa meramente que ele nunca está
sozinho. Ao contrário, o estar sozinho somente é possível porque o Dasein é sercom. Na verdade, a constituição originária do ser-com, tão originária quanto o serno-mundo, é já a estrutura da intersubjetividade. No que se segue, a filosofia ou a
ontologia não responde à questão do outro, porque nem mesmo chega a suscitá-la
como questão. Resulta daí, então, a direção que tomará esta pesquisa: não existe
um pensamento ético explicitado na obra de Heidegger, entendido aqui como um
conjunto de normas de convivência. A ética, tal qual entendemos hoje, perde de vista
esse sentido originário do “ser-com” ou o que os gregos chamavam de ethos, “aquilo
que diz respeito à livre conduta e atitude, que concerne à configuração do ser
13 Referimo-nos aqui às objeções de Emmanuel Levinas e Sartre com relação ao fato de que
Heidegger pauta todo o conhecimento numa compreensão do ser. Levinas fala da ontologia de
Heidegger como de um ontologismo fundamental. Na concepção de Levinas, Heidegger teria
subordinado a relação com o outro à relação com o ser. Sartre colocou o ontológico de
Heidegger no mesmo nível da forma abstrata do sujeito kantiano. Basicamente, compartilham da
opinião de que a sentença de Ser e Tempo que diz: o Dasein é a sua própria possibilidade, isto é,
o Dasein é o ente que existe acerca de sua própria existência, do próprio ser, traduz um
encobrimento da alteridade.
59
Histórico do homem [...]”. (HEIDEGGER, 1966, p. 55). O “ser-com” de Heidegger, ao
invés de formular e apresentar regras e leis desse convívio procura se referir ao
sentido originário e fundamental que ficou esquecido. É justamente para esse
constitutivo fundamental do Dasein, o ser-com, que esta dissertação deve avançar.
A queixa mais frequente da filosofia da mente14 com relação ao método
fenomenológico, sobretudo, à fenomenologia hermenêutica de Heidegger, consiste
no fato de que este método e, mais tarde, a compreensão muito singular de
Heidegger sobre ele, estaria comprometido com a forma do solipsismo à medida que
se ocupa apenas com processos autofenomenológicos e que, portanto, teria
negligenciado uma discussão sobre o outro, melhor, sobre a mente do outro. E
mesmo os estudos mais recentes15 que batem de frente com essa visão mais aceita
da teoria da mente e que já partem das descrições fenomenológicas do Heidegger
de Ser e Tempo, mais precisamente as que se situam no primeiro tomo da obra,
deixam de lado a sua ontologia hermenêutica, isto é, sua “questão do ser”.
Em contrapartida existem pesquisadores16 que defendem uma ética
originária na filosofia de Heidegger, observada a partir da publicação da carta Sôbre
o humanismo (1947). Essa obra inaugura uma segunda fase de seu filosofar, na qual
ele se pronuncia sobre os temas mais debatidos de Ser e Tempo. Demonstram seus
argumentos a partir de uma frase retirada do texto já referido: “o pensamento que
pensa a Verdade do Ser já é a ética originária”. (HEIDEGGER, 1967, p. 88). Mas
vejamos o lugar desta afirmação no texto Sôbre o humanismo. Pois é muito
importante para o presente trabalho ver que Heidegger se reporta à relação entre
“ontologia” e “ética”, atendendo assim um convite de Jean Beaufret17, somente em
14 A teoria da mente, que em anos recentes se tornou uma discussão da natureza da cognição
social, toma como ponto de partida de sua investigação as discussões de Sartre da corporeidade
e as críticas do Wittgenstein tardio aos estados mentais e procura assim se contrapor ao idealismo
e ao solipsismo.
15 Sobre esse ponto ver GALLAGHER, Shaum; ZAHAVI, Dan.The phenomenological mind: an
introduction to philosophy of mind and cognitive science. London; New York: Routledge, 2007. Ver
também RATCLIFFE, Mathew. The world we live in. IN:_____. Rethinking commonsense
psychology: a critique of folk psychology, theory of mind and simulation. University of Hertfordshire:
Palgrave Mamillan, 2007. Ambos detalham bem a questão.
16 Cf. LYRA NETTO, E. O pensamento de Heidegger: a questão do pensamento como ética
originária. 1999. 207f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Departamento de Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.
17 Jean Beaufret é um pensador francês que trocou algumas cartas com Heidegger e que, em 1946,
lhe enviou várias perguntas sobre um possível humanismo, bem como pela forma de humanismo
desenvolvido por Sartre – o existencialismo. As respostas de Heidegger ao então filósofo e amigo
se articulam em consonância com as teses de Ser e Tempo, dando origem ao pequeno texto
“Sobre o humanismo”, publicado em 1947.
60
seu sentido originário de acordo com o que foi pensado pelos gregos em termos de
ethos. A relação originária tornou-se numa questão posterior sobre as relações entre
duas disciplinas da filosofia, de modo que “os nomes, 'Lógica', 'Ética', 'Física', só
surgiram quando o pensamento originário chegou ao fim”. (HEIDEGGER, 1967, p.
28). Isto é, tal discussão já se encontra num âmbito conceitual, ou seja, já mergulhou
no esquecimento do ser. Por isso, Heidegger nos convida a pensar se o que os
termos evocam ainda permanece na proximidade da “Verdade do Ser”. “Com a
'lógica' e 'física', a 'ética' aparece, pela primeira vez, na Escola de Platão”.
(HEIDEGGER, 1967, p. 84). Porquanto, “antes desse tempo, os pensadores não
conheciam nem 'lógica' nem 'ética' nem 'física'”. Todavia, “seu pensamento não era
nem ilógico nem imoral”. (HEIDEGGER, 1967, p. 85). Na sua origem grega, antes de
Platão e Aristóteles, ethos significa estada, lugar de morada e “a ontologia só pensa
o ente (on) em seu ser”. (HEIDEGGER, 1967, p. 88) Desse modo, a ética é diferente
da ontologia e, ademais, o pensamento que, em Ser e Tempo, diz Heidegger, tentou
preparar-se para a Verdade do Ser foi intitulado Ontologia Fundamental. Ou seja,
esse pensamento que pensa a Verdade do Ser é o fundamento das próprias
ontologias, entre elas a ética. Foi o que o pensador tentou dizer já em Ser e Tempo:
O uso do termo ontologia não visa a designar uma determinada
disciplina filosófica dentre outras. Não se pretende, de forma alguma,
cumprir a tarefa de uma dada disciplina, previamente dada. Ao
contrário, é a partir da necessidade real de determinadas questões e
do modo de tratar imposto pelas “coisas em si mesmas” que em todo
caso, uma disciplina pode ser elaborada. (HEIDEGGER, 2002a, p.
56).
Assim, de acordo com o significado essencial dos termos “ética” e
“ontologia”, pode-se agora determinar suas relações:
O pensamento, que questiona a Verdade do Ser e com isso
determina a morada da Essência do homem a partir e na direção do
ser, não é nem ética nem ontologia. Daí não haver lugar nele para a
questão sobre as relações de ambas as disciplinas. […] um tal
pensamento não é nem teórico nem prático. É antes dessa distinção
do teórico e prático que ele se a-propria. (HEIDEGGER, 1967, p. 8990).
Para Carneiro Leão, a ambiguidade da linguagem pertence ao movimento
que é próprio do pensamento. “Por isso toda tentativa de se determinar o sentido
61
dos termos e das funções gramaticais fora do contexto de pensamento, em que se
articulam, tranca-se a qualquer possibilidade de entendimento”. (LEÃO, 1967, p. 11).
Nesse sentido, fica claro, ao mesmo tempo, que o ser-no-mundo do Dasein
cotidiano tem relevância para as questões ontológicas, rebatendo aqui as
declarações de Gadamer (2007b, 61) de que as análises do “ser-com” em Ser e
Tempo consistem num “excurso parco ou um parágrafo incidental” daquela obra. De
fato, os argumentos que fazem do Dasein um ser-no-mundo e um ser-com estão em
consonância com a sua proposta de uma ontologia fundamental. “A ambiguidade
aqui reinante se prende à necessidade de mover-se sempre no horizonte da
metafísica”. (LEÃO, 1999a, p. 22). Por isso, o aspecto prático da filosofia de
Heidegger nada tem a ver com o tema da liberdade e responsabilidade como em
Sartre, por exemplo. Bem como observa Ernildo Stein:
[...] o novo trazido para a filosofia pela teoria hermenêutica de
Heidegger, que ele chama de Fenomenologia Hermenêutica, é que
ele acrescenta um aspecto prático na medida em que descreve o ser
humano como ser-no-mundo que desde sempre já se compreende a
si mesmo no mundo, mas só se compreende a si mesmo no mundo
porque já antecipou sempre uma compreensão do ser. (STEIN, 1996,
p. 61, grifo nosso).
Desse ponto surge o nosso interesse em problematizar a chamada “relação
com o outro” na obra de Heidegger, no sentido de querer mostrar o aspecto
originário o qual confere ao ser-com, enquanto se articula na “preocupação”
(Fürsorge),18 ou seja, na diferença com o problema moderno da intersubjetividade.
Isso não significa, porém, que o ser-com de Heidegger exclui temas práticos como a
liberdade, por exemplo. Porque é justamente a uniformidade e originariedade deste
fenômeno que permite variados modos “de ser”, isto é, as características ontológicas
constitutivas. Estas características, quando se mostram, “são igualmente originárias
18 Em seu sentido comum, Fürsorge significa solicitude, cuidado com..., assistência e previdência;
ele vem, portanto, sempre acompanhado de um significado social muito forte. Nesse contexto,
Fürsorge significa geralmente renunciar seus próprios problemas em função dos problemas dos
outros; é estar sempre predisposto a ajudar o outro. No quadro da analítica existencial de
Heidegger, porém, Fürsorge é concebido na estrutura de Sorge (cura, “cuidado”). Graças ao
existencial Sorge, o Dasein não está solto, pairando acima das coisas, mas junto aos entes
simplesmente presentes e com os outros “Dasein”. O termo Fürsorge, o qual pode ser traduzido
por preocupação (adotaremos esta tradução para falar especificamente deste significado) exprime
aqui o cuidado com o outro em dois sentidos: (i) o impróprio, desobrigando o outro de seu próprio
“cuidado”; (ii) e o próprio, tomando a frente do outro para devolvê-lo o “cuidado”.
62
do ponto de vista existencial”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 185). Com efeito, no tocante
ao sentido de ser-outro, assumiremos, assim, a posição de que o pensamento de
Heidegger, enquanto exprime o “sentido do ser em geral” não pode pretender uma
Ética. Muito já se especulou sobre o outro e o real teor dessa questão em sua obra,
sobretudo, em Ser e Tempo. Dessa forma, no quadro da analítica existencial, a “decadência” do Dasein não pode suscitar a emergência de uma Ética, exatamente
porque a impropriedade do Dasein de que fala Heidegger, nos §§ 9, 27 e 38, não
possui uma significação depreciativa, mas um caráter existencial e, portanto, um
caráter positivo do ser. O momento de insegurança e desolação pelo qual passa o
homem moderno não deve dar lugar a uma Ética, em vez disso, como diz Marques,
deve trazer à tona a recolocação da questão do ser. Para o autor, a chave da
solução do problema, na concepção de Heidegger, é a perspectiva ontológica.
(MARQUES, 1989, p. 60). É graças a ela que a filosofia pode se dar o direito de não
precisar refletir sobre uma Ética. Em um artigo de 1998, O Mitsein Heideggeriano,
Marques nos diz algo que pode, talvez, explicar porque esse tema exerce uma
espécie de fascinação sobre alguns comentadores:
Heidegger trabalha a noção do ser-com (mitsein) e da coexistência
(mitdasein) de um modo tão intenso e decisivo, que, parece, à
primeira vista, um paladino da moralidade que se investe contra
contextos de compreensão do mundo e de sociedade, ao mesmo
tempo que ataca instituições mais ou menos consagradas, que
passam por um processo de desintegração. Mas tal leitura é um erro
de perspectiva. (MARQUES, 1998, p. 17).
Nesse sentido, o pensamento de Heidegger não é, por isso, indiferente ao
ser do outro. Pois, a relação que o Dasein sempre mantém com o seu próprio ser é
fundamental e originária. Mas, para melhor entendermos a posição de Heidegger,
devemos pensar que a sua linha de argumentação em Ser e Tempo muito se
aproxima da tese idealista da consciência, ao articular, segundo Stein (2011, p. 39),
“um modo não clássico de transcendental, de condição de possibilidade”, o que quer
dizer que está, pois, bem perto do a priori kantiano desde que ele não signifique uma
redução de tudo a um sujeito ou a uma consciência. Eis o que o próprio filósofo nos
diz: “o fato de não se poder esclarecer o ser pelo ente e de a realidade só ser
possível numa compreensão ontológica não dispensa um questionamento do ser da
consciência, da própria res cogitans”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 274). Como se pode
63
perceber, a consciência é, para Heidegger, uma região problemática que precisa de
uma análise adequada. Mas de que a priori Heidegger está se referindo, afinal? O a
priori de Heidegger nada tem a ver com o a priori puro ou abstrato; pelo contrário,
está ligado aos existenciais do ente que possui o modo de ser do Dasein. Trata-se,
portanto, de um a priori existencial ou concreto.
O existencial “ser-com” que está na base de nossa vida social, da
“convivência
cotidiana”,
se
mantendo
aqui
mais
próximo
da
linguagem
heideggeriana, funciona como um a priori “concreto de possibilidade”. “Pensar o
homem em seu ser-com é pensar um sem-número de problemas que, sem querer
absolutamente moralizar ou ditar preceitos, revela o que existe de mais profundo e
digno de ser perguntado: que é o homem em seu ser?” (MARQUES, 1998, p. 29).
Seguindo aqui o sentido de Heidegger, queremos apenas enfatizar o fato de que não
podemos de maneira nenhuma esperar qualquer investida, no entendimento do
homem, de uma teoria do ser ou das modernas teorias objetivistas (teorias
psicológicas). Ora, como pode Heidegger ter ficado alheio ao “outro” quando, na
verdade, se propõe como objetivo o próprio ser do ente Dasein, o qual nunca é dado
sem mundo ou sem os outros? É aqui, pois, que reside a linha de investigação de
nossa pesquisa: o ontológico, em Heidegger, possui um caráter concreto de
possibilidade. Assim, o ser-no-mundo do Dasein ou a compreensão do ser constitui
sua característica fundamental na contraposição com o lógos (razão) da metafísica
tradicional. Porquanto, uma discussão moral pressupõe uma analítica existencial do
ser-com e esta, por sua vez, uma analítica ontológica do Dasein.
Enquanto tem a “cura” (Sorge) cravada em seu ser, o Dasein é sempre
“com” o outro, o outro ente simplesmente presente e o outro Dasein. Em outros
termos, o Dasein se preocupa com o outro-Dasein. A “preocupação” (Fürsorge) e a
cura respectiva dizem respeito à existência do outro e não a uma coisa de que se
ocupa (Besorgen). Ela (a cura), como já dissemos, é a condição para que os outros
não sejam coisas soltas, separadas de seu contexto. Esse preocupar-se se funda na
constituição ontológica do Dasein como ser-com, justamente porque o tipo de
relação que nos referimos não pode ser entendido no sentido moderno. O conceito
de relacionamento foi determinado de acordo com o modelo matemático de relação
(em que o seu conteúdo advém a partir de si mesmo e para si mesmo), no qual está
baseado o modo de ser para o outro como empatia (Einfühlung).
64
Antes de dar início ao parágrafo vinte e cinco do quarto capítulo de Ser e
Tempo, somos lembrados de que a característica ontológica do Dasein está em sua
existência. É justamente nessa base que se coloca a proposta deste capítulo, onde
se pretende trabalhar a questão sobre o “quem” (ser-próprio) do Dasein. Pois, o
Dasein não é apenas um ente que se acha situado em meio ao ente, na ocupação:
“ele se relaciona também com o ente e, desta maneira, consigo mesmo”.
(HEIDEGGER, 1973h, p. 319). Se “relacionar” com algo ou alguém é se relacionar
consigo mesmo o que pode, contudo, não ser a cada vez o “eu mesmo”. Esse é o
fenômeno mais importante que aparece no quarto capítulo – o “próprio-impessoal”
que o filósofo distingue do si mesmo “em sua propriedade”. (HEIDEGGER, 2002a, p.
182).
O pensamento moderno encarna uma reação ao modo antigo de se fazer
filosofia. E, como tal, anula a physis grega, as suas teorias ou a compreensão
ingênua da realidade ao definir o conhecer como uma atividade do sujeito em
direção ao objeto, salientando, assim, uma capacidade a priori do compreender
(formas, categorias), um sujeito transcendental, que torna o objeto conhecido por
aquele. Ora, o que mais caracteriza o pensar grego é a relação de pertença com as
coisas. Isso é compreensível porque, em princípio, os antigos não postulavam uma
ideia do sujeito, pois se dava muita importância à mostração das coisas, ao aparecer
do ente (on). É por isso que a concepção moderna bate de frente com este pensar.
Heidegger, por sua vez, incorpora uma oposição à tese moderna de sujeito, à ideia
de que o “eu” consiste num princípio fechado e mantém com os gregos um diálogo
permanente, chegando até mesmo a considerar Aristóteles como o precursor do
método fenomenológico.
A concepção idealista é fundamental para combater o que podemos chamar
– a metafísica ingênua das coisas. Porém, a ideia revolucionária de um sujeito
absoluto em torno do qual gira todo objeto é problemática. Como consequência,
conferimos uma confiança exacerbada à subjetividade em detrimento do aparecer da
coisa (Sache) mesma. Isso leva Heidegger a se aproximar de Husserl,
especialmente do método fenomenológico.
Husserl, sem deixar de ser idealista, restitui à realidade objetiva a sua parte
na constituição do conhecimento. O eu “transcendental” de Husserl, diferentemente
daquele do idealismo alemão, não constitui uma supremacia do espírito ou uma
65
abstração, e, sim, uma relação exterior que mantemos com nós mesmos, uma
maneira de nos perceber como objeto. (LEVINAS, 1997, p. 51).
Apesar do esforço dessa filosofia que, de certo modo, se mostrou
revolucionária frente ao idealismo transcendental, ela só se sustenta à luz de uma
consciência transcendental (pensamento puro) dirigida aos objetos enquanto
sínteses de noemas.19 A fenomenologia husserliana ainda se define como o
fundamento das funções do conhecimento. Assim, o idealismo de Husserl ainda
coincide com o idealismo de seus predecessores. O “eu” é o sujeito transcendental
e, com efeito, o ser do outro se mede, na verdade, pelo conhecimento que o outro
tem de si mesmo.
Nesse contexto, o que é considerado sobre o conhecimento do objeto pode
se repetir a respeito do conhecimento dos outros. O que explica facilmente o
sucesso das teorias modernas da empatia, as quais preenchem perfeitamente o
interesse por parte de alguns autores, como Levinas e Sartre, pelo problema da
“existência do outro”. Faz sentido agora a afirmação de Sartre (1997, p. 321) de que
“a relação do ‘Mitsein’ não poderia nos servir absolutamente para resolver o
problema psicológico e concreto do reconhecimento do outro”. É por isso que a
análise do ser-com e do Dasein-com de Heidegger é insuficiente nesse contexto de
pensamento. Porém, você pode estar com o outro sem que para isso você tenha que
passar pelo que o outro está passando, no sentido de que há uma distância, seja
real ou ideal, entre você e o outro e que essa relação possa se caracterizar como
uma espécie de sintonia, empatia. É isso que Heidegger (2002a, p. 169) afirma em
Ser e Tempo. O outro não é um objeto, não é simplesmente outro – “todo o resto dos
demais além de mim, do qual o eu se isolaria”. A forma como a teoria moderna do
sujeito considera o outro está, desse modo, sob a influência da interpretação
tradicional do ser do ente como substância. E o conceito de ser como substância, de
acordo com Heidegger (2004, p. 16):
“[...] começa com a recepção das palavras gregas no pensamento
romano-latino. υποκειμένον tornou-se subjectum, υπóστασις vira
substantia, συμβεβηkóς torna-se accidens. Esta tradução dos nomes
19 Os termos noese e noema são fundamentais para compreender a redução fenomenológica de
Husserl. Noese vem do grego noesis que significa “conhecimento”. Na filosofia de Husserl noese é
o aspecto subjetivo da experiência vivida e noema é o seu aspecto objetivo. Noema não é a
“coisa”, mas o objeto entendido como unidade de sentido para a consciência.
66
gregos na língua latina não constitui de modo algum o acontecimento
sem consequência por que ainda hoje é tido. Antes se esconde, por
detrás da tradução aparentemente literal, e que por isso preserva,
uma tra-dução da experiência grega, para outro modo de pensar. O
pensamento romano recebe os nomes gregos sem a correspondente
experiência original do que eles dizem, sem a palavra grega. O
desenraizamento do pensamento ocidental começa com esta
tradução.
No texto A origem da obra de arte, Heidegger nos convida a pensar o
caráter de obra da obra a partir do conhecimento do plano a que pertencem os
entes, isto é, por meio de tudo aquilo que não é uma obra de arte no âmago da
Estética. Aqui o filósofo enfatiza, porém, que:
[...] o abalo desta questionação habitual não é o essencial. O que
importa é uma primeira abertura do olhar para o fato de o caráter de
obra, […] o elemento coisal da coisa, só se tornar mais próximo de
nós, se pensarmos o ser do ente. (HEIDEGGER, 2004, p. 30)
Esse recuo também está presente nas descrições do Dasein como ser-nomundo e do Zuhandenheit como o modo de ser dos entes à mão. Na verdade, o
importante aqui não é a “descoberta” que se faz sobre os entes que estão dentro do
mundo, mas salientar o caráter de familiaridade que é próprio do modo como o
Dasein vive no mundo, o qual só se tornou visível, e assim também o ser do ente
que se usa, mediante o pensamento do “sentido do ser em geral” que pertence ao
ser do Dasein.
Assim, a ideia da fenomenologia de que estamos desde sempre imersos no
mundo é, talvez, a primeira tentativa para se evitar o solipsismo. Mas, neste ponto,
como veremos, é a fenomenologia hermenêutica de Heidegger que traz alguns
avanços. Conforme Sartre (1997, p. 303), quando Husserl se preocupa em refutar o
solipsismo nas “Meditações cartesianas” e em “Lógica formal e transcendental”,
supõe tê-lo conseguido: pois, o recurso ao outro é condição indispensável à
constituição de um mundo.
Heidegger, em Ser e Tempo, estabelece entre mim e os outros uma ponte, a
qual chamou de ontológica. Esta relação prescinde de uma capacidade do
conhecimento da experiência alheia ou da capacidade de reconhecimento. Em vez
disso, a relação ontológica de ser-com outros se dá muito antes do aparecimento da
Einfühlung (empatia), de uma relação solipsista entre dois “sujeitos” simplesmente
67
dados. A empatia não abriga uma relação ontológica entre Daseins no-mundo. Pelo
contrário, favorece sobremaneira uma desmundanização do existir do Dasein. Mas o
Dasein não é um sujeito destituído de mundo, e os entes que lhe vêm ao encontro
não são, por isso, objetos. Pois, as coisas nos chegam a partir do mundo, do mundo
em geral, e não o contrário. “Ao se querer identificar o mundo em geral com o ente
intramundano, dever-se-ia então dizer: ‘mundo’ é também Dasein”. (HEIDEGGER,
2002a, p. 169). Porque o que se coloca aqui, de acordo com Heidegger, não é
propriamente “o outro” enquanto pessoa, entendida no seu aspecto biológico, mas
enquanto algo que “vêm ao encontro” em seu ser-no-mundo. Pois, em Heidegger
(2002a, p. 170) o mundo é sempre “mundo compartilhado” (Mitwelt). Pensamos que
com essa afirmação o filósofo se mostra, no mínimo, muito longe de conceber o
“sujeito” como uma realidade solipsista, isolada. O ser-com é parte integrante de
nosso ser, diz respeito ao ser do Dasein e não à simples presença. É justamente
porque o Dasein é ser-com que podemos, por ventura, nos colocar no lugar do
outro, isto é, sentir empatia.
Então, é possível até mesmo dizer que o “ser-com” pode, com efeito,
enquanto constituinte, recusar algo como o “problema do outro”. Ora, para a tradição
idealista essa questão se forma no âmbito do conhecimento ou da relação sujeitoobjeto. No sentido de que a existência do outro é construída a partir da minha
subjetividade e, assim, o conceito de outro como tal, isto é, o outro tal como ele é,
ficaria sem explicação. Há aqui uma redução da estrutura do outro. Quem oferece o
caminho de uma interpretação do outro como outro, ou seja, do outro em sua
alteridade é o pensamento de Heidegger, como veremos no decurso deste estudo.
Na perspectiva da analítica existencial a relação sujeito-objeto é desfeita exatamente
porque não se fala mais aqui num “eu” como sinônimo de isolamento. A ontologia
fundamental de Heidegger não fala mais a partir da “relação”, mas da referência, da
proveniência originária.
Jordino Marques (1998, p. 24) nos diz que a expressão “Mitsein” indica que
a constituição do Dasein está sempre aberta a priori para a outra existência.
Pensamos que Marques poderia estar se referindo, porque não, à própria
terminologia da palavra “Dasein”, cujo sentido traz perfeitamente um tom de “projeto”
(Entwurf), alçando aqui à tese de que o mundo é sempre um mundo compartilhado e
ainda ao significado do verbo ser (Sein), que na língua alemã, possui até dois
68
sentidos: ser e estar. Pelo contrário, para a filosofia transcendental e, mais
especificamente falando, para o idealismo alemão, o eu só reconhece seus próprios
estados. Baseando-se no princípio da analogia, o conhecimento do outro é mediado
pelo nosso próprio eu.
O título ser-com na estrutura dos argumentos de Ser e Tempo nem consiste
numa “filosofia do cotidiano” nem numa “filosofia da cultura” e, menos ainda, é uma
busca obstinada por “questões inovadoras”. Ao contrário do que se pensa, a
consequência principal das análises dessa obra não é o ataque à metafísica de que
se utiliza a filosofia grega, mas o tornar visível, agora não mais metafisicamente, as
deficiências de todo o pensamento ocidental. A questão que pervaga a filosofia
heideggeriana é a já antiga e esquecida questão do próprio ser. Por isso, essas
análises e os principais tópicos da “filosofia da mente” não estão tão próximos
quanto parece.
Para Jonathan Rée, as semelhanças entre a descrição do ser-no-mundo de
Heidegger e as teorias contemporâneas são tão reais quanto enganosas. Conforme
Rée (2000, p. 26), a partir da distinção Vorhandenheit-Zuhandenheit tão citada pelos
teóricos de hoje: “Heidegger estava tentando detalhar o entendimento que o próprio
Dasein tem de seu estar no-mundo quotidiano, e não propor uma nova teoria que
tivesse desenvolvido”.
De inspiração fenomenológica, a resposta de Heidegger para o “problema do
outro” nos “revela” algo que não se deixa reduzir, o próprio ser. Tendo em vista aqui
a noção de ser para Heidegger, já expressa acima, o ser do Dasein é originário e
não se deixa reduzir porque é um poder-ser, é um projeto lançado. No tocante ao
seu ser como cura, o Dasein se determina como temporalidade. Heidegger se
pergunta ainda pela unidade mundo e Dasein no § 69 e descobre o modo pelo qual
o mundo se dá para o Dasein: “o mundo já está […] 'muito mais fora' do que
qualquer objeto pode estar”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 168). É nesse sentido que,
diz-nos Heidegger: o Dasein, “em existindo, é seu mundo”. (2002b, p. 166). E mundo
para o Dasein é sempre mundo compartilhado. É importante observar, que no
contexto de uma analítica existencial, Heidegger radicaliza o idealismo de Husserl,
levantando a seguinte questão: será que aquele modo de doação do próprio eu
consegue interpretar o fenômeno “quem” do Dasein cotidiano? O chamado “sujeito”
da cotidianidade é um modo do Dasein fundado no ser-no-mundo. Esse modo de ser
69
do Dasein remete às estruturas também fundamentais do ser-com e do Dasein-com
dos outros.
Portanto, entre as possibilidades de encontro que o Dasein, enquanto “cura”,
desenvolve com o mundo, o mundo da simples presença e o mundo do próprio
Dasein, destacaremos este último na presente interpretação do mundo-com
originário em que “o outro” ou “os outros” nos são dados. É por isso que, como
veremos no decorrer da discussão, o outro revelar-se-á, de certo modo, como sendo
o próprio mundo.
3.2 A pergunta existencial sobre o quem do Dasein
Os §§ 25-27 de Ser e Tempo tomam como eixo de investigação a seguinte
pergunta: “quem” (Wer) é o Dasein em sua cotidianidade? A pergunta de Heidegger
se dirige agora ao quem desse Dasein, mais precisamente, ao fenômeno “eu” (Ich)
desse ente. Uma investigação desse tipo conduz às estruturas fundamentais do serno-mundo do Dasein: o ser-com (Mitsein) e o Dasein-com (Mitdasein). O “eu” e o “simesmo” pertencem a estas determinações do Dasein como ser-no-mundo. É, pois,
com base nelas que chegaremos à caracterização do quem do Dasein cotidiano
como “a gente” ou impessoal (das Man).
Formalmente, diz Heidegger, (2002a, p. 165) a resposta que se encaminha
ao fenômeno “quem” do Dasein já foi dada ao longo do § 9: Dasein é o ente que
sempre eu mesmo sou e o ser desse ente é sempre meu. Vejamos, então, o cenário
no qual se abrem estas determinações fundamentais de seu ser e que prepara a
mostração do fenômeno “quem”. O § 9 inaugura o primeiro capítulo de Ser e Tempo
e tem como tarefa fazer uma análise preparatória do Dasein. É aqui que Heidegger
demarca o ponto de partida da analítica do Dasein com a famosa frase: “a ‘essência’
do Dasein está em sua existência”. Diferentemente da ontologia clássica, esse ponto
de partida não é um conceito, nem as “categorias” (Kategorien) universais que são
as determinações dos entes simplesmente dados. Esses conceitos são condições
transcendentais do ser enquanto tal, sem as quais o próprio objeto deixaria de
existir. A ontologia fundamental de Heidegger (2002a, p. 79), em vez disso, parte do
cotidiano, pois o problemático ou o ontológico está no modo indiferente da
70
cotidianidade,
na
medianidade
(Durchschnittlickeit).
Porque
os
caracteres
ontológicos do Dasein se determinam a partir da existencialidade, Heidegger os
chama de “existenciais”. Os existenciais são usados na contraposição com as
categorias (determinações dos entes que não possuem o ser do Dasein). Existência,
portanto, não tem aqui nenhuma ligação com o sentido tradicional de “realidade” ou
presença simples (existentia) que se opõe à essentia. Sartre dá continuidade a essa
concepção de existência, ficando, assim, na esteira do pensamento moderno do
sujeito. O filósofo francês apenas inverte os conceitos platônicos dizendo – a
existência precede a essência. (SARTRE, 1973b, p. 11).
O vocábulo “existência” constitui-se da preposição ek (fora de) e do verbo
sistere – eksistência. Trata-se de uma estrutura que não está nem “dentro” nem
“fora”, mas no-mundo; é, portanto, uma estrutura de manifestação, que só pode ser
apreendida por meio de suas estruturas ontológicas, as quais permitem a colocação
da questão do ser. Em suma:
Existenciais e categorias são as duas possibilidades fundamentais de
caracteres ontológicos. O ente, que lhes corresponde, impõe cada
vez, um modo diferente de se interrogar primariamente: o ente é um
quem (existência) ou um que (algo simplesmente dado no sentido
mais amplo). (HEIDEGGER, 2002a, p. 81).
Em contraste com o que afirma a ontologia tradicional, existência se refere
ao ser do Dasein. Mas tudo isso quer apenas dizer que o ontológico (o antecipar-se),
em nós, consiste em um já estar no mundo. É essa dimensão ontológica que vai
aparecer no segundo capítulo do primeiro tomo da obra. Os caracteres ontológicos
que já foram dados (§§ 9 e 12) tornarão ainda mais claras as “investigações
posteriores”, as quais, contudo, devem tomar por base a constituição mais
fundamental do Dasein: o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). (HEIDEGGER, 2002a, p.
90). Agora compreendemos porque Heidegger fez preceder à análise do “quem” do
Dasein a interpretação ontológica do mundo.
O sentido formal das determinações do Dasein, que responde quem é o
ente-Dasein que vive no-mundo, indica uma constituição ontológica e esta
igualmente contém uma indicação ôntica. Ora, perguntar quem é o Dasein na
cotidianidade (in der Alltäglichkeit das Dasein) é perguntar pelo que assim está
sendo dado e o que é pura e simplesmente dado possui um caráter ôntico.
71
Ontologicamente, ou seja, conforme o sentido que foi legado pela tradição, esse
quem consiste numa essência, qual seja, em ser sempre o mesmo (selbst). É, pois,
daqui que surge o caráter de “eu” (si-mesmo) do Dasein. Partindo, portanto, dessa
perspectiva da essência, a interpretação do quem não tem como fugir da constância
do ser simplesmente dado, justamente porque o caráter indeterminado e geral de
seu ser sempre implica este sentido – o caráter ôntico do Dasein cotidiano – “um eu
e não um outro”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 165). Mas desconfia-se de que talvez esta
evidência ôntica não possa conceder adequadamente a região fenomenal do Dasein
cotidiano. Pois, “o eu só pode ser entendido no sentido de uma indicação formal não
constringente de algo que, em cada contexto ontológico-fenomenal, pode talvez se
revelar como o seu contrário”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 167).
Do ponto de vista da ontologia escolástica de Tomás de Aquino, o “quem” é
experimentado como uma substância, como sujeito. Isto é, o Dasein se percebe,
onticamente, como uma coisa simplesmente dada, que se deixa mostrar pelos
caracteres ontológicos das coisas dentro do mundo. O sujeito torna-se apenas uma
coisa da qual nos ocupamos. Sendo que o Dasein é sempre o mesmo, é sempre em
referência a uma quididade que quer dizer aquilo que se mantém idêntico numa
variedade múltipla de ser. A “ontologia” ou a tradição interpretou o Dasein como
substância (ousia), consequentemente o ser do eu, daquele “ser-em” (In-Sein) foi
interpretado a partir de sua substancialidade, de sua quididade como mesa, livro,
cadeira.
Heidegger colocou em discussão o conceito tradicional de ser concebido
como um simples “dado” que possui o modo de ser da “realidade”. Por isso, ele
reserva o termo “existência” só para o Dasein e compreende o seu ser como
possibilidade de ser ou não si-mesmo, pelo fato de estar referido ao próprio ser
como à própria possibilidade.
No grego, o verbo εiναι (= ser) causava grande confusão entre as coisas que
são e estão sendo (on, o infinitivo “ser”) e aquelas que existem (to on, o verbo
substantivado “o ser”). Não havia ali uma distinção entre existir e ser, isto é, entre o
que é e ser. A palavra ser podia designar tanto ser, como “existência” (presença
simples). Diante de tal embaraço, Heidegger viu a necessidade de nos voltarmos
novamente para o significado da palavra ser, mas agora partindo do “sentido de ser”.
O ente é. Essa é, pois, a única maneira de definir seu modo de ser. Por isso, a
72
confusão. Com efeito, o ser do homem foi determinado negativamente como um
não-objeto e, assim, o que existe (o ser) foi compreendido a partir do modo de ser
das coisas.
Descartes confirma essa concepção do ser-realidade com a ideia de uma
alma-substância imaterial e com a ideia de que a existência estaria apenas na
subjetividade e não na objetividade. Mas a existência, tal como se encontra expressa
em Ser e Tempo, não é a realidade do “eu penso” e não é sujeito nem objeto. Nesse
caso, também Kant, apesar de ter realizado grandes avanços por colocar o ser para
fora de uma essência com a ideia do sujeito transcendental20, ficou preso ainda à
ideia de ser enquanto presença simples. O termo Dasein que já aparece na filosofia
de Kant tinha exatamente esse sentido de existência como existentia (presença
simples).
Muito embora Heidegger não parta da realidade do “eu penso” cartesiano na
análise existencial do Dasein, não se pode negar a referência “a algo cujo ser
guarda, explícita ou implicitamente, o sentido de ser simplesmente dado”, no âmago
da resposta à questão sobre o quem do Dasein. (HEIDEGGER, 2002a, p. 165).
Porém, ontologicamente, o “quem” do Dasein não condiz com algo tal como
um fundamento moral que é preenchido pelos valores e normas sociais. Esse quem
não é sujeito, um eu isolado e sim a “relação” que eu mesmo sou, o “meu” ser-nomundo. O ponto de partida da questão quem que exprime formalmente: “sou eu que
sempre sou o Dasein e o ser é sempre meu” apenas “indica uma constituição
ontológica”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 165). Essa determinação, portanto, ainda não
informa que constituição ontológica é essa. Quer isso dizer: a questão sobre o quem
do Dasein ainda não foi interpretada ontologicamente de maneira adequada, pois o
caráter de “si mesmo” do Dasein não é mera constatação de uma coisa dada. Por
isso, Heidegger deixa claro que a experiência ôntica que se mostra como algo
simplesmente dado ou como substância, não traduz de forma própria ou ontológicoexistencial o fenômeno quem do Dasein cotidiano. Por outro lado, para que a
questão se mantenha no “modo de ser do próprio ente” (HEIDEGGER, 2002a, p.
166), é necessário que se preserve uma referência originária com o ente. É por isso
que a cada determinação do todo do ser do Dasein, Heidegger diz precisar de um
20 O termo transcendental em Kant não tem nenhuma ligação com o significado de “transcendente”,
que designa um ser absoluto ou superior – um Deus.
73
testemunho ôntico. Tal como acontece na pesquisa fenomenológica, a questão aqui
é guiada pela “própria coisa”. Na verdade, Heidegger assume a crítica husserliana
(dirigida ao psicologismo) de que o fundamento não constitui um princípio geral de
explicação, ou seja, de que não há nada por trás das coisas e sim a região do
sentido que é o modo mesmo no qual se dá conhecimento. Daí o seguinte
questionamento: no contexto da analítica existencial, será mesmo necessária, para
um acesso apropriado ao Dasein, uma reflexão sobre o eu dos seus atos?
Essa análise, portanto, dispensa o crivo da lógica. Gadamer nos diz que com
a expressão “indicação formal” (Formale Anzeige) Heidegger queria nos falar como
se quisesse nos mostrar algo. As coisas não podem escapar de seu sentido formal o
qual só aponta para onde se deve voltar a nossa atenção. (GADAMER, 2007a, p.
30). Então, pergunta-se: será que no conjunto das afirmações ôntico-ontológicas a
doação do eu como percepção pura (eu-eu) abre o Dasein em sua cotidianidade? “E
se a constituição de ser sempre meu do Dasein fosse uma razão para ele, […] não
ser ele próprio?” (HEIDEGGER, 2002a, p. 166). No âmbito da analítica existencial,
“ser sempre meu” pertence à existência do Dasein, como condição que possibilita
propriedade e impropriedade, e não ao ser dotado do caráter da substância.
Deve-se, portanto, tomar a expressão “meu” como um conceito ontológico,
como uma possibilidade da existência. E se avançamos para além daquela
indicação formal de existência, logo nos deparamos com o constituinte ser-nomundo. O Dasein sempre existe num daqueles modos, mesmo numa indiferença
para com eles. (HEIDEGGER, 2002a, p. 90). O ser si-mesmo enquanto ser-nomundo está entregue à responsabilidade desse ser e ao “verdadeiro poder ouvir” de
que fala Heidegger ainda no primeiro tomo da obra. Eis aí o significado existencial
da questão quem que, contudo, não se separa de um sentido formal. Os “indícios
formais” são o instrumento da fenomenologia. Pensar é deixar aparecer os indícios,
em vez dos conceitos acabados. (STEIN, 2011, p. 12).
Ou como diz Safranski
(2000, p. 208) em sua biografia de Heidegger:
Na propriedade heideggeriana com efeito não se trata primeiramente
do agir bom e eticamente correto, mas da abertura de chances para
grandes momentos; […] Os universitários que naquele tempo
parodiavam Heidegger dizendo: “Estou decidido, só não sei sobre o
que”. Compreenderam Heidegger porque realmente ele falava de
uma decisão sem nomear conteúdos ou valores pelos quais a gente
74
pudesse se decidir. Mas o interpretavam mal na medida em que
deviam ter esperado da filosofia dele tais indicações e orientações.
O não-eu não é desprovido de ‘eu’, mas indica um determinado modo de ser
do próprio ‘eu’ como, por exemplo, a perda de si próprio. Porque esse “não-eu”, esta
privação21 do eu, não configura aqui uma negação do “eu” e sim o ser. Já em Platão,
num confronto com a famosa frase de Parmênides – “o não-ser não é”, está
presente a ideia de que o não-ser não é o oposto do ser. “De algum modo, o não-ser
é e, por outro lado, num certo sentido, o ser não é”. (PLATÃO, 2007, 241d).
Tal como se encontra expresso em Ser e Tempo, o mundo abordado não é o
mundo como um conjunto de coisas da natureza ou como objeto de conhecimento
teórico, mas antes o contexto “em que” estas coisas são. Mundo não consiste numa
determinação de um ente que não possui o caráter do Dasein. O ser-no-mundo,
enquanto constituição fundamental do Dasein, é a estrutura que designa uma
dimensão “anterior” constitutiva deste ente; é, assim, conforme uma linguagem
ulterior, o a priori. Pois Heidegger (2002a, p. 105) nos diz que ao investigarmos
ontologicamente o “mundo” não abandonamos o campo temático da analítica do
Dasein. Isso quer dizer que a “natureza”, como conjunto categorial das estruturas
ontológicas do ente presente “no” mundo, não pode, de modo algum, possibilitar a
mundanidade (Weltlichkeit) e que ela só pode ser apreendida ontologicamente a
partir do sentido de mundo, isto é, através da analítica do Dasein. Por esse motivo, o
mundo não pode, de forma alguma, ser interpretado a partir da natureza.
Então, de que mundo Heidegger está falando em Ser e Tempo? Do mundo
“subjetivo” ou do mundo comum a todos no qual também nos encontramos? Nem de
uma coisa nem outra, mas do fenômeno da “mundanidade do mundo em geral”
(Weltlichkeit überhaupt) com o qual nos deparamos, mesmo sem perceber mediante
o ser dos entes intramundanos. Chegamos aqui a um ponto marcante do filosofar
heideggeriano – o adjetivo derivado “mundano” indica um modo de ser do Dasein,
enquanto o termo intramundano está reservado para o ente simplesmente presente.
O fundamento a que nos referimos não equivale ao “princípio de razão
21 Este fenômeno, que primeiro foi identificado por Platão no diálogo Sofista, ultrapassa a simples
negação (do tipo – a parede não escuta); ele guarda, porém, o sentido de que algo que não é, mas
que deveria ser, por exemplo, dizer que o cego não ver implica dizer que ele não possui algo que
por natureza deveria ter. O termo “privação de” em Ser e Tempo traz exatamente este sentido – o
de privar-se daquilo que você já possui.
75
suficiente” de Leibniz e, portanto, não coincide com a superioridade da sentença –
“todo ente tem uma razão (fundamento)”. (HEIDEGGER, 1973h, p. 297). Em Ser e
Tempo, a interpretação do ser tomou como fio condutor a existência – e, nas
palavras de Heidegger (2002a, p. 77): “a 'essência' do Dasein está em sua
existência”. Com efeito, é importante frisar que esta investigação que objetiva
perguntar sobre o sentido de ser:
[…] não medita nem rumina sobre alguma coisa que estivesse no
fundo do ser. Ela pergunta sobre ele mesmo na medida em que ele
se dá dentro da compreensibilidade do Dasein. O sentido de ser
jamais pode ser contraposto ao ente ou ao ser enquanto
“fundamento” de sustentação de um ente, porque o “fundamento” só
é acessível como sentido mesmo que, em si mesmo, seja o abismo
de uma falta de sentido. (HEIDEGGER, 2002a, p. 209).
Vem justamente daí o nosso interesse pelo Dasein cotidiano ou pelo a priori
existencial conforme o contexto da obra indica. E a razão para isso está no ser do
próprio Dasein como “cura”; é preocupado (besorgt) com algo que vive o Dasein,
porém, o modo como ele se encontra na maior parte das vezes e antes de tudo é
totalmente absorvido pelo mundo. Devemos notar que este modo especial de ser do
Dasein só recebe sua determinação precisa no § 38, expressa pela “de-cadência”
(Verfallen) do Dasein. Eis, então, a importância das análises dos fenômenos
“mundo” e “quem” na analítica existencial.
Essas investigações revelam, assim, a essência mesma da ontologia de
Heidegger. Pois, as análises que se valem do Dasein tendo a impessoalidade como
ponto de partida “são provavelmente as mais bem conhecidas de todo Ser e Tempo,
mas talvez igualmente as menos compreendidas”. (RÈE, 2000, p. 32). Mas, o fundo
de incompreensão que perpassa o seu pensamento nos servirá como meio de
caracterizar o existencial ser-com.
3.2.1 O ninguém do Dasein como interpretação fundamental do quem
A análise precedente do ser-com mostrou que a “ipseidade” do próprio
Dasein dos outros se determina existencialmente, isto é, a partir de determinados
modos de ser. Os outros “são o que empreendem” (HEIDEGGER, 2002a, p. 178) e
não uma coisa da qual nos ocupamos.
76
Nas ocupações do que se faz com, contra ou a favor dos outros, diz
Heidegger, sempre se “cuida” de uma diferença com os outros. O caráter de
diferença (Unterschied) constitui o ser da convivência. Nesta distância constitutiva do
ser-com reside, porém, o fato de o Dasein, enquanto convivência cotidiana, está sob
a “tutela” dos outros. Não é o próprio Dasein que é, os outros é que lhe tomam o ser.
Mas esses “outros” não são, por isso, “determinados”. Pelo contrário, qualquer outro
pode representá-los. (HEIDEGGER, 2002a, p. 179). Apenas o domínio e a influência
deles (os outros) são assumidos sem que o Dasein se dê conta. O “impessoal” é,
assim, constitutivo dos outros e desta maneira, os “outros” são (da sind) na
convivência cotidiana. Essa convivência dissolve o próprio Dasein no modo de ser
dos “outros”, de tal modo que eles desaparecem em sua possibilidade de diferença
e, nessa falta de surpresa, o impessoal consolida o seu poder e assim estabelece o
modo de ser da cotidianidade.
O “impessoal” possui ele mesmo modos próprios de ser. O caráter de
afastamento (Abständigkeit) descrito acima se funda no fato de que a convivência
desenvolve a “medianidade”. Mas esse modo de ser não é uma depreciação da
convivência cotidiana, mas um caráter existencial do impessoal. A medianidade do
Dasein passa por cima de toda primazia: “tudo que é originário se vê da noite para o
dia nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita luta
torna-se banal”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 180). Daí outra tendência fundamental do
ser-com, o nivelamento (Einebnung) de todas as possibilidades de ser. Todas essas
formas de ser da convivência, a saber, o espaçamento, a medianidade e o
nivelamento constituem o modo de ser impessoal “público” (Öffentlichkeit). Esse
modo público “rege […], tendo razão em tudo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 180). Mas
isso não é porque se mantém originariamente no ser das “coisas”, pelo contrário, ela
é contra todas as diferenças de nível e autenticidade (Echtheit). (HEIDEGGER,
2002a, p. 180).
E apesar de o impessoal está em toda parte, quando é chamado à “decisão”,
foge. Na impessoalidade, o Dasein dá conta de tudo com a maior facilidade, pois
não há ninguém que se responsabilize por isto ou aquilo. As coisas, na cotidianidade
do Dasein, são realizadas “por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 180). “Todo mundo é outro e ninguém é si próprio. O
impessoal, que responde à pergunta quem do Dasein cotidiano, é ninguém, a quem
77
o Dasein já se entregou na convivência de um com outro”. (HEIDEGGER, 2002a, p.
181). Eis, portanto, que se caracterizam mais duas tendências do ser-com – o
“desencargo de ser” (Seinsentlastung) e a “contraposição” (Entgegenkommen). Em
todas as características do impessoal já citadas reside uma “consistência”
(Ständigkeit) do Dasein que não é, todavia, a consistência de algo simplesmente
dado, mas um caráter relacionado com o modo de ser do Dasein, enquanto ser-com.
É por isso que se diz que nestes modos de ser o si-mesmo do Dasein e o simesmo do outro nem se “encontrou”, nem se “perdeu”. De acordo com esse caráter
de consistência, o impessoal, apesar de ele ser e está originariamente no modo da
inconsistência da impropriedade sob a forma do “ninguém”, não pode significar um
nada negativo. Pois se engana quem encontra aqui um Dasein degradado,
rebaixado a uma situação depreciativa de seu ser. Nesse modo de ser, ao contrário,
diz-nos Heidegger: “o Dasein é um ens realissimum, caso se entenda 'realidade'
como um ser dotado do caráter do Dasein”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 181).
Para uma análise ôntico-ontológica, “o impessoal se revela como 'o sujeito
mais real' da cotidianidade”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 181). O “quem” do Dasein, o
impessoal, não é algo simplesmente dado, ou seja, não é dado como objeto à minha
consciência. Também não é o “sujeito universal” que independe dos entes. O
impessoal não é uma espécie de gênero do Dasein cotidiano, bem como não
repousa neste ente como uma propriedade duradoura. “O impessoal é um
existencial e, enquanto fenômeno originário, pertence à constituição positiva do
Dasein”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 182). Desse modo, numa tal impessoalidade, o
Dasein pode se retirar de si mesmo, mas não pode nunca “desobrigar-se” de si
mesmo, pois ele só se manifesta no fechamento próprio deste modo público de ser
um com o outro, ressaltando aqui o então caráter de originariedade constitutivo
desta abertura que o Dasein já trás consigo. A presente análise quer apenas indicar
que o impessoal consiste na nossa originária interpretação do mundo e do ser-nomundo. É como significância e familiaridade ao impessoal que o mundo libera o ente
que vem ao encontro, seja ele uma cadeira ou outro Dasein, pois aqui está presente
aquela ideia de que o outro não está manifesto, ou seja, a noção de
referencialidade. É, portanto, o próprio-impessoal que articula o contexto referencial
da significância. Quer isso dizer: o sujeito da cotidianidade não consiste na presença
de um objeto na consciência. Na verdade, “eu' não 'sou' no sentido do propriamente
78
si mesmo e sim os outros nos moldes do impessoal. O “eu” se faz pelo “outro”. É a
partir deste e como este que, de início, eu “sou dado” a mim mesmo”. (HEIDEGGER,
2002a, p. 182). Mas o projeto do Dasein é um poder-ser de si-mesmo. Como?
Existindo, ele está lançado e, enquanto lançado, entregue a responsabilidade de
entes dos quais ele necessita para poder ser como ele é, ou seja, em função de si
mesmo.
É como simples presença ou objeto que o Dasein se compreende. “O ser
dos entes em seu Dasein-com é então compreendido como ser simplesmente dado”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 183). Neste modo de ser cotidiano a constituição
fundamental do Dasein se encobre, mas também se manifesta. Não se pode,
contudo, compreender o que é próprio como algo “dado”. “O ser do que é próprio
não repousa num estado excepcional do sujeito que se separou do impessoal. Ele é
uma modificação existenciária do impessoal como existencial constitutivo”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 183). Assim, a identidade considerada por Heidegger não
consiste no que se mantém sempre o mesmo numa variedade das vivências e sim
naquilo que não pode ser sem a contrapartida da diferença no quadro de si mesmo.
A identidade pessoal aqui faz referência ao ente chamado Dasein e não ao ente
simplesmente dado, por mais que o Dasein se compreenda de início e na maioria
das vezes, como simples presença. A crítica que é feita aqui é a mesma que se
tentou instalar a partir do segundo capítulo do primeiro tomo de Ser e Tempo com a
expressão “ser-no-mundo”. Numa passagem significativa lemos: “o conceito
ontológico de sujeito não caracteriza o si-mesmo do eu como si-mesmo e sim a
coincidência e a constância de algo já sempre simplesmente dado”. (HEIDEGGER,
2002b, p. 113).
3.3 A mundanidade do mundo
3.3.1 Ser com outro-ente intramundano: ocupação
Podemos dizer que Aristóteles, na Metafísica, ao distinguir dois modos de
79
existência – o existir em ato e o existir em potência – antecipa a ideia do ser-com em
Heidegger. O ato é a existência plena da coisa, do que está em potência. Há,
contudo, um ato que é sempre igual a si mesmo, que chamou de ato puro. Já a
potência possui o sentido primeiro que diz: “O princípio da mudança em algo é o
mesmo que outro.” (ARISTÓTELES, 2004, 1046a-5, tradução nossa). Isso quer dizer
que a potência possui uma tendência a ser outra coisa, como é o caso da madeira
(Hermes em potência), utilizando aqui um exemplo de Aristóteles. Essa é a razão
pela qual que já em Aristóteles o universal (que se opõe ao universal transcendente
ou abstrato), ser aquilo que está numa coisa que é, pois do contrário a coisa não
seria. Uma tal essência não coincide mais com a universalidade do gênero, que não
possui uma realidade ontológica separada. Essas duas formas distintas de ser, a
forma de ser em ato e a forma de ser em potência, as quais merecem destaque na
Metafísica, acaba aproximando um sentido de devir da estrutura ontológica por
oposição ao ser idêntico da Escola eleática e ao ser no sentido do gênero. Essa
descoberta de Aristóteles, diz-nos Heidegger, colocou a problemática do ser num
outro patamar. (HEIDEGGER, 2002a, p. 28). A partir daí, Heidegger começou a ver
já em Aristóteles “um acesso ao fenomenólogo”. (GADAMER, 2007a, p. 32).
O Dasein só é na referência fundamental com o ser. Quando Heidegger nos
diz em Ser e Tempo que a existência está em toda compreensão de mundo, ele quer
exatamente enfatizar essa referência ao ser. O Dasein existe, ou melhor, eksiste.22 É
sendo que o Dasein está aberto para si mesmo em seu ser. Daí o significado do
nexo ser – compreensão do ser. Por que será, então, que nós nos compreendemos
primariamente como um “eu” separado, destituído de mundo que estabelece uma
relação com o “outro” totalmente diferente de nós? Ora, numa passagem de Ser e
Tempo Heidegger nos diz: “o entendimento comum considera apenas o que conhece
onticamente, por isso estranha o que conhece ontologicamente”.
Apesar de os conceitos aristotélicos se inserirem no pensamento moderno
por intermédio da filosofia tomista e escolástica, Heidegger, contudo, não leu
Aristóteles dessa maneira, ao menos não por muito tempo. Pois estava ciente de
22 Heidegger usa o termo latino ex (s) istência do verbo exsistere para enfatizar o “estar fora” do
Dasein. Esse termo que depois se tormou Existenz, Heidegger o escreve por vezes como exsistenz ou ek-sistenz. Heidegger descobre que muito antes da distinção da idade média cristã
entre existentia e essentia, o grego clássico não possuía uma palavra equivalente ao termo latino
existentia. Ekstasis é literalmente “dar um passo para fora”. Significa, pois, “êxtase, transe”, não
existência.
80
que o Estagirita tinha sido um fenomenólogo. Essa posição já vinha desde o tempo
de sua formação, portanto, antes de vir a se tornar assistente de Husserl em
Freiburg, como bem relata Gadamer (2007a, p. 30). Este nos diz que já no livro
Lambda da Metafísica, Aristóteles chega a inferir, a partir do modo como a
Inteligência divina existe, o caráter intencional do conhecimento humano:
Se, pois, a Inteligência divina é o que há de mais perfeito, ela pensa
a si mesma e o seu pensamento é pensamento de pensamento.
Parece que a ciência, a sensação, a opinião e a razão discursiva
apontam sempre para outra coisa e só incidentalmente para si
mesma. (ARISTÓTELES, 2004, 1074b-35, tradução nossa).
É por isso que a analítica existencial possui, diz Heidegger (2002a, p. 40),
em última instância, raízes “existenciárias”, isto é, “ônticas”. Mas é também a ideia
que o “jovem Heidegger”
23
, com sua tematização da facticidade, acolhe no que
assim veio a se chamar de questão do ser. Nota-se, com isso, que a “consistência”
da pesquisa de Heidegger não pode, entretanto, desistir de reconhecer um caráter
formal para a filosofia. Pois Heidegger (2002b, p. 103) nos diz que o fato do Dasein
“não só não deve ser negado como não deve ser confessado à força [...]. A filosofia
nunca haverá de contestar as suas ‘pressuposições’ mas também não quererá
admiti-las sem discussão”.
Mitsein significa ser “com” o outro. A preposição alemã “mit” (= com)
expressa ação comum, mútua, participação, envolvimento, fazer parte ou pertencer.
Heidegger (2002a, p. 167) nos diz assumir aqui a posição de Scheler de que não
existe um “eu isolado sem os outros”, ou seja, a existência não é uma existência
trancada em si, isolada, mas a maneira de existir do Dasein como ser-no-mundo. Os
existenciais que caracterizam o ser do Dasein carregam com eles essa acepção de
verbo. Portanto, os existenciais inerentes ao ser-no-mundo exercem uma ação
expressa pela preposição mit. Assim, no sentido de Ser e Tempo, o “mit” é “com”.
Toda existência ou se preferir, todo ser, é ser-com.
Heidegger, porém, reserva a preposição “mit” para se referir ao comportar-se
do Dasein com o ente que é ele mesmo outro Dasein. “Desse ente não se ocupa,
com ele se preocupa”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 173). Ao passo que a preposição
“bei” indica proximidade local. Por isso, o estar junto em Ser e Tempo é estar junto e
23 Gadamer usa a expessão “jovem Heidegger” para se referir ao Heidegger que precede a
publicação de Ser e Tempo.
81
no mundo das ocupações. Pois, na estrutura do ser-com do Dasein, “o caráter
ontológico da ocupação”24 caracteriza o modo de ser para o ente intramundano.
Essa distinção entre os usos do “mit” e do “bei” é de fundamental importância para
nos assegurar do sentido existencial de ser-com os outros.
A verdade é que pensar o “quem” do Dasein é o mesmo que pensar o
mundo e os “outros”, na medida em que o ente-Dasein é e está no-mundo em que
vem ao encontro segundo o modo de ser-no-mundo e desta maneira, os outros, no
meio dos quais também se está. (HEIDEGGER, 2002a, p. 169-170). A ontologia
tradicional, diz-nos Heidegger, sempre passou por cima do fenômeno da
mundanidade. Mas esse passar “por cima do fenômeno da mundanidade” nos
coloca na espreita de um caminho adequado de análise. Exatamente por esse
motivo, Heidegger insiste que o ser-no-mundo e também o mundo devam se tornar
tema da analítica no âmbito da convivência cotidiana, que tem o mundo circundante
(Umwelt) como o que está mais próximo dela. Do mesmo modo, chegamos à
mundanidade circundante (Umweltlichkeit) e à mundanidade em geral.
Chamamos também de “modo de lidar” (Umgang) “no” mundo e “com” o ente
intramundano esse modo do Dasein cotidiano ou se preferir, modo do ser-no-mundo
cotidiano. Não devemos, contudo, entender esse estar junto ao ente como um
“abandono da esfera interna”:
Nesse “estar fora”, junto ao objeto, o Dasein está “dentro”, num
sentido que deve ser entendido corretamente, ou seja, é ele mesmo
que, como ser-no-mundo, conhece. [...] a percepção do que é
conhecido não é um retorno para a “cápsula” da consciência com
uma presa na mão, após ter saído em busca de apreender alguma
coisa. Tanto num [...] ‘mero’ representar a si mesmo, num ‘puro’
pensar em alguma coisa [...] estou fora no mundo, junto ao ente.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 101).
Porque ele já se “dispersou” nos afazeres do cotidiano ou na ocupação, ele
possui um “conhecimento” próprio, um modo mais imediato de lidar que descarta o
conhecimento meramente perceptivo. Isso explica o significado da frase: “o ente
24 “Os dois modos distintos de relação exprimem-se com derivados de “Sorge” (cura): os termos
'Besorgen' (ocupar-se) e 'Fürsorge' (preocupar-se). A tradução decidiu utilizar o radical latino “cura”
para Sorge, ocupação para Besorgen e preocupação para Fürsorge. O motivo dessa decisão
atém-se ao fato de o próprio Ser e Tempo ter remetido à fábula latina de Higino sobre a Cura e à
inexistência em português de derivados de cura na acepção de um relacionamento específico do
Dasein com os seres simplesmente dados e com os seres existentes”. (LEÃO. Notas explicativas.
In: HEIDEGGER, 2002a, p. 312-313).
82
sempre acompanha previamente a tematização”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 108)
Esse é o momento no qual se faz notar que o usado (Gebrauchte), o ente prétemático, é aquele que se mostra “primeiramente” (nos referimos aqui ao que está
mais próximo e não ao seu sentido cronológico) na lida e não o ente que é objeto de
conhecimento teórico e científico. Porém, essa distinção, não impede Heidegger de
se colocar a favor do caráter a priori de todo conhecer. Pois, “conhecer […] é um
modo do Dasein fundado no ser-no-mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 102). Esse a
priori não quer dizer a priori em termos kantianos, ou seja, independente de qualquer
relação, mas um a priori do tipo concreto. Isso determina também o caráter
ontológico dessa interpretação que se mostra no modo de lidar com o ente. Estamos
já desde sempre no modo da ocupação. O “já desde sempre” aqui exprime
basicamente aquilo que se adianta no relacionar-se. Diz-nos Heidegger (2002a, p.
109) que quando, pois, nos dirigimos ao ente como “coisa” encobrimos “o ente tal
como ele, a partir de si mesmo, vem ao encontro na ocupação e para ela”. Segundo
ainda Heidegger, os gregos tinham um termo bastante sugestivo para dizer as
“coisas”: pragmata, aquilo com que se lida (práxis) na ocupação. Ora, o filósofo
assume mais radicalmente do que os gregos essa sentença: o instrumento (Zeug),
como chamou estes pragmata, se distingue por seu “ser para” (Um-zu), por sua
instrumentalidade. “No modo de lidar por aí, encontram-se instrumentos de escrever,
de medição, de costura, carros, ferramentas”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 109). Assim,
como o modo de lidar não apreende tematicamente o ente como uma mera “coisa”
também o uso não compreende a estrutura do instrumento como tal, pois no simples
“ficar à mão” (zuhanden zu sein) está contida a referencialidade do Dasein. A este
modo de ser do instrumento em que ele se revela por si mesmo, chama-se
“manualidade” (Zuhandenheit), por oposição ao outro modo de ser do ente, isto é, ao
simplesmente presente (Vorhandenheit). No primeiro modo, o ente se entrega à
multiplicidade de referências do ser-para e não às “ferramentas em si mesmas”.
Quando estas são consideradas em si mesmas, o ente fica “privado” de seu caráter
de ser-para, de práxis, pois o instrumento só vem ao encontro numa totalidade de
referências, ou seja, no seu uso. Todavia, o objetivo aqui não é priorizar o
conhecimento prático em detrimento do conhecimento teórico. O ser-para não é
especificamente prático no sentido comum de que se contrapõe à teoria. Contudo,
foi apenas nessa perspectiva de diferença característica do filosofar de Heidegger
83
que se basearam as teorias do século XX como, por exemplo, o pragmatismo
americano que se constituiu no horizonte da filosofia do Wittgenstein das
Investigações filosóficas.
Assim, não são os entes reunidos como uma soma que dão ideia de mundo,
pelo contrário, “o ente intramundano só pode se mostrar porque mundo ‘se dá”.
(HEIDEGGER, 2002a, p.114). Mas como, porém, o mundo se descortina como
mundanidade, como ele “se dá”? E porque o Dasein precisaria de uma compreensão
explícita de mundo se ele se constitui onticamente como ser-no-mundo e, portanto,
possui essencialmente uma compreensão de mundo, uma compreensão préontológica? Não será que o fenômeno do mundo não se dá sempre numa
interpretação pré-fenomenológica, numa compreensão não temática do ente,
justamente, porque ao ser do Dasein já pertence uma compreensão ontológica e, de
alguma maneira, a mundanidade se descortina “junto com” o ente intramundano da
ocupação?
Diante de tais questões o que está dado é que à cotidianidade do ser-nomundo pertencem modos de ocupação que evidenciam a mundanidade do ente
intramundano. A exemplo do que acontece com o ente à mão que assume os
seguintes modos: i) o modo da “surpresa” em que o ente se mostra danificado e,
portanto, não pode ser usado; ii) o modo da “importunidade” em que algo não está
mais à mão; iii) o modo da “impertinência” que indica “aquilo para o que a ocupação
não pode se voltar, para o que ela não tem ‘tempo”, em que algo não está mais à
mão, no sentido de não ter tido chance de estar à mão.
Esses modos de encontros modificados25 com o manual, que tem a função
específica de evidenciar o caráter de algo como mera coisa, descobrem “a
circunvisão do modo de lidar no uso”, ou seja, “o manual se mostra como o que é
sempre manual no seu ser simplesmente dado incontornável”. (HEIDEGGER,
2002a, p. 117). Isso significa que o ser simplesmente dado, anunciado naquilo que
não pode ser empregado ainda está ligado, de certo modo, à manualidade do
instrumento, mesmo que seja de maneira não temática, revelando, assim, a sua
impossibilidade de separação. Exatamente “nesse todo, anuncia-se o mundo”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 117). Assim, uma totalidade de referências significativas
25 O termo “modificado” aqui jamais possui um sentido valorativo no qual o meu encontro com o
mundo dos entes tenha sido corrompido, quer para melhor, quer para pior. Esse caráter de
modificação possui um sentido ontológico, isto é, refere-se a uma possibilidade do ser.
84
presentes em atividades rotineiras como, por exemplo, ao atravessar uma rua, no
cumprimentar um amigo ou ao digitar um texto, qual seja, referências instauradas
em atividades muito simples e cotidianas. E é para isto que Heidegger convoca a
nossa existência (Dasein), para o que, originariamente, e com mais frequência está
“aí”. Do mesmo modo:
As referências determinam a estrutura do ser do manual enquanto
instrumentos. O “em si” próprio e evidente das “coisas” mais
próximas encontra-se na ocupação que faz uso das coisas, embora
sem tomá-las explicitamente, podendo se deparar com o que não é
passível de emprego. [...] No subordinar-se da ocupação às
referências, elas não são consideradas em si, elas estão pre-sentes
(“aí”). Numa perturbação da referência – na impossibilidade de
emprego para [...] a referência se explicita, se bem que ainda não
como estrutura ontológica mas, onticamente, para a circuvisão, que
se depara com o dano da ferramenta. [...] O conjunto instrumental
não se evidencia como algo nunca visto mas como um todo já
sempre visto antecipadamente na circunvisão. (HEIDEGGER, 2002a,
p. 117).
Desse modo, o não emprego de um manual, isto é, daquilo que por ventura
não utilizamos, mas que, seja por um defeito qualquer, seja pela falta ou pela não
finalização de algo, constitui uma “quebra” dos nexos referenciais, como denominou
Heidegger. Essa quebra de nexos serve para nos mostrar o significado das coisas e
o quanto somos uma possibilidade de nós mesmos e ainda que o significado das
coisas está implicado com o ser do Dasein. Nesse caso, “a circunvisão depara-se
com o vazio e só então é que vê “para que” (wofür) e “com que” (womit) estava à
mão aquilo que faltava”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 118). Aqui novamente o mundo
põe-se a descoberto. É sempre assim, a significância ou o conjunto instrumental só
aparece em termos do manual ou do ente simplesmente presente. Tanto que, diz
Heidegger: “o não anunciar-se do mundo é a condição de possibilidade para que o
manual não cause surpresa”. Ora, o manual da ocupação só pode faltar porque o
mundo como mundanidade ou totalidade referencial já é pressuposto, porque já
sempre esteve aberto e essa abertura apenas se dá pelo fato do intramundano já se
ter colocado em “situação”, isto é, à disposição compreensiva. Por isso, mundo não
pode significar um conjunto de manuais, visto que junto com o anunciar-se do
mundo ocorre a desmundanização do manual, isto é, a quebra da referencialidade.
Daqui conclui-se que somente a partir do fenômeno do mundo pode-se
85
determinar ontologicamente o “em si” do intramundano. E em conformidade com o
que já foi dito, Heidegger conclui que “ser-no-mundo significa: o empenho não
temático, guiado pela circunvisão, nas referências constitutivas da manualidade de
um conjunto instrumental”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 119). Ou como diz Carneiro
Leão (2000, p. 193):
A conjuntura opera continuamente. Ela nos ensina que o homem é
originariamente ser no mundo, in-der-Welt-sein. Ser no mundo,
entretanto, não quer dizer que o homem se acha no meio da
natureza, ao lado de árvores, animais e coisas. Ser no mundo não é
um fato nem uma necessidade ao nível dos fatos. Ser no mundo é
uma estrutura de ser e de realização. Por sua dinâmica, o homem
está sempre superando os limites entre o dentro e o fora. Por sua
força, tudo se compreende num sistema de referências. Por sua
dialética, se instala a identidade e diferença no ser quando, teórica
ou praticamente, se diz que o homem não é uma coisa.
Para compreendermos agora que “o mundo do Dasein é mundo
compartilhado” (die Welt des Daseins ist Mitwelt) (HEIDEGGER, 2002a, p. 170)
precisamos, contudo, enfatizar que a constituição fundamental do Dasein como serno-mundo designa também o fato da familiaridade com as coisas, a qual possibilita
as demais possibilidades do ser-em-si do ente intramundano.26 Esta afirmação
traduz muito bem o fato de que o nosso interesse pelo Dasein não reside apenas no
seu modo de ser e estar no mundo, mas também no fato de que ele se relaciona
com o mundo segundo um modo de ser predominante, o modo para o qual o Dasein
é conduzido usualmente – modo em que está “absorvido pelo seu mundo”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 164) Nossa investigação, portanto, situa-se exatamente
nesse contexto do mundo compartilhado e, com a mesma força, sobre o ser simesmo do Dasein cotidiano ou como preferir, sobre o próprio do impessoal, modo
que também é fundamental. O fenômeno que estamos tentando investigar, a saber,
o Dasein cotidiano “é determinado pelo modo de ser que se empenha no mundo e
[…] todas as estruturas ontológicas do Dasein, e também o fenômeno que responde
26 A fim de reforçar essa concepção heideggeriana de familiaridade com as coisas, Taylor, num
ensaio (1993) intitulado “Engageagency and background in Heidegger”, argumenta a necessidade
de uma articulação do background que torna possível nosso envolvimento na ação, em que critica
a visão desengajada do agente no racionalismo e empirismo clássicos. Taylor, neste ensaio, se
utiliza das noções de agente engajado e contexto pragmático, a partir do pensamento de
Heidegger, que segundo ele, foi a figura de maior destaque do século XX que nos ajudou a nos
libertar das amarras do racionalismo moderno.
86
à pergunta quem, são modos de seu ser”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 164.).
Entendemos, por isso, de maneira errada que talvez Heidegger pudesse estar se
referindo a tipos diferentes de entes entre os quais incluímos também o mundo e nós
mesmos como pertencentes a ele (ente intramundano). Ontologicamente, contudo, o
que muda é a maneira como nos deparamos com o mundo e com o “nosso” simesmo em nossas interpretações, sejam elas próprias ou impróprias.
3.3.2 Ser com outro-Dasein: preocupação
O pensamento moderno tem como parâmetro o modo da analogia que faz
com que o meu “eu” funcione como mediador dos demais “eu”. Do mesmo modo, o
outro é como eu. “Em Heidegger a expressão que condensa o ponto de partida de
toda reflexão social é: ‘Eu sou como os outros’’. (BICCA, 1997, p. 288). Como vemos
no quadro moderno a noção de sujeito tem privilégio sobre a instância do outro, ou
seja, o eu é primeiro. Bicca (1997, p. 290) afirma ainda que “o pensamento da
identificação do outro como “eu” pode significar um primeiro passo no sentido de
encobrir o outro na sua própria alteridade”. As reflexões do século XX, ao contrário,
partem de um dado social. Em Heidegger, “o ‘eu’ é constituído pelos outros”.
(BICCA, 1997, p. 289). Ou seja, o “eu” é construído em função das relações
estabelecidas de uns com os outros sem que eu tenha de “projetar” nelas um eu,
porque o outro não é um “projeto” meu e particular. Pois, o projeto (Entwurf)27 é
sempre projeto de mundo e é ele que torna possível nosso entendimento do outro
como outro, isto é, como Mitdasein (Dasein-com), permitindo ao Dasein projetar-se a
si mesmo. Portanto, não é uma “projeção” ou teoria psicológica que determina o seroutro, segundo Heidegger.
27 De acordo com o Dicionário Heidegger, um “Entwurf” assumiu, em Ser e Tempo, o sentido do
verbo entwerfen, que vem de werfen, “lançar”. Sob a influência do francês projeter, projetar, jogar
antes, Entwurf é um rascunho, esboço, desenho, esquema, projeto. Estas palavras foram assim
traduzidas por projeto e projeção, do latim proicere, “lançar para frente”. Por isso, a noção de
projeto envolve a concepção prévia e o “a priori”, do latim, “o que vem antes, mais cedo”; é “o
anterior”. [A palavra “a priori” soa muito mais como uma decisão, ou naquilo que preferimos
chamar de entrega, que como uma descoberta]. Assim ao projetar, Dasein sempre projeta a si
mesmo em função das possibilidades que lhe são abertas. Melhor dizendo projeta a si mesmo em
seu próprio projeto; ele “se lança no modo de ser do projeto”. Isso explica o significado da frase de
que todo projeto é projeto lançado e por que Dasein não compreende a si mesmo independente
do projeto. (INWOOD, 2002, p.151-53).
87
Projetar o ser é colocar em jogo o seu próprio ser, é o “cuidado” com o seu
próprio ser. O termo “cura” (Sorge), na ontologia fundamental de Heidegger, não
deve ser entendido sob o aspecto ôntico do cuidado no sentido de ser ou não
atencioso com algo ou alguém. “O Dasein já está sempre ‘além de si mesmo’, não
como atitude frente aos outros entes que ele mesmo não é, mas como ser para o
poder-ser que ele mesmo é”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 256). Essa estrutura do ser
que Heidegger chamou de cura é formalmente o preceder a si mesmo (futuro) por já
ser e estar em um mundo (passado) junto aos entes (presente). Ou seja, a cura se
constitui pela conjunção dos modos da existencialidade, facticidade e de-cadência, e
assim compõe um todo que se unifica na temporalidade. “A cura não indica,
portanto, primordial e exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo”
(HEIDEGGER, 2002a, p. 257), pois a expressão “cura de si mesmo” não é nenhuma
atitude especial para consigo mesmo e sim uma tautologia. (HEIDEGGER, 2002a, p.
257). Ela caracteriza o ser-no-mundo do Dasein. De início indica o seu ser junto ao
mundo e com os outros e, ademais, o caráter ontológico da estrutura do seu ser,
revelando, assim, que é como cura, isto é, como cuidado com o outro que o Dasein
se dá. Somente porque o Dasein tem na estrutura de seu ser a cura é que ele pode
ser com o outro.
Já podemos afirmar, então, que no mundo dos afazeres não apenas nos
deparamos originariamente com o ente manual, mas também com o ente que possui
o modo de ser do Dasein, ao mesmo tempo em que “vem ao encontro” não o mundo
de outrem, mas o nosso. E com isso conquistamos o entendimento de que a
determinação da maneira como o ente aparece para o Dasein na ocupação, a saber,
em sua manualidade, deixou fazer ver o fenômeno do mundo, isto é, a
“pressuposição” do mundo em tudo que empregamos e que se torna acessível a
qualquer um de nós. Pois, o mundo é sempre mundo compartilhado com os outros.
Por isso, o caráter de manualidade do ente não pode ser compreendido:
Como mero caráter de apreensão, como se tais “aspectos” fossem
impostos num discurso ao “ente” que de imediato vem ao encontro,
ou como se uma matéria do mundo, já simplesmente dada em si,
fosse desse modo “colorida subjetivamente”. Isso já contradiz o
sentido ontológico do conhecimento [...] como modo fundado do serno-mundo. (HEIDEGGER, 2002a, p. 113-114).
88
A análise ontológica do Dasein mostrou que a existência é já desde sempre
existência com os outros. Vimos que juntamente com o ente à mão evocado na obra,
vêm ao encontro também os outros entes para os quais a obra se destina. Dito de
outro modo, minha relação com os outros “Dasein”, que se dá em termos de
preocupação, não existe, contudo, sem a conjuntura do ser-para na ocupação. Mas,
“esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um ser
simplesmente dado ‘em conjunto’ dentro de um mundo”. (HEIDEGGER, 2002a, p.
170). Desta maneira, os outros que assim vêm ao encontro não são algo que vem de
fora e que depois é colocado ao lado dos “entes simplesmente dados”. O “também”
deve ser compreendido “existencialmente” e não categorialmente, como nos diz
Heidegger (2002a, p. 170). Pois os “outros” não são apenas outros e sim um modo
de ser do Dasein fundado no modo de ser-no-mundo, isto é, são também outros
“Dasein”, mas não no sentido de que se distinguem do “eu”.
De modo análogo ao termo “também”, o “com” é um existencial, isto é, uma
determinação do Dasein e não uma propriedade como casa, cadeira, etc. Assim, o
estar “com” o outro constitui uma relação totalmente diferente, por exemplo, daquela
relação “visar” e “visado” que encontramos na redução fenomenológica de Husserl.
Como já foi dito, Heidegger não entende o outro como um objeto de que nos
ocupamos. “São como o próprio Dasein liberador (freigebende) – são também
Dasein-com”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 169). E de acordo com essa posição, o
encontro com o outro, isto é, com uma alteridade como tal se dá pelo próprio Dasein;
pois Dasein é originariamente Dasein-com. É a partir do mundo no qual o Dasein é
no modo empenhado dos afazeres, em que se dão imediatamente os entes à mão
no mundo circundante, que os outros se nos revela. O outro é, portanto, precedido
pelo “essencial” (existencial) ser-com. “A expressão ‘Dasein’ mostra claramente que
‘de início’, esse ente não se acha remetido a outros e que apenas posteriormente é
que também pode ser Dasein ‘com’ outros” (HEIDEGGER, 2002a, p. 171), mas isso
não deve desconsiderar o fato de que os outros já são no mundo. É, pois, a partir
dos utensílios dentro do mundo que o Dasein-com dos outros se mostra a nós e não
por meio de uma postura primariamente teórica em relação a outros sujeitos
simplesmente dados, como também não consiste “numa visão primeira de si onde
então se estabelece o referencial da diferença”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 170). O
outro é constitutivo do ser e por isso mesmo não pode ser reduzido à coisa
89
simplesmente dada, à simplesmente outro.
O “outro”, em Heidegger, não é compreendido tradicionalmente pelo viés da
diferença. O si-mesmo está na dependência dos outros. Isto significa que o Dasein,
enquanto ser-com, está sempre aberto para outros entes, posto que o si mesmo não
independe da lida na ocupação. O outro Dasein é também meu Dasein, de tal modo
que “ninguém se diferencia propriamente”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 169). Por
conseguinte, não há entre mim e os outros uma relação de confronto na medida em
que o eu não constitui aqui uma realidade solipsista, trancada em si mesma.
Assim, é porque o ser-com constitui existencialmente o ser-no-mundo que
devemos aqui interpretá-lo, diz-nos Heidegger, pelo fenômeno da cura que
determina o ser do Dasein em geral. Pois, os fenômenos da ocupação (Besorgen) e
da preocupação (Fürsorge), que caracterizam ontologicamente o ser-com do Dasein,
são derivados do existencial cura (Sorge).
Nesse sentido, como cura o Dasein é “originariamente” ser-com. O ser-com
se define como um preocupar-se com algo, ou seja, ser-com é preocupar-se com
seu ser. Mas, de acordo com Heidegger, a “preocupação diz respeito à existência do
outro e não a uma coisa de que se ocupa”. (2002a, p. 174). Desta maneira,
pergunta-se agora pelo modo desse ser-com preocupado no mundo. Como o Dasein
se preocupa? Como o Dasein é com outro Dasein?
Nessa abordagem surge, então, a estrutura da disposição (Befindlichkeit)
para dizer que o Dasein se compreende ou se preocupa segundo o modo da
disposição. A disposição de que tratamos aqui não é um fenômeno da vida psíquica,
um estado da consciência e sim um modo de ser, um existencial. Heidegger lembra
bem que a primeira interpretação dos sentimentos não foi discutida no âmbito da
psicologia (Aristóteles investiga a πάθη no segundo livro de sua Retórica) e que
pertence à fenomenologia o mérito de ter recriado uma visão mais livre desses
fenômenos. (HEIDEGGER, 2002a, p. 193). Com o fenômeno da disposição, mais
conhecido por todos como o estado de humor (Stimmung), Heidegger quer nos fazer
ver uma outra possibilidade de compreensão. Os humores que fazem parte do
Dasein cotidiano não são um nada e a atividade racional não é nem a única nem a
forma mais originária de pensar o Dasein. Pois, o fato de o Dasein, no estado de
humor, sempre se deparar com o seu ser enquanto Da nos faz ver que a
compreensão não é uma atividade subjetiva do sujeito e sim um modo de ser do
90
Dasein.
É, portanto, no modo “deficiente” (defizienter)28 de preocupação que o
Dasein se mantém na maioria das vezes, modo que caracteriza a convivência
(Mitainandersein) cotidiana, o modo ôntico da não surpresa. É também este modo
indiferente da convivência que pode, talvez, desviar a interpretação ontológica de
nós mesmos como seres simplesmente dados de vários sujeitos. Heidegger salienta
os modos positivos (existenciais) nos quais a preocupação se manifesta em dois
extremos: i) no modo impróprio (uneigentlich), tomando o lugar (einspringen) do
outro; e ii) no modo próprio (eingentlih), antepondo (vorausspringt) o outro. O
primeiro modo caracteriza a de-cadência do Dasein. Vale, contudo, ressaltar que a
de-cadência não deve aqui ser entendida no sentido nietzscheano como processo de
degeneração e dissolução do ser. Em Heidegger ela não exprime um sentido
negativo, mas apenas o modo como o Dasein está “antes” de tudo e na maior parte
das vezes – “junto e no 'mundo' das ocupações”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 236). Aqui
ele “retira” o “cuidado” do outro e se mantém nas ocupações, esquecendo-se dele
próprio enquanto “cura”. O fato dele não ser ele próprio é, todavia, uma possibilidade
positiva do Dasein cotidiano. É, como dissemos, o modo no qual o Dasein se
compreende de início e na maior parte das vezes. No outro extremo temos o modo
que deixa o outro livre para a sua possibilidade mais própria. É essa relação própria
que inicia o originário ser-com outros, a “solicitude”, como tal, “que libera o outro em
sua liberdade para si mesmo”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 174). A convivência
cotidiana sempre se mantém entre esses dois extremos: a substituição dominadora e
a anteposição libertadora. (HEIDEGGER, 2002a, p. 174). Esses títulos não estão
querendo designar meramente o que fazemos e sim as possibilidades constitutivas
da preocupação em sua propriedade e impropriedade. Isso implica dizer que o
mundo libera também Dasein, isto é, os outros em seu Dasein-com, além dos
utensílios. Portanto, no ser-com os outros já estão abertos em seu Dasein, ou seja,
já “são” no mundo.
Porque essa abertura dos outros também perfaz a mundanidade em geral
(significância), é que os outros não podem ser algo simplesmente dado, nem sujeitos
largados em meio aos outros sujeitos, também considerados como simples
28 Esse termo não deve indicar o sentido pejorativo de imperfeição ou falta; deve, contudo, indicar
apenas o modo próprio da preocupação na cotidianidade, isto é, o modo como o Dasein é na
maioria das vezes.
91
presença. Essa abertura não possui o caráter de uma compreensão teórica ou
psicológica, mas o da convivência “temática” (que não se opõe à prática). No quadro
da analítica existencial não faz sentido, portanto, falar desse fenômeno nos termos
da empatia, como nos diz Heidegger, justamente porque o “outro”, ele mesmo,
possui o modo de ser do Dasein, como já ficou claro. A título de conclusão temos
então o seguinte:
O ser-com é um constitutivo existencial do ser-no-mundo. O Daseincom se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao
encontro dentro do mundo. Na medida em que o Dasein é, ele possui
o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o
resultado da soma de vários sujeitos [...] Empenhando-se no mundo
das ocupações, ou seja, também no ser-com os outros, o Dasein
também é o que ele próprio não é. (HEIDEGGER, 2002a, p. 178).
O ser-com do Dasein possui, portanto, um significado ontológico-existencial
e não o sentido ingênuo de que não estamos sozinhos, justamente porque não
compreendemos o ser para o outro como empatia. Mesmo quando o Dasein está só,
ele é ser-com no mundo; por isso, o estar sozinho somente é possível porque o
Dasein é ser-com. Também quando dizemos está realmente só diante de uma
multidão, os outros não são naquele momento algo simplesmente dado, são,
contudo, Dasein-com ainda que no modo da estranheza ou distanciamento. O
Dasein-com dos outros “vem ao encontro no modo da indiferença e estranheza”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 172). É por isso que Heidegger chama o “outro” de Daseincom. O fato da estranheza nos mostra que o “outro”, enquanto constituição
fundamental do ser-no-mundo, nunca pode ser uma simples presença e sim um
modo próprio do Dasein, de que ele “é” um existencial. Constituindo, assim, o não
familiar no seio da familiaridade. Pois, o “outro” é constitutivo de proximidade à
medida que vem aqui a ser aquilo que já sempre é. Há, contudo, uma diferença
fundamental entre o não se sentir tocado pelos outros, entre a “falta” do outro e a
“indiferença” própria das coisas. É neste sentido que Heidegger nos diz que a
cadeira nunca pode tocar a parede mesmo que se constate um espaço igual a zero
entre ambas. (HEIDEGGER, 2002a, p. 93). Isso porque só a partir do mundo o ente
poderá se tornar um ente simplesmente dado. Duas coisas, portanto, não podem se
“tocar”, não podem nunca estar juntas uma da outra, justamente, porque são
destituídas de mundo; pois só o Dasein possui mundo.
92
Mas, como dissemos anteriormente, o ser com os outros pertence ao ser do
Dasein. Ele é um existencial, e como tal, é o único ente que sendo, está em jogo seu
próprio ser. Desse modo, enquanto ser-com o Dasein sempre “é” em função dos
outros. Nesse caso, nossas relações para com os outros são marcadas pelo que
Heidegger vai chamar “impessoal” (das Man), como diz no § 27 em resposta à
pergunta pelo “quem” do Dasein na convivência cotidiana. Portanto, a chamada
“compreensão do outro”, em Heidegger, pertence à compreensão do ser do Dasein.
Essa compreensão não é nem teórica nem prática, mas existencial, o que torna
possível o conhecimento, o reconhecimento e a determinação ôntica da empatia.
Assim, a relação ontológica com os outros se torna, pois, projeção do ser-próprio
para si mesmo “num outro”. O outro é um duplo de próprio. (HEIDEGGER, 2002a, p.
177). É, de fato, um compreender na preocupação que consiste num compreenderse, num preocupar-se. Isso, porém, não quer dizer que a filosofia de Heidegger
comprometa o estar com os “outros” e priorize um compreender individualista. Não
significa que o Dasein assume uma postura egoísta; na verdade, “ser em função de
si mesmo” diz respeito ao próprio ser do Dasein e não propriamente ao ser do
homem. Isso significa que o “em função de si” possui um caráter ontológico e não
ôntico e, como tal, deve seguir a circularidade do Dasein, isto é, a circularidade da
compreensão. Compreendendo a si mesmo em seu ser, o Dasein compreende o ser
e, compreendendo o ser, compreende a si mesmo.
O preocupar-se do Dasein é a condição de possibilidade para que ele se
determine segundo este ou aquele comportamento. O ser com os outros possui,
assim, o modo de ser da convivência cotidiana. Veremos mais adiante o caráter de
impessoalidade do Dasein como o modo existencial que define o ser do Dasein
cotidiano.
3.4 O ser-próprio do outro e a morte
As análises do ser-com e do Dasein-com mostraram que o Dasein não é a
cada vez ele mesmo no sentido próprio e sim os outros em termos do impessoal, e
que por essa razão, o eu não é mais um “ego” no sentido cartesiano. Mas sim um
“eu” sou os outros. Porém, vimos também que a impropriedade do Dasein não
93
designa um modo inferior de ser, pelo contrário, determina uma compreensão
concreta do Dasein “em seus ofícios, estímulos, interesses e prazeres”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 78).
A análise precedente, contudo, acena para uma diferença com a descrição
ontológica do fenômeno da morte (segundo tomo da obra) como a possibilidade
“mais própria” do Dasein. Neste sentido, a morte é o fenômeno que mais singulariza
o ser do Dasein e, portanto, é aqui que o Dasein deixa de ser-com os outros na
impropriedade. Assim, a análise ontológica do “ser para a morte” (Sein zum Tode) é
essencial nesse contexto uma vez que representa a possibilidade mais própria do
Dasein de ser com o outro na diferenciação com a possibilidade do próprio
impessoal, no que se segue a estrutura fundamental da preocupação, enquanto o
“originário” modo de ser-com o outro. Aqui também, Heidegger aponta para a
possibilidade de o Dasein negar o modo impróprio no qual ele vive originária e
frequentemente e assumir a propriedade de seu poder-ser, antecipando-se diante de
seu poder-ser mais comum e, por isso, impróprio. O Dasein pode, de fato, negar o
seu poder-ser mais próprio no modo público do impessoal, mas jamais pode rejeitálo ou retirar-se dele, uma vez que só há compreensão numa relação de
circularidade. Isso significa que o Dasein não se relaciona apenas com os entes
segundo o modo da ocupação, mas também pela preocupação. Também aqui o
Dasein projeta seu ser próprio em sua propriedade. Pois, o Dasein só chega ao seu
poder-ser próprio como uma possibilidade ontológica, isto é, uma possibilidade da
possibilidade de ser.
No fenômeno originário da morte e, por consequência, no fenômeno da
preocupação, Heidegger observa a possibilidade de o Dasein não se compreender
na impropriedade, justamente porque aqui é dado a ele uma capacidade de “ouvir a
voz do ser”. Pois, devemos ter sempre em conta que “o ser com os outros pertence
ao ser do Dasein, que sendo, está em jogo seu próprio ser”. (HEIDEGGER, 2002a,
p. 175). Porém, é exatamente na morte que o tema do outro aparece propriamente.
Ou seja, é aqui que o Dasein pode experimentar uma relação própria com o outro.
Mediante o modo fundamental da preocupação, enquanto estrutura
constituinte da Sorge e, por isso mesmo, entendida como o estar com o outro em
sentido próprio ou originário, espera-se que o Dasein se assuma como um ser-paraa-morte e que, então, questione sobre a finitude de seu ser. À medida que
94
compreende que é finito, assume a singularização de seu ser na morte, isto é,
assume o seu poder-ser “mais próprio”. E assim, na compreensão de que o outro
também é um Dasein, dar-se, então aqui, o outro como outro, como o poder-ser que
já desde sempre é.
Acompanhando Heidegger, podemos dizer, então, que o Dasein, mesmo na
morte, fenômeno intransferível e insuperável que é por ele assumido explicitamente
como sua possibilidade mais peculiar, revela o fato paradoxal de ser aquilo que ele
não é. Na verdade, o termo Dasein serve exatamente para designar alguma coisa
que ele não é, a sua dependência em relação ao outro para poder ser ele mesmo.
Mas isso só até o Dasein assumir a morte como o seu poder-ser mais próprio, como
um fenômeno da própria existência. Pois aquele caráter negativo da morte, o qual
limita nosso poder-ser, isto é, nossa existência, só é levado em conta na medida em
que a morte é entendida como um fim físico da vida, em seu sentido vulgar.
Entretanto, enquanto antecipa (compreende) a morte (o futuro), o Dasein sempre
pode negar o impessoal e, dessa forma, compreender-se na possibilidade da
impossibilidade da convivência cotidiana. A morte como antecipação do poder-ser do
Dasein revela que o seu poder-ser só pode ser assumido por ele mesmo e, como tal,
como o único fenômeno que se refere exclusivamente ao si-mesmo do eu. A morte
como antecipação singulariza o Dasein. É, portanto, a análise existencial da morte
que permite a Heidegger entender o outro como aquele que igualmente pode ser
“livre” para seu poder-ser mais próprio, na medida em que somente na morte o
Dasein é a impossibilidade de ser-com os outros entes e de se tornar acessível
como algo simplesmente presente ou como instrumento; como também é segundo o
modo da preocupação que o outro se nos revela na diferença do encontro com as
coisas, na ocupação como instrumentos ou objetos, apesar de ela, a preocupação,
apenas se dar no círculo dos entes na ocupação.
Daqui se depreende o “espaçamento” constitutivo da preocupação. Num
sentido positivo ou ontológico, a preocupação concede um caráter de abertura para
a nossa relação uns com os outros. O outro nunca se faz presente ou aparece,
assim, como uma cadeira ou uma pedra. Por isso dizemos que o outro não é objeto,
que é em seu ser-no-mundo que ele se manifesta. Esse não aparecimento do outro
é, sem dúvida, o objeto de análise do quarto capítulo de Ser e Tempo que, por
conseguinte, se encontra na mesma dimensão ontológica da análise posterior da
95
morte como “antecipação”.
Em contraponto a isso, com os conceitos fundamentais de ser-para-a-morte
e de ser na preocupação, enquanto estrutura ontológica do ser-com, o modo
cotidiano como nós enfrentamos a morte, descrito por Heidegger no § 47, é o
exemplo que mais se enquadra dentro da interpretação do eu como momento do
“impessoal”. O Dasein cotidiano faz de tudo para afastar a morte do seu convívio
social como forma de aliviar o seu “encargo” de ser. O que ocorre, porém, é que este
“desencargo de ser” do impessoal traduz a nossa fuga29 diante da morte que, por
sua vez, caracteriza a impropriedade de ser do Dasein. Portanto, conforme
dissemos, o Dasein só pode ser propriamente na medida em que morre. Mas, como
acontece com os demais conceitos também o de morte foi apreendido de forma
inadequada. Heidegger não entende a morte como um processo biológico e sim
ontológico. Esse sentido ontológico nos diz que só porque o Dasein está vivo é que
ele pode morrer. Pois, “é existindo que o Dasein morre de fato, embora, de início e
na maior parte das vezes, o faça no modo da de-cadência”. (HEIDEGGER, 2002a, p.
33). Logo, não é por acaso que dizemos correntemente – “para morrer basta estar
vivo”. Só podemos morrer enquanto ainda estamos vivos. Porém, estamos sempre
jovens ou velhos demais para morrer, na concepção própria impessoal; deve-se, no
entanto, morrer quando se é jovem ou velho.
Em linhas gerais, Heidegger nos diz que a desconfiança de que a morte dos
outros pode nos levar à experiência de nós mesmos como tal repousa sobre a
seguinte pressuposição enganosa: é possível fazer a substituição de um Dasein por
outro com base no que é feito constantemente na cotidianidade da ocupação. Aqui a
substituição sempre se realiza “em” ou “junto” a alguma coisa, isto é, na ocupação
de alguma coisa. Corriqueiramente, o Dasein evita a morte, encobrindo para si
mesmo o ser-para-a-morte mais próprio. Essa fuga caracteriza a “de-cadência”30 do
Dasein.
Sabe-se, portanto, que o Dasein não é ele próprio enquanto convivência
29 Este caráter de fuga possui aqui um sentido ontológico, ou seja, a fuga é um elemento constituinte
do ser do Dasein.
30 Conforme o “Dicionário Heidegger”, os verbos cair, tombar é fallen, “queda” é Fall. O prefixo ver dá
a verfallen ideia de declínio, deterioração. Mas apesar desse significado literal de deterioração,
verfallen não é um termo de desaprovação moral. A queda não é acidental, ela já sempre se deu;
o Dasein, em seu poder-ser mais próprio já caiu de si mesmo e de-caiu no mundo, uma (ultra)
passagem que só se realiza na angústia.
96
cotidiana. Sendo, ele é outro na medida em que assume o modo do “impessoal” ou
se preferir, do “a gente”. Aqui a preocupação assume a forma do impessoal, na qual
nos compreendemos a partir dos outros enquanto nos subtraímos de “nós mesmos”.
Neste sentido negativo, mas originário porque é um dado que pertence ao poder-ser,
isto é, à existência, o “quem” do Dasein não é este ou aquele, nem o próprio do
impessoal, nem alguns nem muito menos a soma de todos. O “quem” é o neutro, o
impessoal. (HEIDEGGER, 2002a, p. 179). Vivemos, diz Heidegger, a “ditadura”
(Diktatur) do impessoal. 31
No § 51, Heidegger caracteriza o cotidiano do Dasein como uma
impessoalidade própria expressa no falatório. Ali ele pergunta pelo tratamento dado
à morte no modo impessoal e sugere que na convivência cotidiana “fala-se” de
“casos de morte”, da morte do outro, negando-se a cada vez a possibilidade de uma
morte imediata. É um fenômeno que, embora esteja prestes a ocorrer, é algo de que
não devemos nos preocupar. Pois, a morte é sempre a morte dos outros.
Assim, sem que o Dasein se dê conta, o impessoal assume a condição dos
outros e “consolida seu poder”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 179). A morte, nesse
contexto, não constitui uma ameaça. Fala-se publicamente sobre a morte,
desconsiderando-se o fato de que não se pode experimentar a morte dos outros e
que a morte é sempre minha. De acordo com esse discurso, a presença “perde-se”
no impessoal no que se refere ao seu poder-ser mais próprio. É assim que durante
uma doença grave costuma-se convencer o moribundo de que ele escapará à morte,
buscando-se, dessa forma, tranquiliza-lo a respeito dela.
A tranquilização do Dasein através do impessoal é um modo implícito de seu
comportamento perante a morte. “Considera-se” que pensar na morte é sinal de um
temor covarde. Essa indiferença, própria da de-cadência, “aliena o Dasein de seu
poder-ser mais próprio e irremissível”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 37). O ser-para-amorte cotidiano constitui já desde sempre uma fuga dele mesmo, sendo um “decadente”. A fuga do de-cadente da morte, mesmo não sendo um pensar
explicitamente na morte, demonstra que o impessoal se determina como ser-para-amorte. Ou seja, a análise da fuga cotidiana da morte serviu, pelo menos, para
31 Fizemos questão de transcrever a expressão ditadura do impessoal de Ser e Tempo para explicar
que ela não possui aqui o sentido negativo de algum tipo de imposição que faz uso da força ou da
violência, seja ela física ou psicológica. Trata-se, antes, de uma forma ontológica de domínio; faz
parte do poder-ser de todo Dasein essa forma imprópria da existência. Em contraparte temos a
possibilidade do ser si-mesmo próprio da existência.
97
visualizar a morte como fenômeno. Isto prova que uma análise do Dasein cotidiano
não exclui, em princípio, a possibilidade de se fazer uma experiência ontológica do
Dasein que se abre nos fenômenos próprios desta região.
O ser-para-o-fim foi determinado como o ser-para-a-morte a partir da análise
do modo da cotidianidade. A começar de uma investigação complementadora do
“ser-para-o-fim cotidiano”, Heidegger pretende chegar ao ser todo do Dasein, isto é,
ao sentido existencial de morte. A cotidianidade, diz ele, não duvida da morte; da
morte ela tem certeza ainda que não em sentido próprio, porque tal certeza tem a
função de encobri-la. É assim também com o ser-com de cada um. A diferença
característica do ser-com, que a cada vez ganha força na cotidianidade, rouba o seu
poder-ser mais próprio, ou seja, coloca-o sob o domínio dos outros.
“Estar-certo de” significa: “ter por verdadeiro enquanto verdadeiro”. É, então,
compreender alguma coisa pelo testemunho da própria coisa (adequatio res et
intelectus). O encobrimento da morte pelo Dasein cotidiano indica que o Dasein está
na não-verdade (entendendo-se verdade como alethéia - des-velamento, descobrimento). A certeza do Dasein cotidiano é um ter por verdadeiro inadequado, mas
não é uma dúvida ou incerteza. A morte, vista pela impessoalidade, é um fato da
experiência. Nesse caso, ela é interpretada do ponto de vista meramente biológico.
A cotidianidade tem a certeza empírica do deixar de viver, mas não da morte
no sentido existencial. Por outras palavras, “pensa-se” na morte biológica como algo
certo, mas que se realizará num futuro bem distante. Contudo, a morte não é
pensada como algo possível a cada momento. A morte é certa, mas o seu quando é
indeterminado.
A indeterminação do quando da morte revela que o ser-todo do Dasein não
coincide com o deixar de viver, uma vez que a morte não é simplesmente deixar de
viver, mas um morrer-se um pouco a cada dia. Por essa razão, a interpretação do
ainda-não do Dasein como pendência é incorreta “devido à sua não totalidade”.
Enquanto nos empenhamos no mundo das ocupações, inibimos, por assim
dizer, a surpresa de nossas relações e nivelamos toda e qualquer primazia que,
incessantemente, se impõe. Por isso, a impessoalidade, inerente ao modo de ser da
cotidianidade, retira do Dasein a sua responsabilidade e, por assim dizer, o seu
encargo e “impõe” a cada um de nós uma vida de “superficialidade” e “facilitação”.
Lembrando sempre, como já ficou dito, que estes vocábulos não possuem um
98
sentido negativo e que são, contudo, determinações existenciais do próprio Dasein.
O quem é, na verdade, “ninguém” (Niemand) “a quem o Dasein já se entregou na
convivência de um com o outro” (HEIDEGGER, 2002a, p. 181). Porém, o impessoal,
enquanto ninguém, não é um nada, mas também não é algo simplesmente dado que
se dá em conjunto com outros sujeitos, nem tampouco um “sujeito universal”, mas
possui o caráter de Dasein, e como tal, é um existencial, uma constituição positiva
do Dasein.
Após haver estabelecido o modo impróprio do Dasein de se relacionar com a
morte, Heidegger questiona agora a possibilidade de um poder-ser existenciário.32
Num primeiro momento, parece que Heidegger tenta explicar o sentido próprio do
ser-para-a-morte a partir da negação de sua impropriedade. A fuga de-cadente da
morte é um ser-para-a-morte impróprio. Mas pensar a possibilidade de um ser-paraa-morte próprio é “uma possibilidade existenciária do Dasein”. (HEIDEGGER, 2002b,
p.43).
Então, o ser-para-a-morte é caracterizado como uma “possibilidade
privilegiada do próprio Dasein”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 44). Ser-para-a-morte não
é simplesmente ocupar-se de sua realização como o que está à mão, como algo
disponível. Isso, por outro lado, significa simplesmente deixar de viver, uma vez que
a morte é uma possibilidade que deve ser mostrada o mínimo possível pela
compreensão comum.
O ser-para-a-morte é uma antecipação dessa possibilidade e não, ao
contrário, o seu adiamento. A antecipação da morte constitui a possibilidade de
compreensão do poder-ser mais próprio e extremo do Dasein. Como já dissemos, a
compreensão do Dasein do seu ser-para-a-morte como possibilidade mais própria
desentranha-a do nível da impessoalidade e indica que esse poder-ser só pode ser
assumido por ele mesmo. A antecipação torna possível a compreensão do Dasein no
seu poder-ser-todo existenciário.
Apesar do ser-para-a-morte caracterizar-se como o modo de ser próprio do
Dasein, a morte, embora certa, é indeterminada, colocando sempre o Dasein diante
de uma ameaça. Somente a angústia pode manter o Dasein aberto para esta
32 O termo existenciário refere-se a uma possibilidade ôntica aberta para o Dasein e a compreensão
que o Dasein possui dela e as escolhas que faz são, portanto, assuntos existenciários. Para
relações ônticas, usa-se o termo existenciário (Existenziell) e para relações ontológicas usa-se
existencial (Existenzial). (INWOOD, 2002, p. 59-60).
99
ameaça. Em suma, a antecipação coloca o Dasein “diante da possibilidade de ser
ele próprio: […] na liberdade para a morte”. (HEIDEGGER, 2002b, p.50). Nesse
sentido, só a morte individualiza o ser do Dasein. Ela nos coloca perante o nosso
próprio ser. É por isso que, a partir da análise da morte, fenômeno que nos coloca
em vista de nosso ser mais próprio, é que podemos chegar à interpretação do modo
próprio de ser outro, à medida que se concebe o Dasein em sua propriedade, isto é,
no seu ser-com existencial. No modo da propriedade, o Dasein pode liberar “o outro
em sua liberdade para si mesmo”. Isto quer dizer que, “no ser-com, enquanto o
existencial de ser em função dos outros, os outros já estão abertos em seu Dasein”.
(HEIDEGGER, 2002a, p. 174).
Em suma, o “próprio” do Dasein vem ao encontro “no” mundo, de “início” e
na maior parte das vezes, como o “próprio-impessoal”, e nesse caso, buscando
sempre encontrar a si mesmo. É desse modo que o ser-no-mundo se torna explícito
em sua cotidianidade e medianidade. Assim, na convivência cotidiana, o Dasein é
“na maioria as vezes” ser-com e ser-próprio no impessoal. Mas, veja bem, essa
interpretação do ser mais imediato como impessoal não significa que esse modo de
ser seja um mero nada ou outro Dasein; trata-se do mesmo Dasein, só que, nesse
caso, “modificado".33
A “publicidade” do impessoal e a “de-cadência”, enquanto não representa
prejuízo à possibilidade genuína de recuperação do Dasein, apenas quer mostrar
“um modo existencial de ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2002a, p. 238), o mais
básico e fundamental modo de ser do Dasein. “De-cair no mundo” indica o empenho
na convivência na medida em que esta é conduzida pelo falatório, curiosidade e
ambiguidade”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 237).
Agora sim, diz Heidegger, o modo de ser impróprio ou a impropriedade com a
descrição fenomenológica da decadência pode ser determinada mais precisamente.
A análise ontológica da “de-cadência” que se desentranha da “algazarra da
compreensão impessoal”. (HEIDEGGER, 2002b, p. 86). Essa interpretação,
entretanto, não deve aqui exprimir qualquer avaliação negativa, em vez disso, deve
apenas indicar que o Dasein está “junto” e no “mundo” das ocupações, “privado” de
seu ser. Platão tinha concebido, conforme aludimos antes, o fenômeno da privação
como um processo ontológico (como um vir-a-ser): “uma vez que o ser é privado de
33 Ver nota 25 da terceira seção deste capítulo.
100
si mesmo, ele será não-ser”. (PLATÂO, 2007, 245a-246a). A impropriedade do ser
não deve ser concebida como uma situação concreta onde se prefere um modo de
viver a outro. Por isso, embora esse “estar junto” ao mundo já tenha sido anunciado
no § 12 de Ser e Tempo, somente agora (§ 38), mediante uma discussão acerca do
modo de ser da cotidianidade, de uma interpretação ontológica da “de-cadência”, é
que ele se torna mais visível. Este empenhar-se e estar junto se deixa dominar pelo
mundo na medida em que possui o caráter ontológico de “perder-se na publicidade
do impessoal”. (HEIDEGGER, 2002a, p. 237).
Daí se dizer que, na impropriedade, o Dasein nem perde totalmente o seu
ser nem diz não mais estar no mundo e sim um modo especial de ser-no-mundo.
Assim, enquanto determinação existencial do Dasein é, portanto, uma possibilidade
positiva, é de fato o modo mais próximo e familiar do Dasein.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Faz nove décadas desde a publicação de Ser e Tempo e o ser-com
estabelecido no interior da “analítica existencial” continua provocando calorosas
discussões e abrindo caminhos que envolvem ética, política, arte, ecologia e tantos
outros campos de investigação. Em linhas gerais, esse trabalho mostrou, porém,
que de Heidegger não se pode esperar uma demonstração meramente teórica da
filosofia, nem muito menos uma simples descrição fenomenológica do modo prático
de ser-no-mundo, a qual serviria apenas de auxílio no processo de reformulação das
ciências. O ser-no-mundo do Dasein, enquanto constituição mais fundamental desse
ente, não se confunde com o comportamento. A práxis constitutiva do ser-no-mundo
e, por sua vez, do modo de ser-outro é uma condição transcendental, porém
diferente da concepção tipicamente transcendental de Kant. Na medida em que se
buscou o acesso fenomenológico-hermenêutico ao modo de ser-outro, o ser-nomundo, segundo nossa perspectiva, está num limite entre o transcendental e o
concreto. Transcendental, uma vez que a questão exige certa “compreensão” que é
fundamental; concreto, porque esta compreensão não é uma atividade do
entendimento e, portanto, não se define a partir da subjetividade da consciência.
A compreensão é um modo de ser do Dasein. O Dasein é, antes de tudo, um
ser temporal, uma vez que “antecipa” o seu futuro e está sempre adiante de si
mesmo e também atrás pelo fato de fazer alusão ao seu passado. É importante
insistirmos sobre este aspecto temporal do Dasein na medida em que somos da
opinião de que a filosofia de Heidegger representa uma filosofia menos subjetivista,
menos pura, sem, contudo, torná-la uma mera atitude do homem, dado o seu caráter
“essencial” de possibilidade finita.
Nesta perspectiva, foi possível evidenciar que o caráter fundamental do
modo de ser-outro em Heidegger desempenha um papel central no interior da
analítica existencial. Levado por seu esforço em retomar a questão fundamental da
filosofia (a questão do ser), tomou como tarefa primordial a questão do sentido de
ser, o qual é impassível de objetivação. É por isso que, para Heidegger, não existe
uma esfera egoísta e solipsista ante uma esfera externa que a filosofia moderna
102
denomina de “outro eu”. E o modo de ser para o outro como empatia reforça
justamente esta concepção moderna. A empatia é a segurança de que o “eu” fará
comunicação com o “outro eu”. É este processo mental que define a chamada
“relação com o outro” na filosofia moderna da subjetividade. Isso porque o “eu”
continua sendo, de início, um eu voltado para o seu interior. Heidegger acha que é
possível manter tal relação, mas sem que haja necessidade de situar o outro
exteriormente ao “sujeito”, a quem chamou de Dasein. O ser com o outro já pertence
ao ser do Dasein, de modo que em “seu” ser ele já é desde sempre um ser-com.
Dessa maneira, o “outro” aqui não se apresenta como algo que está lá fora e que é
tomado pelo eu de maneira totalmente indiferente.
Portanto, todo Dasein apresenta em sua essência um ser-com. Somente
porque o Dasein é determinado como ser-com é que pode ele se compreender em
comunidade com os outros, numa relação de afinidades e interesses comuns e não
o contrário. Na verdade, este modo fundamental, o ser-com, deve ser entendido na
constituição neutra do Dasein, no fato de que o Dasein não é nem masculino nem
feminino. Para o Dasein ser faticamente ou segundo o gênero masculino ou
segundo o gênero feminino, ele precisa já conter essencialmente um ser-com. Por
isso, entendemos que a neutralidade de seu ser é já desde sempre rompida por ele.
Em resumo, o “outro” de Heidegger constitui um ser-outro, uma existência
que se realiza enquanto atividade de um ser e não como estado da consciência.
Neste sentido, o outro mesmo, o outro enquanto tal é um modo de ser da própria
existência do Dasein. Em razão disso, Heidegger conseguiu tomar certa distância do
ideal moderno da consciência. Por meio do ser-com, o Dasein é também outro, isto
é, Dasein-com. O Dasein em sua existência é já ultrapassado. Desta maneira, a
ontologia hermenêutica de Heidegger se destacou, por exemplo, da fenomenologia
transcendental de Husserl apesar da novidade trazida por este em relação ao
idealismo alemão. Desde então se pode falar num outro, que tendo um sentido, não
se constitui na perspectiva do conhecimento. Justamente porque, para Heidegger,
ser-com o outro não é se relacionar com um objeto. Compreender o outro não é
tender em direção a um objeto, não é, portanto, representar.
A diferença se refere exatamente ao modo como esse compreender se dá.
Para a fenomenologia tradicional o compreender não se constitui pela história. Para
Heidegger, em contraste, a compreensão do outro só é possível como ser-no-
103
mundo, ou seja, como compreensão do ser. E esta compreensão, por sua vez, só se
realiza na história; em síntese, a compreensão do outro é uma maneira de o Dasein
se relacionar com o seu próprio ser e não uma atividade do intelecto.
No que concerne à nossa questão proposta – o outro na fenomenologiahermenêutica de Heidegger – tentamos mostrar aqui como o problema do sentido de
outro é colocado na “analítica existencial”. Ao se perguntar pelo “si mesmo” (o quem)
do Dasein, pergunta-se em que consiste ser esse “si mesmo” no modo existencial da
cotidianidade. Heidegger, então, responde: o si mesmo não significa originariamente
um “eu”, no caso de esse “eu” for entendido como uma criação do sujeito. O si
mesmo do Dasein não chega a sua completude através da reflexão sobre si; a
tomada irrefletida (indiferente) em direção a algo também constitui um ser si mesmo.
Compreende-se a partir daí que o Dasein é um ser finito, já desde sempre é um sercom o ente: o ente intramundano e o Dasein, e não um ser em si vazio e abstrato.
Essa orientação do ser-com sempre em direção ao todo mostrou, portanto,
que o ser-com na “preocupação” com outros “Dasein” difere do ser-com junto à
“ocupação” de entes simplesmente presentes. As duas formas, portanto,
preocupação e ocupação, são essenciais para o ser-com o outro que, por sua vez
tornam possível o convívio social, nas suas mais variadas formas. Nessa
perspectiva, vimos até que ponto a filosofia de Heidegger caminha contra uma mera
apreensão pura das coisas. O outro, que Heidegger chama de Dasein-com pertence
ao mesmo círculo de manifestação. Pensemos, então, na presença do computador
em relação ao estudante. O estudante é um ser-com o ente-computador, ou seja, o
computador é um ente desvelado, “manifesto”. Ao contrário, para o ente-computador,
o estudante não é algo desvelado e o mesmo acontece quando este ente está junto
de outro ente intramundano. É por isso que os entes simplesmente presentes não
podem ser-com, ainda que contenham as mesmas características. Já sabemos que
o Dasein é essencialmente “fora”, portanto, nunca um Dasein está como que ao lado
do outro. É aí, então, que percebemos como Heidegger se distancia da tradição
moderna. Porque o ser-outro é parte integrante do eu. Só podemos dizer quem
somos (nós mesmos) a partir do momento em que dizemos quem não somos. Sem a
diferença, sem “o outro” a identidade não se mantém. Como Dasein ele só é saindo
de si; se assim não for, ele não é ele mesmo. É dessa forma, pois, que cada um já
pertence ao espaço de manifestação do outro. Em razão disso, podemos dizer, a
104
partir de Heidegger, que ao Dasein pertence um ser-com mesmo quando um outro
Dasein não está presente:
O ser-aí já traz consigo a esfera de uma vizinhança possível; ele já é
por si mesmo vizinho de... Em contrapartida, por exemplo, duas
pedras jamais podem ser avizinhadas. O ser-com implica: um liberar
e um passar adiante o aí – como algo que manifestamente irrompeu
e em que o ente pode por sua vez se anunciar segundo o seu modo
de ser. (HEIDEGGER, 2008b, p. 146-147).
Observamos, portanto, que Heidegger consegue, por assim dizer, falar do
outro, seja no modo próprio ou impróprio, porque consegue abandonar o
pensamento moderno tradicional de um total isolamento do “eu” ou de uma esfera
egoísta considerada de uma maneira idealista. O “outro” não é esse ou aquele, ou
seja, não é um fora de mim, mas é também um Dasein, um Dasein-com, e para que
possamos ser “na” esfera de manifestação do outro, isto é, para que o si-mesmo do
outro-Dasein seja descoberto, é preciso que haja uma dissolução do eu-egoísta. O
grande problema não reside na existência de um “eu”, mas na sua entificação. Sobre
isso nos diz Heidegger (2002a, p. 252):
A angústia singulariza e abre o Dasein como o solus ipse. Esse
“solipsismo” existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito
isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo.
Ao contrário, confere ao Dasein justamente um sentido extremo em
que ele é trazido como mundo para o seu mundo e, assim, como serno-mundo para si mesmo.
Por esse motivo, o tema da morte foi tão importante para as análises do seroutro em seu sentido próprio. A “compreensão do outro” depende de nosso ser-nomundo, em que nos compreendemos antecipadamente. Na decisão antecipadora da
morte o Dasein, enquanto um ser-com, se abre para o Dasein-com dos outros e não
se compreende mais como um ser presente, na medida em que o seu poder-ser se
abre na disposição fundamental da angústia. Pois, “o ser-para-a-morte é,
essencialmente, angústia.” (HEIDEGGER, 2002b, p. 50). Em suma, o ser-para-amorte é ser-com o outro no seu modo próprio à medida que compreende o outro
como o Dasein que já desde sempre é. Nesse contexto, a morte como antecipação
serviu para nos mostrar o sentido existencial de outro, na medida em que o outro
não é um “ele”, ou seja, um ser fechado no presente, mas um Dasein livre para o
105
seu poder-ser mais próprio, um poder-ser livre para ser o que já desde sempre é, um
Dasein.
A
filosofia
moderna
da
subjetividade,
em
contraste,
exige
uma
supervalorização do intelecto, fazendo crescer mais e mais o isolamento do eu. Esse
total afastamento se dá não pelo fato de se preservar a instância do eu, mas por se
achar que esse mesmo eu evidencia um mundo vazio e obscuro de entes-coisa.
Quando discorremos sobre o modo como o Dasein é no mundo, comentamos de
modo breve, o existencial “cura”. A importância desse existencial consiste, portando,
em tomar o ente Dasein e também o ente intramundano igualmente de maneira
empenhada. Como vimos, a preocupação com os outros pertence à estrutura da
cura. E o ser como cura só tem a unidade de seu ser na temporalidade. Neste
sentido, é como ser-para-a-morte que o Dasein é esse Dasein que já sempre é.
Pois, é justamente na antecipação da morte, mediante a angústia, que o Dasein
nega o ser com os outros na impropridade e compreende o ser-com dos outros
propriamente em sua alteridade.
Finalmente, o que tentamos fazer aqui não foi investigar a “questão do outro”
baseando-se meramente na terminologia heideggeriana. A nossa proposta consistiu
em mostrar o lugar dessa questão na analítica existencial como meio de despertar
para a “questionação” do questionamento do ser. Para tanto, consideramos
importante primeiro fazer uma exposição breve sobre a questão de fundo do
pensamento de Heidegger, a qual julgamos ser aquela que lhe permitiu superar a
metafísica tradicional – a “questão do sentido do ser” para, enfim, dar a direção para
a qual esta dissertação iria apontar. Por isso, finalizamos o primeiro capítulo
apresentando a chamada “questão do outro” e sua função no contexto de Ser e
Tempo. Em seguida fizemos uma exposição breve sobre a analítica existencial,
dando prioridade ao caráter de ser temporal e o de ser-no-mundo do Dasein. Ao
final, o terceiro capítulo apresentou a resposta de cunho fenomenógicohermenêutica de Heidegger à “questão do outro”. Essa parte final do trabalho
consistiu em mostrar como Heidegger trouxe o sentido de outro para o originário,
para o Da do Dasein. Isso significou evidenciar o caráter constitutivo do ser-outro,
uma vez que esse fenômeno faz parte da constituição fundamental do Dasein como
ser-no-mundo. E tal proposta só se fez claro na medida em que sempre se buscou,
segundo o modo existencial da Befindlichkeit (disposição), adentrar no outro mesmo
106
para conquistar o seu sentido e nada mais.
Sendo que o sentido de outro aqui fala de um sentido existencial. Ele fala de
um sentido “profundo” e “originário”, o qual é pensado como condição de
possibilidade finita da vida em sociedade. Pois, é só por causa desse “outro”, desse
“não”, que podemos, de fato, dizer o “estar só” e o “nós”. E só agora entendemos
porque Heidegger, quando busca respostas para a ipseidade do Dasein, a pergunta
não é “que é o Dasein?”, mas sim “quem é o Dasein?”. Pois, o Dasein não é uma
coisa dada e sim ele mesmo. A filosofia é essencialmente um dizer que se preserva,
está no domínio do não saber. Sendo possível agora dizer por que a compreensão
do outro enquanto compreensão do ser é um tanto problemática para a noção
comum de filosofia. É possível considerar que a filosofia tal como se entende
usualmente, ao não pensar o ser na diferença com o ente, tende a entender o ser de
maneira ôntica e, portanto, a separar o seu sentido de outro; a filosofia, desta forma,
tornou comum o referir-se ao si-mesmo como um eu e ao outro como um tu. Mas,
como diz Heidegger, “[...] o ofício da filosofia é, em última instância, preservar a força
das palavras mais elementares, em que o Dasein se pronuncia a fim de que elas não
sejam niveladas à incompreensão do entendimento comum, fonte de pseudoproblemas”. (2002a, p. 288). O ser, em sua origem grega, não é algo que se opõe ao
não-ser, considerando aqui apenas o que ficou acertado sobre a physis – como a
própria realidade.
Assim, o outro de Heidegger, como também todo e qualquer modo de ser do
Dasein, no fundo se revela como “um” caminho para se chegar ao “sentido do ser
em geral”, à essência finita das coisas que é a condição fundamental para qualquer
compreender. Entendemos, porém, por “essência”, não o significado corrente que
diz o que algo é, mas o modo como algo é naquilo que repousa no ser do Dasein,
isto é, no sentido do ser. Dessa forma, o ser-com e o Dasein-com enquanto
pertencem à ontologia fundamental34 seriam, então, a base para toda e qualquer
teoria que se diz uma “filosofia da alteridade” ou ainda para aqueles que se propõem
a falar sobre o outro.
34
Mas segundo a interpretação de Heidegger: “A Ontologia Fundamental não é meramente o geral em relação
às Ontologias Regionais, uma esfera mais elevada pairando acima delas (ou um porão que se encontra
abaixo) contra (ou na) qual as Ontologias Regionais podem proteger-se. Ontologia Fundamental é aquele
pensar que se movimenta no fundo de toda ontologia”. (2001, p. 206).
107
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