CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O SISTEMA DAS

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CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O SISTEMA DAS ARTES NA ESTÉTICA
HEGELIANA
David Barroso‫٭‬
A intuição sensível pertence a arte que confere à verdade
a forma de representações sensíveis. Estas
representações, enquanto tais, têm um sentido e uma
significação que ultrapassam a esfera puramente
sensível; não se propõem, todavia, por meio destes
modos sensíveis, tornar concebível o espírito em toda a
sua universalidade, pois é precisamente a unidade deste
com o fenômeno individual que constitui a essência do
belo e sua representação pela arte. Hegel.
A concepção do ser humano de ser humano remonta às origens da humanidade.
Além de sua condição ontofilogenética foi a exteriorização da interioridade do humano
que possibilitou sua diferenciação do reino animal. A origem dada em desenvolvimento,
a partir de uma lasca de pedra feito faca, é a hominização como teoria de formação
cultural. Foi pela transformação da natureza o nascimento da cultura: um movimento
reflexivo, essencialmente.
É no ato de transformar, ou mesmo de criar, que se dá a cultura. Na exteriorização
da interioridade ocorre a transformação da natureza em cultura e sua interiorização é a
formação cultural. No desenvolvimento da humanidade, a cultura abarca diversos níveis
desse exteriorizar. Tais níveis são caracterizados pelos graus de interiorização
exteriorizados. A cultura é própria do ser humano e o que é propriedade do humano é da
humanidade: o valor da cultura como patrimônio da humanidade.
Desta maneira, um animal irracional não exterioriza seu interior, pois em seu
interior reina a necessidade da natureza. Um interior instintivo não é um interior que
possibilita o domínio dos intintos. É justamente o contrário. Um animal é dominado
pela necessidade da natureza, mas enquanto o humano, animal racional, é o
autodomínio não só de sua natureza, mas da natureza. Deduz-se já que o ser humano
também possui instintos. Sua animalidade, qual é instinto, ou é o início do seu
desenvolvimento interior ou mesmo o seu cessar. Seu autodomínio expressa o
desenvolvimento do pensamento como consciência até a realização da liberdade.
‫ ٭‬Bacharel em Agronomia pela Universidade Federal do Ceará – UFC; graduando em Filosofia na
Universidade Estadual do Ceará - UECE; monitor da disciplina História da Filosofia IV; integrante do
Grupo de Pesquisa Ética e Direitos Humanos (CNPQ); e participante do Grupo de Trabalho Hegel Ceará (ANPOF), sob orientação da Profa. Dra. Marly Carvalho Soares. E-mail:
[email protected].
A liberdade, nesse caso, precisa ser realizada. O interior do humano é a necessidade
da liberdade. Na sua efetivação há o pressuposto do desenvolvimento. Como a liberdade
é desenvolvida para ser realizada, ela já se encontra no início: uma liberdade apenas
formal. Tem-se que a cultura, por ser exteriorização do interior, é também a liberdade
objetivada. A pluralidade cultural é gradação objetiva da liberdade. Sua interiorização é
a formação cultural como consciência de si e das interrelações reais e diversas até o
saber efetivo.
Por ter a essência a liberdade, o ser humano é um ser espiritual. A história da
humanidade corrobora a história da cultura. O ato cultural contém um ato de liberdade e
a concepção da cultura atinge toda vida e a própria vida. Assim, no desenvolvimento de
exteriorização da interioridade ou manifestação espiritual surge a arte. A arte enquanto
expressão é a aparência da essência, mas uma aparência essencial.
A arte exprime o espírito livre do artista na realização do belo para haver beleza
artística é a bela arte. Por ser o espírito desenvolvimento da liberdade, a arte também é
desenvolvida como graus de manifestação do belo na arte. A manifestação do belo
decorre da manifestação espiritual através das artes. Seu surgimento e desenvolvimento
é um resultado do progresso do espírito em sua formação histórico-cultural. Por isso,
ainda como progresso, é aparência essencial.
Tal é o escopo deste trabalho: considerar os elementos de ligação neste
desenvolvimento do belo como manifestação espiritual para compor o sistema das artes
particulares. Tal sistema encerra as artes particulares por não serem tomadas
aleatoriamente e sim como desenvolvimento progressivo, portanto idealizado no
desenvolvimento do espírito na efetivação da liberdade em autodomínio como
espiritualização da natureza, a cultura estética.
A concepção filosófica do estudo das artes chama-se estética. É, por meio dos
cursos de estética de G. W. F. Hegel, ministrados entre os anos 1820 e 1829, com
publicações póstumas, que este trabalho tem referência. É na filosofia e em sua
filosofia, onde Hegel concebe o grau máximo do desenvolvimento espiritual. E a
efetivação da liberdade é o domínio da razão, portanto da própria filosofia: a efetivação
da idéia. A idéia é a unidade. O subjetivo e o objetivo são os contrários inevitáveis desta
unidade, isto é, a idéia é a unidade do pensamento e da realidade, liberdade e natureza.
Do ponto de vista subjetivo como objetivo do conceito, a idéia é
o todo e ao mesmo tempo é o acordo, incessantemente
renovável e renovado, de todas as totalidades parciais, é a sua
unidade mediadora. Só assim a idéia é a verdade, toda a
verdade. (HEGEL, 1996, p. 138)
É na realização e apreensão dessa verdade absoluta que o espírito efetiva a idéia.
Não só no âmbito subjetivo, sobretudo no objetivo. Essa consumação dá-se como
espírito absoluto. O espírito absoluto desenvolvido é o verdadeiro filósofo, pois é a
negatividade absoluta de tudo que há. Entretanto, conforme o “conceito da filosofia é a
idéia que se pensa, a verdade que sabe”, (HEGEL, 1995, § 574) está acima de toda
particularidade, por isso é a universalidade das e nas particularidades.
Na filosofia desvela-se a verdade verdadeira. A idéia real. A razão que se pensa. O
espírito absoluto expresso no filósofo que tudo compreende é o discípulo que virou
mestre. Todavia, agora deve percorrer novamente o caminho. Reafirmar-se pela
autoridade racional. O que antes era fé, agora é efetivo. Não rejeita a fé, antes a
suprassume tornando-a consciente.
É pela fé que a religião mostra o espírito absoluto revelado. Este revela-se em
sentimento espiritual da idéia do espírito eterno. O grau máximo do espírito antes da
filosofia. Ulterior ao sentimento é a consciência. A filosofia é a efetivação da idéia
como tal, é a unidade desta religião revelada como subjetividade e da estética como
manifestação espiritual ainda concreta, portanto objetiva. Aqui a arte tem papel
importantíssimo, pois apreende a universalidade da e na natureza no caminhar
filosófico.
Ademais, o belo é também idéia que necessita ser objetivado na manifestação
criativa do artista. A beleza artística é a percepção do belo na arte, ou seja, o objetivo do
belo é ser percebido pelo apreciador em comunicação livre. De modo que “a função da
arte consiste em conciliar, numa livre totalidade, estes dois aspectos: a idéia e a
representação sensível”. (HEGEL, 1996, p. 91)
Enquanto filosofia especulativa no sistema hegeliano, a estética é antecessora da
religião revelada. Antes de revelar-se eterna e livre, a idéia é realizada no concreto. Na
religião é o sentimento espiritual que ganha o espaço do concreto e torna-se subjetivo.
Por conseguinte, o desenvolvimento das artes em sistema é o sistema das artes
particulares com início já pressupondo seu fim. Um fim que no desenvolvimento do
espírito será rememorado. Assim como um fim que tem em si seu início. Um
movimento renovado e renovável é o automovimento do conceito da idéia, logo do
próprio espírito a fazer história. Portanto a arte tem seu fim; um fim que também
repercute a desespiritualização da arte a partir de um dado momento da história, uma
arte comercializada – entretenimento mercadológico1.
Destarte, o sistema das artes particulares é formado pela arquitetura, escultura,
pintura, música e poesia. Seu desenvolvimento formal dá-se na arquitetura compondo a
arte simbólica; a escultura a arte clássica; e a pintura, música e poesia a arte romântica.
Na arte simbólica, a simbologia é a representação que o espírito faz no caráter exterior
da arquitetura. Na arte clássica, é a individualidade espiritual em identidade com a
realidade corpórea. Entretanto é na arte romântica que a beleza artística alcança o maior
grau espiritual em detrimento da matéria. O proêmio do seu fim.
O SISTEMA DAS ARTES PARTICULARES
ARTE SIMBÓLICA
A evolução filosófica do espírito no sistema das artes particulares da estética
hegeliana começa pela arte simbólica. Lugar da simbologia como representação da
representação. Uma representação artística no sensível para uma representação
espiritual. Um eco a soar na arquitetura.
A arquitetura é a arte que simboliza o espírito universal. Sua matéria prima é uma
matéria puramente exterior e objetiva, completamente bruta e orgânica. Não sua
engenharia, mas na expressão do espírito segue a expressão do belo. Mesmo a mais
1 A caracterização do fim da arte, que Hegel evidencia, repercute até nossos dias grandes discussões por
especialistas da filosofia da arte que esboçaram e esboçam suas teses. A arte é uma expressão do ser
humano e nela também se realiza espiritualmente enquanto humanidade, para tanto como poderia darse seu fim? Hegel aborda em seus cursos de estética a história da arte. Nestes cursos elenca a
subjetividade expressa em sua concepção máxima à poesia, cujo momento histórico remete ao
Romantismo Alemão, tendo como expoentes F. Schiller (1759-1805) e J. W. Goethe (1749-1832). O
Romantismo foi um movimento que delineava a arte, principalmente a literatura, ao âmbito da
natureza e essência humana com uma conotação idealista frente à desespiritualização como
mecanização, comercialização e cientificização dos processos vitais correlacionadas pelo não uso da
razão, de forma arbitrária. Será esse o fim da arte? Essa arte que expressa o universal subjetivo
humano? Schiller já em suas Cartas sobre a Educação Estética (1794-1995) expõe sua crítica na
Carta II a este momento, atualizado entre nós, “pois a Arte é filha da liberdade e quer ser legislada
pela necessidade do espírito, não pela carência da matéria. Hoje, porém, a carência impera e curva em
seu jugo tirânico a humanidade caída. O proveito é o grande ídolo do tempo; quer ser servido por
todas as forças e cultuado por todos os talentos. Nesta balança grosseira o mérito espiritual da Arte
não pesa, e ela, roubada de todo estímulo, desaparece do ruidoso mercado do século”. Sobre a citação
ver: SCHILLER, F. Cartas sobre a educação estética da humanidade. Trad.: Anatol Rosenfeld. São
Paulo, EPU, 1991. p. 38.
profunda realização espiritual da arquitetura ainda fica num campo vasto da
particularização.
A arquitetura, por ser simbólica, representa a morada do espírito: a habitação do
homem, o templo do divino. Assim dá-se, por um lado, o utilitarismo na arquitetura.
“Na arquitetura utilitária o fim é representado pela estátua ou, mais precisamente, por
indivíduos humanos, por uma comunidade, um povo, que procuram não a satisfação de
necessidade físicas, mas a realização de intenções religiosas ou políticas”. (HEGEL,
1997, p. 49)
Por outro lado, a arquitetura desvencilha-se desse utilitarismo e ganha sua
independência. Não está sujeita a um fim prático. O simbolismo é sua acepção máxima.
Este simbolismo dá-se na arquitetura gótica em reunião com o lado utilitário e o lado
independente. O espírito está a caminho de si na arquitetura através de suas exigências
espirituais: o culto e outros fins diferentes. Representação simbólica que escapa os fins
puramente racionais das retas e ângulos. Há somente uma afinidade entre o conteúdo e a
forma e é na escultura que se encontra esta fusão.
ARTE CLÁSSICA
Eis a escultura: identidade da individualidade espiritual com a realidade corpórea. A
fusão mencionada preenche a arte simbólica. A matéria prima da arquitetura e escultura
é a mesma. Não obstante, o sensível agora não ecoa o espírito, sobretudo incorpora
enquanto representação do espiritual. Imperfeita, claro, pois não expressa a interioridade
subjetiva, contudo a representa. A escultura é a figura humana privada de subjetividade.
“O conteúdo da escultura é formado não pelo ideal da figura humana em geral, mas
por um ideal definido e preciso, o que tem por efeito determinar no seu seio as
diferenças quanto ao modo de representação”. (HEGEL, 1997, p. 105) Assim, o humano
enquanto espiritual, subtraído das inquietações naturais e exteriores, é o divino. O que
não é transitório é aquilo que permanece: o espiritual. Então, a escultura representa essa
fusão do humano e o divino.
O modo de representação é diverso e individualizante. Surge a estátua isolada e tem
seu fim em si mesma, mas não a suporta isoladamente, sem ação. Nisso o grupo de
estátuas esboça a vida. Tenta dá animo através de situações. A vida sendo
pluridimensional precisa do relevo e da profundidade dos corpos para decodificar o
espiritual. Nesse ritmo, mormente, o material tem destaque. O que era simples material
orgânico, ganha a força do mineral para depois ter o valor das pedras preciosas como
vida reluzente.
O espiritual penetra na arte. Expõe seu valor na matéria no decorrer do tempo.
Egípcios, gregos, romanos e cristãos serviram-se das esculturas para alcançar a
representação espiritual. Claro que não só estes, mas aqui a transição da escultura às
demais artes tem na história esta condição. A transição é a dissociação da identidade da
interioridade espiritual com a exterioridade concreta: a arte romântica.
ARTE ROMÂNTICA
Na arte romântica a interioridade volta para si. A negatividade da exterioridade é
gradativa. A libertação da interioridade da exterioridade. Por mais livre que seja o
espírito da matéria na arte, ainda é sutil sua ligação. A exterioridade da interioridade é
da alma o sentimento e os impulsos do coração.
Destarte, o caminho do retorno a si passa primeiramente pelas figuras humanas e
naturais. A matéria, em relação a escultura, é mais fluída. A perspectiva tem mais força
que o relevo. O simbolismo e a forma espiritual reunem-se numa só e mesma obra: a
pintura nas artes plásticas.
O reflexo da subjetividade, como interioridade espiritual, na pintura é grandioso. A
matéria tem a dimensão da cor enquanto reflexo da luz é ainda dependente. E reflexo da
luz enquanto cor é de configuração visível e espacial. A dimensão material da pintura
também precisa ser negada e o desenvolvimento do espírito precisa estar exposto. Sua
exposição na arte é o crescente desligamento da matéria, sua negatividade absoluta. O
movimento da matéria é o som.
O som é a frequência evolutiva da matéria. Sua arte é a música. Uma arte
manifestada pelo som que se autodestroe pela audição. A autodestruição da música é a
evolução do som que ao afetar os sentidos interioriza-se imediatamente. Necessita do
compasso, ritmo, harmonia e melodia. A melodia é o que há de poético na música de
modo a ser a ressonância da alma. A objetividade deixou de ser exterioridade concreta,
real, passa a ser ideal.
A exterioridade que não se serve da matéria sensível, que é ideal, é a linguagem.
Expressão verbal. E a criação artística da linguagem, a arte do discurso, é a poesia.
Entrementes, a música também possui uma linguagem verbal.
A interioridade procura manifestar-se, mas já não se satisfaz
com o elemento sonoro puro e simples, ainda que imaterial;
pretende realizar-se completamente, confundindo-se por assim
dizer com o pensamento. (HEGEL, 1997, p. 363)
Assim, a poesia é a representação do espírito para o espírito. O nível máximo da
arte. Na linguagem discursiva o espírito apresenta toda a interioridade e exterioridade de
uma forma completa. É na poesia que o espírito absoluto alcança em parte sua
liberdade. Assemelha-se com a filosofia pelo discurso, porém discurso estético. Como
consequência, o belo também alcança sua forma mais espiritual. Coincide o conceito do
belo na arte com a obra de arte, a bela arte.
A interioridade subjetiva do espírito é o pensamento que tem como resultado
pensamentos. Daí, a arte poética ser a aproximação do espírito com sua verdadeira
essência. O divino que há no humano é uma centelha divina. É idéia que precisa
efetivar-se pela unidade, forma e conteúdo. “Efetivamente, a principal missão da poesia
consiste em evocar à consciência a potência da vida espiritual, e tudo aquilo que, nas
paixões e sentimentos humanos, nos estimula e nos comove”. (HEGEL, 1997, p. 372)
Desse jeito, jaz a poesia no sistema das artes particulares na estética hegeliana. O
artísta é ser humano e ser humano é subjetividade enquanto interioridade espiritual que
tem por si mesmo seu objetivo. Ser para si o que é em si. O material do espiritual é o
pensamento. Ademais, o resultado do pensamento é pensamento. Pensamento
negativizado na realidade pela filosofia: a idéia.
O espírito absoluto não se contenta na arte, mesmo que pela linguagem. Conquista
uma dimensão mais espiritual a cada grau. Eleva-se à compreensão do subjetivoobjetivo pela religião em sentimento divino. A revelação. Mas na filosofia galga todas
as condições anteriores. Na subjetividade absoluta da revelação na religião que o
espírito absoluto dá por fim a arte.
De outro modo, a poesia é consequência máxima da idéia do belo que a arte
alcança. Destarte, quaisquer artes para ser bela arte deve conter a centelha divina, o
elemento espiritual. Sua ausência, da forma no conteúdo, implica o domínio da matéria,
portanto jamais poderá ser bela, tampouco ser, radicalmente, considerada arte. Nesse
caso, a arte desespiritualizada é integrante da comercialização material da arte enquanto
entrenimento mercadológico. Não obstante , aqui no sistema das artes, enquanto estética
hegeliana, o fim da arte tem na poesia o proêmio do seu fim que é um começo: na arte
do discurso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEGEL, G. W. F. Curso de estética: o sistema das artes. Trad.: Álvaro Ribeiro. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
______________. Curso de estética: o belo na arte. Trad.: Orlando Vitorino e
Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
______________. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Vol III.
Trad.: Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995.
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