A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS SOBRE OS SENTIMENTOS DOS PERSONAGENS EM SITUAÇÕES DE CONFLITOS Ana Lúcia Pinto de Camargo Meneghel (UNIFRAN) [email protected] Melissa de Castro Lopes dos Santos (UNIFRAN) Monica Cristina de Souza Segura (UNIFRAN) Lívia Maria Silva Licciardi (UNIFRAN) Conflitos interpessoais na instituição educativa: relações interculturais, infância, juventude, gênero e raça Sabe-se sobre a importância de expressar sentimentos na educação infantil e o quanto é valioso para o desenvolvimento afetivo do ser humano, desde pequeno, estar inserido em um contexto educacional que lhe permita nomear o que está sentindo e solucionar conflitos interpessoais, expressando-se por meio de estratégias verbais e cooperativas. Este artigo tem por objetivo analisar se as crianças da Educação Infantil inferem os sentimentos da vítima de um conflito hipotético. Foram entrevistadas 16 crianças entre 5 a 6 anos, provenientes de uma escola municipal localizada no interior paulista, por meio do método clínico piagetiano. As respostas encontradas foram categorizadas em quatro níveis evolutivos: nível 0 - respostas “não sei”, categoria; nível I - “sentimento como ação”, a criança ainda concebe o sentir externamente ao sujeito; nível II “sentimento como atuação dos sentidos”, caracteriza respostas que indicavam sentimento como atividade dos órgãos dos sentidos; nível III - “sentimento como expressão da subjetividade” - as respostas indicam que a criança consegue nomear convencionalmente o que o outro sente, indicando que o sujeito já passa a considerar a existência de um mundo subjetivo. A análise dos dados baseouse nos estudos de Piaget e Selman. Palavras-chave: educação infantil; construtivismo; sentimentos; conflitos interpessoais. INTRODUÇÃO Os conflitos interpessoais têm sido objeto de pesquisa de diversos autores nacionais e internacionais. Apesar de serem frequentes nas escolas, constata-se que os educadores os veem como negativos, nocivos. Os esforços empregados pelos docentes para enfrentar essas questões são de dois modos: para evitá-los (regras, vigilância, ameaças) ou para resolvê-los rapidamente (transferência do problema, soluções prontas, emprego de mecanismos de contenção e punição, incentivo à delação, culpabilização, obediência pelo temor à punição ou submissão à autoridade). Infelizmente, não podemos dizer que tais práticas desapareceram do contexto escolar; tampouco que elas, de fato, resolvem as situações de indisciplina e conflitos. Essas estratégias podem até evitar ou conter o problema, porém em curto prazo, visto que não favorecem a construção, pelos alunos, de modos mais respeitosos de se relacionar e de formas mais justas, cooperativas, assertivas e não violentas de resolver suas contendas. Estudos de Devries e Zan (1998), Leme (2004) e Vinha (2003) indicam que tais estratégias parecem, em geral, surtir algum efeito dentro do espaço escolar, nas demais situações em que o sujeito está sendo controlado ou ainda por obediência acrítica à autoridade. Entretanto, nos momentos em que não há regulação externa, não raro, constata-se a dificuldade de esses jovens coordenarem perspectivas diferentes e resolverem seus conflitos de forma justa e respeitosa. Neste trabalho, conflito é entendido como interações em desequilíbrio, manifestado pela oposição explícita ou sutil (percebida por meio de manifestações da afetividade, tais como expressão facial e tom de voz) entre as partes (SELMAN e SCHULTZ, 1990). Alguns estudos (SELMAN, 1980; SHANTZ, 1987; HARTUP, SELMAN e SCHULTZ, 1990;) têm mostrado que as crianças preescolares empregam estratégias físicas e impulsivas para resolverem suas desavenças. Alguns fatores intervêm para o emprego de uma ou outra estratégia. Segundo Selman (Ibidem), para analisar um conflito entre pares é necessário considerar três dimensões: a cognitiva, que se refere à capacidade intelectual de pensar e imaginar-se no lugar de outro, adotar diversas perspectivas sociais; a afetiva, que é capacidade de se sensibilizar e regular emoções e sentimento, bem como a motivação de uma determinada estratégia e a dimensão moral ligada às valorizações que estão em jogo numa situação conflituosa. Há um progresso no emprego das estratégias de resolução de conflitos com a idade e 262 desenvolvimento. Nos níveis menos desenvolvidos, os sujeitos não conseguem perceber a perspectiva do outro e a motivação é obter o objeto material, ao passo que, nos níveis evoluídos, os sujeitos são capazes de coordenar perspectivas e atribuem mais valor à relação do que vencer a disputa, por exemplo. Na obra O Juízo Moral na Criança (PIAGET, 1932/1994), o autor esclarece que dado o egocentrismo infantil, isto é “a tendência a crer que tudo gira em torno do ego” (PIAGET, 1947/2005, p. 199), a criança dessa faixa etária, portanto pré-operatória, não possui estruturas cognitivas que a permitam cooperar e perceber que outra criança possui desejos, ideias e sentimentos diferentes dos seus. Nessa fase, há uma confusão entre a subjetividade e a objetividade, entre o que faz parte do mundo interno e do externo. Em decorrência dessa característica, a criança não sente necessidade de explicar ao outro as razões do seu pensamento, uma vez que ele deve ser claro a todos. O egocentrismo se manifesta na ação da criança de formas diferentes e opostas, ou a criança cede à pressão externa ou se opõe completamente e de forma irrefletida ou, ainda, a criança apresenta um “espírito de contradição” (Ibidem, p. 80), próprio de quem sente necessidade de se defender contra o meio. Outros pesquisadores têm se debruçado sobre outros aspectos que também podem influenciar no emprego de uma ou outra estratégia. Um deles é La Taille (2006) que, ao refletir sobre o desenvolvimento da personalidade ética, nos informa que no despertar do senso moral, fase que se inicia por volta dos 4, 5 anos, o sentimento de simpatia pode inspirar ações generosas e solidárias, porque a criança se comove com o que o outro está sentindo (PIAGET, 1964/ 2006; TOGNETTA, 2003; LA TAILLE, 2006). Arsênio e Lover (1996) realizaram uma pesquisa na qual crianças de 6 e 9 anos julgavam situações de agressão em que, por exemplo, uma criança com desejo de brincar num balanço derruba a outra que já se encontrava lá e ocupa seu lugar. Esses sujeitos, quando interrogados se o agressor agiu corretamente, atribuíram a este personagem um sentimento positivo. Quando questionadas como o agressor se sentiu, a maioria das crianças menores 263 respondeu que o agressor ficou feliz. As crianças maiores já conseguiram ter um pensamento reversível se colocando no lugar do agressor e da vítima. Pesquisa de Tognetta (2003) buscou averiguar a ação de ambientes escolares na construção da virtude da solidariedade e comprovar se haveria diferenças no julgamento de dilemas que envolvem a solidariedade, entre sujeitos advindos de ambientes escolares sociomorais autoritários ou cooperativos. Ao investigar soluções apresentadas por esses sujeitos em relação ao julgamento dos dilemas envolvendo a solidariedade, ela encontrou resultados que mostraram o sentimento de simpatia já presente no julgamento de crianças de 6 anos, advindas de ambientes cooperativos de aprendizagem. Isso mostra que, independente do estágio pré-operatório em que essas crianças possam se encontrar, elas conseguem julgar dilemas influenciadas por este sentimento, conseguindo, assim, agir com solidariedade (uma estratégia mais evoluída). De acordo com a teoria piagetiana, a solidariedade, assim como diferentes valores morais são construídos a partir de estruturas endógenas na interação com o meio e, portanto, agir solidariamente implica vivenciar a solidariedade. Essa disposição se caracteriza como uma ação espontânea do sujeito e, assim sendo, uma virtude traduzida ou qualificada como uma boa ação ou como bem, como se queira. A pesquisa de Carroll e Steward (1984) investigou a relação entre os processos cognitivos e afetivos de 30 crianças de 4-5 anos e 30 crianças de 89 anos. Por meio de entrevistas individuais, administração das provas piagetianas e aplicação do Peabody Picture Vocabulary Test (PPVT), para avaliar a inteligência verbal, tiveram por objetivo compreender como as crianças concebiam as seguintes áreas: a percepção dos estados de sentimentos (alegria, tristeza, medo e raiva) em si mesmo e nos outros; a possibilidade de ter mais de um sentimento ao mesmo tempo e a possibilidade de mudar e esconder os sentimentos. Foram encontradas algumas categorias que diferenciavam as respostas por níveis que iam desde 0 ao 3, sendo o último o mais evoluído, em termos de complexidade. Com relação à percepção dos próprios sentimentos, a 264 pesquisadora classificou no nível 0 as crianças que responderam “não sei”; no nível 1- a atribuição aos sentimentos era externa e física, por exemplo: “ir a uma festa”; no nível 2 – as crianças expressavam a percepção dos próprios sentimentos por meio de sentenças mais complexas que indicavam ações, comportamentos e expressões, como por exemplo: “quando eu olho no espelho e vejo o meu sorriso”; no nível 3 – foram incluídas nesta categoria as respostas das crianças que indicavam a compreensão dos sentimentos como uma manifestação de estados internos, por exemplo: “Quando alguém me bate, fico triste”. O emprego de estratégias de resolução de conflitos mais elaboradas implica num nível maior de tomada de consciência e coordenação de perspectiva. O primeiro conceito se refere ao desenvolvimento da capacidade do ser humano de compreender o ponto de vista de outra pessoa e de se colocar no seu lugar, porém, nem sempre um sujeito que a possui em alto nível é capaz de coordenar pontos de vista, ou seja, de integrar os pensamentos, desejos e sentimentos do outro com os próprios, levando ambos em consideração numa situação de negociação ou de experiência compartilhada. Tais capacidades se desenvolvem em estágios, progredindo de concepções egocêntricas, unilaterais para os mecanismos de cooperação e colaboração, “de pensar em termos de “eu” para pensar em termos de “nós” 1 (SELMAN e SCHULTZ, 1990, p. 28). Acreditase, portanto, que a capacidade de inferir os sentimentos do outro numa situação de negociação pode auxiliar o indivíduo a empregar estratégias mais cooperativas. Contudo, mais pesquisas nesse sentido são necessárias a fim de comprovar essa afirmação. Verifica-se, também, que poucos estudos se debruçaram sobre os conflitos entre as crianças da Educação Infantil. A partir dessas considerações, a presente pesquisa tem por objetivo analisar se as crianças de 5 a 6 anos percebem os sentimentos da vítima de uma situação de conflito interpessoal. Acredita-se que esse conhecimento possa contribuir para que os educadores planejem suas intervenções com mais cientificidade. 265 MÉTODO Participantes Esta pesquisa é uma revisitação aos dados coletados, por uma das pesquisadoras, em um estudo anterior, aprovado pelo comitê de ética e pesquisa da UNICAMP, sob o parecer número CEP: 685/2008, que teve por objetivo investigar os conflitos entre as crianças de 3 a 6 anos. Participaram deste estudo 95 crianças provenientes de duas escolas municipais de Educação Infantil do interior paulista, escolhidas segundo o critério de conveniência. Esses sujeitos estavam divididos em quatro classes, sendo duas classes de 3 a 4 anos e duas de 5 e 6 anos. Para se alcançar os objetivos propostos no presente artigo, serão analisados somente os resultados referentes às crianças de 5 a 6 anos. Apesar de as crianças menores terem sido também entrevistadas, constatou-se que as perguntas relativas aos sentimentos dos personagens ainda eram incompreensíveis para elas, dadas as características do egocentrismo e ao início da socialização. Delineamento e coleta de dados Quanto ao delineamento, ou seja, ao seu planejamento ou às ações necessárias para que a pesquisa se efetivasse, na classificação proposta por Gil (2009), trata-se de um estudo de campo. Esse tipo de abordagem permite a utilização de diversas técnicas e a triangulação entre elas, ou seja, a integração dos métodos qualitativos e quantitativos. Os procedimentos para a coleta de dados foram a observação sistemática e a entrevista clínica piagetiana. A observação sistemática teve por fim levantar os conflitos mais frequentes entre as crianças e, a partir deles, construir as histórias para as crianças analisarem e identificarem os sentimentos dos personagens. Segue o exemplo de umas das histórias elaboradas. “Era uma vez um menino chamado João Carlos que gostava muito de brincar com seus caminhõezinhos. Um dia ele levou um de seus caminhões para a escola, porque era dia de brincar com os brinquedos que as 266 crianças levavam de casa. Todas as crianças brincavam juntas. O João Carlos estava brincando perto de Marcos que também quis brincar com o caminhãozinho, mas João Carlos não deixou”. A partir daí, perguntou-se: O que Marcos sentiu quando o João não o deixou brincar? Depois que as histórias foram elaboradas, realizou-se um estudo piloto para verificar a sua adequação. Algumas alterações foram realizadas para tornar essas histórias mais atrativas e compreensíveis para os sujeitos da pesquisa. A amostragem para a realização da entrevista clínica foi proposital, de modo que as crianças foram selecionadas a partir da frequência de envolvimento em situações de conflitos. Para Creswell (2007), na coleta de dados qualitativos, a amostragem proposital é usada para que as pessoas sejam selecionadas porque já experimentaram o fenômeno central. Resultados e discussão As respostas dos sujeitos foram analisadas, categorizadas e quantificadas para que se pudesse entender como os sujeitos de 5 a 6 anos identificam os sentimentos dos personagens, vítimas de conflitos interpessoais, em situações hipotéticas. A análise se baseou nos estudos de Piaget (1932/ 2004, 1947/2005; 1964/2006) e Selman (1971; 1974; 2003). A pesquisa contou com um juiz para a análise das categorias, especialista na área. Após discussão, houve 100% de concordância entre ele e os pesquisadores. Análises dos resultados Foram entrevistados 16 sujeitos de 5 a 6 anos, obtendo-se 75 respostas. Foram excluídas aquelas que apresentavam características de indiferença, respostas socialmente desejável ou a criança não compreendia a pergunta. As categorias foram criadas pelas pesquisadoras, utilizando a análise de conteúdo, valendo-se dos critérios semânticos. Estabelecidas as categorias, foram quantificadas as respostas emitidas por cada um dos sujeitos, para contabilizar o total de respostas da amostra. As categorias foram organizadas em ordem 267 hierárquica de complexidade, isto é, elas apresentavam diferenças qualitativas quanto à compreensão do que é sentimento para os sujeitos da amostra. As categorias apresentadas na figura 1 expressam a maneira como as crianças de 5 a 6 anos identificaram os sentimentos dos personagens, vítimas de conflitos interpessoais, em situações hipotéticas. O quadro a seguir apresenta a descrição das 04 categorias encontradas neste trabalho. Quadro 1 – Categorias de sentimentos da vítima. Categorias Nível 0 Descrição O sujeito não entende a pergunta. Ex. “ Não sei ” Nível I O sentimento é compreendido pelo sujeito como Sentimento como ação ação e é algo exterior ao indivíduo. Ex.: “Sentiu que ia brincar no gira-gira”. Nível II O sentimento é concebido como atividade dos Sentimento como atuação dos órgãos dos sentidos. sentidos Ex: “Sentiu a água”. Nível III O sentimento é nomeado convencionalmente e Sentimento subjetividade como expressão da reflete os estados psicológicos dos indivíduos. Ex.: “Sentiu que ficou triste”. As respostas foram organizadas em quatro categorias: do nível 0 ao nível III. Nesses níveis podemos constatar que a compreensão da existência da subjetividade parece caminhar do exterior para o interior, ou seja, a criança não concebe o sentimento como expressão dos estados psicológicos do indivíduo. A primeira, “categoria nível 0”, se refere às respostas “não sei”. Provavelmente, essas crianças ainda não tivessem pensado sobre esse problema, ou seja, as consequências de uma ação para o sentimento do outro. A “categoria, Nível I – “sentimento como ação” foi assim denominada porque a criança ainda concebe o sentir externamente ao sujeito, compreendendo-o como ação do indivíduo, como por exemplo, “Sentiu que tem que usar outro pote”, quando uma criança nega a outra o empréstimo de um material coletivo. As respostas 268 desses sujeitos parecem indicar a desconsideração aos estados afetivos alheios. Nesse nível, a criança compreende o sentimento como ação, como algo exterior a ela, e não como manifestação de um estado interno. O nível II - “sentimento como atuação dos sentidos”, caracteriza o conjunto de respostas que indicativas da concepção de sentimento como atividade dos órgãos dos sentidos, como por exemplo, na história cujo conflito versava sobre a exclusão de uma criança da brincadeira, quando foi perguntado ao sujeito sobre o que o personagem sentiu quando Joãozinho não o deixou brincar junto, o entrevistado respondeu: “dor na perna”, outra resposta presente foi “sentiu cheiro de tinta” (para o conflito disputa de material coletivo). A categoria de nível III, “sentimento como expressão da subjetividade”, foi definida assim porque a criança consegue nomear convencionalmente o que o outro sente, indicando que o sujeito já passa a considerar a existência de um mundo subjetivo. Exemplo: na história cujo conflito era a “Disputa por objeto”, quando foi perguntado à criança “o que a Juliana sentiu quando Camila não emprestou a boneca”, o sujeito entrevistado respondeu: “porque ele sentiu bem”, outras respostas presentes “sentiu triste”, “sentiu mal”. A figura a seguir apresenta a frequência dessas categorias. Figura 1: Identificação de sentimentos da Vítima - Crianças 5 a 6 anos. 269 Observando o gráfico, podemos verificar que 42,67% das respostas das crianças de 5 a 6 anos se encontram no nível III, ou seja, elas inferem os sentimentos dos personagens em uma situação de conflito interpessoal, considerando-os como expressão da subjetividade. Logo em seguida, encontramos o nível I “ Sentimento como ação”, com 32% de frequência. Nessa categoria, a criança ainda concebe o sentir externamente ao sujeito, compreendendo-o como ação do indivíduo. Em terceiro lugar, com 20%, está o nível 0 e, em último, as respostas dos sujeitos que se encontram no nível II, com 5,33%, que consideram que o sentimento é concebido como atividade dos órgãos dos sentidos. Esses resultados podem ser explicados pela teoria piagetiana. Segundo esse autor, existe um estreito paralelismo entre o desenvolvimento da afetividade e das funções intelectuais e considera que estes dois aspectos são indissociáveis de cada ação. As crianças nessa faixa etária se encontram no final da primeira infância, estágio pré-operatório, em que os aspectos afetivos estão voltados ao desenvolvimento interindividual (simpatias e antipatias) e o aspecto cognitivo é caracterizado pelo pensamento intuitivo. A criança, nessa idade, ainda não é capaz de coordenar pontos de vista, devido à falta de reversibilidade de pensamento A capacidade de sensibilizar-se com os estados afetivos alheios, a simpatia, provavelmente explica o fato de as crianças inferirem os sentimentos de tristeza dos personagens-vítima. As estruturas da inteligência podem interferir positivamente na identificação dos sentimentos dos personagens, porém a cognição não é suficiente para explicá-la (CARROLL e STEWARD, 1984; SELMAN, 1986). Algumas crianças e jovens que não obtiveram pontos elevados nos testes de inteligência eram bastante conscientes dos próprios sentimentos e demonstravam identificar os estados afetivos dos outros. Tognetta também encontrou resultado semelhante ao avaliar como as crianças julgavam situações envolvendo a solidariedade. Ainda que não fosse a maioria, essa pesquisadora encontrou crianças pré-operatórias que foram capazes de julgar solidariamente um dilema e identificar os sentimentos dos personagens envolvidos. 270 Boa parte (32%) das respostas das crianças foram categorizadas no nível I “sentimento como ação” e, portanto, não conseguiram inferir o sentimento do personagem. Esse resultado pode ser explicado pelo egocentrismo, próprio dessa faixa etária e que se caracteriza pela incapacidade cognitiva de a criança considerar o ponto de vista alheio. Ela está centrada em sua maneira de ver as coisas, como se esta fosse a única possível. Essa falta de descentração não decorre da consciência apurada em relação à própria subjetividade, muito pelo contrário, o subjetivo e o objetivo, ou seja, seu mundo interior, ideia e pensamentos, e a realidade externa estão, para o sujeito pré-operatório, no mesmo patamar. Justamente porque a criança é inconsciente da existência desse mundo interno e, portanto, a subjetividade alheia também é inexistente, que está centrada nele, pois só existe uma única possibilidade de pensar, agir e sentir. De maneira complementar, a teoria de Selman (1980; 1990) também nos fornece subsídios para compreender esses comportamentos infantis. Sua teoria descreve os estágios de coordenação de perspectivas, a concepção de amizade, bem como os níveis de negociação interpessoal, entre outros conceitos. Segundo ele, no nível 0 de tomada de perspectiva social, a criança não diferencia suas opiniões daquilo que é fato e, apesar de já estabelecer uma diferença entre os sujeitos enquanto entidades físicas, não é capaz de diferenciar os pontos de vista e nem os sentimentos. Em outras palavras, não há consideração do mundo subjetivo e de que as ações das pessoas podem ser causadas por intenções e sentimentos. A pesquisa de Carroll e Steward (1984) também estabeleceu relação entre o desenvolvimento cognitivo e a capacidade das crianças da faixa etária de 4 a 9 anos de falarem e avaliarem as emoções. Os resultados demonstram uma correlação entre a idade e o nível operatório e a capacidade de compreender a realidade subjetiva. Porém, houve crianças que, apesar de serem novas, préoperatórias, apresentaram uma sofisticada compreensão dos estados afetivos alheios. 271 Nesse mesmo sentido, convergem os estudos de Tognetta (2003), que concluiu que provenientes de um ambiente sociomoral cooperativo, ao julgarem dilemas hipotéticos, estavam mais sensíveis aos sentimentos alheios e, portanto, julgavam de modo mais solidário do que as crianças de um ambiente autoritário. Cabe ressaltar que os sujeitos que vivenciaram mais relações de cooperação (ambiente cooperativo) eram, em sua maioria, operatórios concretos. Contudo, essa autora também encontrou julgamentos solidários em crianças cujo pensamento carecia de reciprocidade. Tal resultado demonstra que o desenvolvimento cognitivo é um aspecto importante, mas não suficiente para o desenvolvimento moral e que a escola pode exercer uma influência importante no sentido de auxiliarem as crianças a se conhecerem melhor e a perceberem os sentimentos do outro. Estudos posteriores, realizados por La Taille (2006), com o intuito de investigar o sentimento de simpatia nas crianças, podem explicar o porquê de as crianças pré-operatórias reconhecerem sentimentos de outras pessoas e poderem julgar algumas situações de maneira solidária. Segundo ele, a simpatia “é a capacidade de sentir o que outrem sente” (p. 114) e que as crianças julgam de maneira mais sofisticada dilemas envolvendo a solidariedade do que a justiça. Arsênio e Lover (1996), ao entrevistarem as crianças entre a faixa etária de 6 a 9 anos, constataram que os sujeitos entrevistados atribuíam sentimento positivo ao agressor. Em nossa pesquisa, o resultado encontrado foi outro, nenhuma criança atribuiu sentimento positivo ao agressor. No entanto, nossos resultados se assemelham aos de Carroll e Steward (1984) quanto à autopercepção dos próprios sentimentos entre as faixas etárias de 4 a 5 anos. Encontramos que boa parte das crianças estava no nível I, isto é, compreendiam o sentimento como externo ao sujeito e físico. Pretende-se ainda realizar a análise estatística para verificar se há diferenças significativas entre as categorias. 272 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tais apresentações permitem constatar que, embora a criança préoperatória ainda esteja muito centrada em si, agindo ainda muito mais a satisfazer seus desejos e ações, encontrando dificuldade de conservar valores, agindo de forma egocêntrica, esta característica é predominante do período de desenvolvimento em que se encontra. Esses resultados nos auxiliam a compreender melhor os conflitos entre as crianças. Elas possuem dificuldades para compreender o efeito da estratégia física e impulsiva para os sentimentos do outro, por isto é necessário que a escola proporcione trocas de ponto de vista, oportunidades de participar de discussões e tomadas de decisões juntas, compartilhando ideias e reflexões para que elas evoluam e consigam descentrarse, tornando o pensamento reversível, reconhecendo os sentimentos dos envolvidos em situações de conflitos, identificando os sentimentos e nomeandoos, a fim de que possam colocar-se no lugar do outro de forma recíproca, baseada no respeito mútuo. Acreditamos que o ambiente escolar no qual a criança está inserida pode favorecer o desenvolvimento moral e ser organizado a fim de garantir a interação entre pares, a cooperação, com rotinas que permitam refletir, trocar, jogar, confrontar pontos de vista, para que lhe assegure o pleno desenvolvimento da capacidade cognitiva, afetiva, física e social. O intuito de formar cidadãos autônomos, implícito no desenvolvimento integral do indivíduo, é algo bastante perseguido pelas escolas. Entretanto, a consecução de tão almejado fim não é tarefa nada simples e requer, antes de tudo, um conhecimento profundo do desenvolvimento infantil. REFERÊNCIAS ARSENIO, W; LOVER, A. Children´s conception of sociomoral affect: happy victimizers, mixed emotions, and other expentancies. In.: M. Killer & D. Hart 273 (Orgs.), Morality in everyday life. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. CARROLL, J. J.; STEWARD, M. S. The role of cognitive development in children’s understandings of their own feelings. Child Development, v. 55, p. 1486-1492, 1984. CRESWELL, J. W. Projeto de Pesquisa: Métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed, 2007. DEVRIES, R.; ZAN, B. O Conflito e sua resolução. In: A ética na educação infantil – o ambiente sócio-moral na escola. Tradução Dayse Batista. 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