Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 Adriana de Andrade Espíndola Faculdade Anhangeura de Valinhos [email protected] GESTÃO ASSOCIADA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E A FLEXIBILIZAÇÃO DO PACTO FEDERATIVO RESUMO O presente artigo tem por tema o instituto da gestão associada para prestação dos serviços públicos sociais, previsto no artigo 241 da Constituição Federal de 1988 e regulado pela lei federal 11.10/05. O foco central é a discussão sobre a formação deste novo sistema associativo para a prestação dos serviços públicos, com recorte no setor da educação. Através de um estudo comparativo entre as constituições brasileiras é possível observar que o instituto remota no tempo, contudo, com Constituição de 1988 e, principalmente, com advento das reformas administrativas introduzidas e intensificadas a partir da década de 90, o instituto dos consórcios públicos e convênios de cooperação têm se ploriferado e demandado grande inovação no ordenamento jurídico brasileiro, além de fomentar, paradoxalmente, disputas e cooperação interfederativa. O cenário ainda aponta que outras diretrizes políticas pretendem, através da gestão associada e da flexibilização do pacto federativo, concentrar no governo federal o controle das políticas para educação, descentralizando para os entes subnacionais tão somente a responsabilidade pela execução da prestação dos serviços públicos educacionais. Palavras-Chave: gestão associada; consórcios públicos; pacto federativo; educação. ABSTRACT Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 4266 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE This article has management associated for the provision of public social services as theme, which is under article 241 of Brazilian federal constitution of 1988 and regulated by Brazilian federal law 11.10/2005. The central focus is the discussion of the formation of this new associated system to provide public services provision, emphasizing education area. Through a comparative study of Brazilians constitutions is possible verify that the institute is very old, however, after 1988 Brazilian constitution and, mainly, after the administrative reform, introduced and intensified after 90’s, the institute of public consortia and covenants of cooperation have spread what cause demand of innovation in Brazilian’s law, besides that it stimulates, paradoxically, disputes and cooperation inter federative. The scenario points to the other policy guidelines which intends, through the associated management and relaxation of the federative pact, concentrate in the federal government the control of education policies for education, decentralizing to the sub national entities solely the responsibility for providing public services in education. Keywords: associated management; consortia; federative pact; education. Informe Técnico Recebido em: 19/09/2011 Avaliado em: 07/10/2011 Publicação: 2 de março de 2012 215 216 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo 1. INTRODUÇÃO Desde o advento do último pacto federativo, instituído na Constituição Federal de 1988, o Brasil vem redesenhando diferentes contornos interfederativos no campo gerencial. Em 2005 aperfeiçoou-se o sistema de cooperação administrativa associativo: a gestão associada de serviços públicos, através dos convênios de cooperação e dos consórcios administrativos1, já prevista, constitucionalmente, desde 1998. Estudos têm demonstrado que há uma evolução do instituto com vistas a tornar-se uma mudança de paradigma2 na gestão dos serviços sociais. Tem-se verificado que o formato de gestão da prestação dos serviços públicos, em especial, da educação, tem caminhado na direção das diretrizes de modelo neoliberal aplicado à Administração Pública desde as reformas iniciadas na década de 90. O instituto demandou e ainda desponta demandar grande inovação política, técnica e legislativa, podendo inclusive impulsionar uma “flexibilização” do atual modelo federativo do Estado brasileiro. Por certo que, a sedimentação destas novas formas de descentralização dos serviços públicos parece ser decisiva para definir o planejamento e o papel dos entes públicos e privados envolvidos no setor. 2. PACTO FEDERATIVO REPUBLICANO – MECANISMOS DE CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO Existe um processo histórico permeado de peculiaridades intrínsecas ao contexto político brasileiro que precede à discussão sobre as novas formas de gestão dos serviços públicos. Estas novas formas de gestão são resultado produzido pelas as sucessivas tendências e mudanças sofridas pela organização político-administrativa brasileira. No desenrolar deste novelo, observa-se que os modelos de Estado e suas formas de interação com a sociedade assumiram lógicas políticas, econômicas e ideológicas diversas, o que se denota por um breve estudo comparativo entre as constituições brasileiras. 1 A gestão associada de serviços públicos é o modelo gerencial associativo que a Administração Pública tem se utilizado para a consecução da prestação dos serviços públicos sociais. Os consórcios administrativos são parcerias formadas por dois ou mais entes federativos para a realização de objetivos de interesse comum. São instrumentos de gestão que permitem a cooperação horizontal (Município - Município) ou vertical (União, Estado e Município), entre as diferentes esferas de governo. A natureza jurídica dos consórcios é contratual (as partes envolvidas assumem obrigações recíprocas e constituem um ente com personalidade jurídica própria que atuará em nome das partes perante terceiros). Podem ter personalidade de direito público (possuem status de autarquia) ou de direito privado (associação). Os convênios de cooperação diferem dos consórcios quanto às pessoas que os firmam, são “acordos firmados por entidades públicas de qualquer espécie, ou entre estas e organizações particulares, para realização de objetivos de interesse comum dos partícipes” (MEIRELLES, 1977, p.481), mas não possuem natureza jurídica contratual, portanto, podem ser denunciados a qualquer tempo, não havendo penalidade pela inadimplência. 2 Literalmente significa modelo, representação de um padrão a ser seguido. No meio científico foi definida pelo físico norteamericano, Thomas Kuhn, na obra “A estrutura das Revoluções Científicas”. Em linhas gerais, define paradigma como realizações científicas que geram modelos que, por período mais ou menos longo e de modo mais ou menos explícito, orientam o desenvolvimento posterior das pesquisas, exclusivamente na busca da solução para os problemas por elas suscitados. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Paradigma>. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 217 Na 1ª República, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1891, muda-se a forma do Estado brasileiro, oportunidade em que passa a aderir à forma federativa3 inspirada no modelo norte-americano, que transformou as antigas províncias brasileiras em estados-membros. Naquele momento, a política nacional rompeu com o modelo extremamente centralizador do Estado monárquico anterior, passando a adotar uma política eminentemente descentralizadora, em virtude da fragilidade fiscal e política da União, recém instituída. Como observa Silva (2001), o governo federal não era capaz de se sustentar sem se escorar nos poderes estaduais. A força do Estado vinha do poder das oligarquias estaduais e o vetor era no sentido da transferência do poder estadual para o poder central (União). Este modelo se deu ao longo das décadas seguintes. Na constituição de 1891, já se previa a gestão associada, precisamente pela figura dos consórcios públicos, ela era praticada entre os governos municipais e estaduais. Em sua gênese, os consórcios administrativos tinham a natureza jurídica de contratos que, se celebrados entre municípios, precisavam da aprovação do estado e, se celebrados entre estados, precisavam da aprovação da União. Este modelo político descentralizador se modificou após a Revolução de 1930. Quanto ao pacto federativo, a situação se manteve intacta na 2ª. Constituição Federal brasileira, a de 1934, que reiterou o princípio federalista no seu artigo 1º, declarando como entes federativos dos Estados Unidos do Brasil a União, os Estados-Membros e os Territórios, nos mesmos moldes da carta constitucional anterior, contudo, ampliou os poderes da União e discriminou com mais severidade as rendas tributárias entre a União, os Estados e os Municípios. Em decorrência do momento histórico, esta carta recebeu grande influência da Constituição Mexicana e da Constituição Alemã de Weimar, que incorporaram aos direitos e garantias fundamentais os direitos sociais (COMPARATO, 2007). Essas inovações foram efetivadas com o intuito de conciliar o modelo liberal de Estado (que comportava apenas os direitos civis), com um modelo mais intervencionista de Estado (previsão dos direitos sociais e a intervenção na economia) através da previsão constitucional de diversos direitos sociais e econômicos. Quanto ao regime jurídico dos consórcios públicos, não houve alteração neste período. A partir de 1937, no Governo Vargas aumentou significativamente o poder da União, que vigorou centralizado por todo o período do Estado Novo (1937-1945). No jogo 3 O Estado pode ser constituído de forma unitária ou federativa. Se federativa, dá-se o nome de Federação ou Estado Federal, neste caso o Estado é composto por diversas entidades territoriais autônomas dotadas de governo próprio, geralmente conhecidos como províncias ou estados-menbros. A regra geral é pelos estados federados que se unem para constituir a federação, um Estado federal. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 218 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo de forças políticas, o governo de Vargas realizou uma pactuação política que enfraqueceu as bases de poder da República Velha. Com o fortalecimento do poder central, a Constituição de 1937 manteve o federalismo nos mesmos moldes, em seu artigo 3º, reafirmou os entes como federativos dos Estados Unidos do Brasil a União, os EstadosMembros e os Territórios. Quanto à evolução do instituto da gestão pública associada, em 1937, a Constituição Federal brasileira inovou, fazendo previsão expressa dos consórcios intermunicipais como pessoas jurídicas de direito público. Contudo, apesar da evolução do instituto, como a Constituição de 1937 vigorou durante um governo de política altamente centralizadora, o seu reconhecimento foi apenas formal. A Carta de 1937, quanto à correspondência com a realidade, em diversos aspectos, foi uma constituição semântica, não teve uma aplicação regular, efetiva. Muitos de seus dispositivos permaneceram como letra morta (SILVA, 2001). Entre os anos 1946 e 1964, ocorreu uma abertura política com uma tentativa de federalização semelhante à que ocorreria posteriormente, em 1988. A Constituição de 1946 inovou como o modelo de federalismo, embora mantivesse inalterado o pacto federativo, ampliou as relações entre as três esferas de governo. Estabeleceu-se um fortalecimento das finanças municipais e a descentralização fiscal pela distribuição das receitas públicas, possibilitando que os municípios prestassem melhores serviços à comunidade, com mais autonomia e menos sujeitos às forças oligárquicas e eleitoreiras. A Constituição de 1946 também contemplou direitos sociais ao cidadão e instituiu a previsão de repasse de verbas. Contudo, o Brasil crescia, urbanizava-se e a população aumenta substancialmente, exigindo mais serviços públicos municipais e, nem tudo eram “flores”. Mesmo com o repasse, instaurou-se uma disputa pelas receitas públicas. Reiteradamente, os Estados não só não cumpriam integralmente os devidos repasses sobre a receita dos impostos aos municípios, como insistiam em invadir a esfera municipal, ambicionando e questionando os tributos municipais. Apesar dos jogos políticos e das disputas fiscais, com o resgate das liberdades democráticas e das autonomias federativas dos entes locais, em 1960 iniciou-se novas tentativas de cooperação interfederativa, na busca pelo desenvolvimento e, em 1961, foi criado o BRDE – Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul, uma autarquia interfederativa formada pelos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Não obstante, em 1964, com o Golpe Militar, novamente o Brasil sofre processo de centralização. As relações intergovernamentais se tornaram muito mais próximas Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 219 daquelas que caracterizam um Estado unitário4, do que as de uma federação. Os chefes de governo estaduais e municipais foram destituídos de suas bases de autonomia política, e os que se seguiram detinham escassa autonomia política e fiscal, pela centralização financeira instituída pela reforma fiscal, que destinou os principais tributos à União. O Estado burocrático-autoritário estabelecido no período militar (1964-1985) centralizou novamente as decisões de política fiscal e tributária, ativando um sistema de transferências intergovernamentais para Estados e municípios, mediante fundos específicos, condicionados ao exercício de determinadas funções (OLIVEIRA apud DIAS, 2006). Tanto a Constituição de 1967, quanto a Emenda Constitucional de 1969 mantiveram como entes federativos a União, os Estados-Membros e os Territórios, nos exatos termos da Constituição de 1946. Já em relação aos modelos de gestão associada, a carta de 1967 permitiu o associativismo intermunicipal pelas Câmaras Municipais, mas os consórcios públicos perderam sua força e passaram a ser considerados meros pactos de colaboração, sem estímulo por parte do governo central, deixando de ser reconhecida a personalidade jurídica destes institutos. Na Emenda Constitucional de 1969 foi abolida previsão da Carta de 1967 que se referia aos consórcios, prevendo apenas a existência de convênios entre diferentes esferas de governo, ou seja, nenhuma manifestação de autonomia regional ou local seria permitida. Ainda assim, foi um período de estruturação dos serviços sociais na política nacional. Foi um Estado 60 e 70, altamente centralizado, dotado destas características que consolidou o Sistema Brasileiro de Proteção Social, até então um conjunto disperso, fragmentado, com reduzidos índices de cobertura e fragilmente financiado de iniciativas governamentais na área social. Esta forma de Estado moldou uma das principais características institucionais do Sistema brasileiro: sua centralização financeira e administrativa (ARRETCHE, 1999). Apesar de no período do governo militar ter-se estruturado o sistema brasileiro de proteção social, foi ainda durante este regime, já ao final da década de 70, concomitante a crise global do petróleo no oriente médio, que se iniciou a inversão do papel do Estado provedor, modelo este que passa a ser considerado ultrapassado, um obstáculo ao desenvolvimento econômico de um país. A mudança do papel do Estado passou a ser a questão central do movimento mundial de reformas do Estado capitalista. Iniciou-se uma redefinição deste papel, que, para a área social, se expressava fundamentalmente pela retração da prestação dos serviços sociais. 4 Darcy Azambuja disserta com clareza sobre o assunto: O tipo puro do Estado Simples é aquele em que somente existe um Poder Legislativo, um Poder Executivo e um Poder Judiciário, todos centrais, com sede na Capital. Todas as autoridades executivas ou judiciárias que existem no território são delegações do Poder Central, tiram dele sua força; é ele que as nomeia e lhes fixa as atribuições. O Poder Legislativo de um Estado Simples é único, nenhum outro órgão existindo com atribuições de fazer leis nesta ou naquela parte do território. Disponível em: <http://www.fortium.com.br/blog/material/ESTADO.UNITARIO.E.ESTADO.FEDERATIVO.doc>. Acesso em: 12 ago. 2009. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 220 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo Com o fim da ditadura militar, além do movimento de redemocratização do país, emergiram também, nos idos dos anos 80, modelos de organização estatal de contorno econômico neoliberal, que pregavam um Estado mínimo e a construção de um federalismo mais equilibrado, com descentralização de receitas e afirmação das autonomias administrativas e financeiras das entidades subnacionais. Havia entendimento de que era necessário um modelo federativo que desse reconhecimento a uma igualdade formal entre os entes federados buscando-se uma isonomia material entre eles, e a busca da redução das desigualdades regionais através de um plano de federalismo fiscal, ou seja, determinando que certas regiões fossem favorecidas por políticas fiscais, para a promoção do desenvolvimento nacional, juntamente com uma descentralização dos serviços públicos. 3. NOVO PACTO FEDERATIVO – CONSTITUIÇÃO DE 1988 Todos esses anseios eclodiram na Constituição Federal de 1988, que dentre várias outras vertentes, resgatou a política municipalista da Constituição de 1946 e alterou significativamente o pacto federativo, adotando um novo formato. A Constituição de 1988, apesar de em seu artigo 1° incluir na redação os Municípios e de, em seu artigo 18, dispor também sobre a autonomia destes, em verdade, o texto não eleva o Município à condição de ente federativo. O texto fala em organização político-administrativa e é exatamente o que o município é: entidade político-administrativa, contudo, o entendimento do artigo suscita diversas interpretações. De qualquer forma, existe uma interpretação maciça de que a Constituição de 1988 conferiu um modelo de federalismo absolutamente inovador e díspar5, não só das cartas anteriores, mas de qualquer outra federação existente. Em seus artigos 1º e 18, ela excluiu da categoria de entes federativos os Territórios, agora integrantes da União, e, embora, o texto não seja claro neste sentido, para os municipalistas, elevou os Municípios à condição de ente federativo, mesmo sem condição técnica de o sê-lo. Os municipalistas defendem esta ideia fundamentalmente porque a entendem como uma forma de resguardar a autonomia dos municípios contra eventuais governos ditatoriais. Mas para, para os adeptos das reformas neoliberais, seria uma forma de legitimar e descentralizar as responsabilidades pelos serviços sociais. [...] não conhecemos uma única forma de união federativa contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que consta da definição constitucional do novo modelo implantado no País com a Carta de 1988 (BONAVIDES, 2004). 5 Modelo capenga e único no mundo. Uma regra que é “bi”, excepcionalmente transformada em “tri”. Para maiores esclarecimentos remetemos à leitura o constitucionalista José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:Malheiros. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 221 A Assembleia Nacional Constituinte de 1988 também transcorreu sob pressão dos Estados mais desenvolvidos, que pregavam a necessidade de descentralização tributária, o que lhes possibilitaria auferir maior receita. Não obtiveram êxito, já que as referidas estruturas desequilibradas de representação política, presentes no momento constituinte, trataram de aprovar uma descentralização que teve por base a ampliação das transferências fiscais já existentes. O objetivo principal foi, então, a correção de distorções oriundas da concentração de recursos nos estados mais ricos da Federação. A constituição cidadã também modificou o sistema brasileiro de proteção social, tornando-o inteiramente diverso daquele que foi consolidado durante o regime militar. A retomada da democracia pelas eleições diretas, assim como a descentralização fiscal e a pseudo-definição dos municípios como entes federativos autônomos na Constituição de 1988 modificaram a natureza das relações intergovernamentais, que impactaram sobre o processo de redefinição de competências na área social. Em seu artigo 23, inciso II, a Constituição de 1988 estabeleceu um sistema de competências exclusivas, privativas, comuns e concorrentes para as três esferas políticas. Além dos artigos 18 e 23, temos as previsões constitucionais de que tratam os artigos 29 e 34, inciso VII, e alínea “c”, da Constituição de 1988, dispondo sobre a tríplice competência dos entes e da autonomia dos municípios. Contudo, no campo da efetivação dos comandos constitucionais, as redefinições das competências e das atribuições da gestão das políticas sociais têm sido realizadas sob as bases institucionais das conformações deste novo modelo de Estado federativo, definidas pelo modo como os governos locais efetivamente podem assumir suas funções de gestão das políticas públicas. Distintamente do que ocorria no período do regime militar, a responsabilidade pública pela gestão de políticas sociais passou a ser neste período um dos elementos de barganha federativa. Definiu-se a transferência, paulatina, das responsabilidades sociais. A partir desta nova ordem, os entes subnacionais, especialmente os municípios começaram a conviver com a responsabilidade de assumir o contexto social, antes vinculada à esfera central de governo. Passavam-se gradativamente as atribuições dos organismos federais para órgãos de gestão e execução em nível local ou municipal. Este novo modelo propiciou aos Estados e municípios não só um aumento de suas receitas, mas também de grandes despesas, o que ocasionou a expansão de gastos de maneira desordenada, além de promover a “guerra fiscal6“ e desestimular a cooperação entre os entes. Observa-se entre o período pré-constituinte e a ascensão de Fernando Henrique Cardoso ao poder (1985 – 1995) uma conjuntura de crise do estado nacional, com aumento do poder dos governadores e instituição de uma ordem constitucional favorável aos Estados. Apresentou-se, no período a emergência de uma ordem federativa dita 6 Disputa entre os entes federativos para atrair receitas através de atrativos fiscais. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 222 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo “estadualista”, com o estabelecimento de padrões não cooperativos, predatórios, de relacionamentos dos Estados com a União e deles entre si (DIAS, 2007). O novo modelo federativo possibilitou, na medida em que disciplinou competências normativas, administrativas e fiscais, uma maior autonomia aos municípios, contudo, a abstração e fictícia elevação a esta condição, por si só, não resolveu os desequilíbrios federativos. Não é porque a carta constitucional confere atribuição e autonomia administrativa, política e fiscal, que ela iguala o município aos entes federativos, afinal, o Poder Constituinte derivado7, da Constituição de 1988, não concedeu ao município assento no Congresso Nacional, poder judiciário ou a uma constituição, dentre outras prerrogativas inerentes aos entes federados8. A forma como o federalismo fiscal foi definido na Constituição de 1988, de acordo com os termos mais gerais do pacto federativo, dos princípios tradicionais de finanças públicas e dos objetivos a serem alcançados pela sociedade brasileira, definiu sua estrutura tributária, que permaneceu tripartida, divida em impostos, de natureza nãovinculada, e taxas e contribuições de melhoria, de caráter vinculado. A novidade foi o estabelecimento de um sistema misto de transferências intergovernamentais, combinando transferências horizontais e verticais, que podem ser definidas em função da arrecadação dos impostos, da população, da área do ente federativo, ou pela renda gerada. Constituição também outorgou competência exclusiva à União para a instituição das contribuições sociais (AMARO, 2003). Por outro lado, os municípios, na área da educação foram contemplados com mais recursos (a parcela do Imposto de Renda e do IPI no FPM cresceu de 18% para 22,5% e o percentual do ICMS estadual transferido para os municípios subiu de 20% para 25%), além da autonomia normativa, pela possibilidade de instituírem sistemas próprios de ensino, e não somente redes de escolas municipais. Essas medidas tinham por objetivo resguardar um mínimo de receita a todas as esferas federativas para o exercício de suas atribuições. Descentralizou-se os recursos e houve aumento da participação de Estados e Municípios na receita total, o que 7 Diferentemento do poder originário, que cria um novo ordenamento constitucional, o poder derivado é apenas reformador, o que que abrange apenas as prerrogativas de modificar, implementar ou retirar dispositivos da Constituição. Saulo Ramos brilhantemente esclarece porque o poder constituinte da Constituição é derivado e não originário. Remetemos à leitura: Saulo Ramos, Código da Vida. São Paulo: Ed. Planta do Brasil. 8 Importa pontuar que a doutrina jurídica ainda discute se o município tem natureza de ente federativo. Para José Afonso da Silva, árduo defensor de que o município não se enquadra na Federação, município é componente da federação, mas não entidade federativa. Não existe federação de municípios, existe apenas Federação de Estados. “Foi um equívoco do constituinte incluir os Municípios como componente da federação. Município é divisão política do Estado-membro. [...] o Município é um componente da federação, mas não entidade federativa” (SILVA, 2001, p.105). Independentemente da essencial natureza jurídica dos municípios, é fato que se tem uma federação com três esferas governamentais, e isto é diferente de transformar municípios, que são divisão político-administrativa, em entes federativos. Municípios não possuem representação no Senado Federal, Poder Judiciário Próprio, ou território (uma vez que integram os Estados), portanto, em essência, não se caracterizam como entes federativos. Também, quanto a auto-organização política municipal, estas esferas terão que se organizar através da edição de sua Lei Orgânica, chamando-se atenção de que não se trata de Constituição, mas tão somente de uma Lei. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 223 teoricamente fortaleceu a idéia federativa. Entretanto, apesar de se conceder alto grau de autonomia tributária e política aos entes estaduais e locais, a medida não tinha o condão de eliminar os contrastes e desequilíbrios reais, como a dependência política e econômica, que refletia na incapacidade dos governos subnacionais em definir e implementar sua agenda política. Observou-se então que, dentro deste modelo descentralizado, a consecução das políticas públicas, seja de ordem econômica ou social, para se atingir as diretrizes dispostas pela Constituição dirigente9, exigiriam a busca de alternativas, como, por exemplo, a cooperação interfederativa e a construção, de fato, de autonomias política, administrativa e financeira por parte dos diversos entes, e não só formalmente, por força dos ditames constitucionais 4. CRISE INTERFEDERATIVA E REFORMA ADMINISTRATIVA DO ESTADO Importante observar em que contexto global e histórico estava inserido o constituinte de 1988 e os anos que se seguiram. O novo arranjo federativo desde a promulgação da Constituição de 1988 foi orientado por uma agenda de conteúdo neoliberal. Entretanto, concomitante à crise interfederativa, às reformas neoliberais implementadas, se insurgiam severas críticas, em especial, às proposições liberais introduzidas na década de 1980, como os ajustes fiscais de primeira geração e as diretrizes propagadas pelos organismos internacionais multilaterais (SOARES, 2000). Esse embate resultou na reivindicação por uma agenda de discussões sobre as novas configurações econômicas geopolíticas e suas repercussões nos países periféricos. Uma das questões mais criticadas foi a fixação das diretrizes expressas nas condicionalidades vinculadas às operações de crédito externo, dentre elas, as dos ajustes fiscais que reduziam os recursos para os programas sociais as políticas públicas mais voltadas aos programas sociais eminentemente compensatórios. Na segunda metade dos anos 90 ocorreu um movimento de enfraquecimento do pacto federativo e conseqüente reforço do poder central, motivado diretamente pelo impacto do Plano Real10 e das reformas promovidas pelo governo federal. Iniciou-se um movimento (re)centralizador, com o governo federal recuperando poder e valendo-se novamente das estratégias de ajustes, para aumentar sua receita exclusiva e repartir o ônus na consecução dos serviços sociais. 9 A Constituição dirigente é aquela que dispõem orientações para a atuação futura dos órgãos do Estado, para que estes estabeleçam programas de atuação futura para os órgãos estatais. É característica de uma Constituição dirigente apresentar em seu corpo normas de conteúdo programático, ou seja, normas que não se dirigem ao indivíduo, mas aos órgãos estatais, exigindo destes um dever de agir em prol do desenvolvimento do Estado. 10 Programa brasileiro de estabilização econômica, iniciado em 1994. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 224 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo Após a edição do Plano Real e por todo o período FHC, viu-se, contrariamente, o fortalecimento do governo federal, motivado pela crise das finanças públicas estaduais geradas por altos níveis de endividamento que se tornaram insustentáveis em vista da política econômica do Plano real. A crise financeira dos Estados os obrigou a renegociar suas dívidas com a União, em troca de ajuda para resolver seus problemas mais imediatos, como o pagamento dos servidores ou de suas dívidas junto ao mercado. Fruto dessa negociação das dívidas estaduais, viu-se a fragilização do pacto federativo, com o decréscimo da autonomia dos Estados, que se viram reduzidos, de fato, à condição de meras instâncias administrativas, despidas de poder político e capacidade de intervenção financeira (DIAS, 2007, grifo nosso). O governo federal passou a adotar uma política de centralização do controle das políticas públicas e de aumento na vinculação das receitas, num jogo, inclusive, de restrições à autonomia dos entes regionais e locais, por meio de mudança na legislação e nas negociações nos acordos das dívidas dos Estados e Municípios. O resultado deste processo foi que mesmo com o aumento da receita fiscal, governo federal concentrou receitas, não realizando uma repartição equânime com os Estados e Municípios, fragilizando suas finanças, acarretando um maior endividamento destes. [...] as medidas recentralizadoras executadas após 1995 não foram suficientes para romper com a lógica predatória do federalismo brasileiro, eis que permanece em um canto o governo federal e suas burocracias, lutando para manter o controle político e financeiro sobre o setor público e seus serviços, transferindo apenas responsabilidades para Estados e Municípios, e noutro canto, governadores e prefeitos procurando extrair da União mais recursos tributários, desvinculados de qualquer responsabilidade de gastos em áreas sociais pré-determinadas (DIAS, 2007, grifo nosso). No contexto de todas essas disputas foi amadurecendo o modelo de gestão associada para execução dos serviços públicos sociais, um novo modelo gerencial para a administração pública, inspirado na administração das empresas privadas e que se contrapunha à forma administrativa vinculada ao estrito regime jurídico de direito público (mais burocrática), além de também mudar os contornos de Estado provedor de “Bem Estar Social” (CORAGGIO, 2000), para um Estado mínimo e “eficiente”. Inicia-se a reforma administrativa do Estado, tendo como pressupostos e fundamentos o ajuste fiscal pela redução dos custos sociais e o aumento na arrecadação, intensificação da fiscalização, formulação de novas políticas públicas, parcerias com setores e serviços da sociedade civil, cooperação interfederativa, entre outros institutos, todos de cunho neoliberal. A partir de 1994, a abertura econômica ocorre de forma mais sistemática. Instaurava-se o ideário de que o atraso e as profundas desigualdades, assim como a falta de investimentos no país decorriam de um modelo ultrapassado de Estado. Dessa forma, tornava-se imperativo desmontar o antigo modelo de Estado para que as forças estruturais da globalização pudessem atuar no Brasil e, consequentemente, trazer os novos padrões de desenvolvimento. Em 1995, no Governo de Fernando Henrique Cardoso, tendo como Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, Luiz Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 225 Carlos Bresser Pereira, é definido o Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado11. As diretrizes se pautavam pela reformas gerenciais que vinham sendo implementadas na Inglaterra, desde a década anterior, e que tinham grande influência de organismos e bancos internacionais (FONSECA, 1998)12. As reformas foram paulatinamente sendo inseridas no contexto da administração do Estado brasileiro. Dentre as medidas adotadas destaca-se: “a descentralização dos serviços sociais para Estados e Municípios e para a sociedade civil.” (BRESSER PEREIRA, 1999). Neste cenário de descentralização dos serviços públicos, a reforma das políticas para a educação seguiu o mesmo entendimento. Neste o setor, em 1996, foi editada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, (LDB), definindo que o Município ficaria incumbido de oferecer a educação infantil e com prioridade o ensino fundamental; os Estados ficariam responsáveis pelo o ensino fundamental, oferecendo com prioridade o ensino médio, sendo ainda incumbidos de definir, com os municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, garantindo a distribuição proporcional das responsabilidades. Caberia à União, a rede de ensino superior e a presença em outros níveis e modalidades de ensino (art. 9º, inciso II), cabendo exercer a função técnica de apoio e financiamento e de articuladora da organização da educação nacional. Outra importante estratégia financeira utilizada no período foi a vinculação de receitas a objetivos e setores pré-determinados. No caso do setor educação havia no texto constitucional original a previsão de um mínimo de recursos destinados ao setor, e na década de 90 foi aprovada vinculação de recursos para a educação fundamental13. De acordo com Oliveira apud Dias (2007), o FUNDEF e o SUS foram importantes instrumentos para a efetivação da descentralização de políticas públicas, por forçarem sua ampliação e fixarem recursos para o financiamento de áreas sociais vitais, além de favorecem a cooperação interfederativa. Neste período, o movimento do governo federal era no sentido de centralizar o poder pela concentração das receitas, pelas reformas e pela titularidade sobre as diretrizes das políticas públicas e de buscar descentralizar os serviços sociais sob a concepção de uma reforma neoliberal. Contudo, é visível a contradição das medidas. O Estado brasileiro é estruturalmente um país caracterizado pelo desequilíbrio regional, além de ter a grande maioria de municípios fracos, com pequeno porte populacional, pouca 11 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/PLANDI.HTM>. 12 Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento entre outros. 13 A criação do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), em 1996, foi pioneira no sentido de se criar um mecanismo de vinculação de recursos. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 226 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo capacidade econômica, dependentes de transferências fiscais. É obvio, e ululante que, com o aumento da transferência das responsabilidades para entes regionais e locais, sem que estes tivessem reais condições de exercê-las, tornou imperativa a busca por mecanismos alternativos que pudessem solucionar a questão. Já prevendo essas dificuldades, “o pai da criança” tinha algumas opções, como por exemplo, transferir parte dos encargos à sociedade civil (BRESSER-PEREIRA, 1999) através de convênios, ou através da cooperação interfederativa, pela gestão associação através dos consórcios administrativos e dos convênio de cooperação. 5. GESTÃO ASSOCIADA DE SERVIÇOS PÚBLICOS NO ESTADO BRASILEIRO O sistema de cooperação administrativa e seus atuais modelos (os consórcios públicos e convênios de cooperação) como meio gerencial associativo, pelo qual o Estado lança mão para consecução da prestação dos serviços públicos sociais, respeita a autonomia dos entes federados e apresenta-se como um formato inovador e promissor para a execução de projetos, pelo barateamento dos custos, pela maior facilidade de se atender mais direta e adequadamente às demandas locais e regionais, uma vez que, o mecanismo, pela cooperação entre as esferas governamentais, admite a junção entre os entes sob diversas combinações e nas duas modalidades, podendo ser firmado entre entidades apenas do poder público ou em parceria com a iniciativa privada, ou seja, um instituto absolutamente versátil e útil. Assim, verificou-se um crescimento quantitativo das gestões associadas, em especial, dos consórcios em várias áreas. Pela sua viabilidade para a resolução de demandas sociais, este modelo começou a tomar volume e a receber recursos diretos dos órgãos de gestão intermunicipal, o que exigiu um efetivo tratamento jurídico aos instrumentos de cooperação federativa, e propiciou a manutenção das reformas administrativas de descentralização dos serviços sociais. Em 1990, a legislação do SUS estabeleceu expressamente a existência dos consórcios públicos, conforme a redação da Lei 8.080/1990: Art. 10. Os municípios poderão constituir consórcios para desenvolver em conjunto as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam. § 1º Aplica-se aos consórcios administrativos intermunicipais o princípio da direção única, e os respectivos atos constitutivos disporão sobre sua observância. § 2º No nível municipal, o Sistema Único de Saúde (SUS), poderá organizar-se em distritos de forma a integrar e articular recursos, técnicas e práticas voltadas para a cobertura total das ações de saúde. Em 1998 foi aprovada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional no. 19, inspirada nas diretrizes traçadas pelo Plano Diretor de 1995, inovou, acentuando as Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 227 políticas de reforma e de descentralização político-administrativa do Estado brasileiro. Também, foi por força deste instrumento que foi alterada a redação do art. 241 da Constituição Federal, passando a prever expressamente os consórcios públicos e os convênios de cooperação. Os consórcios, desta forma, apresentar-se-iam como instrumento de cooperação intergovernamental, um arranjo cooperativo da federação para superar dilemas decorrentes de assimetrias locais e regionais brasileiras. Sem dúvida, este foi o marco histórico e institucional da gestão associada na política brasileira: Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. A concepção de gestão de Estado que se configurou, apresentou uma lógica e mecanismos administrativos fortemente influenciados pela esfera gerencial privada, pelos mecanismos de mercado (competitividade, o controle de custos, a flexibilidade na gestão administrativa em relação à contratação e demissão de recursos humanos, apuração de eficiência e resultados). Neste contexto, as novas figuras administrativas, consórcios públicos e convênios de cooperação se apresentam como um ótimo formato. Pois, era possível descentralizar os serviços públicos para os entes subnacionais, ou se poderia delegá-los, através de convênios, à Sociedade Civil. Ambas as formas serviam para desonerar a máquina estatal federal. A lei 11.107/05, também conhecida como lei do consórcio público, surgiu para atender ao disposto no Art. 241 da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998. Esta foi a “[...] primeira lei brasileira dedicada exclusivamente à disciplina de instrumentos de cooperação federativas. Constitui-se, por isso, em um marco, do início do processo de institucionalização das relações federativas” (RIBEIRO, 2007, p.11). Antes da lei, os consórcios públicos funcionavam apenas como pactos administrativos, agora ganhariam maior autonomia. Em 2007 foi instituído o Decreto 6.017 regulamentando a Lei dos Consórcios Públicos, permitindo a cooperação entre a União, estados, municípios e o Distrito Federal na prestação de diversos serviços públicos. Com a regulamentação, o governo federal almejava estimular as associações, principalmente, entre os pequenos municípios. Os municípios também passavam a poder se consorciar, com ou sem a participação dos seus respectivos Estados. Não obstante, apesar do marco regulatório já instituído por emenda constitucional, lei federal regulando a matéria e decreto legislativo regulamentando os institutos, o governo federal de Luís Inácio Lula da Silva ainda pretende promover novos Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 228 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo desdobramentos legais, com o intuito de propagar a disseminação das formas de gestão associada entre os entes da federação. De acordo com as diretrizes formuladas pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, há propostas para reformular a gestão pública da Educação no Brasil, através da “Reconciliação de gestão local das escolas pelos estados e municípios com padrões nacionais de investimento qualidade”. Em síntese, as diretrizes pretendem através da gestão associada e da flexibilização do pacto federativo, concentrar no governo federal o controle pelas políticas para educação, descentralizando para os entes subnacionais apenas a execução da prestação dos serviços educacionais. 6. GESTÃO DA EDUCAÇÃO – PROPOSTA PARA UMA RECONCILIAÇÃO INTERFEDERATIVA ATRAVÉS DE GESTÃO ASSOCIADA No ano de 2007, o ministro-chefe da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, Roberto Mangabeira Unger14 discursou sobre a reconciliação da gestão local das escolas através da flexibilização do federalismo e pela implementação das políticas pelo modelo de gestão associada. Eis o problema apresentado por Unger: Como reconciliar a gestão local das escolas pelos Estados e Municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade? O princípio é muito simples: a qualidade da educação que uma criança brasileira recebe não deve depender do acaso e do lugar em que ela nasce. (UNGER, 2007)15 E, para tanto, o Ministro apontou a seguinte solução: Para isso, imaginamos ser preciso associar os três níveis da federação: municípios, estados e governo federal em órgãos conjuntos que possam vir em ajuda de um Município ou até de um Estado que não tenha conseguido, repetidamente, alcançar esses padrões nacionais. (UNGER, 2007) Ou seja, os entes subnacionais deveriam implementar as atribuições que lhes são conferidas constitucionalmente, conduto, caso não consigam efetivá-las, poderão se valer da cooperação associativa e, claro, implementar os programas de acordo com os padrões nacionais de investimento e qualidade. No entanto, a União chamará para si o controle das diretrizes políticas e, de certa forma o poder de gestão, sem, contudo, (re)centralizar a responsabilidade pela execução dos serviços. Mas, ainda assim surge o questionamento: Tal medida não poderia parecer usurpação de poder, ingerência interfederativa? O governo federal argumenta que não: 14 Roberto Mangabeira Unger é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Harvard e, atualmente, ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos. 15 Discurso do ministro Roberto Mangabeira Unger na cerimônia de assinatura de portarias interministeriais sobre federalismo e ensino médio, no Ministério da Educação, em 4 de dezembro de 2007. Disponível em: <http://www.sae.gov.br/site/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=66>. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 229 Fique claro, portanto, que não se trata de uma usurpação pelo Governo Federal das responsabilidades dos Estados e dos Municípios. Trata-se de caminhar na flexibilização do federalismo, como começa ocorrer em todas as grandes democracias federativas no mundo, para aproveitar ao máximo o potencial do federalismo, que é servir como um conjunto de laboratórios de experimentação em todas as políticas sociais (UNGER, 2007). E, as diretrizes são endossadas pelo Ministro da Educação, Fernando Haddad: Não se trata de fazer com que um governo usurpe poderes de outro. Mas de seguir o caminho de flexibilização do federalismo que caracteriza as democracias federativas contemporâneas mais desenvolvidas (HADDAD & UNGER, 2009). De acordo com o inciso V, do artigo 23, da Constituição Federal de 1988, proporcionar meios de acesso à educação já é de competência “comum” entre os entes federados, sendo também de competência comum a organização dos sistemas de ensino, conforme artigo 211, desta mesma Carta. Neste sentido, o texto constitucional: Artigo 211: § 1º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente16 no ensino fundamental e na educação infantil. § 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. § 4º Na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório. (Grifo nosso). Entretanto, o governo federal parece querer mais poder neste setor. O entendimento e posicionamento do governo federal tem sido de que “O Brasil tem caminhado em busca da reconciliação entre gestão local do ensino público e padrões nacionais de investimento e de qualidade da educação” 17. Neste sentido, é o documento para discussão, (de junho de 2009, em sua versão preliminar) intitulado – Educação e federalismo – Proposta para reconciliação entre gestão local e padrões nacionais de investimento e qualidade, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República18 (SAE), que propõem soluções para melhoria da educação nacional pela 16 As competências são “prioritárias” e não “exclusivas”, o que permite a colaboração entre os entes federativos. 17Este documento foi localizado na página virtual da Universidade de Direito de Harvard. Observado que, o atual Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (interino), Daniel Barcelos Vargas é doutorando e mestre em direito pela Universidade de Harvard. 18 BRASIL. Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Duas Iniciativas para Mudar a Educação no Brasil: 1-Reconciliação da gestão local das escolas pelos estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade. 2-A nova escola média. Brasília: 2009. Disponível em: <http://www.law.harvard.edu/faculty/unger/portuguese/pdfs/06_Educacao1.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2009. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 230 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo reconciliação da gestão local das escolas pelos Estados e Municípios, tendo por alternativas, por exemplo, “diálogo nacional”, com escopo reconstrutivo para reconciliação das esferas interfederativas na gestão educacional. De acordo com esta cartilha, “o foco é avançar no sentido de um sistema transfederativo apto a socorrer sistemas educacionais”, e apresenta três etapas para o enfrentamento da questão: 1) a ampliação dos mecanismos consensuais já existentes a partir de instrumentos jurídico-administrativos (consórcios públicos e convênios de cooperação) de gestão associada dos serviços educacionais; 2) criação legislativa (legislação infraconstitucional) de instrumentos regulamentadores do regime de colaboração federativa na educação; 3) alteração do regime constitucional de repartição de competências e de interação entre os entes federados do Brasil.19 (Grifo nosso). Não restam dúvidas que, de acordo com o documento de estratégias do governo federal, o poder executivo pretende estimular a cooperação associativa e dar iniciativa aos projetos de leis e efetivar os respectivos desdobramentos legais. In verbs declara o documento de estratégias: Por isso, a ideia básica desta Emenda Constitucional é a de explicitar o caráter cooperativo e complementar de um novo modelo de federalismo. Não se trata, portanto, de reforçar o sistema “hidráulico”, mas sim de estabelecer novos mecanismos de atuação conjunta e compartilhamento de competências. Essa é uma mensagem geral, não restrita apenas à educação, que pode encontrar nessa importante política social a cunha necessária para uma transformação mais profunda do nosso sistema federal (BRASIL, 2009). Quanto à segunda etapa (criação legislativa de instrumentos regulamentadores do regime de colaboração federativa na educação), o documento tenta demonstrar a disposição do poder executivo federal em “flexibilizar” o modelo federativo atual na órbita da educação, e o pretende fazer através pela busca de mecanismos jurídicos que possam possibilitar uma colaboração mais efetiva. Esta proposta, no mínimo, necessita de grandes esclarecimentos. Abaixo a proposta de emenda para intervenção federal e os argumentos: Art 34. (...) VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: (...); f) garantia de padrão de qualidade no ensino básico, nos termos estabelecidos em lei. 19 Proposta de nova redação para o artigo 211, parágrafos 1º e 2º (em itálico), inserida na cartilha da SAE: § 1º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como pelo estabelecimento de órgãos transfederais de apoio e fomento à qualidade da educação; § 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, incluindo o estabelecimento de órgãos transfederais de apoio e fomento à qualidade da educação e de mecanismos de gestão compartilhada de recursos, de modo a assegurar a universalização e a qualidade do ensino obrigatório. BRASIL. Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Duas Iniciativas para Mudar a Educação no Brasil: 1-Reconciliação da gestão local das escolas pelos estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade. 2-A nova escola média. Brasília: 2009, p.41. Disponível em: <http://www.law.harvard.edu/faculty/unger/portuguese/pdfs/06_Educacao1.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2009. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 Adriana de Andrade Espíndola 231 A proposta aqui defendida visa à superação dessa ideia reticente de federalismo. É necessário flexibilizar o federalismo. Essa é a orientação de fundo desta proposição de alteração constitucional. Porém, ao contrário do que possa parecer, não se trata de uma ruptura. A ideia subjacente, pelo contrário, é a de explicitar um sentido ainda oculto do regime federativo da educação brasileira. (BRASIL, 2009) E, com relação à terceira etapa, a que prevê reforma constitucional para uma nova repartição de competências e de interação entre os entes federados, esta induz ao pensamento de que o governo federal parece querer ir bem longe com a flexibilização federativa e com a centralização do poder gerencial das políticas educacionais, através da previsão constitucional dos órgãos transfederais de apoio e fomento à qualidade da educação. Além das reformas constitucionais o documento de estratégias também prevê uma proposta de revisão do Decreto 6.094/2007 e outra proposta de projeto de Lei Complementar sobre regime de colaboração na educação, incluindo previsão de ação de responsabilidade educacional para o gestor. Todas essas propostas merecem maiores esclarecimento. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A cooperação federativa defendida pelo governo federal, com vistas à modificação do exercício da competência comum em matéria de educação, pode não ser apenas o início de um novo modelo de gestão dos serviços públicos educacionais, mas uma verdadeira mudança de paradigma no campo da gestão dos serviços públicos sociais. Evidente que este não é um modelo idealizado pela elite do governo federal brasileiro. Essas reformas institucionais estão ocorrendo em diversos países no mundo, todas visando atender as transformações que ocorrem no cenário mundial globalizante. Não é sem razão que a estratégia de flexibilização do pacto federativo se inicie pela educação. Além de a educação estar diretamente relacionada às questões de desenvolvimento de Estado, é um segmento de alto custo para o setor público à prestação dos serviços educacionais, o que leva a maioria dos municípios e alguns Estados da Federação a buscar apoio junto ao governo federal e, neste contexto, ceder uma parcela de sua autonomia (enquanto ente federativo) na definição das políticas públicas para a Educação. Entretanto, nada garante que a flexibilização do pacto federativo, aumentando o poder político da União na definição das políticas públicas para a educação nacional, modifique a situação de se concentrar no governo federal o controle das políticas para educação, descentralizando para os entes subnacionais, tão somente, a responsabilidade pela execução da prestação dos serviços públicos educacionais. Revista de Educação Vol. 13, Nº. 16, Ano 2010 p. 215-233 232 Gestão associada dos serviços públicos e a flexibilização do pacto federativo REFERÊNCIAS AMARO, Luciano da Silva. 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