ALINE CRISTINA RIFFEL CRIATIVIDADE O QUANTO CADA UM ESTÁ DISPOSTO A EXPOR SUAS IDEIAS? SANTA ROSA, DEZEMBRO DE 2013 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUI DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO CRIATIVIDADE O QUANTO CADA UM ESTÁ DISPOSTO A EXPOR SUAS IDEIAS? ALUNO (A): ALINE CRISTINA RIFFEL ORIENTADOR (A): LALA CATARINA LENZI NODARI SANTA ROSA, DEZEMBRO DE 2013 2 DEDICATÓRIAS Dedico primeiramente a Deus que sempre me iluminou, em todos esses anos, a cada novo passo, que me fez ter a real convicção de nunca desistir de meus sonhos. A meus pais, Alceu e Reni, que me apoiaram nesta jornada e em toda minha vida, sem eles jamais teria a oportunidade de concluir esta graduação e também aprender com todas as experiências que me possibilitaram, o seu incentivo, apoio imensurável, incondicional, afinal “sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim” (Álvaro de Campos), se este foi meu sonho, é também de vocês. Aos meus familiares que em muitos momentos me deram suporte, apoiando cada passo desta trajetória, e aos meus amigos que de uma forma ou de outra estiveram participando desta pesquisa e em todos os momentos de minha vida. Um agradecimento especial aos amigos Vilson Kunzler e Katiucia Peres que me auxiliaram diretamente neste trabalho e em praticamente todos os momentos importantes de minha vida, fossem eles bons ou ruins. E não poderia faltar a maior dedicatória de minha vida... Em todos os momentos da vida queremos ter a companhia daqueles que amamos. Seja para brincar, conversar, brigar ou simplesmente amar incondicionalmente. Pois é, nesta grande fase, não poderia ser diferente. Quando me deparo com um mundo novo. Onde sou totalmente EU e EU, concluo, e talvez “entenda” mesmo sem aceitar, o que decidiste fazer comigo. Sabiamente decidiu partir para que eu entendesse o quando foi fundamental em meu crescimento e amadurecimento. Mais uma vez me provou que sua missão foi me ensinar a viver. Mesmo morrendo. Meu irmão, meu garotinho chorão, brincalhão, briguento e chato pra caramba. Seu abraço, seu beijo, seu carinho era tudo que meu egoísmo queria neste momento da vida. Mas você no auge da sabedoria de um grande anjo deixa a mim, além do maior ensinamento que tive, tenho e terei... SORRIR e VIVER... por mim e para todos. Sinto a cada 3 segundo, seu sorriso a me tranquilizar e sua força a me empurrar na direção de um futuro incerto, misterioso e por isso instigante, desafiador e certamente MARAVILHOSO. È a ti que dedico todo meu esforço, meus sonhos e cada passo em direção ao futuro. Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso." Quero para mim o espirito desta frase, transformada A forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em goza-la penso. Só quero torna-la grande, ainda que para isso Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torna-la de toda a humanidade; ainda que para isso Tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho Na essência anímica do meu sangue o propósito Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir Para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. (FERNANDO PESSOA) 4 SUMÁRIO RESUMO ......................................................................................................... 6 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 8 1. CRIATIVIDADE - CONCEITOS ................................................................... 11 2. CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO .................................................. 26 3. EDUCAÇÃO PARA CRIATIVIDADE .......................................................... 36 4. CONCLUSÃO ............................................................................................ 44 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 48 5 CRIATIVIDADE - O QUANTO CADA UM ESTÁ DISPOSTO A EXPOR SUAS IDEIAS? NOME: ALINE CRISTINA RIFFEL ORIENTADOR: LALA CATARINA LENZI NODARI RESUMO O trabalho tem como tema a criatividade e a possibilidade de desenvolvimento desta, a partir da abordagem de diferentes autores da psicologia. O principal objetivo é demonstrar que existe a possibilidade de estimularmos o desenvolvimento da criatividade e/ou a relação desta com outras características da personalidade humana. Buscou-se, para isso, um apanhado bibliográfico dos conceitos de criatividades abordados por diferentes autores, bem como a descrição de como se dá a constituição do sujeito psíquico, para assim entendermos a relação entre a educação e o desenvolvimento da criatividade. Como ponto importante do trabalho, foram elencadas algumas características dos diferentes grupos sociais que possibilitam o exercício e a ampliação da criatividade de forma autônoma. PALAVRAS-CHAVES: criatividade, desenvolvimento, educação, autonomia. 6 ABSTRACT The work's subject of study is the creativity running and the possibility of developing it, based on different psychology author‟s approach. The main objective is to demonstrate that it is possible to stimulate the development of creativity and the relationship between this and other features of the human personality. We sought to do so, a literature overview of the concepts of creativity addressed by different authors, as well as a description of how is the psychic subject building, for then, make possible the understanding of the relationship between education and development of creativity. As an important part of the work, were listed some characteristics of the different social groups that allow the exercise of creativity and expansion autonomously. Key words: creativity, development, education, autonomy. 7 INTRODUÇÃO O presente documento descreve as possibilidades de estudo acerca do tema da criatividade uma característica humana importantíssima para a atualidade. A criatividade é a questão central do projeto de pesquisa apresentado neste trabalho, buscando refletir sobre as possibilidades de desenvolvê-la, além de relacioná-la com a educação para criatividade e a questão da autonomia de todo ser humano. Para além das relações entre criatividade, educação, liberdade de expressão e autonomia, também serão realizados estudos a cerca das possibilidades de se pensar a criatividade como algo passivo de desenvolvimento a partir de estímulos cognitivos, sociais e culturais. Identificando fatores importantes e influentes no desenvolvimento do potencial criativo, e sua importância às sociedades contemporâneas. Desde o surgimento da humanidade somos movidos por aquilo que somos capazes de criar. O homem foi capaz de inventar desde a escrita até a informática e tudo o que as tecnologias nos possibilitam na contemporaneidade. No entanto, ao longo da história as características criativas foram oscilando em termos de valor social. Com o surgimento da indústria o homem não precisava mais criar suas ferramentas, formas de facilitar o seu trabalho, precisava apenas repetir o que era necessário para o funcionamento da máquina. Hoje, em virtude da globalização, a frase mais utilizada é “nada se cria, tudo se copia”, afinal de contas o que é pensado em um determinado lugar se propaga na velocidade da luz a todos os cantos do planeta. Aspectos relacionados à criatividade humana são extremamente valorizados, mas até que ponto somos capazes de realmente exercitar e desenvolver a criatividade em um mundo tão acelerado? Por todas estas questões o entendimento sobre a temática da criatividade torna-se tão significativa. È fundamental entendermos como nos 8 constituímos seres criativos e as possibilidades de desenvolver esta característica humana tão importante para a contemporaneidade. A criatividade é uma característica eminentemente humana. Uma das habilidades que diferencia os seres humanos de outros animais, e que vem garantindo a evolução da sociedade, da ciência e da tecnologia. Se é uma característica ela pode ser aperfeiçoada, todo e qualquer ser humano pode exercitar a sua criatividade e assim o faz no seu dia-a-dia, com as inúmeras “respostas”, resoluções de conflitos, caminhos alternativos, projetos de vida, inovações e até mesmo invenções. “A criatividade tem sido e é objeto de estudo de muitas disciplinas: da psicologia, da sociologia, da epistemologia, da filosofia, da história [...] Todas elas pesquisam-na baseadas em sua própria especificidade conceitual e metodológica, e muitas das polêmicas atuais derivam não só da complexidade do objeto como tal, mas também da insuficiente precisão dos limites disciplinares e interdisciplinares dentro dos quais a criatividade é abordada.” (MITJÁNS, 1997, p. 9) A partir desta pesquisa será possível perceber o quanto a temática criatividade se faz presente em nossas vidas em todos os momentos, mas principalmente nas relações sociais. Relacionando-os aos estudos realizados ao longo do curso de Psicologia, proporcionando uma visão ao mesmo tempo ampla e específica da realidade em que vivemos. O projeto em questão busca pensar questões importantes para a sociedade, a partir das quais seja possível refletir sobre as características humanas contemporâneas. A velocidade em que o mundo globalizado está se organizando e a relação disso com a constituição psíquica dos sujeitos que ao mesmo tempo são reflexo da globalização e agentes dela. No primeiro capítulo do projeto estaremos identificando os diferentes conceitos de criatividade para a psicologia e à psicanálise, buscando aqueles que mais se aproximem da hipótese de que a criatividade é inata ao homem, além de perceber a relação entre a capacidade criativa e a autonomia do sujeito. O segundo capítulo traz a descrição da constituição psíquica segundo os estudos psicanalíticos e a relação desta constituição com as características psíquicas relacionadas à criatividade. 9 A possibilidade de desenvolvimento da criatividade e da autonomia será o assunto abordado no terceiro e último capítulo da pesquisa, visando identificar até que ponto estímulos cognitivos, sociais e culturais podem contribuir para o desenvolvimento da criatividade e como a autonomia também contribui neste processo. Faz-se fundamental pensar quão significativa é a capacidade criativa de um ser humano para a sociedade, principalmente para o mundo contemporâneo, e para isso quais são os elementos da criatividade que mais podem trazer benefícios à evolução humana e quais as possibilidades destes serem desenvolvidos ou potencializados ao longo de nossas vidas? 10 1. Criatividade - Conceitos A criatividade, o fenômeno criativo, o potencial criativo e todas as habilidades e competências relacionadas às características dos indivíduos considerados criativos, são alvo de muitos estudos, nas mais diversas1 áreas do conhecimento. Esta característica distingue o homem das outras espécies vivas e está presente desde a origem da humanidade além de se relacionar diretamente às questões culturais. O ser humano é um sujeito histórico ligado à concepções de sociedade e cultura às quais está inserido diretamente. Como ser em constante desenvolvimento é capaz de constituir-se enquanto sujeito, a partir das relações e inter-relações com o mundo, com os outros, como também internamente, consigo próprio. Essas relações, experiências, vivências e conhecimentos exigem do sujeito uma capacidade de adaptação constante, o que também caracteriza o equilíbrio psíquico. A criatividade parece ser uma das principais „habilidades‟ a permitir o processo de adaptação em sociedade, e, para além disso, contribui diretamente na evolução dessa mesma sociedade. Existem multidefinições para o termo criatividade e a elas daremos atenção neste capítulo. Muitas vezes, mesmo parecendo contraditórias, apresentam semelhanças e conexões. Vários são os grupos de estudiosos que tem se dedicado ao assunto, com pesquisas amplas e em diferentes linhas. Pensemos sobre algumas definições para o termo e como estão relacionadas à personalidade do sujeito, principalmente no que tange às questões da autonomia. Iniciemos com Martínez que nos mostra que a “A criatividade não é explicável só como produto de funções cognitivas [...] são necessários outros aspectos da vida psíquica, inclusive a participação de toda a vida subjetiva da pessoa, o que já aponta do papel da personalidade.” (1997, pag. 13), comprovando que esta é parte da personalidade do sujeito e característica fundamental para vida em sociedade. 1 Estudos sobre a criatividade: Psicanálise, Psicologia, Neurociência, Epistemologia, Sociologia, Educação, etc. 11 Buscando definições mais objetivas ao termo, vemos nos estudos de Souza-Filho, 2008, as definições de Piirto, 1992 e Ferreira, 1986, que apontam: “As raízes das palavras “criar” e “criatividade” vêm do latim creare. Significa “fazer ou produzir” ou, literalmente, “crescer”. No novo Dicionário da língua portuguesa de Ferreira, 1986, traz a definição de criatividade como: “dar existência, tirar do nada; gerar, formar, dar princípio a; produzir, inventar, imaginar, organizar, causar etc. (p.498)”. Nesta perspectiva é possível pensar a criatividade como a ação de pensar, fazer ou construir algo novo que pode ser útil ou não, mas que só será valorizado pelo social se representar suas necessidades e suprir expectativas. A concepção de criatividade é ampla e está intimamente relacionada à cultura e a época em que foi escrita. Lubart traz a definição que irá nortear esta produção, afirmando a partir de seus estudos, que e a criatividade é “a capacidade de realizar uma produção que seja ao mesmo tempo nova e adaptada ao contexto na qual ela se manifesta.” (2008, pag. 16) No artigo de Souza Filho (2008) é possível encontrar a definição de Vigotsky (1987) para o termo criatividade, pensada por ele como “um produto da interação do sujeito com seu ambiente, impulsionado pelos processos de desenvolvimento e aprendizagens.” Toda relação sócio-histórica determina as habilidades criativas. Por ela, o sujeito aprimora seu potencial criativo, próprio aos seres humanos, a partir do momento em que se relaciona com o outro, buscando desse modo, constantemente encontrar formas de conviver em sociedade. Vygotsky fala muitas vezes sobre criatividade, ainda no início do século, o que nos mostra a importância desta característica e sua estreita relação com a vida em sociedade. No artigo publicado na Revista de Educação, da PUC Campinas, Delou e Bueno (2001), entendem que Vygotsky pensava acerca da genialidade em seus escritos de 1929, já trazendo a relação desta com o tema “criatividade”, além de aliá-la ao processo do social. Estas mesmas autoras afirmam que “Toda grande descoberta, invento ou qualquer manifestação de criação genial, 12 é preparada por todo o curso prévio do desenvolvimento, condicionada pelo nível cultural da época, suas necessidades e imposições.” (p. 98) Temos, portanto, uma concepção eminentemente sócio-histórica, mas que, aparentemente, não está distante das definições psicanalíticas, em que a “criatividade” é compreendida como fazendo parte da estrutura do sujeito, relacionada às pulsões a uma série de características particulares dos indivíduos criativos. Como afirma Lubart apud Freud (1908-1959) “ao se referir à ideia de que a criatividade resulta de uma tensão entre realidade consciente e pulsões inconscientes, sugeriu que os artistas e os escritores criam para conseguir expressar seus desejos inconscientes (amor, poder, etc.) pelos meios culturalmente aceitáveis (arte ou literatura).” (2007, p. 13). Ao tratar dessa expressão, Freud segundo De Masi, teria dito que; as questões da criatividade estão relacionadas à sexualidade e à motivação e então, o que se cria e como se cria nada mais é que uma “motivação inconsciente, de tipo sexual, com raízes na primeira infância e que aproxima, de modo inquietante, a criatividade da neurose.” (2003 p. 459). Dessa forma a concepção de criatividade, nessa visão, nada mais é que uma tentativa de sublimar frustrações sexuais, na medida em que, segundo o mesmo autor: o criativo desafoga, por meio da tentativa de conhecer e penetrar nas coisas desconhecidas, o seu desejo frustrado de desvendar os mistérios do sexo [...] porque a representação estética permite ao artista tornar público as suas fantasias íntimas, vencendo a vergonha e o embaraço que sempre acompanha a exteriorização dos sonhos. (2003, p. 459). De Masi, a partir de estudos de diferentes autores chega à conclusão de que “a criação é tanto destruição quanto construção”, e segue afirmando que é “destruição por excesso, que nada tem a ver com a triste desumanização do trabalho taylorizado”2. Pode acontecer, portanto, que para os criativos “a vida se consuma na tentativa de freá-la, de domesticá-la, dar-lhe tempo e espaço 2 Taylorismo: modelo de administração que se caracteriza pela ênfase nas tarefas, com a finalidade de aumentar o nível operacional, seu fundador defende que o trabalho deve ser realizado de forma mais inteligente e com o mínimo de esforço. Foi desenvolvido pelo norte-americano Frederick Taylor (1856 – 1915). 13 suficientes, já que a sua pressa é o diabo destrutivo presente no próprio impulso criativo”. (2003, p.461) Na concepção de Arieti, estudado por De Masi, a criatividade está calcada em uma “síntese mágica dos processos primários e secundários” (pag. 469), e estaria resumida a um terceiro processo, ou “processo terciário”. Para entender um pouco melhor é importante pensarmos o que caracteriza cada um destes processos. Os processos primários são abstratos e subjetivos, na ordem do inconsciente e do pré-consciente, neles estão os sonhos, fantasias e estados psicóticos. Os processos secundários são considerados como sendo as imagens elaboradas para o consciente, englobando os pensamentos e os conceitos de realidade. O autor reitera sua compreensão acerca dos processos formadores da criatividade, quando afirma que: O sujeito criativo conserva uma possibilidade maior do que a média de ter acesso às imagens, à metáfora, à verbalização acentuada e a outras formas ligadas ao processo primário... A inspiração é a faculdade que permite ao sujeito criativo encontrar uma forma do processo secundário que encerre um conteúdo do processo primário. Essa possibilidade de acesso ao processo primário pode requerer um estado de passividade similar ao do sono, mas essa passividade não pode afetar toda a psique do artista. Ao contrário, ela contrasta com a vivacidade aumentada daquela parte da psique que concerte ao processo secundário e que rege a síntese artística. No ato da criação estética tem lugar, portanto, um mecanismo mental complexo que une uma passividade maior do que a habitual e uma atividade maior do que a habitual (2003, p. 470) Essas questões levantadas por De Masi acerca das afirmações de Arieti complementam as apresentadas por Freud. Podemos compreender então, que a criatividade está relacionada a uma espécie de motivação, algo intrínseco, que começa de forma quase pulsional, inconsciente. Para ambos a questão da criatividade está relacionada a um estado de total liberdade, onde o sujeito é capaz de acessar elementos de seu inconsciente trazendo-os à realidade através de ideias adaptadas ou não aos contextos sociais. Arieti afirma ainda, que existe uma lista de condições necessárias para promover a criatividade, mas acerca delas falaremos no próximo capítulo. Ressaltamos nesse momento, que todo potencial criativo existente nos processos primários pode vir à tona de inúmeras maneiras, desde que os 14 processos secundários aceitem esse material. Absolutamente qualquer experiência, atitude ou pensamento pode desencadear um processo criativo, como verificamos nas ideias abaixo expressas: Tudo aquilo que fora invisível, indizível e impalpável pode vir à tona de varias maneiras: subitamente, inesperadamente, de chofre, num relance, durante a meditação, a contemplação, a fantasia, o relaxamento, o uso de drogas, os sonhos; ou pela ação de um esforço de evocação, de associação, de estimulação externa, da sensação sinestésica, e por aí vai. Cabe às faculdades mentais que fazem parte do processo secundário aceitar ou recusar esse material (De Masi apud Arieti, 2003, p. 472) Pensando a criatividade dessa forma, como algo do sujeito, uma característica presente nas diferentes pessoas e em todas as áreas de atuação do homem, das ciências humanas às ciências exatas, das engenharias às expressões artísticas, da criança ao idoso, e desencadeada pelos mais abrangentes processos, podendo gerar produções que podem ser apenas uma ideia, um novo objeto, uma descoberta científica, uma composição musical, uma campanha, uma jogada de marketing, etc., é possível pensar o quanto somos seres criativos. Indagamo-nos acerca do que leva alguém a inventar um objeto, ou um medicamento, levantar uma hipótese, realizar um questionamento. González em conferência no XXI Congresso Internacional de Psicologia (1987), nos mostra que: Descobriu-se que, em todos os inovadores, independentemente de seu grau de efetividade criativa, manifestavam-se motivações sociais intensas de chegar à solução de problemas técnico-econômicos do país, além de motivos de busca legítima de reconhecimento social. Todavia, aqueles de alto rendimento mostravam, além desses motivos sociais, um motivo de tipo processual dirigido ao processo de criação em si mesmo que desperta vivências agudas de tensão e satisfação emocional durante a atividade intelectual, mesmo sem ter chegado à solução final do problema. Observamos que os sujeitos com motivos processuais apresentavam uma estimulação persistente e efetiva de origem interna, que já era parte de sua personalidade e que os impulsionava a entender, a buscar e a propor problemas autônoma e ativamente. (p. 37) Esta afirmativa de González permite que seja possível perceber a relação entre a criatividade e muitas características da estrutura psíquica; como 15 as pulsões internas para buscar, entender, questionar; que resultam na motivação para realizar algo, em associação à atividade intelectual intensa e também à capacidade de agir de forma autônoma. O que pensam esses autores nos permite estabelecer pontos de relação entre a criatividade e a autonomia. Assim como uma produção criativa precisa ser adaptada às questões culturais, às necessidades e expectativas, às tradições e a uma determinada época, também precisam ser inovadoras e capazes de quebrar paradigmas e preconceitos, transformar fatores históricos e culturais e traçar alternativas para a evolução da sociedade. Neste sentido, as questões intrínsecas ligadas à motivação para criatividade são determinantes e a capacidade do sujeito de desafiar seus próprios paradigmas também o é. Outras linhas de pesquisa da psicologia também abordam o tema da criatividade, como é o caso da psicologia gestáltica de Wertheimer, citada por Lubart (2007), que traz a concepção de que “O fenômeno de insight seria o motor da criatividade antes que as cadeias de associações.” (p. 14). Sob esta ótica a criatividade está associada a uma ideia nova que surge não se sabe ao certo de onde nem por que, mas do indivíduo na busca de uma resposta, uma motivação. Martínez segue a mesma linha de raciocínio, este autor (1997) afirma que: A criatividade é expressão da implicação da personalidade em uma esfera concreta da atividade, o produto da otimização de suas capacidades em relação com fortes tendências motivacionais, em que o sujeito da atividade está envolvido com um todo. (p. 26) Para a psicologia humanista, abordada por Martinez (1997) “a criatividade é concebida como uma expressão da auto-realização da pessoa”. Ela ainda apresenta posições como a de Maslow, que afirma que “criatividade é uma expressão da integridade da personalidade”, permitindo estabelecer relação entre criatividade e saúde psíquica. Dessa forma, „apenas‟ as pessoas que possuem estruturas psíquicas consideradas adequadas ou devidamente adaptadas, apresentam-se como sujeitos criativos. 16 Portanto e: Para resumir, a criatividade AR (auto-realizada) acentua, em primeiro lugar a personalidade em face de suas consecuções, considerando estas como epifenômenos emitidos pela personalidade e, portanto, secundários em relação a ela. Acentua as qualidades caracterológicas como intrepidez, valentia, liberdade, espontaneidade, perspicácia, integração e auto-aceitação, todas as quais possibilitam o tipo de criatividade AR generalizada expressa na vida criativa, na atitude criativa ou na pessoa criativa. Sublinhei também a qualidade expressiva do ser que possui a criatividade AR antes de sua qualidade de solução de problemas ou de elaboração de produtos. A criatividade AR é emitida ou irradiada e alcança todos os aspectos da vida, independente dos problemas, da mesma maneira que uma pessoa alegre emite alegria sem propósito prévio e nem sequer tem consciência disso. (MARTINES APUD MASLOW, 1997, p. 199) Outro autor, Winnicott, citado por Sakamoto, 2000, entende que a criatividade está “sob o prisma da experiência relacionando-a ao potencial criador e inserindo-a no contexto do desenvolvimento humano.” (p. 53). Sob este prisma está calcada a pesquisa, a relação entre o desenvolvimento da criança e a criatividade, Winnicott (1986), complementa a questão da criatividade relacionada ao desenvolvimento afirmando que, mesmo sendo inato, o potencial criativo pode desaparecer, se não estimulado. Aí está a importância fundamental do social para tornar o exercício da criatividade natural no indivíduo. E o autor assevera ainda que: O impulso criativo inato desaparece a menos que seja correspondido pela realidade externa (“realizado”). Toda criança tem que recriar o mundo, mas isso só é possível se, pouco a pouco, o mundo for se apresentando nos momentos de atividade criativa da criança. [...] A partir disso há uma progressão natural no sentido da criação por parte da criança do conjunto de toda a realidade exterior, e da criatividade contínua que, de início, necessita de uma audiência e que, por fim, acaba por criar até mesmo esta (WINNICOT, 1986, p. 16). Em outra obra ainda, Winnicott apresenta uma especificidade da criatividade, presente no ato de brincar, quando afirma que “é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação.” (1971, pag. 79). O brincar é o exercício da liberdade em seu estado mais puro, no brincar o indivíduo encontra espaço para expressar-se, sem limitações, no brincar a fantasia é a ferramenta entre o real e o imaginário. É no imaginário que estão os mundos do faz de conta, o universo do brincar, neste 17 lugar, a criatividade apresenta-se em seu estado mais puro, tem espaço para se desenvolver e potencializar toda sua forma de expressar-se. Mas também é no brincar, que a criança inicia o processo de bordas entre o real e o imaginário, entre a realidade e a fantasia, e consegue determinar como a criatividade pode se apresentar em cada um. Entendemos também, que através da criatividade o ser humano é capaz de estabelecer relações entre sua subjetividade e a realidade que o cerca. Segundo Sakamoto (2000), pois que: Através da criatividade, o ser humano realiza a construção de seu destino e do próprio mundo. [...] ou seja; através da atividade criativa, os seres humanos alcançam uma consciência sobre suas potencialidades, desvendam a condição genuína de sua liberdade pessoal e edificam sua autonomia, uma vez que através da criatividade, o homem existe e evolui, se expressa e modela parcelas de realidade do universo das infinitas possibilidades humanas. (p. 52) Ainda, segue afirmando que a “criatividade é a expressão de um potencial humano de realização, que se manifesta através das atividades humanas e gera produtos na ocorrência de seu processo.” (idem, p. 52). Destacamos também que Winnicott, em sua teoria, aponta a “afetividade” como uma das condições necessárias para o desenvolvimento do potencial criativo. Nos estudos de Sakamoto, podemos encontrar a definição Winnicottiana de que “através das relações afetivas do ser humano e o ambiente desde o início da vida, ocorre o desenvolvimento do sentimento de segurança pessoal que ancora o estado de relaxamento, que é fundamental à possibilidade de emergência do impulso criador.” (ibidem, p. 56). Assim, é possível afirmar que todos os indivíduos que vivem em sociedade possuem potencial criativo e exercem a sua criatividade. É eminentemente característico de todo e qualquer ser humano, a capacidade de criar. A diferença se dá no modo como cada sujeito consegue organizar seus pensamentos criativos, explorá-los e expô-los dentro do que é considerado “adequado” à sociedade. Alguns sujeitos conseguem destinar seu poder 18 criativo à ciência e outros às artes; outros, as mais distintas formas de expressão. Pensando nisso, Hillman descreve oito ideias sobre a criatividade. São elas: ligada à imagem paterna; à inovação (dom de antecipar o futuro); ao primitivo (rebelde revolucionário e insensato); a capacidade de resolver problemas; buscar excelência; ligada a imagem materna (regeneração); ao feminino (sensualidade e senso estético); e ao amor (marcado pela imaginação e beleza). As definições elencadas nos mostram que a criatividade está presente em todas as ações humanas, de uma forma ou de outra. Talvez a diferença em questão esteja nas capacidades de inovação e invenção. Se todos os indivíduos possuem potencial criativo, se ele realmente é inerente ao ser humano, ele pode ser desenvolvido? Aprimorado? Será que todas as pessoas possuem a capacidade de explorar sua criatividade e “inovar, criar, inventar, mudar”? A questão central que nos indagamos é sobre o que possibilita ao sujeito exercer a sua criatividade para além da capacidade de adaptação e resolução de problemas pontuais no social. Que outras características da personalidade humana precisam estar associadas ao potencial criativo para possibilitar que o indivíduo realmente apresente novas ideias, invenções e resolução de problemas de ordem social. Numa tentativa inicial de resposta, pensamos que talvez seja a capacidade do sujeito exercer a sua autonomia, mesmo em uma sociedade que preza pelo “politicamente correto”, “civilizado”, ou seja, onde todos os desejos e pulsões estão devidamente “recalcados” e “sublimados”. Neste sentido, é possível buscar na concepção Winnicottiana de criatividade, um caminho de resposta, ou seja, seria possivelmente pela “submissão” que se determinaria o potencial criativo de um sujeito. Em suas palavras nos inspiramos: É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, ondo o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à ideia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Muitos indivíduos experimentaram 19 suficientemente o viver criativo para reconhecer, de maneira tentatizante, a forma não criativa pela qual estão vivendo, como se estivessem presos à criatividade de outrem, ou de uma máquina (1971, pag. 95). Por outro lado, De Mais aput Taylor que cria uma proposta de distinção entre diferentes “tipos” de criatividade: a expressiva, baseada nas associações livres; a produtiva, orientada à realização de um objeto e controlada pela razão; a inventiva, necessária para descobrir cientificamente novas relações entre os elementos; a inovadora, capaz de levar a mudanças significativas todo um setor do conhecimento; e a emergente, capaz de elaborar aqueles que Kuhn chamaria de novos “paradigmas”. (2003, p. 474). Sendo ela uma característica no ser humano, pode ser aperfeiçoada e todos os sujeitos a poderiam exercitar; fazendo em seu dia-a-dia, com inúmeras “respostas”, resoluções de conflitos, caminhos alternativos, projetos de vida, inovações e até mesmo invenções. Rogers, citado por De Masi, nos apresenta o pensamento de que: a ação da criança que inventa uma nova brincadeira com os seus companheiros, ou a de Einstein, que formula a teoria da relatividade, ou a da boa dona de casa, que inventa um novo molho para o prato, ou a de um jovem escritor que escreve o seu primeiro romance, são todas; segundo a nossa definição, criativas, e não vale a pena que se as disponham em uma ordem hierárquica de maior ou menor criatividade. (2003, p. 456) Nesta perspectiva, talvez possamos destacar três concepções de modelos de criatividade, utilizadas por Zanella e Titon (2005), em suas pesquisas sobre produções científicas acerca do tema. Estas abrangem estudo de Alencar &Fleith e citam algumas ideias e fatores relacionados à criatividade. São elas: a teoria de investimento em criatividade de Sternberg, o modelo componencial de criatividade de Amabile e a perspectiva de sistemas de Csikszentmihalyi. Em tais sistemas, a criatividade está relacionada a diversos fatores, mas principalmente às questões internas como motivação, inteligência, personalidade e habilidades de domínio. Para, além disso, destaca também o contexto ambiental e social, como é possível verificar: 20 Para a teoria de investimento em criatividade, proposta por Sternberg e por Lubart na década de 1990, considera-se o comportamento criativo como resultado da inter-relação de seus fatores: da inteligência, dos estilos intelectuais, do conhecimento, da personalidade, da motivação e do contexto ambiental [...] O modelo componencial de criatividade, proposto por Amabile nas décadas de 1980 e 1990, define a criatividade a partir de aspectos como originalidade e adequação da resposta, além da possibilidade de vários caminhos para a solução da resposta. Discute a influência no processo criativo dos fatores cognitivos, de personalidade e, principalmente, dos fatores sociais e do papel da motivação. Neste modelo teórico, enfatiza-se a interação de três componentes no processo criativo: as habilidades de domínio, os processos criativos relevantes e a motivação intrínseca. [...] A perspectiva de sistemas, proposta por Csikszentmihalyi, defende o estudo da criatividade com foco nos sistemas sociais, e não nos indivíduos [...] a criatividade é entendida como um ato, ideia ou produto que transforma ou modifica um domínio existente. Para que isso aconteça é fundamental os sujeitos terem acesso aos sistemas simbólicos e o contexto social ser receptivo a novas ideias. (ZANELLA APUD ALENCAR & FLEITH, 2005, p.306) Outros estudos também apontam para a definição de características os indivíduos criativos. Martinez (1997), através de um estudo publicado pelo Instituto de Avaliação e Investigação da Personalidade da Universidade da Califórnia, elenca várias características dos sujeitos criativos, através dos estudos dos pesquisadores: V. Lowenfeld, Ch. Vervalin, F. Barron, M. Rodriguez, R. Orter, E. Alencar. No quadro abaixo, em uma apresentação panorâmica, temos: Ipar V. Ch. Lowenfel Vervalin d F. M. Barron Rodrigue R. Orter E. Alencar z Curiosidade Amor à Entrega Motivaçã Dedicaç intelectual criação o ão pela intrínsec trabalho criação a ao mesma Possuem Fluidez Sensibili Versatilid (Treinam ampla dade ade ento) informação estética intensivo 21 que em sua combinam e área de extrapolam conheci mento Discernem e Capacida observam de de Abertura de à Atitude Firmeza Abertura Abertura perceptu de à à maneira redefiniçã experiên al contra percepçã experiên experiên diferenciada o atitude cia cia cia o crítica Ausência de Sensibilid Atitude repressão intuitiva e ade bloqueios contra mentais atitude Intuição sensoperceptu al Empatia para Originalid Imaginaç com pessoas ade ão e ideias divergentes (tolerância) Infância Capacida infeliz de Alto de nível de Inteligênci a forte abstração inteligên cia Têm maior Capacida percepção de de Elaboraç de ão ativa suas síntese dos característica conflitos s psicológicas Tendência à Autocrític Introvers introversão a ão 22 Liberados de Coerênci restrições e a Ausênci de a Oposiçã de o a inibições organizaç inibição todos os convencionai ão e processo pensam s ento inibidore estereoti s s pado Autenticame Independ Autonom Autonom nte ência ia ia independent es Flexíveis Flexibilid Flexibilid Flexibilida Flexibilid de ade quanto a ade ade em meios e natureza objetivos e ação Interessam- Busca Ambição lhes intermin e os fatos que ável tenacidad seus novos significados desafios menos de e e soluções Não lhes Confiança Express interessa em controlar mesmo si ão de processo suas próprias s imagens internos e impulsos nem dos demais Não fazem grandes Complex Valor, idade decisão 23 esforços contra para simplicid evitar problemas ade desagradávei s e complexos Este quadro mostra a complexidade de características que compõem os indivíduos criativos. Apresentam-se em formas distintas e em alguns momentos contraditórias. Podemos perceber que, características como: autonomia, confiança em si mesmo, oposição aos processos inibidores, motivação e atitude ativa frente a diferentes situações podem compor a personalidade. A autonomia não é a principal característica dos indivíduos criativos e talvez não seja exclusiva destes. Com todas essas definições, é possível entender o porquê a questão da criatividade torna-se algo tão complexo. Se pensarmos no que se espera de alguém criativo já é possível verificar a amplitude deste assunto. Ao indivíduo criativo é destinada a missão de criar algo inovador, único, útil, em alguns momentos, exclusivo; em outros, coletivo. Para tanto, esse sujeito, precisa ser capaz de se diferenciar de todo o restante da população. Nessa circunstância, suas características pessoais são determinantes e fazem com que, ao mesmo tempo que, sua ideia seja inovadora, o seu próprio ser também o seja. Pensando assim, talvez seja impossível definir um sujeito criativo, pois à medida que exerce sua criatividade, também vai se adaptando às suas criações e às novas expectativas. Da mesma forma, talvez seja extremamente complexo pensar em uma única definição para criatividade, uma vez que o que se espera dela, é que seja surpreendente. Conforme De Masi apud Rogers: Não podemos ter esperança de descrever exatamente o ato criativo, que é indescritível, pela sua natureza intrínseca. É do ignorado que 24 devemos aceitar o desconhecimento até o momento em que ocorre. É o improvável que se torna provável. Podemos dizer, mas apenas de maneira bem genérica, que o ato criativo é o comportamento natural de um organismo que tem a tendência a manifestar quando é aberto à globalidade de sua experiência interior e exterior, e quando está livre para submeter à prova, de modo flexível, todas as formas de relacionamento.” (2003, p. 455) Se já é difícil, talvez impossível, em detrimento de características tão peculiares e individuais, talvez ainda mais complexa seja, pensar a relação existente ou não, entre criatividade e autonomia. Uma questão é fato; o indivíduo que possui a habilidade de “governar-se por suas próprias leis, por sua própria vontade” terá muito mais possibilidade de expressar suas ideias, sejam elas consideradas criativas ou não para a sociedade. Temos então, outra questão importante; o indivíduo pode apresentar um alto potencial criativo, mas quem o validará com tal será o meio que em que está inserido e não exclusivamente a sua característica. Nesses termos talvez se faça necessário pensar em que momentos do desenvolvimento humano e psíquico aparecem também às características criativas. O que é necessário ao desenvolvimento da criatividade? Somos realmente capazes de desenvolvê-la? Ao longo do próximo capítulo haverá a tentativa de responder a essas questões. 25 2. CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO A questão central da pesquisa é de que trataremos nesse capítulo. Entendemos que é a capacidade do sujeito exercer a sua autonomia em uma sociedade que preza pelo “politicamente correto”, “civilizado”, ou seja, onde todos os desejos e pulsões estão devidamente “recalcados” e “sublimados”. Neste sentido, é possível pensar a criatividade pela ótica de Winnicott em sua concepção de que é a “submissão” que determina o potencial criativo de um sujeito, assim como ele nos faz ver na afirmação. “É através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à ideia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Muitos indivíduos experimentaram suficientemente o viver criativo para reconhecer, de maneira tentatizante, a forma não criativa pela qual estão vivendo, como se estivessem presos à criatividade de outrem, ou de uma máquina.” (WINNICOTT, 1971, pag. 95). Ainda nesta linha de raciocínio é importante destacar que a teoria de Winnicott aponta a “afetividade” como uma das condições necessárias para o desenvolvimento do potencial criativo. Nos estudos de Sakamoto, podemos encontrar a definição Winnicottiana de que “através das relações afetivas do ser humano e o ambiente desde o início da vida, ocorre o desenvolvimento do sentimento de segurança pessoal que ancora o estado de relaxamento, que é fundamental para a possibilidade de emergência do impulso criador.” (SAKAMOTO, 2000, pag. 56), que assim compreende: “O desenvolvimento em poucas palavras, é uma função da herança de um processo de maturação, e da acumulação de experiências de vida; mas esse desenvolvimento só pode ocorrer num ambiente propiciador. A importância deste ambiente propiciador é absoluta no início, e a seguir relativa; o processo de desenvolvimento pode ser descrito em termos de dependência absoluta, dependência relativa e um caminhar rumo à independência.” (WINNICOTT, 1986, pag. 27) 26 Vigotsky, em “La imaginación y el arte em la infância” (ed. 2003), complementa a ideia de que as experiências de vida estão diretamente relacionadas ao potencial criativo de um sujeito. Afirma que a criatividade, a fantasia e a imaginação são tão mais ricas quanto maiores as experiências. A sua compreensão a esse respeito é assim elaborada: “la actividad creadora de la imaginación se encuentra en relación directa com la riqueza y la variedad de la experiencia acumulada por el hombre, porque esta experiencia es el material con el que erige sus edifícios la fantasía. Cuanto más rica sea la experiencia humana, tanto mayor será el material del que dispone essa imaginación. (Vigotsky, 2003, p. 17) Pensamos também, que ao longo da constituição psíquica estas experiências são garantidas na relação do outro, principalmente na importância do Estágio do Espelho e sua relação com o desenvolvimento da criatividade pelo, e no, sujeito. Segundo essa visão, ao nascer o bebê se considera reflexo da mãe e inicia seu processo de acumulação de registros psíquicos ou traços de memória. Aproximadamente dos 6 aos 18 meses a criança começa a se movimentar para reunir os traços de memórias que possui com a mãe, para iniciar sua constituição psíquica. Durante a experiência especular, ela passa a se reconhecer na imagem discursiva que a mãe sustenta; imagem que a mãe constrói do filho e é denominada de “narcisismo parental”. Esta é sempre “ideal”. A formação do sujeito irá ter início, a partir do encontro entre o ideal de filho projetado pela mãe e as características pessoais da criança. Freud dizia que quando uma criança nasce, ela é colocada em um “lugar narcísico” dos pais. Ao projetarem um ideal do “seu eu”, os pais constroem um “EU” ideal, no “ideal do eu”, onde está um “eu idealizado”. E a criança está nos primeiros tempos neste contexto de “Filho ideal”, em uma imagem de perfeição que os pais atribuem aos filhos. Tudo isto irá depender do “recorte cultural” desta família. Esta forma de „agir‟ dos pais fará com que a criança, num primeiro momento, responda sempre ao que os pais esperam dela. Primeiramente ela não vê um sentido, porém, logo passa a corresponder àquilo a que é convocada (à provocação ao riso, a criança sorrirá), ocorrendo então a 27 identificação especular. A partir desta, a criança dá os seus primeiros passos na constituição do eu, da imagem corporal e também da agressividade. Registra-se então, a nível psíquico, imagens sustentadas pelo “grande Outro”, a representação psíquica dos traços de uma imagem, o que é, segundo Lacan, o “imago”. A partir da palavra materna, ela irá criar a imagem de um “corpo que lhe pertence” (colocar o dedo no pé na boca). A mãe possui em seu discurso, uma totalidade corporal que será emprestada à criança. Gradualmente, esta vai criando “unidades de percepção” que vão construindo nela uma condição mais organizada, um “eu” apenas confundido com o “Outro” e não mais extensão deste. Assumir uma imagem de sujeito humano se dá a partir de referências, que vamos receber de outros seres da mesma espécie. É uma conquista psíquica. A criança no encontro com o desejo familiar, a respeito dela, transforma-se no sujeito idealizado pelo desejo parental. De outro lado, o encontro da criança com a linguagem irá permitir que deixe de ser apenas um corpo no sentido orgânico, para ir se tornando um sujeito, enquanto psíquico. A criança é situada em uma história, onde existe um deslocamento, uma história “anterior” a ela e quando nasce, essa é lançada sobre ela. O seu lugar então, será construir como sujeito, dentro desta história familiar e através do “eu ideal” que os pais projetam. É “o berço simbólico”, repleto de significantes, que contém as insígnias de um desejo familiar. É neste “banho de linguagem”, que está inserida a cultura que a família irá introduzir na criança, o “humano”. O aparecimento do Pai se faz através do „discurso da mãe‟, que então, o reconhece como homem, representante da Lei, mediado pelo discurso. A essa função, Lacan denomina “Nome do Pai” ou “Metáfora Paterna”. O papel deste intervém em diferentes planos; interdita a mãe e este é o fundamento do complexo de Édipo. Ele se liga à lei da proibição do incesto e é então, o representante que às vezes se manifesta de maneira direta. A sua presença tem efeitos no inconsciente, realizando assim, a interdição da mãe. A castração tem, desse modo, seu papel manifesto e o vinculo com a lei é fundamental. 28 O pai frustra o filho da posse da mãe. A frustração é o pai que opera como detentor de um direito e não como personagem real. É o pai simbólico, que intervém numa frustração, ato imaginário, a um objeto muito real “a mãe”. O pai no Complexo de Édipo, é o pai simbólico, um significante que surge no lugar de outro significante é o pilar essência; um significante que substitui o primeiro introduzido da simbolização, o significante materno. O pai vem no lugar da mãe e é a mãe que vai e vem. Lacan apresenta a teoria do Complexo de Édipo para explicar melhor a questão da constituição psíquica. Sua estruturação ocorre em três tempos bem determinados conceitualmente. O primeiro consiste na relação dual “criança/mãe”, fase especular. O segundo caracteriza-se pela entrada do pai em cena e pelo acesso ao simbólico. E o terceiro, pela identificação com o pai e o início do declínio do complexo de Édipo. No primeiro momento do Édipo a criança é o falo, ou seja, o desejo do desejo da mãe. É nesse sentido que a criança não pode ser vista ainda como sujeito, mas como complemento da falta da mãe. Esse é ainda o momento da perfeição narcísica, que vai ser superado somente com o advento do simbólico. Esse, mesmo estando por vir, não está excluído do imaginário da criança, pois se encontra presente no discurso da mãe. As necessidades da criança são faladas pela mãe que lhe oferece um código interior, no qual suas necessidades vão ser estruturadas e receber um sentido. A esse lugar do código, da linguagem, Lacan denomina “Outro”. Então, o imaginário está desde o princípio submetido ao simbólico, antes mesmo da aquisição da linguagem. O segundo momento do Édipo é marcado pelo advento do simbólico e pela intervenção do pai como privador, tanto da criança quanto da mãe. Neste momento, o pai é o terrível interditor, duplamente privador, tirando da criança o objeto do seu desejo e a mãe, do objeto fálico. No terceiro momento do Édipo ocorre a passagem do imaginário ao simbólico, o pai deixa de ser a lei para tornar-se o representante dela, ninguém mais é o falo ou a lei. Ocorre a substituição da identificação da criança com o Eu ideal para uma identificação do ideal do eu, sendo esta identificação, não 29 diretamente com o pai, mas com o que ele representa. É esta interiorização da lei que possibilita que a criança se constitua como sujeito, como assim podemos ver; “Concluindo a Metáfora Paterna institui um momento radicalmente estruturante na evolução psíquica da criança. Além de inaugurar seu acesso a dimensão simbólica, afastando a criança de seu asujeitamento imaginário a mãe, ela lhe confere o status de sujeito desejante. O benefício desta aquisição só advém, entretanto, as custas de uma nova alienação. Com efeito, tão logo advém como sujeito desejante o desejo do “fala – ser” torna-se cativo da linguagem na qual ele se perde como tal, por não ser representado; a não ser, graças a significantes substitutivos, que impõem o objeto de desejo, a qualidade de objeto metonímico” (DOR, 1989, p.94) Por meio do recalque originário e da metáfora paterna o desejo impõemse à mediação da linguagem. O significante “nome do pai” inaugura a alienação do desejo na linguagem sendo então, que este não se torna nada mais do que o reflexo de si mesmo. O desejo de ser, recalcado em prol do desejo de ter, impondo à criança desejos substitutivos ao objeto perdido. Então, é necessário o desejo fazer-se palavra, pois se perde cada vez mais na cadeia dos significantes do discurso. Ele é remetido sempre de um objeto a outro, caindo em uma sequência indefinida de substitutos e significantes, simbolizando o desejo original do sujeito. Sabemos que o desejo permanece sempre insatisfeito, e isso ocorre pela necessidade em que encontrou de se fazer linguagem. Logo, o desejo está ligado a uma via da metonímia, ou seja, o “nome do pai” intima a criança e toma à parte o objeto que irá substituir, o objeto perdido. Persistindo o desejo do objeto perdido, ele irá ser direcionado para objetos substitutivos, como nos mostra o autor: “Um sujeito se constitui como tal no interior do campo do Outro, graças ao qual sobrevêm uma série de operações estruturantes às quais a psicanálise dá o nome de estágio do espelho e complexo de Édipo. Mas ainda, na medida em que tais acontecimentos não são momentos evolutivos passageiros – um sujeito em todo momento se defronta com encruzilhadas estruturais isomorfas àquelas – cabe dizer que nenhuma produção subjetiva ou produto da atividade humana pode ser pensada como acontecendo fora do campo do Outro. Sendo assim, só podemos concluir que as mesmíssimas aprendizagens e a (re)construção do 30 conhecimento socialmente compartilhado, sua outra face, têm lugar no seu interior.” (LAJONQUIÉRE, 1992, p. 177). Lajonquiére mostra interligação entre o olhar do outro e a produção humana. Sendo a criatividade produto desta produção, estaria atrelada a este lugar de reconhecimento ou julgamento do outro. Tudo que se produz passa necessariamente pela aprovação ou desaprovação de outro, que pode ser a mãe, o pai e até mesmo o social, dependendo de a quem se direciona a criação. Assumir uma imagem de sujeito humano se dá a partir de referências que recebemos de outros seres da mesma espécie e isso é uma conquista psíquica. Esse reconhecimento ocorre através da experiência especular e da imagem de filho construída pela mãe, antes mesmo do nascimento do filho. A mãe, ou a pessoa responsável pelos primeiros cuidados com a criança, vai tentar situá-la em uma “história”, na qual existe um deslocamento, uma história anterior a ela, e quando nasce, é lançada sobre ela, e seu lugar então, será construído dentro dessa história familiar, através deste deslocamento. Os pais constituem uma “imagem de sujeito” e uma “imagem de corpo”, que vai desde a escolha do nome próprio, que contem uma representação de sujeito e de corpo projetado pelos pais, no seu desejo, ou seja, existe um lugar que vai ser ocupado pela criança a partir da convocação que a subjetividade dos pais remete ao filho. Esse desejo, projetado pelos pais em relação à criança que ainda não nasceu e a história da qual passa a fazer parte, a partir do momento que é concebida, e vista como filho, interfere amplamente no desenvolvimento porque vai possibilitar que se desenvolva na busca por atingir, alcançar, as expectativas projetadas pela família em relação a ela. Winnicott relaciona esta questão de expectativas projetadas, como desencadeante do processo criativo. Relaciona também, a capacidade do sujeito em assumir seu pensamento e agir de forma autônoma, de viver a seu modo, com o “olhar do outro”. Assim ele nos esclarece que: 31 “A vida de um indivíduo saudável é caracterizada por medos, sentimento conflitivos, dúvidas, frustrações, tanto quanto por caraterísticas positivas. O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo a sua própria vida, assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir o sucesso dos aplausos ou as censuras pelas falhas”. (1967, p. 10) O olhar não é puro e simples e, mesmo sendo de ordem inconsciente, é transmissível e garante que ocorra um desdobramento da constituição psíquica possibilitando a formação do sujeito psíquico. Para isso, são necessários além dos aspectos estruturais comuns a todos os indivíduos, os aspectos instrumentais que vão variar de acordo com as relações parentais e sociais da criança. Os aspectos instrumentais do corpo são observáveis, avaliáveis, mensuráveis, testáveis e delineiam fenômenos da consciência. E são: psicomotricidade, linguagem, aprendizagem, hábitos, jogos e processos práticos de socialização. Através desses é que a criança vai poder estruturar aquilo que demanda sua constituição de sujeito. Sob esta ótica, a linguagem se apresenta como um dos principais fenômenos da consciência, pois através dela se apresentam as imagens projetadas pelo outro e aproximam o sujeito em constituição do mundo que o cerca. Segundo Jeruzalinsky (1988), ela é um sistema que pré existe ao nascimento da criança e ela precisa responder a esse sistema que preexiste, para tanto se vale de signos. A ideia é de que, por um somatório de signos, pode-se compor uma linguagem. Num momento, há tal quantidade de signos que é necessário achar uma lógica para ordená-los, sendo esta, uma teoria da linguagem. O corpo humano é efeito da linguagem, efeitos dados pelo outro, que marcam o corpo de um sujeito como desejante. Percebemos aqui a importância do discurso dos pais em relação ao corpo do filho. Corpo e sujeito não são os mesmos. O corpo é algo que o sujeito terá que conquistar e ter. Então: Nós, os seres humanos, aos sermos captados pela linguagem, diferenciamo-nos do reino animal, deixamos de ser puro corpo e, pelo 32 ingresso ao universo simbólico, podemos tê-lo e, portanto, sermos sujeitos com um corpo (1988, p. 48). É exatamente devido à linguagem, que ocorre a separação entre o sujeito e o corpo. Por isso, a importância do discurso dos Pais, pois o corpo será construído a partir da sua historia, que se desenvolve “sem que a criança possa escolher nada dela. Está em sua origem, constituí-la, torná-la humana.” (1988, p. 51). Traçando um paralelo entre a questão da linguagem e a criatividade humana; esta só se faz graças à linguagem. Talvez, a linguagem nada mais seja que fruto da criatividade humana encontrando formas de desenvolver-se e nessa ótica, De Masi nos apresenta alguns aspectos levantados por Arieti, como condições necessárias à promoção da criatividade humana: “lista de condições necessárias para promover a criatividade: a solidão, o isolamento, a introspecção, a inatividade, a capacidade de sonhar de olhos abertos, a possibilidade de soltar as rédeas do próprio pensamento, de modo que ele possa vagar livremente, a disponibilidade para perceber vínculos e semelhanças, a suspensão do senso crítico em relação às ideias próprias e alheias, a aceitação ingênua, a abertura, a disponibilidade para a exploração e aceitação, a memória interior dos conflitos traumáticos vividos no passado, a vivacidade intelectual e a disciplina interior.” (2003, p. 472) Traços alguns, que aparecem também nos estudos de Lubart: “Seis traços apresentam teórica e empiricamente relações significativas com a criatividade: a perseverança, a tolerância à ambiguidade, a abertura para novas experiências, o individualismo à disponibilidade de correr riscos e o psicotismo.” (2007, p. 41) Estabelecendo relação desses traços, apresentados por Arieti e Lubart com a teoria do Estágio do espelho e do Complexo de Édipo podemos pensar que o olhar do outro "mãe", autoriza a criança a estabelecer-se enquanto sujeito desejante, capaz de criar formas de suprir seus desejos. A proibição, a interdição, do outro, pai, sublima alguns desses desejos, transformando-os, e possibilitando à criança que encontre outras formas de expressar seus desejos, criando seu próprio mundo. 33 Winnicott (1986) vai além, afirmando que é a segurança oferecida pela mãe, por aquele que destina cuidado à criança e posteriormente pelo social que possibilita o “autocontrole” (pag. 48), e fornece material suficiente para que a criança vá criando seu próprio mundo a partir do que lhe é oferecido pelo mundo “real”, como exprime o autor: “É o ambiente circundante que torna possível o crescimento de cada criança; sem uma confiabilidade ambiental mínima, o crescimento pessoal da criança não pode se desenrolar, ou desenrola-se com distorções. Ademais, por não haver duas crianças rigorosamente idênticas, requer-se de nós que nos adaptemos de modo específico às necessidades de cada uma.” (1986, p. 45) Esta segurança gerada pela afetividade em todos os aspectos do seu cuidar, fornece à criança, subsídios para expressar-se. E no brincar, exerce o que no adulto será chamado de criatividade, a capacidade de construir este mundo que diminui as barreiras entre o real e o imaginário, entre a verdade e a fantasia, aproxima o universo infantil do adulto. É Freud que confirma esta relação, afirmando que ao brincar a criança se compara a um escritor criativo, cria um mundo de fantasia que é “aceitável” no social por realizar, através de suas brincadeiras, uma conexão com o mundo real adulto, enquanto que as criações dos escritores criativos, são consideradas fantasias ao expressar seus desejos e relacionar o real ao universo infantil. Desse modo: “A antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexia seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginando às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o „brincar‟ infantil do „fantasiar‟. O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética.” (FREUD, vol. IX p. 135) Nesta relação com o outro, com a linguagem e com o social a criança vai se constituindo enquanto sujeito, permanecendo em desenvolvimento até sua morte. Este desenvolvimento, porém não se dá uniformemente, ao longo de toda sua trajetória; há os de total contemplação do outro, de indiscutível identificação, mas também de contestação. Winnicott, sobre esta relação 34 afirma que é no espaço vivo da relação com o outro que ocorre o verdadeiro desenvolvimento, a que chama de “crescimento”. Assim: “As crianças tem sempre a necessidade de verificar se ainda, podem confiar em seus pais, e essas verificações podem perpetuar-se até que as crianças já tenham crescido e precisem por sua vez proporcionar condições de segurança a seus próprios filhos, e até depois disso. [...] Os adolescentes começam a encontrar em si próprios uma gama de sentimentos fortes e até amedrontadores, e desejam verificar se os controles externos ainda estão de pé. Mas, ao mesmo tempo, querem provar serem capazes de romper esses controles e estabelecer a si próprios como pessoas autônomas. As crianças sadias necessitam de quem lhes imponha um certo controle; mas os indivíduos que impõem a disciplina devem poder ser amados e odiados, desafiados e chamados a ajudar; os controles mecânicos não têm aí qualquer utilidade, e o medo não é o instrumento mais adequado para estimular a colaboração. É sempre um relacionamento vivo entre duas pessoas que abre espaço ao crescimento.” (WINNICOTT, 1986, p. 47) Continua afirmando que não há como separar o processo de desenvolvimento da criança, do processo vivenciado pelo adulto, pois que: “Cada indivíduo surge, desenvolve-se e torna-se maduro; não se pode considerar a maturidade adulta como algo separado do desenvolvimento anterior. Este desenvolvimento é extremamente complexo, e ocorre de contínuo desde o nascimento, ou desde antes, até a velhice, passando pela idade adulta. Não podemos pensar em relegar nada a segundo plano – nem as ocorrências da infância, e nem mesmo as da primeiríssima infância.” (WINNICOTT, 1986, p. 30) E se pensarmos sob esta ótica, será que podemos possibilitar o desenvolvimento da criatividade? A educação para criatividade apresenta-se de forma possível? 35 3. Educação para Criatividade A criatividade, conforme o que vem sendo abordado neste estudo até o momento, é o resultado da “interação do sujeito com o meio”. É possível também a compreensão de que todas as características psíquicas do ser humano são o resultado da sua interação com o meio, pois somos seres que eminentemente necessitamos do social para existir. No primeiro capítulo, foi possível apresentar os inúmeros conceitos para o termo criatividade; todos de alguma forma relacionados com o social, o histórico e o ambiental. No segundo, verificamos que o sujeito, para desenvolver-se como tal, necessita do outro, do olhar no outro, de reconhecerse enquanto parte de um grupo, primeiramente a família e depois todos os outros espaços sociais nos quais circula. Neste contexto, é no social que nos estabelecemos como sujeitos, mas não apenas no simples fato de conviver com outros, mas por estabelecer conexões através da principal ferramenta de organização do social, a linguagem. Essa, possibilita as relações humanas, e consequentemente a formação e o desenvolvimento das funções psicológicas. A questão da linguagem já foi significativamente abordada anteriormente. O importante agora, talvez seja pensar em como nos apropriamos dela; algo que talvez ainda seja anterior e fundamental ao desenvolvimento. Zaniuchi (2004) parafraseando Vygotsky (2000), afirma que é através da imitação que a criança estabelece as relações com o social e consegue iniciar o processo de denominar coisas, objetos, sensações, enfim apropriar-se da linguagem. “A imitação é um ato comunicativo que tem a premissa básica de seu significado ser o mesmo para quem o emite e para quem o recebe, se não, não há comunicação. E, é aí, que a imitação tem papel importante no processo de mediação entre o sujeito e seu ambiente, pois quando alguém imita, repete a atitude de seus pares (quer seja essa atitude oral, gestual ou postural), ocorre uma sintonia entre os dois, uma espécie de comunicação primitiva, um laço inicial. Quando uma criança 36 imita um adulto, pondera Vygotsky (2000), ela pode estar apreendendo o comportamento desse adulto a ponto de reproduzi-lo.” (ZANIUCHI, 2004, p. 3) Nesta perspectiva todos os ambientes em que o sujeito circula são determinantes em seu desenvolvimento, principalmente no que diz respeito às questões da criatividade. Esses ambientes sociais, em uma perspectiva macro são três: a família, a escola e o trabalho. O papel de cada um, sua importância e características fundamentais para que a criatividade possa ser expressa, conforme Lubart (2007), que apresenta um importante estudo sobre estes três grandes grupos, revela que o ambiente é determinante no desenvolvimento da criatividade. Pensemos um pouco sobre cada um desses espaços, iniciando pela reflexão acerca do espaço familiar no desenvolvimento da criança, afirmando que este proporciona “segurança” à criança e possibilitam seu desenvolvimento criativo. Segundo suas palavras: “O ambiente mais estimulante revela ser aquele que fornece ao mesmo tempo regularidade (portanto limites) e oscilações, introduzindo a flexibilidade nas regras da vida e nos hábitos.” (2007, p. 76). Esta definição sobre o desenvolvimento da criatividade também é encontrada nos focos dos estudos de Winnicott. Ele diz que há tênue distância entre a liberdade e a clausura e o circular por estes dois extremos possibilita o pensar e o agir inovador. Enquanto se está “fechado” se tem a sensação da segurança e o desafio por encontrar alternativas para “libertar-se” de um lugar repleto de regras e “nãos”. Uma busca constante pelas alternativas da vida alimenta o potencial criativo do homem, conforme ele nos dá a ver: “As crianças veem na segurança uma espécie de desafio, que as convida a provar que podem ser livres. A ideia de que a segurança é uma coisa boa identificar-se-ia, no limite, com a noção de que a prisão é um bom lugar para crescer. Isso seria absurdo. É claro que o espírito pode ser livre em qualquer lugar, mesmo numa prisão. [...] A liberdade é algo fundamental, que descobre nas pessoas o que elas têm de melhor. Não obstante, convém admitir que alguns indivíduos não podem viver em liberdade, por temerem a si mesmo e ao mundo.” (1986, p. 43) Nesta ótica encontra-se a estrutura familiar, não necessariamente nos moldes tradicionais da humanidade, mas com bases que possibilitam à criança um mínimo de estrutura. Lares em que existam papeis, regras e concessões 37 bem definidas e que a criança sinta-se desafiada a ultrapassar os desafios e seja capaz de manter regras, nisso concorda também Lubart: “Podemos avançar na hipótese de que as condições mais favoráveis ao desenvolvimento cognitivo (ambiente flexível estruturado) deveriam, portanto, ser os mais favoráveis ao desenvolvimento da criatividade.” (2007, pág. 76) O meio familiar é, dessa maneira, responsável pela estrutura que irá sustentar o sujeito e seu desejo por respostas e alternativas aos problemas com os quais se depara. Pensemos na possibilidade de exemplificar estabelecendo um comparativo entre a constituição psíquica e a estrutura de uma casa, o id, o ego e o superego, cada um em um andar desta “casa – sujeito”. Talvez seja possível comparar a estrutura criativa, os três grandes grupos sociais aos quais estão propostas as reflexões deste estudo, à casa. A família como o alicerce, a base sólida para que o restante do desenvolvimento da criatividade possa seguir sua estruturação. A escola como o espaço amplo, dinâmico e muitas vezes limitado, onde seria possível exercer a criatividade. E o trabalho, como o telhado dessa casa, e nele, apresentam-se inúmeras outras circunstancias para que a criatividade possa vir a ser expressa. Assim como tudo no social, a “casa” também segue tendências, ou “estilos” de construção. Os modelos de educação escolar foram transformandose ao longo das décadas e adaptando-se ao contexto histórico em que se vive em cada momento. Também as questões do trabalho tomam características diretamente relacionadas ao modelo político-sócio-cultural de uma determinada época. Nesta perspectiva de busca por comparar o desenvolvimento da criatividade à estrutura de uma casa ou ao espaço mais amplo, onde há a maior circulação de pessoas, em que acontecem as maiores possibilidades de interação e em consequência aparecem os maiores desafios ao sujeito estão na escola. Esta que foi mudando ao longo do tempo, desde a Tradicional, passando pela Tecnicista, a Novista, entre outras. Cada uma, com suas concepções de sujeito, de professor e de conhecimento. 38 Lubart, ao citar Baumrind (1991), afirma justamente esta questão das diferentes concepções de escola no que tange às possíveis relações com a criatividade. Cada uma delas, com maiores ou menores possibilidades de proporcionar o desenvolvimento da criatividade pelo aluno. A escola prepara a criança para o mundo do trabalho, e é por este motivo que se transforma ao longo do tempo, na medida em que também o trabalho e as demandas sociais vão se alterando. E, desse modo o autor citado: Descreveu os estilos educativos levando em consideração duas dimensões: uma, que se reporta ao caráter mais ou menos autoritário decorrente da atitude direta dos pais (seu nível de exigência e utilização de punições) e outra referente ao traço de valorização da criança (aceitação de sua opinião, de sua individualidade e de sua autonomia). (p. 78) Podemos pensar a partir desses estudos, que há características da escola que dificultam o desenvolvimento da criatividade e outras concepções que ampliam o potencial criativo. Comecemos refletindo sobre esses modelos e papeis identificados nas escolas. Temos então o que: “Vários estudos empíricos tem mostrado que os professores podem ter uma concepção particular do aluno ideal, valorizando a obediência e o conformismo, em detrimento de traços como a curiosidade ou a independência. [...] Além disso, as escolas tradicionais têm tendência à valorização uma situação escolar gerada por regras relativamente fixas (para manter a ordem). [...] Essa atitude visando a evitar os riscos [...] vai contra os traços implicados na criatividade.” (Lubart, 2007, p. 79) Sob esta perspectiva, o professor que está inteiramente preocupado com o conhecimento, com a transmissão de informações, acaba por reconhecer aquele aluno que decora, apresenta um comportamento tranquilo, pouco questionador e submisso. Essas características são contrárias ao desenvolvimento da criatividade, mas que se parecem apresentar como necessárias em muitos postos de trabalho, o que garante a continuidade desse processo de formação. Afinal, a educação funciona conforme o modelo produtivo vigente. Segundo Lubart (2007), o aluno ideal para este modelo de educação é: “honesto, espirituoso, respeitoso, participativo no meio familiar, seguro e bom camarada, [...] aplicação, sinceridade, obediência, cortesia, 39 consideração, confiança e saúde, [...] tranquilidade, atitudes conformistas em detrimento da provocação intelectual.” (p. 80) No entanto, hoje há uma demanda cada vez maior de profissionais criativos. Estes, em geral, não serão funcionários, pois a submissão não é uma característica que lhes convém. Mesmo que alguns a adotem por questões, geralmente econômicas; os estudos apontam uma série de características necessárias ao professor que deseja favorecer o desenvolvimento da criatividade em seus alunos, Lubart aponta as características relacionadas por Copley (1997) acerca desses professores: “encorajavam a aprendizagem independente, desenvolviam um ensino em cooperação, motivavam os estudantes a aprender os fatos a fim de adquirir as bases sólidas para o pensamento divergente, encorajavam o pensamento flexível, evitavam julgar as ideias dos estudantes antes que elas não tivessem sido consideradas, favoreciam a auto-avaliação das ideias, ouviam seriamente as questões e sugestões dos estudantes, ofereciam as oportunidades de trabalho com uma grande diversidade de material e de condições variadas, ajudavam os estudantes a ultrapassar frustrações e o malogro de modo que tivessem a coragem de prosseguir em direção a novas ideias.” (p. 80) Para garantir o desenvolvimento de sujeitos criativos, quem sabe necessitemos de professores facilitadores; que visem a contradição e a sabedoria, o conhecer em detrimento do reconhecer, o aprendizado através das vivencias e a construção de um conhecimento científico a partir do interesse e do potencial inventivo das crianças. Isso não é visto de forma simples. É algo minimamente desafiador. Demanda que, os próprios professores tenham um alto nível de criatividade, além da total confiança em seu trabalho. Professores capazes de aceitar os questionamentos e até os enfrentamentos que possam vir a surgir dos alunos, independente de sua idade e nível de escolaridade. A educação para criatividade requer muito estudo e dedicação, afinal a construção do conhecimento, e o desenvolvimento dessas habilidades demandam exploração, imaginação, manuseio, e até uma “bagunça”. Requer que se explorem as capacidades intelectuais, lógicas, afetivas e imaginárias da criança. E é nesta perspectiva que nos deparamos com algo que, no dizer de 40 Vygotsky, citado por Zanluchi (2004), é fundamental para garantir o exercício da criatividade: a imaginação; a ação da esfera imaginativa, numa situação imaginária, a criação das invenções voluntárias e a formação dos planos da vida real e motivações volitivas – tudo aparece no brinquedo, que se constitui, assim, no mais alto nível de desenvolvimento pré escolar. A criança desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedo. (p. 9) A escola acaba por perder seu caráter lúdico, justamente pela exigência do trabalho. Este tema é muito bem abordado por Zanluchi que explora a questão da criatividade no trabalho, como é possível ler no que segue: “juntamente com o desenvolvimento do capital e do mundo de trabalho que o caracteriza, a escola foi se afastando do universo lúdico. A educação das crianças, em geral, não inclui aquela que deve ser a principal atividade da infância, o lúdico e, quando inclui o faz de maneira deturpada. Perdeu-se o entendimento de que essa é uma forma privilegiada pela qual as crianças se relacionam e aprendem sobre o mundo a sua volta. Na escola atual dispõe-se de muito pouco tempo, espaço, materiais, enfim condições para que as crianças possam se manifestar e desenvolver a capacidade criativa nos termos postulados por Vygotsky (2000), ou seja, no sentido de ser capaz de pensar o diferente, transcender o imediatamente perceptível.” (2004, p.12) Mesmo que a escola se apresente em muitos momentos quase que como um “freio considerável à criatividade” como afirma Lubart, ainda é um dos espaços em que seu desenvolvimento acontece de forma extremamente significativa. É nela, que a criança aprende a conviver com um social não tão protetor quanto o familiar e que pode ser ao mesmo tempo desafiador e frustrante à criança. Esses são também, elementos constitutivos do potencial criativo, pelo simples fato de exigir que se construam alternativas para lidar com a frustração e com os problemas do mundo. Vejamos então: “Além do meio familiar, o ambiente escolar tem um papel crucial no desenvolvimento da criatividade. [...] A escola favorece, frequentemente, o pensamento convergentes para pesquisa de uma resposta “correta” aos problemas colocados pelo professor. Às vezes, entretanto, o pensamento divergente é encorajado e deixamos que as crianças se confrontem com seus problemas mal resolvidos. [...] certos programas favorecem a dinâmica, a natureza contextual do conhecimento, diferentes maneiras de utilizar o conhecimento e a construção das relações entre as diferentes matérias.” (2007, p. 80) 41 O autor reforça a ideia de que “para se tornar criativa, a criança deve aprender a superar as dificuldades e ser independente”, mas como a criança aprenderá a superar as dificuldades se não se deparar com elas? A sociedade como um todo está preocupada em diminuir, a todo custo, o sofrimento humano, principalmente nas crianças. Então, como exigir que os sujeitos sejam criativos, se eles não sofrem, e por consequência não encontram mecanismos de driblar ou superar o sofrimento? Enquanto se pensar em “dar tudo pronto”, em “presentear”, “clarear”, “responder” a todas suas demandas (das crianças e também dos adultos), como poderão buscar alternativas e exercer efetivamente a sua criatividade? Procuramos uma resposta e o autor que citamos a seguir, assim a expressa: “Todo esse processo pode ser observado no trabalho de artistas criativos de várias modalidades. Os artistas proporcionam algo de particularmente valioso, pois estão constantemente engajados na criação de novas formas, que são rompidas para serem por sua vez substituídas por formas mais novas. Os artistas nos permitem permanecer vivos quando as experiências da vida ameaçam destruir nosso sentido de uma existência real e viva. Os artistas, melhor do que ninguém, lembram-nos de que a batalha travada entre nossos impulsos e nosso sentido de segurança (ambos vitais para nós) é uma batalha eterna, que se desenrola em nosso interior por toda a extensão de nossa vida.” (WINNICOTT, 1986, p. 48) Esses estudos apontam a importância de possibilitarmos ao sujeito desafios que estimulem a criatividade. Criar barreiras, propor desafios, oferecendo-lhes estrutura para que possam buscar as respostas e elaborar novas possibilidades de reinventar, de recriar, o social e tudo que este demanda. Esta criança/aluno se tornará um adulto e circulará entre os espaços de trabalho exercendo ou não um papel criativo no meio. Muitos não encontram espaço nos locais de trabalho para explorar sua criatividade, mas o fazem em momentos de lazer, nas atividades familiares, com os amigos, etc. Outros, mesmo em espaços que não possibilitam esta exposição, acabam por exercitar a criatividade inúmeras vezes, encontrando formas de facilitar seu trabalho, minimizar os sofrimentos gerados pelo ambiente e estabelecendo relações mais sólidas nos espaços em que convive. 42 “uma contribuição criativa é possível qualquer que seja o contexto profissional. Entretanto, a probabilidade de inovar no trabalho será facilitada se houver uma estrutura que permita e mesmo encoraje a criatividade de cada um de seus membros, em particular, os implicados no cotidiano dentro das tarefas especializadas.” (LUBART, 2007, pág. 83) 43 4. CONCLUSÃO Quando pensamos na real possibilidade de explorarmos nossa criatividade nos deparamos com algo fundamental, o quanto estamos preparados para expressar aquilo que pensamos? Talvez esta seja a grande questão que norteia todo o processo criativo. Para criar não é necessário muito, mas para mostrar ao mundo uma criação é necessário algo grandioso, coragem. Esta coragem é característica de alguns tipos de pessoa em especial, aquelas capazes de anular a opinião alheia, de suportar as críticas e absorver os méritos. Todos os grandes inventores, cientistas e artistas, foram em algum momento tachados de “loucos”. Loucos, pois ousavam sonhar e falar aquilo que acreditavam ser possível. Loucos porque exploravam ao máximo suas ideias e as mostravam ao mundo, muitas vezes de forma inusitada. Loucos ao arriscar, em muitos momentos, a própria vida em prol de uma nova possibilidade de vivê-la. Talvez este seja o grande motivo pelo qual o tema criatividade tenha sido escolhido para este estudo. Muitas vezes as pessoas criativas anulam a própria existência em detrimento a sua criação. Pensemos nos objetivos traçados por esta pesquisa. A criatividade é uma temática altamente valorizada no mundo contemporâneo. Acredita-se que é impossível criar algo novo. Acredita-se que tudo já foi inventado. Mas um milésimo de segundo após este pensamento vir à mente descobre-se uma nova tecnologia, uma nova molécula, um animal que ninguém sabia que existia, uma nova forma de construir um arranjo musical ou uma técnica diferente de pintar uma tela. Descobre-se um novo jeito de cozinhar, um modelo de roupa diferente, uma prótese para algum tipo de deficiência. Poderíamos citar inúmeras criações humanas a todo minuto e mesmo assim haveria mais e mais formas de expressão da criatividade. Mas como alguém chega a esse momento criativo? Talvez não saibamos exatamente como, mas sabe-se o porquê. A necessidade de romper 44 barreiras, buscar alternativas e criar formas de melhorar o modo de como vivemos. Isso, hoje, de uma forma tão acelerada, que chega a ser incompreensível. Não conseguimos assimilar o tamanho das criações do homem. Ao longo da pesquisa foi possível identificar o que e como se constitui a criatividade. Além de pensarmos como somos capazes de desenvolvê-la. Isso mesmo, desenvolver a criatividade é possível, desde a primeira infância, passando pela vida adulta e chegando a velhice. Foi possível descobrir que exercitamos a nossa criatividade a todo instante, ao resolver todo tipo de “problema” ou “imprevisto” que acontece em nossas vidas. A diferença existente entre a mãe que monta um novo cardápio para o almoço de seus filhos e do cientista que descobre uma forma de combater um vírus não são muito diferentes. Eles utilizam de um mesmo recurso, a sua capacidade de pensar algo novo, de exercer a sua criatividade. Afinal, a criatividade é, psicologicamente, uma característica inata, que vai poder ser mais ou menos explorada de acordo com as condições sociais de um indivíduo. Vai depender de como este se constituiu enquanto sujeito e o quanto recebeu investimento para sentir-se seguro ao expressar suas ideias. De certa forma o quanto exercer, de maior ou menor forma, a sua autonomia, a sua capacidade de auto gerenciar seus pensamentos e sensações e expressálos de forma espontânea. Ao longo da pesquisa nos questionamos muitas vezes sobre o poder ou não que temos em desenvolver a criatividade de alguém, sendo de nós mesmos ou de outrem. A educação é, evidentemente, o caminho para todo e qualquer desenvolvimento. Mas o tipo de educação que recebemos e oferecemos nos dias de hoje é efetiva quando o assunto é criatividade? Se colocarmo-nos a pensar sobre a educação informal. Aquela que disponibilizamos a todos com os quais convivemos. Somos capazes de argumentar, discutir, contestar? Quando o fazemos, temos a habilidade e a tolerância de nos colocarmos no lugar de quem não sabe e precisa buscar 45 alternativas, pesquisar, criar formas de resolver esses conflitos de ideias? O que nos motiva? "Há um tipo de inteligência criadora. Ela inventa o novo e introduz no mundo algo que não existia. Quem inventa não pode ter medo de errar, pois vai se meter em terras desconhecidas, ainda não mapeadas. Há um rompimento com velhas rotinas, o abandono de maneiras de fazer e pensar que a tradição cristaliza. Pense, por exemplo, no milagre do iglu. Como terá acontecido?... A gente encontra o mesmo tipo de inteligência no artista que faz uma obra de arte, no cientista que visualiza na imaginação uma nova teoria científica, no político-sonhador que pensa mundos utópicos... (Rubem Alves) Sabemos como criar estes espaços de exercício da criatividade, mas nos autorizamos a isso? A educação formal é outro espaço social fundamental para esta criatividade. Mas hoje encontra-se tão fadada ao formalismo, aos conhecimentos específicos que precisam ser transmitidos na íntegra à crianças e adolescentes que acabam por barrar seu processo criativo. Outro aspecto importante a ser destacado é a importância dos limites. Limites necessários para que haja a expectativa de ultrapassá-los. Limites que ao mesmo tempo sejam reguladores e estabeleçam uma sensação de segurança. Que estabeleçam espaços onde o sujeito sinta-se tão protegido que seja capaz de imaginar, divagar, pensar, sem nenhum tipo de preocupações. Ao mesmo tempo, limites que possibilitem ao sujeito imaginar como seria sem esses limites e criar possibilidades de ver as coisas a partir de outros lugares e posicionamentos. Não estamos falando aqui de rigidez e/ou inflexibilidade. Muito pelo contrário. Estamos falando de regras de organização, de bordas que permeiem o processo de formação, a ponto de criar condições para que o sujeito sinta-se seguro e motivado a expor suas ideias, posicionar-se e assim tornar público o seu universo criativo. Enquanto profissionais que atuam junto a todo tipo de educadores, sejam eles pais, professores, familiares, entre outros. Talvez se faça necessária à reflexão a cerca da posição, do lugar da atuação dessas pessoas em busca da formação de sujeitos capazes de exercer sua autonomia e expor 46 suas ideias. O professor, por exemplo, pode ser levado a colocar-se neste lugar, ativo ou passivo na construção de um saber inovador, ou permanecer na comodidade de uma posição meramente tecnicista. Perceber que a constante avaliação de sua prática, de suas limitações, e a permanente busca por novos conhecimentos, é fundamental para que jamais percamos esta habilidade de inovar, de criar. Ao longo da pesquisa nos deparamos com a seguinte afirmativa “para se tornar criativa, a criança deve aprender a superar as dificuldades e ser independente”, seguida de um grande questionamento “como a criança aprenderá a superar as dificuldades se não se deparar com elas?”. Vivemos na era do comodismo, onde tudo se ganha e quase nada se conquista, e mediante a toda e qualquer dificuldade se adoece. Este adoecer, considera-se aqui a já chamada doença do século “depressão”, está diretamente ligada à incapacidade de encontrar alternativas para as dificuldades da vida. E não é que não sejamos capazes de encontrar essas alternativas, mas não nos autorizamos a aceitar essas alternativas. Muito melhor que pensar, formular, criar, é ficar parado esperando que alguém o faça. Para aqueles que fazem o social muitas vezes retribui com rótulos, críticas e julgamentos. Àqueles que não fazem a retribuição é o assistencialismo, o “vamos ajudar”. Este trabalho buscou mostrar que, todos somos capazes de exercitar, e mais que isso, ampliar a nossa capacidade de criar formas de superar as barreiras da vida. Encontrar mecanismos, eminentemente criativos, de melhorá-la. Ao “o que fazer” e “por que fazer” talvez tenhamos encontrado algumas respostas. Afinal, há possibilidades de desenvolvermos a criatividade. Mas como fazer ainda é algo incerto, que possivelmente demande ainda mais pesquisas, estudos, reflexões e porque não, criações. 47 5. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE MASI, Domenico, 1938. Criatividade e grupos criativos. / Domenico de Masi; [tradução Léa Manzi e Yadyr Figueiredo]. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. DELOU, Cristina Maria Carvalho. BUENO, José Geraldo Silveira. O que Vygotsky pensava sobre genialidade. Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, n.11, p. 97-99, novembro 2001. DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Trad. Carlos Eduardo Reis. 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