MACHADO E O TEATRO Machado de Assis, entre o teatro e o conto Sílvia Maria Azevedo Professora Adjunta da Universidade Estadual Paulista. Como tantos outros escritores de sua geração, Machado de Assis também pagou tributo ao teatro, segundo Prado (1996, p. 187-188), “um dos gêneros prediletos do romantismo brasileiro, somente ultrapassado, na prática literária, pela poesia”. Fosse qual fosse a vocação do nosso escritor, era no teatro que ele tentava adquirir, ainda nas palavras de Décio, o “seu certificado de proficiência ficcional”. Daí a conclusão do crítico: “Escrever romances era facultativo. Escrever peças, praticamente obrigatório”. A obrigatoriedade de escrever peças teatrais justificava-se, como se sabe, pelo sentimento de missão de que estavam imbuídos os nossos poetas e romancistas românticos, no sentido de criar um teatro nacional - missão em parte malograda, como também é do conhecimento -, uma vez que, muito cedo os jovens dramaturgos abandonaram a carreira teatral que tinham abraçado com entusiasmo, entre outros motivos, porque poucas peças brasileiras conseguiam subir à cena, alimentada pela dramaturgia popular estrangeira. Com a ascensão do teatro realista no Brasil, entre 1855 e 1865, segundo Prado, “tivemos a grata impressão de que a arte dramática en- 76 contrara entre nós o seu caminho e que autores e intérpretes, o braço direito e o braço esquerdo do teatro, dar-se-iam finalmente as mãos” (PRADO, 1996, p.78). Tanto no plano da dramaturgia quanto no do espetáculo, o realismo dramático significou uma nova maneira de conceber o teatro: os melodramas, as tragédias neoclássicas e os dramas românticos dão lugar às comédias, empenhadas não em provocar o riso, mas em descrever e discutir os costumes da vida burguesa, do ponto de vista da moralidade; no nível da representação, as velhas convenções foram substituídas por um estilo de interpretação que permitia aos artistas mimetizar, com naturalidade, os hábitos e o comportamento da família e da sociedade burguesa. É dentro desse contexto de voga da estética realista, com sede no Teatro Ginásio Dramático, no Rio de Janeiro, que Machado de Assis, então adolescente de dezessete anos, envereda para o teatro (sem deixar de praticar a poesia), ao passar a escrever os primeiros textos críticos na Marmota Fluminense. Colaborador há quase um ano e meio na revista de Paula Brito, Machado publica em 31 de julho de 1856, o artigo “A www.fatea.br/angulo A adesão de Machado ao realismo teatral torna-se ainda mais contundente no segundo semestre de 1859, quando passa a responder pelos folhetins dramáticos da revista O Espelho, dirigida por Francisco Eleutério de Sousa. No artigo de estréia, por exemplo, em comentário ao drama O Asno Morto, de Théodore Barrièrre, encenado no Ginásio Dramático, o crítico expõe de forma clara a sua adesão à nova estética teatral: “O Asno Morto pertence à escola romântica e foi ousado, pisando a cena em que tem reinado a escola realista. Pertenço a esta última por mais sensata, mais natural, e de mais iniciativa moralizadora e civilizadora” (ASSIS, 1951, p.30). Enquanto a arte moderna, isto é, o realismo teatral, reinava no Ginásio, o palco do Teatro São Pedro de Alcântara, sob a direção de João Caetano, era ainda tomado pelos dramas e melodramas do repertório romântico, peças que Machado vai chamar de “composições-múmias”. Na série “Idéias sobre o Teatro”, parte publicada no Espelho, parte na Marmota, Machado volta examinar a situação de pobreza do teatro brasileiro segundo ele, em razão da falta de iniciativas, que deveriam partir não apenas dos empresários, mas também do governo -, e o papel do Conservatório Dramático. Ao passar a assinar em março de 1860 a seção “Revista Dramática”, no Diário do Rio de Janeiro, para onde fora levado pela mão de Quintino Bocaiúva – naquela altura também autor teatral e tradutor de libretos de óperas – Ma- ângulo 113, abr./jun., 2008, p. 76-84. chado de Assis preocupa-se em relativizar a sua adesão ao realismo teatral, ao dizer que as suas opiniões sobre o teatro são “ecléticas em absoluto”, para em seguida acrescentar: Não subscrevo, em sua totalidade, as máximas da escola realista, nem aceito, em toda a sua plenitude, a escola das abstrações românticas; admito e aplaudo o drama como forma absoluta do teatro, mas nem por isso condeno as cenas admiráveis de Racine (ASSIS, 1951, p.159). Mas a sedução que o teatro exercia sobre Machado de Assis ultrapassará as fronteiras da atuação de crítico teatral. Na esteira de José de Alencar, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Guimarães, Sizenando Nabuco, Machado também estará empenhado na construção do teatro brasileiro. Para tanto, no mesmo ano em que passou a colaborar para o Diário do Rio de Janeiro, inicia a sua carreira de dramaturgo, e publica, ainda na Marmota, a comédia Hoje avental, amanhã luva, inspirada em Chasse au Lion, de Gustave Vattier e Emile de Najac, representada em Paris, em 19 de maio de 1852. (Massa, 1965, p. 502). A peça machadiana inaugura um esquema de construção dramática que será explorado em outras composições: a comédia de um ato com cenário único, dividida em várias cenas (no caso, onze cenas), de acordo com as entradas e saídas das personagens. As comédias que vieram em seguida - Desencantos, O Caminho da Porta, O Protocolo, Quase Ministro -, com exceção da primeira, as outras chegaram ao palco, a segunda e a terceira, encenadas no Ateneu Dramático, respectivamente, em 12 e 22 de setembro de 1862, a última, representada a 22 de setembro de 1863, no sarau literário e artístico de despedida de Artur Napoleão, realizada em casa de alguns amadores. Estas peças evidenciam a filiação de Machado a outra tradição dramática, que não aquela da comédia realista, assim também o afastamento entre o crítico e o dramaturgo, na interpretação de Faria (2001, p. 118): MACHADO E O TEATRO Comédia Moderna”, segunda parte da seção “Idéias Vagas”, no qual estimula o leitor a ir ao Ginásio e define o teatro como “o verdadeiro meio de civilizar a sociedade e os povos” (ASSIS, 1951, p.30). Dois anos mais tarde, ainda no periódico de Paula Brito, que a partir de 1857, passou a se chamar A Marmota, escreve o ensaio “O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura”, cujos parágrafos finais são dedicados ao teatro. Entre outras idéias, Machado lamenta a presença maciça de traduções nos nossos palcos, que vê como entrave ao desenvolvimento da arte dramática no Brasil. No sentido de estimular o surgimento de dramaturgos brasileiros, o caminho proposto será aquele já apontado por José de Alencar: o realismo teatral francês como modelo para a “criação” do teatro nacional. 77 MACHADO E O TEATRO Se, como crítico, Machado elegeu a alta comédia como forma dramática ideal para o teatro brasileiro desenvolver-se e exercer uma benéfica função civilizadora junto à sociedade, como dramaturgo escolheu um outro caminho. É bem provável que, muito jovem, não se sentisse capaz de escrever à maneira de Dumas Filho ou Émile Augier, preferindo então a forma breve da comédia de salão, ou provérbio dramático, que conhecera certamente como leitor de Alfred de Musset e Octave Feuillet. Nesse gênero de peça predominam duas características básicas: a vivacidade de estilo e a espirituosidade. Trata-se pois de uma pequena comédia elegante, que evita todo tipo de vulgaridade ou de comicidade farsesca. Em sua forma original era quase um jogo, praticado nos salões aristocráticos franceses do final do século XVII: os espectadores tinham que adivinhar qual o provérbio oculto na ação desempenhada. Posteriormente, com Carmontelle no século XVIII e Musset no século XIX, o provérbio aparece no final da peça ou mesmo no título”. A identificação do Machado dramaturgo com o teatro de Alfred de Musset, a sinalizar o afastamento do escritor brasileiro em relação ao teatro realista, compreende outros desdobramentos: o questionamento do ilusionismo que dominava a cena ocidental e “uma recusa ao drama enquanto acontecimento-motor da ação” (Loyola, 1997, p.73). Aspectos implícitos, diga-se de passagem, na crítica de Quintino Bocaiúva às peças O Caminho da Porta e O Protocolo, que Machado reuniu em Teatro I, publicado em 1863: As tuas duas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profunda riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais do que a simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas de concepção. Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo sujeito 78 sem alma” (Assis, 1982, p.79-80). O julgamento severo fazia-se acompanhar da sentença que teria decretado o fim dos sonhos do jovem dramaturgo (de fato, Machado nunca se afastou definitivamente do teatro, que continuou a escrever e publicar ao longo de toda a sua carreira de escritor), como também o destino da obra dramática de Machado de Assis junto aos críticos e historiadores da literatura brasileira: “As tuas comédias são para serem lidas e não representadas” (Assis, 1982, p.80). A avaliação de Quintino Bocaiúva, que talvez tivesse em mente o exemplo de Musset, que escrevia peças para serem lidas e as publicava – algumas delas pelo menos – sob um título sugestivo: Un Spectacle dans un Fauteuil, deixava claro que as composições de Machado frustravam a concepção teatral do século XIX, a da “peça bem feita”, que devia “funcionar” junto ao espectador, concepção dramática que concedia plenos poderes à encenação, enquanto o texto ficava em segundo plano (Ryngaert, 1995, p.5). O âmbito limitado das comédias machadianas em um ato supõe a construção de peças que funcionam, segundo Magaldi (1997, p. 127), como “simples exposição de uma idéia espirituosa, um provérbio com feitio moral, uma sentença que, por ser conclusiva, solicita apenas um pequeno entrecho”. Os temas preferidos, provenientes do ambiente burguês – “os amuos de um casal ou as primícias do amor” (Magaldi, 1997, p.128) -, são desenvolvidos à distância das peripécias complicadas, a ação sustentada apenas pelo diálogo. Por fim, conclui Magaldi (1997, p. 129): O exercício da síntese que [Machado] fez na dramaturgia aplicou magistralmente no conto, que por muitos aspectos se aproxima da peça em um ato, sem obrigação de utilizar o homem inteiriço. Mas quando entra em cena o Machado contista? Em 1858, dois anos depois da série “Idéias Vagas”, com o conto “Três Tesouros Perdidos”, publicado ainda na Marmota. Trata-se de um conto moral, o esboço esquemático da história de um equívoco: um www.fatea.br/angulo da crítica, quer na de parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro, atividade esta que exerceu entre março de 1862 a março de 1864. Tanto que o terceiro conto, “O País das Quimeras”, só será publicado três anos mais tarde, em 1862, desta vez, no Futuro (1862-1863), revista luso-brasileira dirigida por Faustino Xavier de Novais. Se uma atmosfera vizinha ao fantástico, a cargo da personagem Máximo/Max, duplo de si mesmo, impregna o ambiente narrativo de “Bagatela”, em “O País das Quimeras”, Machado declara, explicitamente, a filiação do texto, na forma de subtítulo - “conto fantástico” -, gênero atualizado na viagem que o poeta Tito, nas asas da Fantasia, faz ao País das Quimeras, primeira versão, pode-se dizer, daquela outra viagem que Brás Cubas, anos mais tarde, nas Memórias Póstumas, fará ao “final dos séculos”, no dorso do hipopótamo. A segunda investida na área do conto é uma tradução. “Bagatela”, publicado na Marmota, em 1859, é a história de um triângulo amoroso: Gabriela, ou antes, Bagatela, é amada por Henrique d’Auberseint, artista de talento, embora pobre, e pelo amigo deste, o pintor Máximo/Max, vulgo o Velho. Narrativa breve, uma história dentro da outra – a de Bagatela entrelaçada à de Máximo, figura fantasmagórica, ser feito de sombra e luz, encarnação da dualidade romântica -, a contração das ações, no conto “Bagatela”, traz à superfície os melhores momentos da história, nos exemplos da carta de Máximo e dos diálogos entre as personagens, que pontuam de dramaticidade o enunciado narrativo. Se os diálogos, em “Três Tesouros Perdidos”, tinham por função agir sobre o espectador, o que vinha ao encontro da divisa “instruir e divertir”, própria das peças-provérbio, aqui, no conto “Bagatela”, o que é dito pelas personagens só a elas diz respeito. “O País das Quimeras” será retomado em 1866, já então no Jornal das Famílias (1863-1878), agora passando a se chamar “Uma Excursão Milagrosa”, sem a classificação que acompanhava o primeiro texto, por isso, talvez, a recriação tenha sido publicada na seção “Viagens”, do periódico de Garnier, o que não deixa de ser irônico, dado que o narrador em 3ª. pessoa (uma das modificações introduzidas na segunda versão), ao contrário do narrador-poeta da “excursão milagrosa”, é avesso às viagens, quando muito apreciando “as viagens sedentárias” (Assis, 1956?, p.75), como vai chamar aquelas empreendidas por Xavier de Maistre, em Viagem ao redor do meu quarto, e Alphonse Karr, em Viagem à roda do meu jardim. Aspecto de não menor importância em relação ao conto de 1866 é a referência, também na introdução, a Edgar Allan Poe das “histórias extraordinárias” (Assis, 1956?, p.74), indício do encontro do escritor brasileiro com aquele que é considerado o criador do conto moderno. Embora o trabalho de tradução do conto “Bagatela” possa ter colaborado no aprendizado de Machado em relação à escritura do conto, havia ainda um longo caminho a ser percorrido, mesmo porque a maior parte do tempo do jovem escritor era dedicada ao teatro, quer na frente da criação, quer na Não foi essa a primeira vez que Machado de Assis fez uso de um texto escrito em outra ocasião, muitas vezes já publicado, para reaproveitá-lo em outra revista, em função das solicitações de colaboração na imprensa, cada vez mais freqüentes - a inaugurar a prática da intertextualidade no inte- ângulo 113, abr./jun., 2008, p. 76-84. MACHADO E O TEATRO homem casado que pensa estar sendo enganado pela mulher, ameaça o suposto amante, intima-o a partir e até chega a dar-lhe dinheiro para viajar. Em seguida, fica-se sabendo que a mulher era mesmo infiel, mas não com o presumido amante, porquanto fugiu com outro, que é, como esperado, o melhor amigo do esposo. O marido fica louco, pois que, além de enganado, perdeu tudo – a mulher, o amigo e ainda o dinheiro que dera ao suspeito desconhecido. A ação se desenrola em dois lugares: o apartamento do desconhecido e o do marido, que não são nem mesmo esboçados. Somente a vida das personagens interessa ao contista. De fato, o conto é constituído de uma seqüência de diálogos e haveria poucas modificações a serem feitas para transformá-lo numa peça de teatro. Fazse notar na estréia do Machado contista que o tema do adultério já se faz presente, assim também esse outro, de não menor fortuna no interior da produção ficcional machadiana, o da loucura. 79 MACHADO E O TEATRO rior da criação machadiana, assim também a trajetória de Machado como escritor. Nos meses de outubro, novembro e dezembro de 1865, e janeiro de 1866, é publicado no Jornal das Famílias, o conto “Linha Reta e Linha Curva”, sem que os leitores fossem avisados de que a origem do texto era a peça Forcas Caudinas, comédia em dois atos que não chegou a ser representada, provavelmente escrita entre 1863-1865 (Sousa, 1955, p. 412). A comédia é montada a partir da dessimetria e do impasse amoroso entre os pares Seabra-Margarida, que vivem o casal feliz, e Tito e Emília, o casal em conflito. Rejeitado por Emília no passado, Tito volta a se encontrar com a moça, agora sem demonstrar o menor interesse pela ex-amada. Foi o quanto bastou para que a então viúva de dois maridos apostasse com a amiga Margarida que faria Tito também se apaixonar por ela. Está claro que Emília perde a aposta, pois que irá se render ao amor e ao casamento, no que fica demonstrada a sugestão metafórica e geográfica do título da peça - Forcas Caudinas – em alusão ao nome de uma estreita passagem na região montanhosa das proximidades de Cápua, na península ibérica, local em que os soldados romanos foram vencidos pelo inimigo. Na comparação da peça com o conto, críticos, como Galante de Sousa, viram poucas mudanças introduzidas por Machado de Assis, como o nome de três personagens: Ernesto Seabra passa a se chamar Azevedo, Margarida Seabra, sua mulher, Adelaide, e o coronel russo Aleixo Cupidov, apaixonado por Emília, no “velho gaiteiro” Diogo Franco, enquanto os diálogos da comédia são reproduzidos textualmente no conto, com alterações determinadas em função da transposição para o gênero narrativo (SOUSA, 1955, p. 411). Uma leitura mais verticalizada do trabalho de reescritura da peça permite identificar não apenas o novo direcionamento “– do teatro para a ficção narrativa – que a carreira literária do escritor recebeu com seu ingresso na Garnier como colaborador do Jornal das Famílias” (Silva, 2003, p.42), como também os impasses vividos por Machado que, no propósito de escrever conto, ainda estava preso à estrutu- 80 ra do texto teatral. Assim, além da mudança do nome de três personagens, outra modificação evidente refere-se ao título: de Forcas Caudinas, em que se podia ler o “apelo ao universo cultural do espectador” e o “esboço de uma moral”, para “Linha Reta e Linha Curva”, a sugerir o “embrião de uma narrativa” (Ryngaert, 1995, p.37), sem que a visada moral tivesse sido descartada, sobretudo em razão de a moralidade arrematar o conto na versão em folhetim publicada na revista. Ora, se a intenção é escrever uma narrativa, já denunciada do título “Linha Reta e Linha Curva”, o narrador é peça-chave no projeto da escritura do conto. Enquanto na peça, o espectador entrava em contato direto com as personagens Ernesto e Margarida Seabra, que vivem o idílio de um casamento de cinco meses, no conto, o narrador é figura que se interpõe entre o leitor e o texto, e se apropria das didascálias, a começar por aquelas que informam sobre o tempo e o lugar da ação “A cena passa-se em Petrópolis. Atualidade” (Assis, 1982, p.157) -, indicações mantidas no conto - “Era em Petrópolis, no ano de 186...” (Assis, 1985) -, aqui, fazendo-se acompanhar do comentário do narrador que, com a intenção de garantir verossimilhança à história, aproxima-a de fatos e pessoas do universo do leitor: Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos anais contemporâneos e dos costumes atuais. Talvez um dos leitores conheça até as personagens que vão figurar neste pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma delas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame: - Ah! cá vi uma história em que se falou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à proporção que voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida” (Assis, 1985). Como se percebe, o narrador, ao mesmo tempo em que dialoga com o leitor, de forma a estabelecer com ele pacto de aproximação e confiança, aponta também para a condição www.fatea.br/angulo Uma vez apresentado Azevedo por traços que vão ser mantidos no conto, enquanto na peça era ao longo das cenas, por intermédio dos diálogos, que ia se delineando a personalidade das personagens (Silva, 2003), o enquadramento irônico não apenas distancia o conto da peça, mas igualmente imprime ao texto teatral nova leitura, aquela que o narrador-leitor fez de Forcas Caudinas, e que atualizada na narrativa, direciona a leitura do leitor do conto. Com isso, a cena de abertura de “Linha Reta e Linha Curva”, momento em que Azevedo interrompe a leitura que fazia em voz alta e passa a conversar com Adelaide, quando os diálogos da comédia são aproveitados no conto, ainda assim, não se pode dizer que seja a mesma cena que abre a peça, tendo em vista a intermediação irônica do narrador. Por outro lado, uma vez mantidos os diálogos da peça no interior do conto, e sendo o conto um texto para ser lido e não representado, talvez seja possível chamar “Linha Reta e Linha Curva” pelo epíteto - “spectacle dans um fauteuil” -, cabendo ao leitor desdobrar-se em espectador. Além de imprimir visada irônica à comédia, o narrador assume o papel de contraregra (Ribeiro, 1981, p. 83), ao transformar as rubricas em narrativa – na reprodução de algumas falas em discurso indireto e do discurso indireto livre -, ou em descrição – na apresentação do perfil físico e psicológico das personagens. E quando se fala em narrativa, não se pode esquecer de que “Linha Reta e Linha Curva” constitui-se, de fato, de dois contos: o que foi publicado no Jornal das Famílias, e o que foi (re)publicado no interior da coletânea Histórias da MeiaNoite (1870), com modificações em relação ângulo 113, abr./jun., 2008, p. 76-84. à versão da revista. Assim, na leitura da recriação em folhetim da peça, Silva (2003, p. 43) vai dizer que: [...] fica evidente que o escritor projetou a reescrita sabendo de antemão que a narrativa sofreria fracionamento em quatro fatias, publicadas em quatro números sucessivos. A prova disto está nos acréscimos, que prevêem o corte do jornal, no final dos capítulos. Eles antecipam a continuação da história e aguçam a curiosidade do leitor sobre o prosseguimento com frases como ‘Por quê? É o que saberemos mais adiante’. No início do capítulo, a previsão do corte revela-se no caráter interativo das inclusões e no tom de sumário do comentário, que suprem a necessidade de se recuperar detalhes do enredo no capítulo vendido no mês anterior ”. Outro aspecto que permite identificar diferenças entre a peça e o(s) conto(s), em função do contexto de publicação dos textos e dos respectivos leitores implícitos, diz respeito ao desenlace da história: enquanto em Forcas Caudinas, “a revelação da trama concentra-se no momento de resolução do conflito” (Silva, 2003, p.63), em “Linha Reta e Linha Curva”, em particular o folhetim, são as peripécias vividas pelas personagens que se sobrepõem ao desfecho da peça. MACHADO E O TEATRO ficcional da narrativa, ainda que esta, “tomada dos anais contemporâneos e dos costumes atuais”, fique próxima da crônica. Outra função do narrador é a de, no lugar da rubrica, descrever as personagens, como já começa a fazer em relação a Azevedo, “um marido feliz, inteiramente feliz”, “possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade”, “dono de algumas propriedades rendosas”, retrato esse da felicidade masculina que se aproxima do perfil daqueles homens que, em sendo ricos, não precisam usar o diploma de advogado para ganhar a vida. Muito embora, como se disse, a mediação do narrador confira à peça machadiana novo enquadramento, o conto só consegue se libertar da rigidez e da limitação da representação no palco nos trechos narrados. Mesmo nestes, é possível perceber que a ação narrativa está presa à organização da peça em torno das cenas, com as entradas e saídas das personagens, que atuam como se fossem atores no palco. Não seria difícil concluir quanto ao fracasso da transformação da peça em conto, uma vez que Machado de Assis não conseguiu se libertar da estrutura cênica que se sobrepõe à estrutura narrativa. Há que se dizer, no entanto, que a conclusão se sustenta, quando considerada apenas a “casca” do conto, mais diretamente envolvida no traba- 81 MACHADO E O TEATRO lho de reversibilidade da peça-provérbio em conto moral. Alojado no interior de “Linha Reta e Linha Curva”, há um outro conto, que se afasta deste não apenas quanto ao gênero, mas também quanto à concepção narrativa. Trata-se da “História de um Homem e de um Macaco”, título que o futuro marido de Emília, Tito, deu à história que ele, para encher o tempo, conta à viúva e a Diogo, o “eterno braceiro” da moça. A história é transcrita com recortes: Não longe da vila ***, no interior do Brasil, morava há uns vinte anos um homem de trinta e cinco anos, cuja vida misteriosa era objeto das conversas das vilas próximas e o objeto do terror que experimentavam os viajantes que passavam na estrada a dous passos da casa. A própria casa era já de causar apreensões ao espírito menos timorato. Vista de longe nem parecia casa, tão baixinha era. Mas quem se aproximasse conheceria aquela construção singular. Metade do edifício estava no nível do chão e metade abaixo da terra. Era entretanto uma casa solidamente construída. Não tinha porta nem janelas. Tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janela e de porta. Era por ali que o misterioso morador entrava e saía. Pouca gente o via sair, não só porque ele raras vezes o fazia, como porque o fazia em horas impróprias. Era nas horas da lua cheia que o solitário deixava a residência para ir passear nos arredores. Levava sempre consigo um grande macaco, que acudia pelo nome de Calígula. O macaco e o homem, o homem e o macaco era dous amigos inseparáveis, dentro e fora de casa, na lua cheia. Mil versões corriam a respeito deste misterioso solitário. A mais geral é que era um feiticeiro. Havia uma que o dava por doudo; outra por simplesmente atacado de misantropia. [...] O misterioso... É preciso dar-lhe um nome: 82 chamemo-lo Daniel. Daniel preferia o macaco, e não falava a mais homem algum. Algumas vezes os viajantes que passavam pela estrada ouviam de dentro da casa gritos do macaco e do homem: era o homem que afagava o macaco. [...] Uma noite, era no mês de julho, época de lua cheia, Daniel preparou-se para sair. Calígula deu um pulo e saltou à estrada. Daniel fechou a porta, e lá se foi com o macaco estrada acima. [...] Havia já uma hora que os dous solitários tinham saído de casa. A casa ficara já um pouco longe. Nada mais natural do que chegar a polícia nessa ocasião, tomar a entrada da casa e reconhecer o mistério. Mas a polícia, apesar dos meios que tinha à disposição, não se animava a investigar o mistério que o povo reputava diabólico [...]” (Assis, 1985, p.142-144). Aqui a história se interrompe com o bocejo do velho Diogo, e assim ficará, apesar dos apelos de Emília: Tito, que a contava, “estava em talas por não saber como continuar...” (Assis, 1985, p.144). Uma vez que a “História de um Homem e de um Macaco” se inscreve no interior de “Linha Reta e Linha Curva” no momento em que Emília ia se declarar a Tito, o segundo conto foi interpretado como estratégia para protelar a declaração de amor e esticar a narrativa por mais algumas laudas na revista (Silva, 2003, p.95). Loyola (1997, p. 142) interpreta por outro ângulo o enxerto, ao dizer que “Machado delimita os parâmetros de teatro e conto, marcando a especificidade deste em sua dimensão literária. Interrompe mesmo a estrutura dramática que pautava Linha reta e linha curva, introduzindo o elemento que o remete à origem do gênero”. Tão somente o fato de Tito narrar a história em voz alta, não necessariamente filia o conto à tradição oral, uma vez que possivelmente a raiz literária daquela é o famoso conto de Edgar Allan Poe (1997), “Os Mistérios da Rua Morgue”, recuperado pelo narrador em versão de paródia: no lugar do misterioso assassinato das duas mulheres por um macaco, é a história tangencial, a do dono www.fatea.br/angulo Como se pode lembrar, não é essa a primeira vez que Poe é mencionado por Machado de Assis em seus contos, tal como aconteceu em “Uma Excursão Milagrosa”, a sinalizar a tentativa de o escritor brasileiro se libertar da estrutura do conto moral, que nem por abrigar duas histórias, o é próprio do conto, como quer Piglia (2004), liberta o contista do compromisso com o ensinamento, o que significa investir a literatura de “utilidade”. Ora, a começar por esse aspecto, a “História de um Homem e de um Macaco” contrasta com “Linha Reta e Linha Curva”, já pelo fato de ser aquela uma história sem pé nem cabeça, como se depreende da fala de Diogo: A história é muito divertida... Até aqui só temos visto duas cousas, um homem e um macaco; perdão... temos mais dous, um macaco e um homem. É muito divertida! Mas, para variar, o homem vai sair e fica o macaco (Assis, 1985, p.144). Enquanto o conto moral tinha por objetivo instruir, moralizar o leitor, como também acontecia na peça-provérbio, o conto de Tito, filiado talvez ao de Poe, além de não ensinar nada, desestabiliza a ordem do mundo, acabando por instaurar um certo clima de absurdo. O que, aliás, já vinha ocorrendo, mas de forma dissimulada, no interior do conto moral, por conta da idéia de Diogo de presentear Emília com um urso branco. Assim, pode-se dizer que a desestabilização é gerada no interior mesmo da ordem, pois que o conto de dentro, conforme está sendo chamada a “História de um homem e de um macaco”, põe em xeque o conto de fora, “Linha Reta e Linha Curva”, aquele engendrado no interior deste. Por outro lado, o conto de dentro, se nasceu de outro texto, este não “aprisiona” o segundo, abrindo-se mesmo à recriação paródica, ao contrário do que aconteceu em relação a Forcas Caudinas ângulo 113, abr./jun., 2008, p. 76-84. e “Linha Reta e Linha Curva”. Por fim, o conto internalizado parece ter sido plantado no coração do conto de fora, com a intenção de romper o equilíbrio da mimesis entre o imaginário e o real, fazendo a narrativa de Tito (aliás, nome do poeta do conto fantástico de “Uma Excursão Milagrosa”) pender para o lado da ficção, enquanto a peça e o conto estavam empenhados na reprodução da realidade. Outro ponto que permite opor “História de um Homem e de um Macaco” e “Linha Reta e Linha Curva” refere-se ao modo de narrar a história: o conto moral já começa com vistas ao desfecho, onde está localizada a moralidade; o conto de Tito, porque não quer ensinar nada, não se sabe aonde quer chegar. Por sua vez, esse conto-estorvo, não apenas fratura a unidade do conto de fora, como também interrompe a sua leitura, o que faz pensar se alguns leitores não terão “pulado” o enxerto, tanto os da versão em folhetim, quanto os do livro. Mas se a interrupção da leitura de “Linha Reta e Linha Curva” põe em risco a eficácia do compromisso moral, significa também que a lição de Poe quanto à unidade de efeito do conto, que torna imprescindível a leitura de uma só assentada, não foi inteiramente assimilada por Tito, tanto que Diogo não conseguiu evitar o bocejo, a indiciar que o conto do rival não tinha conseguido prender-lhe a atenção. Ora, o domínio sobre o leitor (ouvinte, no caso) requer do contista extremo controle sobre os materiais narrativos, de forma que o desfecho do conto já esteja planejado no começo, na criação do que Horácio Quiroga chamou de “pequeno ambiente” [...] e Julio Cortázar, de “esfericidade”, conforme o escritor argentino vai dizer no ensaio “Do conto breve e seus arredores”: MACHADO E O TEATRO que perde o macaco, que veio ocupar centro da narrativa de Tito, aclimatada no Brasil. É possível entender que tenha sido essa história secundária a que foi desenvolvida, em função da situação de enxerto no interior de “Linha Reta e Linha Curva”. A noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao conselho, ao definir a forma fechada do conto, o que já noutra ocasião chamei de esfericidade; mas a essa noção se soma outra igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido uma das personagens, vale dizer que a situação narrativa em si deve nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior 83 MACHADO E O TEATRO para o exterior, sem que os limites da narrativa se vejam traçados como quem modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, o sentimento da esfera deve pré-existir de alguma maneira ao ato de escrever o conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz precisamente a perfeição da forma esférica” (CORTÁZAR, 1993, p. 228). Exatamente porque o “sentimento de esfera” não pré-existiu ao ato de o narrador contar a “História de um Homem e de um Macaco”, Tito viu-se “em talas por não saber como continuar”. Nessa hora, de pouco valeu a personagem ter viajado muito, experiência que lhe garantiu, na avaliação do narrador do conto moral, “saber ver e saber contar”, “qualidades indispensáveis a um viajante” (Assis, 1985, 128), possivelmente porque as narrativas de viagem de Tito estivessem coladas à realidade, enquanto o rapaz parecia incapaz de criar uma história valendo-se da própria imaginação (pouco importa se “inspirada” em outro texto). De qualquer forma, a presença de Poe no conto (interno) de Machado de Assis instaura dupla perspectiva intertextual - narrativa e metacrítica -, uma dentro da outra, no segundo caso, a teoria poeana do conto também recuperada em versão de paródia: se Tito foi leitor das “histórias extraordinárias” do contista norteamericano, não soube articular cálculo e unidade de efeito. A situação de Tito contista, não é difícil perceber, mimetiza a situação do Machado de Assis contista: ambos são leitores de Edgar Allan Poe, mas ambos fracassam na tentativa de contar/escrever conto, no caso do escritor brasileiro, duplo fracasso: tanto porque, de um lado, “Linha Reta e Linha Curva” não conseguiu se libertar de Forcas Caudinas, quanto porque, de outro, a recriação narrativa está presa ao paradigma do conto moral. Ainda levará algum tempo para o escritor brasileiro se afastar tanto de Musset quanto de Marmontel, o que vai acontecer quando ao optar pelo conto, Machado se aproximar de Edgar Allan Poe, “convivência regular e consentida de, no mínimo, trinta anos” (Cunha, 1998, p. 66). 84 Referências ASSIS, Machado de. Contos recolhidos. Organização e prefácio de Raimundo Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1956?. ______. Crítica teatral. Rio de Janeiro: Jackson, 1951, vol.30. ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, vol.2. ______. 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