1 O CONCEITO DE PERSONALIDADE: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PSICOLOGICA HISTÓRICO-CULTURAL Luiza Almeida Xavier – UEM – [email protected] - CNPq Marilda Gonçalves Dias Facci – UEM – [email protected] Introdução O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o desenvolvimento da personalidade, a partir da Psicologia Histórico-Cultural. O texto é decorrente de estudos realizados na Universidade Estadual de Maringá, no projeto de iniciação científica, que está em andamento, intitulado A formação da personalidade e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores: contribuições da Psicologia Histórico-Cultural. O projeto está sendo desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica em obras de autores como L. S. Vigotski, Lucien Sève e A. N. Leontiev, dando um maior destaque a coletânea “Marxismo e a Teoria da Personalidade”, escrita por Lucien Séve. Também foram analisados alguns artigos e livros de autores brasileiros que tratam do tema em questão. Nos volumes I, II e III da obra “Marxismo e a Teoria da Personalidade”, Sève destaca que o homem transforma-se com a mutação das relações sociais, de modo que a natureza do homem é a história. O desenvolvimento das capacidades dos indivíduos resulta da apropriação das forças produtivas à qual estes se entregam na base do trabalho social, conforme veremos no decorrer do texto. A NECESSIDADE DE UMA COMPREENSÁO MARXISTA DA FORMAÇAO DA PERSONALIDADE. Lucien Sève (1979a) constatou que a Psicologia vigente em meados de 1945 possuia rigor científico no que diz respeito ao estudo da personalidade, no entanto o fazia sem considerar a relação desta com a vida humana real. Baseado na obra de Politzer “La Crise de La psychologie contemporaine”, orientou suas reflexões no sentido do marxismo, visando uma Psicologia ao mesmo tempo concreta e científica. Sève também se fundamentou na obra O Capital de Marx, na tentativa de articular a Psicologia da personalidade com o materialismo histórico. 2 Segundo o autor, Marx considera que a essência humana é o conjunto das relações sociais e não uma abstração inerente ao indivíduo isolado. E a partir do momento em que a Psicologia busca desvendar o psiquismo com base no indivíduo, a mesma se baseia em humanismo especulativo, ficando à margem da ciência marxista e da verdade. Sève (1979 a) afirma que a Teoria da Personalidade tem uma importância fundamental para o marxismo, no entanto, entende que essa teoria ainda não conseguiu atingir um estado de adulta, pois o caráter adulto de uma ciência só pode ser alcançado após a definição de seu objeto de estudo e do método pelo qual o mesmo será explorado. Além disso, os conceitos de base que exprimam os principais elementos e contradições de tal objeto e leis fundamentais de desenvolvimento que levem à dominação na teoria e na prática são necessários para garantir a cientificidade da Psicologia, afirma o autor. Em decorrência disso, a Teoria da Personalidade pode ser considerada uma ciência em plena ascensão, mas muito jovem ainda, segundo Sève. Enquanto a psicologia da personalidade não atingir a integral maturidade científica, a mesma não deverá espantar-se se o seu próprio direito de existir estiver posto em causa. Devido ao fato da psicologia da personalidade possuir algumas incertezas no que diz respeito à sua própria identidade, é o marxismo que deve determinar sua articulação com a mesma, afirma Sève (1979a). Durante a história da Psicologia surgiram divergências a respeito do seu objeto de estudo, afirmando que seus estudos científicos são feitos sem que se saiba para onde são dirigidos. Além disso, a Psicologia era considerada uma ciência cujo domínio ainda era confuso, possuindo métodos incertos. Dessa forma, tal ciência alcança um domínio cada vez mais vasto, mas não consegue firmar-se ainda, não consegue atingir a vida adulta. Em referência ao desenvolvimento de tal ciência, Sève (1979a, p. 75) afirma que “A Psicologia da Personalidade, enquanto ciência da individualidade humana concreta deve, necessariamente, vir articular-se na concepção científica geral do homem que o materialismo histórico constitui.” O autor enfatiza que a Psicologia se debatia com várias teorias que buscavam compreender o psiquismo humano. Uma das vertentes desta ciência afirmava que o psiquismo deveria ser compreendido como uma atividade distinta da atividade nervosa que lhe correspondesse, o que conduziria a concepção metafísica da Psicologia como sendo a “ciência da alma”. Outra vertente já compreendia o psiquismo como 3 atividade nervosa, o que provocaria a evaporação da Psicologia em proveito das ciências biológicas. Vigotski (1996) ao tratar da crise da Psicologia, por volta de 1930, também fez tal afirmação. Entende que existiam duas psicologias: uma que estudava o comportamento sem a psique e outra que estudava a psique sem o comportamento. Para o autor russo a Psicologia da época estava grávida de uma concepção marxista, mas ainda não tinha dado luz a essa visão da Psicologia. Esta seria a Psicologia Geral que Sève está chamando de adulta. A partir do materialismo histórico, segundo Sève, é possível extrair a concepção de conjunto de uma Psicologia da personalidade cientificamente adulta. O que se explana no trecho a seguir: As teorizações psicológicas atuais sobre a personalidade efetuam-se, com demasiada freqüência a partir de práticas em si mesmas bem teóricas e pouco concretas, na medida em que não prendem a atividade pessoal senão de uma forma fragmentária, marginal, quando não artificial, porque deixam de lado as condições da vida real, a começar pelo trabalho social (SÈVE, 1979c, p. 420) A Psicologia, na realidade, não tem conseguido compreender o desenvolvimento da personalidade como vinculado a condições sociais que formam o homem. Ela tem compreendido o homem como abstrato. Saviani (2004) entende que a Psicologia tem tratado do homem destituído das relações sociais e defende o estudo do homem concreto, a partir de fundamentos marxistas. O homem concreto é compreendido como síntese das relações sociais de produção. Trataremos mais especificamente desta questão no segundo item do texto. Sève (1979c, p. 431) considera que “o objeto da Psicologia é fornecido pelo conjunto dos fatos humanos considerados nas suas relações com o indivíduo humano, isto é, na medida em que constituem a vida de um homem e a vida dos homens”. Ao separar a personalidade das condições sociais, privamo-nos da sua socialidade, construindo uma concepção abstrata e não histórica da individualidade, sem ter consciência da singularidade de cada indivíduo. O autor afirma que não há na personalidade algo que não seja do domínio social, sendo necessária que sua singularidade seja compreendida como essencial, e também reconhecendo o caráter dialético da personalidade. A ciência da personalidade não pode fundar-se na base de uma psicologização da essência humana, mas sim basear-se no materialismo histórico e dialético. A partir desse fundamento, o pensador marxista possui o direito e o poder de criticar as visões ideológicas que se manifestam numa Psicologia idealista e burguesa. O autor questiona 4 a possibilidade de existir uma ciência marxista, afirma que, existe, com segurança, uma concepção e um uso marxista da Psicologia. No entanto, a partir do momento em que o materialismo histórico é considerado como a base de toda a ciência do homem, o seu objeto coincide com o desenvolvimento do homem nas suas relações sociais. Portanto, a história social dos homens está contida na história do seu desenvolvimento individual. Sève (1979c, p. 456) afirma que Apenas o marxismo fornece ao homem a sua verdadeira dimensão e as suas perspectivas de desenvolvimento ilimitado ao levar de volta a base biológica da necessidade a desempenhar o seu papel efetivo de ponto de partida genérico e de condição de possibilidade e ao revelar, no âmbito da hominização, isto é, do entrelaçamento da socialização e da personalização. A partir do exposto até o momento, trazendo as idéias de Sève e Vigotski tentamos apresentar a necessidade de uma Psicologia que se funde no marxismo para uma compreensão do homem concreto. A seguir, trataremos mais especificamente sobre a formação da personalidade. A FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE EM UMA VISÃO MARXISTA Leontiev (1978) afirma, a partir do marxismo, que o homem nasce humanizado, com o aparato biológico para se tornar humano, mas o processo de humanização só ocorre por meio do processo educativo, que leva o indivíduo a se apropriar dos bens materiais e culturais produzidos pela humanidade. Sève (1979a, p. 51) expõe que a essência do homem é a de nascer homem, no sentido biológico do termo, mas no sentido psicossocial ele precisa assimilar o “patrimônio humano objetivamente acumulado no mundo social [...]” para se tornar humano. Martins (2007) afirma, nessa linha de pensamento, que, para que os indivíduos se objetivem como seres humanos, é preciso que se insiram na história, a qual possibilita a relação entre apropriação e objetivação. Tal relação é mediada pelas ações de outros indivíduos. A objetivação é o resultante da atividade humana por suas relações com os produtos da história. Desse modo, a apropriação da objetivação é ao mesmo tempo a apropriação sintética da atividade histórica. Nesse sentido Duarte (1993) também esclarece que para o homem desenvolver a sua individualidade é necessário que ocorra um processo de apropriação dos bens produzidos pela humanidade e a objetivação de novos produtos materiais e culturais. 5 Segundo Duarte (1993), as características da espécie são transmitidas por herança genética, mas, as características do gênero humano não, pois este possui uma objetividade social e histórica. O fato do indivíduo humano ser singular, único, resulta de um processo social, histórico e concreto. A apropriação, pelo indivíduo, das objetivações humanas é sempre um processo ativo e se realiza, através da mediação das relações sociais concretas. Para Leontiev (1978) as relações sociais não são fatores externos de crescimento, mas sim a própria essência da personalidade. Dessa forma, surge espaço para uma ciência da personalidade humana articulada com a ciência das condutas, na qual as relações sociais são a base de uma outra espécie de relações, que são constitutivas das bases da personalidade na sua acepção histórico-social, onde os homens criam-se a si mesmos. Ainda segundo o autor, a sociedade pode ser considerada como indivíduo total, de modo que a cultura é a configuração dos comportamentos aprendidos e dos seus resultados. O indivíduo psíquico é representado como sendo o elemento constituinte da sociedade, a sua base real. Além disso, a sociedade é caracterizada como a obra de uma personalidade que seria criada pela sociedade e criadora dessa mesma, sendo de suma importância analisar os comportamentos a partir dos fatos históricos. É necessário considerar a indissolúvel unidade entre o individuo e o gênero humano, de modo que o homem apenas se individualiza por meio do processo históricosocial. A realização humana se dá por meio da história construída, desenvolve-se a partir de condições biológicas e sociais. A atividade humana engendra um conjunto de processos pelos quais o indivíduo adquire existência psicológica, desenvolvendo sua personalidade à medida que faz, pensa e sente. Quanto mais se socializa, mais cada ser humano tem possibilidades de formar sua individualidade. É preciso viver, em interação com outros homem e com o produto da história desses homens para que aconteça o processo de individualização. A atividade vital humana – o trabalho - é um processo sustentado por uma cadeia de ações e relações que articulam o individuo a coletividade. Para Sève (1979 a), assim como para Saviani (2004), a essência do homem é o trabalho. As objetivações são permeadas de significação social, que é dada por outros indivíduos, dentro de um contexto social. Este contexto foi produzido, através das relações que os homens foram estabelecendo, entre si, no decorrer da história; desta forma ao transformar a natureza, os homens também foram se transformando. 6 Para Martins (2007), o trabalho é o processo que regula o metabolismo entre o homem e a natureza, de modo que ao modificá-la, modifica ao mesmo tempo sua própria natureza. Pelo processo de trabalho, o homem constrói sua genericidade de tal forma que a vida individual e a vida genérica se encontram dispostas uma a outra. Dessa forma, o trabalho está no centro da humanização do homem, afirma a autora. O mesmo engendra a estruturação da consciência, que por sua vez se concretiza pela linguagem, razão pela qual a consciência é inseparável da linguagem, e ambas, inseparáveis do trabalho. Sève (1979a) considerar que as relações materiais humanas constituem a base de todas as suas relações, a história social dos homens não passa da história do seu desenvolvimento individual. Desse modo, afirma que “[...] a separação entre os homens e as relações sociais não só torna incompreensíveis os homens, como também o desenvolvimento das relações sociais.” (1979b, p.117). A individualização através do processo histórico faz com que as contradições das relações sociais determinem a base contraditória do processo de vida dos indivíduos. Na obra “Marxismo e Teoria da Personalidade” (1979a) Sève pontua a necessidade de distinguir o conceito abstrato de homem com o de homem concreto. Todo o conceito científico é abstrato enquanto conceito, mas só é científico, segundo as exigências marxistas, se conseguir captar a essência concreta do seu objeto. Os homens são considerados como um conjunto de habilidades físicas e intelectuais reunidas em sua personalidade, de modo que constituem o fator subjetivo da produção. Seus instrumentos de trabalho possuem como objetivo o desenvolvimento do trabalhador, mas também são expoentes das relações sociais oriundas do mesmo. Ao analisar o conjunto das relações sociais, nota-se que o indivíduo humano não possui originalmente a sua essência dentro de si mesmo, mas sim no exterior, nas relações sociais. Tal fato faz surgir a necessidade histórica. O homem nasce dotado de necessidades elementares, que inicialmente são satisfeitas pelas ações de outras pessoas. Tais necessidades se transformam por meio dos objetos durante o seu processo de uso, reafirmando a tese marxista segundo a qual as necessidades se produzem, e possuem uma natureza histórico-social. Sève (1979b) afirma que o homem transforma-se com a mutação das relações sociais, de modo que a natureza do homem é a história. Considerando isso, “é necessário elaborar uma doutrina em que todas essas relações sociais sejam ativas e se encontrem um movimento, estabelecendo com a maior clareza que o ponto de apoio 7 desta atividade é a consciência do homem considerado enquanto indivíduo” (Séve, 1979c, p. 433). Segundo o que Sève (1979b) explora, o homem abstrato consiste em uma generalidade abstrata, a qual começa por existir nos indivíduos a quem a sociedade capitalista desliga de todo e qualquer laço específico. O pensamento, em uma visão marxista, vai do concreto imediato ao abstrato, e então retorna ao concreto, o qual consiste na síntese de múltiplas determinações. Cada indivíduo natural torna-se humano por meio do seu processo de vida real no seio das relações sociais. Dessa forma, é indispensável uma articulação consciente entre a Psicologia e o materialismo histórico. Portanto, é de suma importância para a Psicologia da Personalidade elaborar a teoria das relações e processos no seio dos quais se produz uma personalidade concreta. Séve (1979b) discute a questão da personalidade com base em três pontos. O primeiro afirma que a personalidade concreta desenvolve-se a partir de um suporte biológico que determina certas condições no âmbito das quais ela se cria enquanto formação histórico-social. Além disso, a existência do suporte biológico leva a que surja um conjunto de determinações e de diferenciações que não possuem correspondente no terreno das formas sociais de individualidade. Já no segundo ponto Sève afirma que a personalidade concreta encontra-se claramente marcada pelas limitações que implicam o fato geral da individualidade. No terceiro ponto o autor considera que a passagem da individualidade social à personalidade concreta significa que nos encontramos perante uma formação que funciona como uma totalidade de uma ordem específica. Desse modo, a personalidade torna-se o ponto de apoio de regulações sociais, já que é considerada um sistema complexo de atividades possuindo a sua unidade no terreno psicológico. O autor considera cada indivíduo como singular, sendo essa singularidade individual um fato social, o qual consiste na diversidade intrínseca dos indivíduos. Contudo, sendo a individualidade um fato social, o segredo da individualidade psíquica humana reside na conexão entre exterioridade social e o desenvolvimento ilimitado da totalidade do patrimônio humano, da essência humana real. Sève (1979b) ainda enfatiza que a divisão do trabalho, na sociedade capitalista, é o modo que o indivíduo encontra para individualizar-se à medida que se vai socializando. Para Leontiev (1978, p. 275), com a divisão do trabalho, as aquisições do desenvolvimento desenvolvimento. histórico podem separar-se daqueles que criam este 8 Esta separação toma antes de mais uma forma prática, a alienação econômica dos meios e produtos do trabalho em face dos produtores diretos. Ela aparece com a divisão social do trabalho, com as formas da propriedade prvada e da luta de classes. Ela é, portanto, engendrada pela ação das leis objetivas do desenvolvimento da sociedade que não dependem da consciência ou da vontade dos homens. O autor comenta que A divisão social do trabalho transforma o produto do trabalho num objeto destinado à troca, o que modifica radicalmente o lucro do produtor no produto que ele fabrica. Se este último continua a ser, evidentemente, o resultado da atividade do homem, não é menos verdade que o caráter concreto desta atividade se apaga nele: o produto tem um caráter totalmente impessoal e começa a sua vida própria, independe do homem, a sua vida de mercadoria (p. 275). Retornando às considerações de Sève (1979c), ao considerarmos que o trabalho enquanto livre manifestação de si constitui a primeira necessidade humana, o trabalho social alienado constitui, dessa forma, sua radical negação. Ao qualificar o trabalho como primeira necessidade humana, afirma-se que a essência humana é o trabalho, o que transforma o trabalho numa essência psicologizada do homem abstrato. Nota-se ainda que para Martins (2007), a base da alienação reside em condições econômicas, nas relações sociais de produção, permeando todas as esferas da vida humana. Tal base possui o objetivo de caracterizar a maneira que a realidade é percebida nas suas aparências, e revelar os mecanismos que determinam essas aparências. Para Marx (apud LEONTIEV, 1978), a realização da humanização dos homens só é possível pelo trabalho efetivado ontologicamente, o que acontece quando as relações determinadas pela alienação são superadas. Pelo processo de alienação, o homem coisifica-se, convertendo-se em escravo daquilo que ele próprio criou. Ainda segundo Leontiev (1978), nas condições de alienação os indivíduos não são sujeitos do desenvolvimento de suas capacidades individuais, o que gera o hiato entre motivos e finalidades, já que a individualidade e a personalidade resultam como mercadoria, ao serem condicionadas pelo valor de troca. Para superar a alienação, os indivíduos precisam retomar para si o controle consciente das transformações das circunstancias e de si mesmos, o que pressupõe que o individuo aprenda a reconhecer as articulações entre seus atos, colocando-os em relação com suas conseqüências reais, que se revertem tanto para si quanto para os outros. A luta contra a alienação inicia quando sua existência é reconhecida e encarada de maneira crítica. Dessa forma, consideramos que é de suma importância que o psicólogo busque 9 nos pressupostos do materialismo histórico-dialético o seu ponto de apoio para compreender o desenvolvimento da personalidade, considerando o homem concreto, síntese das relações sociais, que em uma sociedade capitalista, pelo processo de alienação, está obliterado no desenvolvimento máximo de suas potencialidades. TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Apresentamos aqui algumas considerações sobre a formação da personalidade com base no marxismo, no entanto, consideramos que o tema ainda carece de muitos estudos, tanto nesta pesquisa que estamos desenvolvendo, como na literatura que pouco tem contemplado essa temática com base no materialismo histórico e dialético. A partir das leituras efetuadas até o momento no Projeto de Iniciação Científica, consideramos importante destacar que o homem se humaniza por meio da educação, da apropriação da cultura e que o desenvolvimento da personalidade é oriundo das relações sociais de produção. O trabalho é o processo que vincula o homem e a natureza, de modo que ao modificá-la, o homem modifica ao mesmo tempo sua própria natureza. A atividade consciente é atributo do homem, de modo que a existência da consciência pressupõe o ser consciente, o que torna possível a consciência da genericidade e o estabelecimento de uma relação com ela. No texto buscamos esclarecer a necessidade de compreender a formação da personalidade como resultante de uma relação dialética entre fatores internos e externos. No que diz respeito à Teoria da Personalidade, Leontiev (1978) considera que a personalidade resulta de relações dialéticas entre fatores externos e internos sintetizados na atividade social do indivíduo, sendo condicionada por condições objetivas, de modo que a personalidade do individuo não depende da vontade dos indivíduos tomados separadamente, mas da trama de relações que se estabelecem entre eles. A personalidade é processo, é desenvolvimento resultante da relação entre dois aspectos da sociedade, sendo um deles de natureza objetiva e o outro, de natureza subjetiva. Resulta da unidade e da luta dos contrários, indivíduo e sociedade. Ela compreende aspectos que dependem de condições naturais e que são comuns a todos os homens, aspectos que dependem das formações sociais, bem como aspectos da história individual influenciada pela correlação das condições externas e internas que lhe são próprias. 10 Sève (1979a) considera que ao separar a personalidade das condições sociais, privamo-nos da sua socialidade, construindo uma concepção abstrata e não histórica da individualidade, sem ter consciência da singularidade de cada indivíduo. Não há na personalidade algo que não seja do domínio social, sendo necessária que sua singularidade seja compreendida como essencial, e também reconhecendo o caráter dialético. Se encararmos a Teoria da Personalidade como uma ciência dependente da ciência do comportamento, renunciamos a compreensão da personalidade pura e simples. Sève (1979b) argumenta que ao longo do desenvolvimento da personalidade, os indivíduos são obrigados a apropriar-se da totalidade das forças produtivas existentes para assegurarem sua existência. A partir disso, nota-se que os trabalhadores não têm domínio sobre o crescimento de suas personalidades através do trabalho assalariado. A sua personalidade viva, expressa pela força de trabalho, não pode ser uma livre manifestação de si, já que é vendida ao capitalista. Portanto, a personalidade viva acaba por chegar à alienação, sendo dominada por seu valor de troca, que nega sua individualidade concreta, sendo habitada de uma ponta à outra pelas relações sociais de dependência. Discutindo sobre a individualidade, pode-se salientar que a personalidade é o sistema total da atividade de um indivíduo. Em toda sociedade existem configurações de respostas que se encontram ligadas a certos grupos socialmente delimitados no seio dessa sociedade, tais configurações constituem outros estatutos da personalidade, as quais podem ser denominadas de personalidades estatutárias. Tais personalidades encontram-se sobrepostas à personalidade de base e nela se encontram integradas. Cada sociedade possui o seu próprio tipo de personalidade de base e a sua própria gama de personalidades de estatuto, as quais definem as atitudes, valores e comportamentos de tal sociedade. Nesse sentido, é importante recorrer a uma citação de Vigotski (1996, p. 368): “[...] cada pessoa é em maior ou menor grau o modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, já que nela se reflete a totalidade das relações sociais”. Apesar disso, há a contradição sobre o motivo pelos quais os membros de uma dada sociedade apresentam consideráveis variações individuais na sua personalidade, até porque os membros de uma sociedade nunca possuem as mesmas capacidades de crescimento e de desenvolvimento. Portanto, mesmo tratando-se de tipos de meio ambientes idênticos, estes fornecem aos diferentes indivíduos tipos de experiência diferentes e levam a que nestes se formem personalidades diferentes. 11 Ainda segundo Sève (1979b, p.339) “se existe efetivamente uma singularidade do indivíduo que é irredutível às coordenadas sociais gerais, a singularidade mais essencial, a que constitui o âmago do problema é, precisamente, a da personalidade histórico-social enquanto tal.” De modo que o homem se individualiza através do processo histórico, e não apesar deste ou à sua margem. Portanto, a ciência psicológica deve estabelecer a legitimidade da atribuição de uma liberdade ao indivíduo. As relações sociais entre as condutas, ou seja, todas as estruturas reais da personalidade desenvolvida advêm do fato de que estas condutas são portadoras de uma atividade social determinada e determinante para o indivíduo. Portanto, falar em condutas equivale a reter um segmento delimitado do circuito total dos atos. Explorando o conceito de capacidades Sève (1979c) afirma que as mesmas podem ser consideradas como o conjunto das potencialidades atuais, inatas ou adquiridas, para efetuar seja que ato for. Entre os atos e as capacidades de um indivíduo vemos que existem inúmeras relações dialéticas, cuja análise constitui um capítulo essencial da teoria da personalidade. Considerando que a função progressiva mais importante da sociedade é a acumulação, a função progressiva mais importante da personalidade é o desenvolvimento das capacidades. Para Martins (2004), por meio da personalidade os indivíduos constituem uma maneira particular de funcionamento, exercendo papel de sujeito no processo de construção da sociedade que o cerca. Dessa forma, personalidade é considerada uma síntese de processos biológicos e psicológicos que em interação com o meio transforma o indivíduo de maneira criadora e autocriadora por meio da consciência. A personalidade realiza-se segundo as condições concretas de sua vida aliadas às suas possibilidades para uma atividade consciente. O desenvolvimento máximo de cada personalidade pode ser analisado pelo reconhecimento da mediação nele exercida pelas relações sociais existentes, implicando necessariamente em uma transformação radical das relações sociais determinadas pela alienação. Nota-se então que é possível compreender o indivíduo em sua totalidade a partir da análise das relações sociais estabelecidas. Deve-se considerar o período escolar, o trabalho, bem como os demais círculos sociais na análise sobre a formação da personalidade. Dessa forma, é fundamental visar à articulação entre os fatores ambientais e individuais. Tal articulação possibilita o desenvolvimento através do 12 processo do trabalho efetivado ontologicamente, além das relações estabelecidas durante o mesmo. Em uma sociedade capitalista na qual os homens vivem um processo de alienação, no qual não conseguem ter acesso aos produtos do seu trabalho, e o sistema de relações sociais é determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas, de acordo com Sève (1979a) é muito difícil criar condições nas quais cada indivíduo consiga assimilar a riqueza do patrimônio social objetivo. A busca por essas condições é uma tarefa que se impõe ao psicólogo que busca no materialismo-histórico e dialético o fundamento para o entendimento da personalidade. REFERÊNCIAS DUARTE, NEWTON. (1993.) A individualidade para-si (contribuições a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo). Campinas: Autores Associados LEONTIEV, ALEXEI NIKOLAEVICH. (1978.) O Desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte MARTINS, LÍGIA MÁRCIA. (2007) A formação social da personalidade do professor: um enfoque vigotskiano. Campinas: Autores associados MARTINS, LÍGIA MÁRCIA. (2004.) A natureza histórico-social da personalidade. Cad. CEDES, Campinas, v. 24, n. 62 SAVIANI, D. (2004). Perspectiva marxiana do problema subjetividadeintersubjetividade. In: Duarte, N. (Org.). Crítica ao fetichismo da individualidade. Campinas, SP: Autores Associados, p. 21-52. SÈVE, LUCIEN. (1979a.) Marxismo e a teoria da personalidade. Lisboa: Livros Horizonte, VOL. I. SÈVE, LUCIEN. (1979b.) Marxismo e a teoria da personalidade. Lisboa: Livros Horizonte, Vol. II. SÈVE, LUCIEN. (1979c) Marxismo e a teoria da personalidade. Lisboa: Livros Horizonte. Vol III. VIGOTSKI, LIEV SEMIÓNOVITCH. (1996.) Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes 13