Departamento de Geografia e Meio Ambiente ESPAÇO, TRABALHO E GÊNERO: O COTIDIANO DE MULHERES QUE MORAM NA FAVELA DA ROCINHA, R.J. Aluno: Iata Anderson Silva Mendonça Orientadora: Regina Célia de Mattos O desenvolvimento não possui um movimento único, harmonioso, como se expressa o binômio desenvolvimento x progresso. A dimensão espacial assume fundamental importância nesse movimento, na medida em que a sociedade para se reproduzir, produz espaço. O desenvolvimento ao mesmo tempo homogeniza, hierarquiza e fragmenta diante de sua natureza desigualizadora, e uma das expressões da fragmentação é a profunda desigualdade em que se encontra a nossa sociedade. Homens e mulheres sobrevivem em precárias condições de moradia, de trabalho, de saúde, enfim todas aquelas básicas para uma vida digna. Além de desigual, nossa sociedade é erigida sobre o patriarcalismo, o que acentua as diferenças entre homens e mulheres. Espaço, Trabalho e Gênero são categorias que orientam a nossa pesquisa, neste sentido nosso objetivo é analisar a mulher nos espaços cotidianos, tanto no espaço privado como no espaço público na favela da Rocinha, exemplo de manifestação de nosso desigualizador processo de desenvolvimento. Tomamos como estratégia de aproximação, a participação em um grupo formado por moradores denominado Rocinha Sem Fronteiras que objetiva discutir e encaminhar soluções dos problemas vividos pelos moradores. Embora com presença bastante ativa, o número de mulheres é reduzido, porém nos permitiu dirigir a pesquisa para a compreensão e análise das vivências de algumas mulheres que têm seu cotidiano bastante distinto um dos outros, o que nos tem revelado que embora sejam distintos seus dia-a-dia, muito se aproximam por serem mulheres. Realizando trabalho doméstico como renda principal ou complementação, trabalho informal no comércio ou serviços, dividindo o lar em espaço da reprodução da família e de geração de renda através de serviços de bar e alimentação, todas creem em uma “autonomia”, maior liberdade de “decidir sua vida” a partir dos ganhos monetários adquiridos de seu trabalho. Os caminhos da pesquisa nos levaram a formular a questão que aqui nos norteia: ganhar dinheiro é passaporte de garanti de autonomia, para libertar a “vida”? Quando nos propomos no ano de 2015 em ter o movimento Rocinha Sem Fronteiras como mediação da teoria/empiria de nossa pesquisa, isto é, aproximação com as mulheres que participavam do grupo para desenvolvermos a nossa pesquisa, nosso bolsista tinha participação frequente nas reuniões mensais. Entretanto, problemas decorrentes de doença em membro da família impediram que nossos trabalhos de campo, nossos dados primários fossem construídos, nos limitando a seguir com o cronograma de leituras que muito avançou ao longo de período. Neste sentido, apresentaremos as discussões teóricas realizadas em nossos encontros semanais. Desenvolvimento da pesquisa É a partir da década de 1970 que ocorre um aumento significativo da participação da mulher brasileira no mercado de trabalho, algo que não a isentou do papel de dona de casa. São várias as razões para essa “entrada” acentuada da força de trabalho feminina remunerada. Um dessas razões foi a expansão da economia acompanhada por uma crescente urbanização, e por um acelerado ritmo no processo de industrialização que configurou um momento de grande crescimento econômico, favorável à incorporação de novos trabalhadores, e também de trabalhadoras. Em contrapartida, esse crescimento se sustentou ao custo do aumento das desigualdades sociais e da concentração de renda, evidenciando que crescimento econômico não significa desenvolvimento social, diante dos problemas resultantes de tamanha desigualdade que acabaram obrigando, também, muitas mulheres a buscar alguma forma de complementação para sua renda familiar. Nesse processo, tanto mulheres pobres quanto as mais instruídas e das camadas médias entraram no mercado de trabalho. Conjuntamente a essa dinâmica da economia nacional, ocorre grandes transformações nos padrões de consumo frente à propagação de novos produtos, (re)criando “necessidades”, tanto para a classe média, como para a classe de renda mais baixa. Além disso, transformações ideológicas ajudaram a impulsionar a “entrada” da força de trabalho da mulher no Brasil. Houve mudanças comportamentais e questionamentos quanto ao papel social da mulher, noções lançadas pelo feminismo e pela presença cada vez mais atuante da mulher nos espaços públicos. Até mesmo a condição de autocontrole da natalidade, provocando a redução do número de filhos, contribuiu para ‘liberar’ a mulher para o trabalho remunerado. O aumento da escolaridade e o acesso às universidades também contribuíram para a força de trabalho feminina no mercado. A partir de sua entrada no âmbito laborativo é que a mulher se sobrecarrega, uma vez que suas obrigações domésticas ainda lhe são delegadas, decorrentes de uma ideologia pregada pela sociedade capitalista, burguesa e patriarcal, que impõe uma hierarquia social entre os gêneros e seus correspondentes papéis, portanto as atividades desempenhadas no lar não são em decorrência de processos naturais, mas moldadas ao longo do tempo e naturalizadas, como se fosse uma regra, uma ordem; assim, o cuidado com os filhos e com a casa faz parte do processo social que historicamente delegou às mulheres essas responsabilidades. Grande parte da identidade de gênero é adquirida ainda no âmbito familiar, onde se fazem os primeiros aprendizados para a divisão sexual do trabalho. Ao se inserir no trabalho assalariado, a mulher acaba exercendo determinadas atividades, ditas femininas e são também menos remuneradas. Dessa forma, pode-se dizer que o papel das mulheres, no mercado de trabalho, facilita muito sua exploração em ocupações de tempo parcial, substituindo trabalhadores masculinos pelo trabalho feminino e mal pago. Ainda assim, é importante ressaltar que as mulheres que avançam no espaço público só o fazem por conta de outras que realizam as tarefas domésticas por ela, como o cuidar de seus filhos. Para além disso, deve-se destacar o fato dos homens sempre terem tido o espaço público como um lugar de trânsito comum, o que os colocou, por assim dizer, em situação ‘privilegiada’ nas tomadas de decisão política e econômica. As mulheres, por outro lado, destinadas ao cuidado da casa, tiveram mais dificuldades para legitimar sua participação na vida pública e nela se fazer representar. A questão da responsabilidade do lar para a mulher é tão imposta que, quando vive o espaço público acaba interiorizando a culpa por deixar muitos de seus afazeres em função do trabalho assalariado. A pressão social e os mecanismos de dominação levam a mulher a desenvolver um sentimento de culpa quando opta por se inserir no mercado de trabalho, abrindo mão de uma vida dedicada exclusivamente a casa. Em contrapartida, o sentimento de “fracasso” a persegue quando opta por viver sem participação no mundo “público”, fora da casa, sem perceber que outros controles a conformarão. Apesar disso, ultrapassando as barreiras, as mulheres tem conquistado mais espaço no mercado de trabalho. Aumentaram consideravelmente sua participação, superaram padrões determinados de condição familiar e estão ingressando em ocupações que outrora não era possível. Por outro lado, todo esse processo travestido de “avanço” e de “emancipação” ainda está acompanhado de muitas obrigações sociais, e por mais que barreiras sejam derrubadas, outras são criadas e continuam mantendo o espaço doméstico e o trabalho do lar a cargo da mulher. É importante notar e reafirmar que “ser mulher” é uma construção no imaginário social que difere biologicamente do homem, entretanto “mulher” quer dizer “mulheres”, sujeitos construídos cujos papéis sociais não são impostos igualmente para todas. Quando nos referimos à mulher negra temos condições completamente distintas da mulher branca, o mesmo ocorrendo quanto à situação financeira, a localidade em que vive, a religião que pratica, ao estado civil, a configuração da família, a sexualidade, sendo múltiplas as condições de múltiplas mulheres. Diferenças entre homens e mulheres nos levaram a considerar a categoria gênero como instrumento analítico das desigualdades entre os sexos. Essa opção por trabalhar a categoria gênero é fundamental devido a sua importância para a análise geográfica. Vejamos. Ontologicamente, o homem para se humanizar necessitou de um arranjo social que articulasse ações e processos, através da constituição, produção e sustentação pela esfera do trabalho. É através desta esfera que a vida humana se concretizou, sendo o trabalho o elemento principal da transformação da condição humana ao longo dos tempos históricos. Assim, entende-se que a organização das ações através do trabalho compõe um processo histórico de tomada de consciência por parte dos indivíduos de seu mundo e de si. O trabalho é, portanto, uma categoria fundamental para a compreensão da formação e do fazer histórico da humanidade em toda a sua diversidade. Mas, se por um lado, podemos considerar o trabalho como um elemento fundador da vida humana, por outro lado, a sociedade capitalista o reduziu apenas a trabalho assalariado, fonte de reprodução, frequentemente não satisfazendo e desumanizando quem trabalha. Ao propomos um estudo acerca da categoria trabalho, nos vemos comprometidos a introduzir uma análise sobre o cotidiano. Isso porque é no cotidiano que as práticas sociais e os processos ocorrem, de forma ‘naturalizada’, Quando pensamos em cotidiano, pensamos em espaço geográfico. Não podemos falar de uma ‘coisa’ sem falar de outra ‘coisa’, são indissociáveis. É fundamental que se compreenda que o espaço (social) é um produto (social) e também é uma condição (social), portanto ele é, ao mesmo tempo, um meio de produção, um meio de controle, de dominação e de potência. A prática espacial de uma sociedade engendra seu espaço; ela o põe e o supõe, ela o produz lenta e seguramente, dominando-o e dele se apropriando. A prática social de uma sociedade se descobre, portanto decifrando seu espaço. No capitalismo a prática social associa estreitamente a realidade cotidiana e a realidade urbana. A prática espacial ‘moderna’ se define, portanto, pela vida cotidiana de um habitante. É a partir dessa compreensão que ainda pretendemos analisar o trabalho produzido por algumas mulheres moradoras da Rocinha em seu cotidiano. Para não concluir Vivemos desde o início de 2015 uma grave crise político-econômica que tem paralisado o país até o momento. Este ano de 2016 sofre as consequências da consequente desacerelação das atividades produtivas com o fechamento e falência de empresas, e o aumento vertiginoso do desemprego ultrapassando 11/%, segundo o IBGE. Foram mais de 11,6 milhões de brasileiros que ficaram sem trabalho no primeiro semestre deste ano, representando uma alta de 38,7% em relação ao mesmo triênio de 2015. Não podemos nos esquecer de que vivemos sob relações capitalistas estruturadas em sujeitos sem quaisquer condições de se auto sustentar, tendo de, obrigatoriamente, trabalhar para ganhar dinheiro para poder comprar tudo que precisa para subsistir. Ora, então o trabalho é fundamental para que possamos sobreviver. Quando vemos milhões de pessoas sem as condições que até aquele momento lhes garantia o dia-a-dia, é para nos assustarmos. Como sobreviverão? Dando muitos jeitos impossíveis de aqui serem enumerados, mas uma coisa é provável e ser comum a todos: o aumento da precarização para viver. Nesse quadro supomos que o trabalho feminino venha sendo a categoria mais fragilizada embora reconheçamos que, ao longo dos últimos anos, muitas conquistas de reconhecimento do trabalho feminino foram realizadas, entretanto retomamos os questionamentos já colocados: ganhar dinheiro, “trabalhar” é passaporte para ter autonomia e libertar a vida? Quando dizemos “dinheiro para libertar a vida” estamos nos referindo às transformações ocorridas em nossa sociedade que favoreceram muitas mulheres a trabalharem fora de suas casas, ocupando o mercado formal ou informal, o que representa socialmente uma possibilidade de “autonomia da mulher”, entretanto o cotidiano de algumas mulheres não parece representar esse desejo. O cotidiano é definido por parâmetros de copresença, vizinhança, intimidade, emoção, cooperação e socialização, numa base de contiguidade, de modo que o cotidiano imediato, vivido localmente, trata da união de todos estes elementos. A vida cotidiana é a vida de todo homem, pois não há quem esteja fora dela, e do homem todo, na medida em que, nela, são postos em funcionamento todos os seus sentidos, as capacidades intelectuais e manipulativas, sentimentos e paixões, ideias e ideologias. Em outras palavras, é a vida do indivíduo e o indivíduo é sempre ser particular e ser genérico. O indivíduo da vida cotidiana é o indivíduo que realiza o trabalho que lhe cabe na divisão social do trabalho, entretanto a dominação da economia sobre a vida social tem propiciado uma crescente degradação do “ser” em “ter”, uma ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos. A modernização, o progresso ofensivo, a informática imprimem à vida cotidiana a sensação de que nada de antigo se mantém e nada de novo chega a criar raízes. O individualismo, a desarticulação dos movimentos sociais, o esquecimento dos valores fundamentais, aliados a novas condições de existência social, aceleram a massificação, a passividade, a alienação generalizada. É dessa maneira que pensamos o cotidiano da mulher, os espaços da mulher “excluídos” ou incluídos precariamente, especificamente sobre um cotidiano historicamente e oficialmente marginalizado, como o vivido pelas mulheres da Rocinha. Em geral, as mulheres representam a maior ‘cultura singular excluída’ pelo menos no que tange ao impacto sobre o espaço público. É evidente que os espaços da mulher de modo geral estão associados ao lar, ao âmbito doméstico, valendo ainda uma discussão sobre as ocupações e transitoriedades dessa dita “cultura alternativa”, inclusive no que tange ao espaço do trabalho. Neste momento algumas indagações se colocam: o que é espaço público na Rocinha? O que é espaço público? O espaço de todos? O espaço público quando assim considerado é regulado pelo poder público, não podendo haver qualquer tipo de ação que infrinja as normas de sua convivência. Ora, a maior parte da Rocinha e considerada bairro desde 1993, no entanto é representada tanto pela população como pelo poder público como a maior favela do país, portanto sem regulação do poder público sobre parte do seu espaço. Voltando: o que é espaço público na Rocinha? Com certeza o espaço do trabalho formal e informal, na medida em que intenso comércio e prestação de serviços ocupam suas vias principais. Como se organiza esse mercado? Qual a participação da força de trabalho feminina? É difícil ter respostas estatísticas. Por outro lado, há um mercado provavelmente com predomínio de trabalho feminino no espaço privado do lar. Múltiplas formas de trabalho devem conduzir o cotidiano de muitas mulheres através de relações de relativa autonomia para obter renda através de pequeno comércio, ou estar sob o jugo de uma relação “por produção”, como ocorre com costureiras, bordadeiras, ou com outras habilidades manuais. Em que medida os ganhos obtidos sob qualquer tipo de relação de trabalho favorecem a real autonomia e liberdade da mulher das pressões vividas em seu cotidiano? O capital perpetuou a subordinação das mulheres e se serviu dela historicamente de várias maneiras. Na família nuclear, reproduzindo valores discriminatórios, hierárquicos das relações sociais e necessários para a manutenção da macroestrutura de exploração da atividade produtiva. No âmbito laborativo, por sua vez, atribuiu-se às mulheres, de modo geral, uma remuneração inferior a dos homens. Nesse contexto, as conquistas históricas só foram possibilitadas, entre outras coisas, pela expansão do capital em sua fase ascendente, o que significa que tendem a ser negadas na prática nos momentos em que o capital porventura enfrentar dificuldades maiores para a realização da acumulação. Então, não é possível? BIBLIOGRAFIA ABOIM, Sofia. Do público e do privado; uma perspectiva de género sobre uma dicotomia moderna. Estudos Feministas, Florianópolis, 20(1): 95-117, janeiro-abril/2012. CIAVATTA, Maria. O conhecimento histórico e o problema teórico- metodológico das mediações. In: FRIGOTTO, Gaudêncio e CIAVATTA, Maria (org). Teoria e Educação no labirinto do capital. São Paulo: Expressão Popular, 2014, pp. 191-229. FRIGOTTO, Gaudêncio. As novas e velhas faces da crise do capital e o labirinto dos referenciais teóricos. In:FRIGOTTO, Gaudêncio e CIAVATTA, Maria (org). Teoria e Educação no labirinto do capital. São Paulo: Expressão Popular, 2014, pp. 29-69. MÉSZARÓS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002. RABENHORST, Eduardo ramalho e CAMARGO, Raquel Peixoto do Amaral. (Re)presentar: contribuições das teorias femininas à noção de representação. Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 981-1000, setembro-dezembro/2013. STECHER, Antonio, GODOY, Lorena y DÍAZ, Ximena. Relaciones de producción y relaciones de gênero em um mundo em transformación. In: Trabajo y subjetividad: entre lo existente y lo necesario. SCHVARSTEIN, Leonardo y LEOPOLD, Luis (comps.). Buenos Aires:Paidós, 2005, pp.71-111.