Jovens LGBT em situação de rua

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Jovens LGBT em situação de rua: interfaces entre orientação sexual,
estilo de vida e abuso de drogas ilícitas
Marcos Roberto Vieira Garcia1
Fernanda Maria Munhoz Salgado2
Vera Sílvia Facciola Paiva3
Ana Carolina Simionato Costa4
Bianca Thais Manzari Pascoal5
Resumo: Baseada em pesquisa de campo realizada na cidade de São Paulo com jovens adultos
LGBT em situação de rua, a presente apresentação visa discutir alguns temas relacionados a sua
nas ruas e albergues. Em um primeiro momento, faz algumas discussões sobre as questões
associadas ao gênero e orientação sexual presentes na população de rua como um todo e na
população jovem em particular. Em um segundo momento faz considerações sobre o modo de vida
“nômade” comum aos jovens estudados, a partir das contribuições de alguns autores. Os resultados
iniciais da pesquisa mostram a predominância deste tipo de sociabilidade entre os jovens estudados,
o que se relaciona a sua orientação sexual e/ou identidade de gênero, levando a um afastamento
(físico e/ou financeiro) da família de origem e ao rompimento com o ideal de constituição de uma
família nuclear. Ao final, são feitas algumas reflexões a respeito do uso de drogas ilícitas entre os
jovens estudados, a partir da revisão das teorias que buscam interpretar a tendência de maior
consumo de drogas ilícitas por parte da população LGBT. Conclui-se que esta utilização por jovens
LGBT de rua está ligada - de diferentes modos - à estigmatização que sofrem por sua orientação
sexual e/ou identidade de gênero.
1
Doutor em Psicologia Social (USP); Professor da UFSCAR - campus Sorocaba, pesquisador do NEPAIDS
Mestranda em Psicologia Social (PUC-SP), bolsista pela CAPES
3
Profa Livre-Docente do IPUSP, coordenadora do NEPAIDS
4
Aluna de graduação em Psicologia (USP), bolsista de iniciação científica (PIBIC-USP)
5
Aluna de graduação em Psicologia (USP)
2
Introdução
Em um trabalho de campo desenvolvido no início da década de 90 com população em
situação de rua por um de nós, a mesma história foi relatada por dois informantes6. Consta que na
ferrovia Sorocabana, que liga o oeste do estado de São Paulo à capital, havia, em um dia da semana
e horário determinados, o “trem dos excluídos”. Neste trem, os últimos vagões eram reservados
àqueles que não podiam pagar pela passagem, população itinerante, muitas vezes em situação de
rua. O desembarque nas estações pelo caminho, porém, não era livre: vigiados pela polícia e/ou
pelos serviços de assistência social, só nos momentos de colheita agrícola alguns dos “excluídos”
eram recrutados para trabalho nas cidades. Em geral, o que ocorria era o inverso, com o trem
aumentando sua lotação nas sucessivas estações até seu destino final. O relato já naquele momento
suscitou uma inquietação, pela sua semelhança com a situação histórica descrita por Foucault, na
“História da Loucura”, a respeito das “Naus dos Loucos”, barcos que navegavam por alguns rios e
mares europeus nos séculos XV e XVI, levando os considerados loucos e expulsos de suas cidades.
Separados por cinco séculos e um oceano, os muito-pobres paulistas reproduziam a trajetória dos
“prisioneiros da passagem” descritos por Foucault (1978):
A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é
entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um
prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita
encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. (p 16-7)
Se as águas sugerem a metáfora da incerteza, da desordem, das emoções incontroladas, a
ferrovia e o trem simbolizam a chegada do “progresso” e da conquista de territórios. Os prisioneiros
desta passagem, portanto, também o são da possibilidade de usufruto deste “progresso” e destes
territórios. Exemplos paradigmáticos da pobreza extrema, estes passageiros em situação de rua
mostram a dramaticidade de desigualdade social existente no Brasil. Mas seria a pobreza o único
determinante para se receber o bilhete para o trem? O presente estudo busca refletir sobre o quanto
o estigma relacionado à orientação sexual pode ter também uma influência significativa neste
processo. Baseado em resultados preliminares de uma pesquisa de campo feita com população
LGBT em situação de rua, em um albergue no município de São Paulo, busca refletir sobre alguns
aspectos relacionados à intersecção entre a situação de rua, orientação sexual e identidade de
gênero.
6
Conduzido por um grupo de pesquisa e com a participação do priemrio autor deste texto, constituiu em um
levantamento extenso sobre o perfil da população de rua de São Paulo e as políticas de assistência social
voltadas a esta população (Vieira et al., 1992).
População em situação de rua: gênero e sexualidade
As questões relacionadas ao gênero e sexualidade têm sido em geral pouco abordadas nos
estudos sobre a população em situação de rua. Devido à pobreza extrema que a afeta, os estudos a
ela direcionados priorizaram quase sempre as questões de classe em detrimento das demais. Outro
fator que pode contribuir para deixar o estudo das questões de gênero neste segmento em segundo
plano é o fato desta ser uma população majoritariamente masculina, o que contribui para uma
invisibilidade das formas de opressão relacionadas ao gênero, uma vez que estas foram
tradicionalmente pensadas como direcionadas apenas às mulheres. Mas a predominância masculina
e as especificidades da situação das mulheres em situação de rua suscitaram questionamentos por
parte de alguns estudiosos que merecem aqui ser abordados.
Escorel (1999) observa um claro contraste entre a população pobre que tem moradia - ainda
que precária, como favelas e cortiços - e a população em situação de rua. No primeiro caso,
observa-se um processo de feminilização da pobreza, evidenciada pelo maior porcentagem de
famílias matrifocais em comparação com a média da população brasileira. No segundo, a
masculinização da mesma, evidenciada pelo maior número de homens sós. Se no primeiro caso as
mulheres assumem muitas vezes a dupla jornada - de cuidado dos filhos e do trabalho remunerado com rendimentos insuficientes para uma vida economicamente confortável, mantendo-as na
situação de pobreza, no segundo, pode-se observar com freqüência a situação de homens que
“desertaram” da unidade familiar. Nos relatos dos homens em situação de rua, ainda segundo
Escorel (1999), são comuns descrições de separações conjugais e de sua expulsão do lar por parte
dos familiares, em virtude do desemprego e do alcoolismo. Pelo fato de não conseguirem prover
economicamente a célula familiar, estes homens tem sua autoridade questionada, passando a ser
considerados incapazes e, portanto, dispensáveis da convivência familiar. Trata-se, assim, de
situações de opressão de gênero direcionadas aos homens que não cumprem as exigências prescritas
pelas identidades masculinas socialmente reconhecidas.
A menor proporção de mulheres em situação de rua em comparação com os homens é
relacionada por Escorel (1999) à maior proteção familiar direcionada às mulheres, à possibilidade
do emprego doméstico e à maior possibilidade culturalmente sancionada de recurso ao amparo
familiar em uma situação de crise financeira. Embora minoritárias, contudo, estas mulheres são
enfocadas em alguns estudos que ressaltam as situações de violência física e sexual por elas
sofridas. A própria situação de rua destas mulheres é frequentemente motivada pela fuga de casa
por motivo de violência física e sexual na família de origem (Escorel, 1999). Uma vez na rua, a
vulnerabilidade à violência permanece. Vieira et al. (1992) e Cezimbra (2001) descrevem os riscos
de abuso sexual a que as mulheres estão submetidas nas ruas, em função de seu menor número e do
relacionamento interpessoal frequentemente violento entre os que ali vivem. Muitas, por este
motivo, buscam um companheiro que as defenda do assédio dos demais. Varanda e Adorno (2004)
observam que no cotidiano nas ruas é freqüente a “troca” de sexo por algum tipo de favor ou
benefício por parte das mulheres. Escorel (1999) ressalta a existência de grupos de pessoas em
situação de rua onde uma mulher é “compartilhada” sexualmente por vários homens. A
vulnerabilidade das mulheres à violência sexual nas ruas é aumentada também pelo uso freqüente
do álcool, que dificulta o poder de reação frente a situações de violência.
Com relação às práticas homoafetivas da população em situação de rua, a escassez de
estudos é maior, embora tais práticas sejam citadas como freqüentes. De Lucca (2007) em um
estudo realizado parcialmente com observação participante dentro de um albergue paulistano,
refere, de passagem, que ali há muito “namoro e sexo, apesar de haver um forte preconceito contra
homossexuais” (p. 218) e nota o barulho do sexo como um daqueles que compõem a polifonia
noturna do dormitório masculino. Escorel (1999), em estudo conduzido no Rio de Janeiro, cita os
relatos de dois de seus informantes que estimavam que 60% dos homens moradores de rua têm
relações homossexuais. Entre os motivos apontados por eles para isso estão “a carência afetiva que
sentem na rua e uma convivência quase que exclusivamente masculina” (p. 165), além da troca
eventual de sexo por dinheiro. A única pesquisa de campo encontrada que inclui este segmento da
população foi desenvolvida por Frangella (2004), no bairro do Brás, em São Paulo. Esta autora
observou a presença de homossexuais efeminados que “apareciam nas ruas e no refeitório, com um
certo destaque, porém de maneira discreta. Portavam brincos, os cabelos arrumados, alguns tratados
com gel. Vestiam calças e camisetas justas, mas sem exagero” (p 171). Apesar da estigmatização a
eles direcionada em alguns momentos, observa que isto não impedia a convivência deles com os
demais e que
“Os homossexuais compartilham as fogueiras, a pinga, a comida, e fazem parte de outras
sociabilidades cotidianas da rua. São incluídos, inclusive, por meio de suas qualidades femininas:
carinhosos, acolhedores, dóceis. Elas são incluídas na condição feminina, até no que diz respeito à
satisfação sexual. Muitos homossexuais possuíam maridos na rua. (...). Da parte dos homens, as
manifestações da libido são (...) insinuantes quando associadas a seus companheiros homens ou
homossexuais ‘de coberta’” (p 198)
Frangella (2004) observa, a exemplo de Escorel (1999), que a prática homoerótica muito
difundida não significa a identificação por parte da maioria dos que a praticam como homossexual.
Segundo ela, na “ausência de mulheres, e embriagados sob a intimidade dos cobertores, homens
cedem seus carinhos a outros homens, ainda que isso seja pouco assumido” (p. 219).
Excelentes em relação à análise feita de outros aspectos da vida da população de rua, estes
estudos não buscam analisar a possível convergência da exclusão de classe com aquela sofrida pela
orientação ou prática sexual por parte deste segmento. Na literatura internacional, contudo, há um
número significativo de estudos sobre o tema, em espacial nos Estados Unidos e Reino Unido. .
Os estudos disponíveis sobre a categoria que os norte-americanos denominam homeless7 são
voltados principalmente às questões relacionadas à saúde física e mental. Enquanto na literatura
brasileira o recorte predominante se faz entre “crianças e adolescentes de rua”, de um lado, e
“população adulta de rua”, de outro, nos EUA é mais freqüente o recorte dos homeless youths,
segmento que inclui o adolescente de rua ou que vive em abrigos e se estende em alguns estudos até
a faixa dos 20 anos. É justamente nesse grupo que se concentra a maioria das pesquisas que
enfocam o comportamento e orientação sexual dos homeless norte-americanos.
Whitbeck et al. (2004), Rew et al. (2005) e Hyde (2005) observaram que os(as) jovens
LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e trangêneros) são muito mais susceptíveis a serem expulsos(as)
ou fugirem de casa8 em uma idade precoce do que os(as) heterossexuais, o que leva muitos(as) a
viverem em abrigos ou nas ruas. Ainda que com metodologias diferentes, estudos feitos na Costa
Oeste norte-americana mostram que a proporção de jovens que se identificam como LGBT em
relação ao total de jovens homeless se situa em torno de 20 % nas cidades maiores, porcentagem
que é significativamente menor nas cidades de menor porte, o que está relacionado à de jovens
LGBT por cidades maiores pela maior liberdade em exercer sua sexualidade (Whitbeck et al, 2004).
A bibliografia norte-americana indica também algumas peculiariedades entre jovens
homeless LGBT em relação àqueles que se identificam como heterossexuais:
- tem um histórico mais freqüente de violência física e sexual na família de origem e também
posteriormente, quando estão nas ruas (Whitbeck et al., 2004);
- são mais sujeitos ao abuso de álcool e substãncias ilícitas ( Cochran et al., 2002);
- são mais sujeitos à discriminação por parte dos próprios colegas de rua e da polícia (Milburn et
al., 2006);
- tem um número significativamente maior número de parceiros sexuais (Cochran et al., 2002);
- são praticantes mais frequentes do “survival sex” - troca de atividade sexual por drogas, alimentos,
7
O termo homeless, a exemplo dos termos utilizados no Brasil, tem definição distinta para diferentes
autores. Em geral, porém, é mais abrangente que seus congêneres nacionais. O US Code define homeless
como um indíviduo que não tem uma residência noturna fixa, regular e adequada ou que frequenta alguma
das várias modalidades de abrigo oferecidas.
8
Rew et al. (2005) citam que 73% dos jovens homeless gays e lésbicas de sua pesquisa referiram ter
deixado a cas dos pais por desaprovação em, relação a sua orientação sexual, , enquanto 25 % dos jovens
bissexuais disseram o mesmo.
abrigo ou dinheiro. (Whitbeck et al., 2004);
- são mais sujeitos a entrar no mercado da prostituição (Kruks, 1991; Pennbridge, Freese &
MacKenzie, 1992);
- são mais vulneráveis à infecção pelo HIV (Sugerman et al. 1991; Rotheram-Borus e Koopman,
1991; Sondheimer, 1992; Kipke et al., 1995; Pfeifer e Oliver, 1997).
Em estudo conduzido na Inglaterra, Dunne, Prendergast e Telford (2002) observaram neste
segmento o histórico comum de violência na infância, abuso de drogas, envolvimento com
prostituição e escolaridade interrompida (muitas vezes motivada por bullying duradouro e intenso) e
mostraram que para mais de um terço de seus pesquisados a questão da identidade sexual foi o
“gatilho” para a crise familiar que precedeu a saída de casa. Já dois terços dos jovens LGBT
australianos que participaram do estudo conduzido por Rosenthal, Mallett e Myers (2006)
apontaram os conflitos com os pais como a única razão importante para deixarem o domicílio de
origem.
Podemos pensar que nossa realidade não é muito diversa daquelas, em relação aos
homossexuais em situação de rua, jovens ou não. Estudos sobre travestis, como o realizado pelo
autor deste projeto (Garcia, 2007) e o de Ferreira (2003), observaram que os garotos efeminados
oriundos de camadas economicamente desfavorecidas muitas vezes abandonam precocemente a
escola, por causa da intensa discriminação a que são submetidos. A mesma discriminação ocorre no
interior das famílias. A busca pela “cidade grande” ainda na adolescência é comum entre
homossexuais no Brasil (Green, 2000 e Parker, 2002), por permitir uma melhor expressão da
própria sexualidade e facilitar a inserção no mercado de trabalho, mais restrito para os moradores
de cidades menores, motivando a migração de muitos segmentos sociais pelo Brasil afora. O
estigma associado ao jovem “bicha” estimula a migração como resposta, trazendo como uma
possível consequência o afastamento progressivo da família e a falta de suporte social.
`A escolarização precária e fragilização dos vínculos familiares se somam a discriminação
que os jovens homossexuais sofrem no mercado profissional, principalmente quando efeminados.
Singer (1979) cita, entre os obstáculos para a inserção dos trabalhadores do setor autônomo na
divisão social capitalista do trabalho, os preconceitos de raça, sexo, idade, etc, que levam à “recusa
por parte das empresas de engajar negros, mulheres e pessoas acima de certa idade” (p 84). A
homossexualidade, embora não citada diretamente pelo autor, pode ser analisada dentro deste
mesmo contexto.
O rompimento ou precariedade dos vínculos com a família e o trabalho, apontados por
Paugam (2003) como aqueles que geram a desqualificação social entre a população muito pobre,
parecem intensificar a vulnerabilidade dos jovens homossexuais de camadas populares ao
empobrecimento, levando-os à situação de rua.
Homossexualidade e vida nômade
Maffesoli (2001) refletindo criticamente sobre a concepção durkheiniana de anomia,
considera esta condição como algo estrutural, não necessariamente negativa. O nomadismo aparece,
desta forma, como uma condição antitética em relação à sedentariedade, comprometida com as
idéias de residência, segurança e domesticação. Condição por excelência da modernidade, a
sedentariedade aparece como um desdobramento do Estado na vida cotidiana, onde o fixar aparece
como um instrumento de dominação. Já o nomadismo, ao supôr múltiplas identificações e, portanto,
múltiplos lugares, configura um rompimento com este ideal moderno.
Na análise do nomadismo feita por Deleuze e Guattari (2005), este aparece de forma
positivada, condição ligada à idéia de um futuro aberto, a ser construído sem um programa e
relacionado à noção nietzschiana de “devir”. No nomadismo o modelo de grupalização é o bando,
que tem como algumas de suas características a ausência da consolidação de um poder estável, a
transitoriedade e a rotatividade, o que faz com que seus integrantes se dissolvam e se reagrupem
novamente. Na sedentariedade, por outro lado, ordem dominante na sociedade capitalista e que tem
a família como modelo por excelência, os indivíduos são capturados espacial e identitariamente em
organizações sociais mais definidas. O nomadismo aparece como uma possibilidade de
heterogeneidade oposta à estabilidade e à constância, como uma linha de fuga à captura identitária
típica do Capitalismo. E, uma análise bastante instigante, Guattari (1992) considera que o
Capitalismo cria um “falso nomadismo”, uma simulação com a finalidade de proteção frente ao
nomadismo verdadeiro, processo que pode ser observado na vivência metropolitana, onde há
aparentemente tudo circula (pessoas, carros, músicas, moda, etc.), mas ao mesmo tempo tudo
parece estar fixo e imóvel.
O estudo do fortalecimento do modelo de família nuclear burguesa a partir do século XIX na
Europa mostra um paralelo claro entre tal modelo de família e a condição sedentária. A centralidade
da figura do “pai” na França oitocentista, autoridade que substitui a do rei no ambiente doméstico
mostra o equívoco de se considerar o espaço privado como de domínio das mulheres, uma vez tal
“pai’ domina a casa mesmo estando fora (Perrot, 1999). Ao mesmo tempo, porém, autoriza-se
progressivamente os homens jovens a viverem um período de liberdade frente às exigências de
constituição familiar, a “viverem a juventude” antes do casamento os sedentarizar. Perrot (1999)
observa este nomadismo institucionalizado mesmo entre homens jovens de camadas populares,
momento em que se formam os primeiros grupos (“tribos”) juvenis. A análise da autora revela um
paralelo interessante entre o nomadismo dos jovens - que se destacam provisoriamente de suas
famílias - e a boemia dos artistas - que nela vivem permanentemente. A condição da boemia é
inversa simetricamente à da vida burguesa, em diversos aspectos: em relação ao seu tempo
(noturno), ao seu espaço (ruas e bares), ao seu tipo de moradia (incerta) e a sua moralidade (não
baseada na fidelidade). É também, como mostra a autora, um local de certa aceitação para os
naquele momento denominados pederastas.
A relação entre o nomadismo e a homossexualidade tem sido explorada por alguns autores.
Perlongher (1987) observa a presença do modelo de sociabilidade nômade entre os michês e outros
personagens do mercado sexual masculino em São Paulo. A vivência junto à “turma de amigos” é
citada como freqüente por Green (2000), em relação do universo homoerótico brasileiro da segunda
metade do século XX.
Ainda que alguns segmentos LGBT passem por um processo de
sedentarização9, é pertinente a consideração de que a sociabilidade LGBT em geral possui mais
elementos que a aproximam das características do nomadismo descritas.
Além do afastamento freqüente da família por dificuldades relacionadas ao assumir-se e/ou
à discrimação familiar, do recurso mais freqüente ao grupo de amigos e da frequente vivência na
“noite”, outro fator que contribui para um maior nomadismo da sociabilidade homoerótica nas
grandes cidades brasileiras é a migração sexual. Parker (2002), em sua análise da migração LGBT
pelo Brasil e mundo afora, mostra que a busca pela liberdade sexual não é o único motivo da busca
pela “cidade grande”, ainda que a fuga da vigilância nas cidades menores seja um fator também
importante. A busca pela prosperidade e pela modernidade, também presente em outros grupos de
migrantes, são fatores a serem ressaltados na migração sexual: mesmo que os indivíduos continuem
pobres, a diversidade e a velocidade da vida nas grandes cidades é preferível para muitos
homossexuais que vem para a “cidade grande”. O mercado do sexo nas grandes cidades acaba por
ser, para muito jovens LGBT, um modo de entrar em contato com uma rede de contatos na nova
cidade, ao mesmo tempo em que possibilita a sobrevivência econômica.
Uso de álcool e drogas ilícitas na população LGBT
Um fator fortemente associado à situação de rua é o uso álcool e drogas ilícitas. Escorel
(2009) sugere que este uso é causa e conseqüência da situação de rua: ao mesmo tempo em que o
uso contribui para a fragilização do vínculo familiar de origem, é em certa medida necessário com
9
Ver discussão feita por um de nós a respeito da constituição das famílias homoparentais (Garcia et al, 2007)
“anestesia” frente à permanência nas ruas. Os resultados preliminares da pesquisa por nós realizada
mostraram um altíssimo índice de consumo de drogas - especialmente crack - entre os
entrevistados. Em virtude deste dado e da bibliografia que mostra um elevado consumo de álcool e
drogas pela população LGBT em geral no Brasil10 e no mundo, este tema merece ser abordado mais
detidamente.
Alguns reviews de pesquisas internacionais estimam que a população LGBT tem uma
propensão maior de abuso de drogas ilícitas, com um incidência de duas a três vezes maior se
comparada à população heterossexual de mesma idade e faixa de renda (Bux, 1996 , Jordan, 2000).
Tais estudos levantam algumas hipóteses para explicar tal dado. A primeira delas refere-se aos
ambientes freqüentado pelas pessoas LGBT: pela situação de discriminação sofrida e dificuldade de
aceitação por parte das famílias, estas em geral teriam maior tendência a freqüentar bares e boates
como forma de busca por relações de amizade ou afetivo-sexuais, processo que facilitaria o uso
abusivo de álcool e outras drogas, freqüentes em tais espaços. A segunda hipótese relaciona-se ao
estigma, sugerindo que a população LGBT utilizaria álcool drogas com maior frequência para
mitigar o sofrimento pela discriminação sofrida ou como forma de diminuir a autocensura pela
própria orientação sexual, em função da interiorização do estigma sofrido. A terceira hipótese
propõe que a relação entre homossexualidade e uso mais freqüente de drogas estaria no padrão de
rompimento com as normas sociais presente em ambos os comportamentos: uma vez rompendo-se
com o ideal de normalidade heterossexual pressuposto nas sociedades ocidentais, passa-se a ocupar
em alguma medida uma posição de “outsider” (Becker, 2008), o que facilitaria por sua vez tanto o
contato com outros “outsiders”, como os consumidores de drogas ilícitas, quanto atenuaria o receio
de rompimento com padrões sociais que estigmatizam o uso de drogas.
Os resultados preliminares da pesquisa realizada sugerem que as três hipóteses parecem
plausíveis para explicar o uso de drogas ilícitas pelos(as) entrevistados(as). A estas, é possível
incluir ainda uma quarta hipótese, associada à sociabilidade nômade, descrita anteriormente: o fato
de haver um afastamento maior da família de origem, em virtude da não-aceitação da orientação
sexual e identidade de gênero, muitas vezes envolvendo a migração da cidade de origem, e o fato de
não haver uma urgência na constituição de uma nova família nos moldes da família nuclear, amplia
as possibilidades de agrupamento baseadas em amizade não em laços de casamento ou sanguíneos
por parte destas pessoas. Isso acaba por diminuir a vigilância sobre o uso de drogas, comum nas
famílias de origem, e facilitar o mergulho na que um dos entrevistados denominou “vida loka”.
Os(as) entrevistados(as) parecem reproduzir em uma intensidade ainda maior a inversão da vida
10
Pesquisas realizadas no Ceará por Gondin (2006) mostraram uma elevadíssima porcentagem de HSH que
consomem uma grande quantidade de álcool em ocasiões de lazer
burguesa presente na vivência da boemia descrita por Perrot (1999): vida noturna, nas ruas, com
moradia incerta e com vida afetiva/sexual não-monogãmica.
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